segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Retrato de um jovem genial


Retrato de um jovem genial
Influenciado pelo Iluminismo, José Bonifácio foi um estudante combativo
Ana Cristina Araújo

As elites brasileiras se preocuparam desde cedo em bem encaminhar as novas gerações. No século XVIII, o ingresso na Universidade de Coimbra, reformada pelo marquês de Pombal em 1772, era o passaporte simbólico para a realização dos seus melhores sonhos e aspirações.

Com os filhos formados na Metrópole, as famílias mais ilustres do Brasil se viam em condições de disputar para eles cargos e carreiras na administração e na Justiça da Coroa, garantindo-lhes o futuro e a ascensão na sociedade colonial. Bonifácio José Ribeiro de Andrada (1726-1789), rico e respeitado comerciante de Santos, foi um daqueles que não descuraram da formação de seus filhos varões.

Às expensas do patrimônio familiar, três de seus dez descendentes – José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos – se beneficiaram de uma esmerada educação aqui no Brasil e prosseguiram seus estudos na “Lusa Atenas”, como costumavam se referir à prestigiosa universidade portuguesa.

José Bonifácio ingressou em Coimbra aos 20 anos. Em 1783, matriculou-se no primeiro ano do curso jurídico, concluindo sua formatura em Leis em julho de 1788. Iniciou o segundo ano em 12 de outubro de 1784, freqüentando, com brilho, as cadeiras de Direito, Filosofia Natural e de Matemática. No ano seguinte, a 19 de outubro, inscreveu-se no terceiro ano. Em 6 de outubro de 1786 já estava matriculado no quarto ano, e em 11 de outubro de 1787 pagou as suas últimas “propinas” (mensalidades) à Universidade.

A Congregação da Faculdade de Leis atribuiu-lhe o diploma do Curso Jurídico com as seguintes qualificações: “Em procedimento e costumes aprovado por todos; em merecimento literário com 5 votos de bom e 2 de muito bom”. Habilitado com as cadeiras preparatórias de Matemática e Filosofia Natural, conforme impunham os Estatutos Pombalinos de todas as faculdades, prosseguiu paralelamente sua formação na Faculdade de Filosofia, vindo a concluir, com brilhantismo, o curso de Filosofia, em 16 de Julho de 1787. Enfim, no espaço de cinco anos fez dois cursos e obteve dois diplomas acadêmicos.

No período, freqüentavam a Universidade de Coimbra 22 jovens oriundos da América portuguesa, alguns dos quais se tornariam muito próximos de José Bonifácio: Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt, João Evangelista de Faria Lobato, José Egídio Álvares de Almeida; Bernardo de Sousa Barradas e Francisco de Melo Franco. Estes jovens ilustrados não se contentavam com o currículo universitário. Entregavam-se também à leitura de obras proibidas, sendo alguns deles acusados pelos professores de manifestarem, publicamente, atitudes e opiniões “incrédulas” e “libertinas”.

Sem receio de errar, o professor da Faculdade de Cânones e bibliotecário da Universidade, João Pedro Ribeiro, anotou os nomes dos ídolos intelectuais que mais entusiasmavam a juventude acadêmica da época: Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Mably, Blackstone, Diderot, Condorcet, Mirabeau, Marmontel, Holbach, Helvétius e Filangieri. Em 1777, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, reitor reformador escolhido pelo marquês de Pombal para zelar pela renovação dos estudos de todas as faculdades, não deixava também de reconhecer que “os estudantes da Nova Reforma” se tornaram conhecidos por “pensarem livremente em pontos de religião”. Com manifesta complacência, defendia que os espíritos livres triunfavam sobre os excessos e as indiscrições de alguns, aplicando-se a maioria dos rapazes ao estudo de “conhecimentos necessários e utilíssimos”.

Um traço comum caracterizava a formação dos estudantes: o reconhecimento da importância do estudo da filosofia e das ciências e o gosto pela discussão sobre política e religião. Mas as audácias de espírito desta juventude inconformista não ficavam por aqui. No meio estudantil, corriam de mão em mão manuscritos anônimos, com poesias e libelos satíricos que ridicularizavam a tacanhez de alguns professores e denunciavam a falta de tolerância que então se vivia na academia.

As composições mais conhecidas e glosadas eram o Desertor das Letras (1774), a Ode a Fileno (c. 1786) e a Lanterna Mágica ou Trombeta (1818). Como se depreende das datas de alguns desses textos, a geração de José Bonifácio estava no centro de uma cultura subterrânea de contestação. Lê-los, naquela época, era perigoso. As notícias dos catorze indivíduos penitenciados no auto-de-fé público de 1781 – livres-pensadores presos por perfilharem “ímpias doutrinas” – causavam inquietação e medo entre os estudantes.

No rol dos sentenciados encontravam-se dois estudantes brasileiros: Francisco de Melo Franco, matriculado em Medicina, que pouco depois incendiaria a universidade com a divulgação do Reino da Estupidez (1784); e o poeta António de Sousa Pereira Caldas, a quem se atribui a Ode ao Homem Selvagem (1784), composição fortemente influenciada pela leitura de Jean-Jacques Rousseau. O poema satírico Reino da Estupidez, de que se conhecem várias versões manuscritas, parece ter sido da lavra de Francisco de Melo Franco, entretanto absolvido e readmitido, em 1782, no segundo ano do curso médico.

José Bonifácio devia também à Universidade de Coimbra o início de uma sólida formação como naturalista. Domingos Vandelli (1730-1816), seu professor de História Natural, reconhecendo sua inteligência e inclinação para todas as matérias relacionadas ao estudo do universo físico, encarregara-se, no final do curso, de recomendá-lo ao duque de Lafões (1719-1806), presidente da Academia Real das Ciências de Lisboa. Com o seu talento e beneficiando do alto patrocínio do duque de Lafões e do naturalista abade Correia da Serrra, José Bonifácio impressionou os sábios daquela agremiação. Ingressou na Academia em 4 de março de 1789 como sócio livre, com apenas 26 anos.

Embora pensasse nessa época em exercer algum cargo ligado à magistratura, foi porém como filósofo, ou, como ele próprio se define, na qualidade de “constante indagador da verdadeira e útil filosofia”, que apresentou sua primeira memória à Academia das Ciências de Lisboa. Versava sobre “a pesca das baleias e extracção do seu azeite, com algumas reflexões a respeito de nossas pescarias” (1790). Publicou depois, com regularidade, outros importantes trabalhos de Mineralogia e História Natural com a mesma chancela acadêmica. Uma década mais tarde, seus méritos como homem de ciência, dotado de um espírito livre e tolerante, já eram reconhecidos em toda a Europa e ratificados pelas principais academias e centros de saber, de Paris a Iena, de Berlim a Upsala, de Londres a Viena.

Seu percurso internacional, impulsionado pelo duque de Lafões, que lhe franqueia os primeiros contatos no exterior, é financiado pelo governo e tem o apoio de diplomatas, como Luís Pinto de Sousa Coutinho. Foi este que assinou, em 31 de maio de 1790, a minuciosa “Instrução da Viagem Filosófica Européia”, que poria José Bonifácio em contato com influentes cientistas estrangeiros e embaixadores residentes nos países que visitou.

Por um período de dez anos (1790-1800), José Bonifácio percorreu, na companhia de Manuel Ferreira da Câmara e Joaquim Pedro Fragoso, os mais importantes centros científicos europeus. Nesta longa e cosmopolita expedição, viveu quase exclusivamente devotado à ciência, que cultivava com entusiasmo. Numa conjuntura marcada pelos ecos da Revolução Francesa (1789-1799) – cujo desenrolar inicial acompanha, a partir de Paris, com desconfiança e apreensão –, mantém um calculado afastamento de todas as convulsões políticas que atingem o Velho Continente. E a mesma atitude parece pautar o seu olhar sobre o futuro do Novo Mundo, após a declaração de independência das colônias inglesas da América do Norte (1776) e a Inconfidência Mineira (1789), no Brasil.

Ele regressa a Portugal coroado de prestígio internacional e disposto a pôr a serviço do bem público as idéias e os valores do Iluminismo. Pretendia, com o que vira praticado em outras nações e com os conhecimentos que adquirira, dinamizar, em primeiro lugar, o desenvolvimento das atividades econômicas, modernizando tecnologicamente a indústria, em especial a metalurgia, difundindo ensinamentos aos agricultores e fabricantes, melhorando as infra-estruturas viárias, tirando o melhor partido das riquezas naturais e auxiliando o progresso material com o incremento do bem-estar, da educação e da saúde das populações.

Em 15 de abril de 1801, voltou a Coimbra para ministrar a recém-criada cadeira de Metalurgia. Acumula, então, as funções de lente da Universidade com as atribuições de intendente geral das Minas e Metais do Reino e diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda, com o especial encargo de aí realizar experiências de Química e Docimasia, além de outros cargos. Em 1805, foi nomeado desembargador da Relação e Casa do Porto.

À sua elevada posição política, José Bonifácio associava o peso de missões científicas de indiscutível complexidade. Em todos estes domínios e numa conjuntura difícil, marcada pela guerra e pela incerteza sobre os rumos políticos do país, revelou grande competência e brio no serviço que prestou à Coroa portuguesa. Durante as invasões francesas (1807-1811), participou ativamente do movimento libertador, integrando o corpo voluntário de batalhões acadêmicos. Pegou em armas, preparou munições e coordenou operações militares.

Com o doutor Tomé Rodrigues Sobral, produziu, no Laboratório Químico da Universidade, pólvora para abastecer as tropas aliadas. Sob o comando do coronel Trant, governador das armas de Coimbra, encarregou-se, em 1809, dos trabalhos de fortificação da cidade e dirigiu operações ofensivas arriscadas na região da Beira. Por sua lealdade e valentia, recebeu louvores dos governadores do reino e dos chefes do exército português.

Em seu último discurso proferido em sessão pública, na Academia Real das Ciências de Lisboa, em 24 de junho de 1819, na nobre qualidade de secretário perpétuo – cargo que aí exercera durante sete anos consecutivos –, sublinhou seu genuíno apego à causa comum do Império Luso-Brasileiro: “Mostrei, senhores, que o estudo das letras não desponta as armas, nem embotou um momento aquela valentia, que sempre circulara em nossas veias, quer nascêssemos aquém ou além Atlântico”. Esta seria, talvez, a última ocasião de se despedir do país que fora o seu legítimo berço, mas não o túmulo das suas esperanças e ambições.

ANA CRISTINA ARAÚJO É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA E AUTORA DE A CULTURA DAS LUZES EM PORTUGAL. TEMAS E PROBLEMAS. LISBOA: LIVROS HORIZONTE, 2003.

SAIBA MAIS:

CALDEIRA, Jorge (org.). José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, 2002. (Coleção Formadores do Brasil).

CERQUEIRA FALCÃO, Edgard de (org.). Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva. Santos: Câmara Municipal, 1963. 3 v.

CRUZ, Guilherme Braga da, Coimbra e José Bonifácio de Andrada e Silva. Lisboa, Sep. “Memórias da Academia das Ciências de Lisboa - Classe de Letras”, 20, 1979.
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio: 1783-1823. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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