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quinta-feira, 20 de março de 2014

Marcha rumo à catástrofe

No dia 22 de junho de 1941, três milhões de soldados alemães invadem a União Soviética. A investida, há 70 anos, durou meses e fez mais vítimas do que qualquer outra, constituindo um ponto de inflexão na História mundial. Após alguns sucessos iniciais, as forças alemãs fracassam , devido à paranoica megalomania de Hitler e à mais abnegada resistência da União Soviética
Por Till Hein e Jonathan Stock

1941 - O ano fatídico (I)
A campanha militar de Hitler na Rússia

A fumaça de uma casa de fazenda em chamas escurece o céu perto de Charkow, no nordeste da Ucrânia. Aparentemente irrefreável, e de início com uma velocidade espantosa, a máquina militar alemã avança rumo ao leste




No dia 22 de junho de 1941, quando tem início o ataque à União Soviética, Fritz Farnbacher, oficial da 4ª Divisão de Panzers (blindados), escreve em seu diário que a maioria de seus camaradas se alegraria "imensamente se finalmente houvesse combates e muito barulho de novo". E que ele está feliz por poder trocar "as atividades muitas vezes enfadonhas do serviço cotidiano" por "uma guerra de verdade".

Nem meio ano depois, ele a chamará de "a mais desgraçada de todas as guerras".

Farnbacher é um dos mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas alemãs, que invadem o maior país do planeta. A ofensiva fará mais vítimas do que qualquer outra da História: cerca de 27 milhões de soviéticos morrem em consequência da invasão de seu território; entre eles, quase 18 milhões de civis, aproximadamente 30% de todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial. E durante esse avanço dos alemães, um número ainda maior de órfãos, viúvas e feridos fica para trás, nas mais de 1.700 cidades destruídas pelos bombardeios e nas 70.000 aldeias queimadas da União Soviética.

Trata-se de uma guerra que difere de todas as outras campanhas militares da Modernidade, pois não consiste apenas em um esforço de conquista, mas também numa incursão destrutiva contra porções enormes da população. Uma guerra planejada para ser exatamente assim.

NO DIA 30 DE MARÇO DE 1941
, Hitler explica durante 2 horas e meia, a cerca de 100 de seus generais mais graduados, na nova Chancelaria do Reich, em Berlim, a "luta entre duas visões de mundo", na qual o "bolchevismo" precisa ser destruído.

A "condução da guerra contra a Rússia" deve ser diferente do esquema adotado até então. Nas campanhas militares até aquele momento a justiça para com todos os "criminosos" nos territórios ocupados teria sido "humana demais".

Não se escuta nenhum protesto do alto comando do Exército. Rotineiramente, as explanações do Führer são traduzidas em ordens; diversos esboços operacionais são elaborados e avaliados de diversos ângulos. E então a direção da Wehrmacht emite duas ordens que custarão a vida a centenas de milhares de pessoas.

A primeira permite "liquidar sem dó" os francoatiradores, em vez de levá-los a um tribunal de guerra, como até então fora feito. No caso de a identificação dos atacantes inimigos se revelar impossível, devem ser tomadas "medidas de violência coletiva" contra cidades e vilarejos. Uma simples suspeita bastará para que sejam destruídas aldeias inteiras. Inversamente, crimes de guerra alemães serão tratados com benevolência, sem punições. Uma única exceção será feita: nos episódios de estupros e de pilhagens descontroladas.

A outra decisão se volta contra os comissários políticos soviéticos, aqueles funcionários comunistas destacados para acompanhar toda a unidade do Exército Vermelho e controlar seus integrantes. De acordo com as instruções para o ataque à União Soviética, eles não deverão ser tratados como prisioneiros de guerra, mas sumariamente fuzilados.

A ordem também rompe com a tradição de respeito pelo inimigo, que manda tratar prisioneiros com justiça. Alguns generais suspeitam que, difundida no campo de batalha, essa orientação aumentará a resistência de soldados inimigos. Mesmo assim, o corpo de oficiais expressa admiração por Hitler. Um tenente-general diz aos seus comandantes: "Na antiga Alemanha, uma ordem dessas teria sido impossível, porque ninguém teria tido a coragem de emiti-la".

As garras do Chanceler se estendem em direção aos celeiros, campos de petróleo e fundições de armas da União Soviética. Esta guerra deverá permitir à Alemanha criar um império que se estenderá do Atlântico aos Montes Urais e, com isso, garantir-lhe supremacia absoluta no mundo.

Somente uma sombra de dúvida, uma fugaz incerteza, acomete o líder do ataque, antes que soe a hora para o avanço das tropas. Em um círculo íntimo, Hitler admite: "Tenho a sensação de estar escancarando uma porta para um lugar escuro, nunca antes visto, sem saber o que se oculta atrás dele".

NO DIA 22 DE JUNHO DE 1941, às 03h15min, começa a ofensiva. A frente se estende por uma linha de quase 1.000km, do Mar Báltico até os Montes Cárpatos (10 dias depois, tropas romenas e alemãs atacarão a União Soviética partindo da Romênia, e assim ampliarão a frente para 1.500km). Nas florestas da Prússia Oriental e da Polônia, centenas de milhares de soldados se esconderam a apenas poucos quilômetros das tropas fronteiriças soviéticas, o plano prevê um ataque surpresa e os guardas da fronteira de fato não desconfiam de nada.


A Wehrmacht quer decidir sua "campanha militar russa" rapidamente, com 3.600 tanques. Mas em muitos lugares o avanço ocorre em estradas de chão batido. A areia penetra nos motores e resulta em mais avarias que acertos contra o adversário. Além disso, faltam mapas; as tropas avançadas são obrigadas a pedir orientações a camponeses, como na foto à direita, parte de um conjunto de coleções particulares descobertas várias décadas após o fim da guerra

Poucas horas antes de o avanço ter início, os alemães retiram a camuflagem de seus veículos, arrastam canhões para fora de seus esconderijos e os posicionam para funcionar. E então, bem mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht cruzam a fronteira, acompanhados por 3.600 Panzers (blindados), 2.700 aviões e mais de 750.000 cavalos atrelados a canhões, veículos de abastecimento e ambulâncias. A maior força militar de ataque que jamais existiu.


ELA ESTÁ ORGANIZADA em três grandes exércitos: o Exército Norte deve atravessar a região do Báltico e avançar sobre Leningrado; o Exército Sul tem por função ocupar a Ucrânia; e o Exército do Meio está encarregado de tomar as cidades de Minsk e Smolensk, para em seguida conquistar Moscou.

Essas três formações estão compostas por 153 Divisões; unidades tão numerosas quanto pequenas cidades, ramificados em uma malha de regimentos, batalhões e companhias, cada qual com seus próprios cavalariços, padeiros, açougueiros e um serviço de correio de campanha.


A 4ª DIVISÃO DE PANZERS de Fritz Farnbacher luta como parte do Exército do Meio; sua tarefa é altamente arriscada. Com seus tanques eles devem romper o mais rápido possível a frente do Exército Vermelho, para cercar o inimigo.

A velocidade é decisiva, insistem seus comandantes incessantemente. Até o final de setembro essa campanha militar tem de ser vencida; para evitar que ela se estenda pelo período das chuvas, que enlameiam as estradas russas durante semanas a fio.

"Não existem paradas; pausas, só para reabastecer", escreve Farnbacher em seu diário. "As refeições são feitas durante a viagem, ou durante os breves intervalos de abastecimento. Só existe uma meta, um destino: Moscou!".

Mil e quarenta quilômetros os separam da capital soviética. Mas 3 semanas depois, serão somente 350km. Já nas primeiras horas do confronto a Wehrmacht conquista quase todas as posições soviéticas nas regiões de fronteira, onde estão estacionados quase 3 milhões de soldados do Exército Vermelho, além de mais de 10.000 tanques e 8.000 aviões de guerra. Mas ninguém alertou as tropas; para elas, o ataque é uma surpresa total, o ditador soviético Josef Stalin havia proibido seus generais de preparar uma defesa eficaz. Ele ignorara os inúmeros indícios de uma movimentação de tropas alemãs, e a possibilidade de um ataque iminente, tomando-os como uma campanha intencional de desinformação.

A metrópole de Brest-Litovsk, localizada diretamente atrás da fronteira soviética, é conquistada em poucos dias. Aqui são principalmente crianças, mães e avós que se rendem às tropas


As fotos coloridas apresentadas nessas páginas foram consideradas perdidas durante muito tempo. Elas se originam dos pertences de três soldados, e documentam o cotidiano da guerra atrás do front

Em visita aos territórios conquistados, o chefe da polícia alemã Heinrich Himmler encontra camponesas locais. Como comandante da SS (sigla de Schutzstaffel, algo como 'Tropa de Proteção') e chefe da polícia, ele é uma das lideranças da guerra contra a guerrilha. É ele também quem se encarrega da germanização dos territórios ocupados, faxina étnica que objetiva o extermínio e a expulsão da população nativa, particularmente dos judeus

Além disso, o Exército Vermelho está muito mal equipado; às vezes, 5 soldados compartilham o mesmo fuzil. Em outras unidades há tão poucas pás que os homens usam seus capacetes de aço para cavar trincheiras.

Seus superiores são também inexperientes. No final da década de 1930, Stalin havia mandado prender ou fuzilar mais de 80% dos oficiais mais graduados como supostos "delatores e inimigos do Estado". Três quartos dos atuais comandantes não estão nem há um ano em seus respectivos cargos.

Acompanhados em terra pelos corpos blindados e pela Infantaria, os bombardeiros Stuka (derivado da palavra alemã Sturzkampfbomber, avião bombardeiro de mergulho) também penetram profundamente em território soviético, realizando ataques a aeroportos, depósitos do exército e entroncamentos ferroviários. Somente nas primeiras horas, bombas alemãs destroem mais de 60 pistas de pouso da Força Aérea soviética. Milhares de aviões explodem em chamas ainda no solo.

As tropas da Wehrmacht são seguidas por quatro grupos de "comandos de operações", cada qual com até 1.000 homens, que vasculham os territórios já conquistados. Esses grupos são constituídos principalmente por unidades da Polícia e membros dos serviços de segurança. Todos estão subordinados à SS, Schutzstaffel (tropa de proteção, em português), a temida organização paramilitar do Partido Nazista de Adolf Hitler. Sua tarefa: "liquidar elementos hostis". Uma terminologia que quer dizer: o assassinato sistemático dos funcionários comunistas e da população judaica.


LABAREDAS ARDEM na noite do dia 27 de junho de 1941 na sinagoga de Bialystok, cidade na Polônia ocupada pelos soviéticos, 300km a oeste de Minsk. Pouco antes, homens do 309º Batalhão da Polícia, que entrara em Bialystok juntamente com uma Divisão de Segurança, haviam trancafiado centenas de judeus no edifício e ateado fogo nele. Em pouco tempo as chamas saltaram para as casas vizinhas na praça do mercado. Mais homens, mulheres e crianças morrem calcinados, sufocam na fumaça ou são mortos a tiros pela polícia durante a fuga. Ao todo, mais de 2.000 pessoas perdem a vida.

No dia seguinte, o tenente-general Johann Pflugbeil, 58 anos, um veterano da 1ª Guerra, originário da Saxônia, elogia todos os participantes do ataque à sinagoga por seu empenho. No diário de guerra, ele justifica a ação alegando que francoatiradores soviéticos tinham se escondido no prédio. Isso é mentira, mas depois do decreto referente a julgamentos criminais de guerra aplicável à campanha na União Soviética, seus homens estão isentos de punições.

A tarefa das divisões de segurança não são os combates no front. Em vez disso, eles devem proteger pontos de apoio de abastecimento, aeroportos e pistas de pouso no interior do país, além de vigiar prisioneiros de guerra e combater os partisans, guerrilheiros do movimento de resistência aos alemães. A maioria dos homens da 221a Divisão de Segurança de Pflugbeil têm mais de 35 anos, e, com essa idade, já não servem mais para o esforço na frente de batalha. A alguns deles foi dito, ainda em casa, que eles estavam sendo convocados "apenas para tarefas de vigilância".

Após a conquista de cidades e vilarejos pela Wehrmacht, os homens de Pflugbeil obrigam os habitantes judeus a usar retalhos amarelos de identificação em suas roupas. Eles os detêm em campos, organizam contingentes de trabalhos forçados ou, simplesmente, os fuzilam como pretensos guerrilheiros (partisans).

A ESTRATÉGIA DOS ataques surpresa na frente Ocidental parece funcionar: no fim de junho, o Exército Central cerca 20 divisões do inimigo. Até o dia 9 de julho as tropas alemãs fazem 325.000 prisioneiros de guerra, e capturam, ou destroem, 3.300 tanques. Em rápidas duas semanas, a liderança alemã já se vê bem próxima da vitória.

No dia 3 de julho, Stalin, que até então havia silenciado, conclama seus cidadãos através de um discurso pelo rádio, para "a grande guerra em defesa da Pátria". Em toda parte, seu povo deve se sublevar, inclusive atrás das linhas alemãs, em uma guerrilha, uma luta de partisans. Os alemães entendem a parte da mensagem dirigida a eles: os cidadãos soviéticos defenderão sua terra natal com todos os meios possíveis, nessas condições, os agressores não podem contar com o respeito aos direitos dos povos. Hitler não se importa: "A guerra de guerrilha", explica ele em uma reunião, "nos oferece a possibilidade de exterminar tudo o que se opuser a nós".
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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Marxismo: coisa do passado?

A espécie de socialismo que triunfou de modo limitado no século XX foi aquele que Marx chamou de "vulgar". Nele, a regulamentação jurídica da produção e da distribuição, em teoria em prol da coletividade, foi confundida com o socialismo
por Vitor Bartoletti Sartori *



György Lukács » Foi um filósofo húngaro. Sua obra História e Consciência inicia a corrente de pensamento que passou a ser conhecida como marxismo ocidental. O livro é notável pela contribuição ao debate concernente à relação entre sociologia, política, filosofia e marxismo, e pela reconstituição da teoria marxista da alienação antes de os escritos de juventude de Marx terem sido publicados.

Social-democracia » Ideologia política de esquerda lançada no fim do século XIX por partidários do marxismo que acreditavam que a transição para uma sociedade socialista poderia ocorrer sem uma revolução, por meio de uma evolução democrática. Embora a ideologia pregue uma gradual reforma legislativa do sistema capitalista, a fim de torná-lo mais igualitário, o conceito tem mudado com o passar das décadas.


Quando se fala de marxismo hoje, muitos torcem o nariz dizendo se tratar de uma visão de mundo ultrapassada e, depois da falência do chamado "socialismo real", comprovadamente fadada ao fracasso. No entanto, é preciso notar que, mesmo que reiteradamente se diga que o marxismo está morto, a publicação de textos de Karl Marx e Friedrich Engels continua. Seriam os marxistas cegos? Meros utopistas? Acreditamos que não. A publicação recente de O Socialismo Jurídico de Engels pode mostrar que aqueles que melhor expuseram as críticas àquilo que foi chamado de "socialismo" no século XX são os próprios fundadores da tradição marxista.

É bom destacar que enquanto as publicações de Marx e Engels e de marxistas como György Lukács crescem, certa tradição marxista não pode mais ser encontrada nas livrarias: os livros de Stalin, por exemplo, sequer são editados na atualidade. Ou seja, é preciso notar que as obras dos fundadores da tradição marxista talvez possam ser extremamente atuais. Aquilo defendido nelas também. No entanto, a visão de mundo corporificada no "marxismo oficial" dos partidos ligados à extinta URSS certamente perdeu sua força. O marxismo, assim, pode não estar morto, mas o stalinismo está.

Papel do Direito 
As duas principais - embora não as únicas - formas pelas quais a esquerda se articulou no século XX foram, de um lado, a social-democracia, no Ocidente, e de outro lado o "comunismo", de molde soviético.

A primeira tradição primou pela universalização dos direitos sociais, do direito ao trabalho e dos direitos civis, buscando diminuir as desigualdades sociais no terreno capitalista. Eventualmente, chegou a ponderar uma transição gradual e progressiva ao socialismo. Doutro lado, aqueles que tiveram a URSS e a transição revolucionária ao socialismo ("em um só país", como defendeu Josef Stalin) por modelo, primaram pela propriedade estatal dos meios de produção, o que, supostamente, configuraria a coletivização da produção social. Desta última perspectiva, seria central a busca de um Direito socialista, não mais calcado na propriedade privada, mas na propriedade coletiva.

Socialismo jurídico » Concepção de mundo surgida no final do século XIX, segundo a qual a regulamentação jurídica da sociedade seria capaz de suprimir os vícios decorrentes do modo de produção capitalista.

Por conseguinte, a primeira questão a observar é o papel que desempenhou o Direito nessas concepções: ele foi central. A esfera jurídica foi considerada "instrumental" tanto para a ampliação das conquistas social-democratas como na regulamentação da propriedade juridicamente coletiva. A esquerda, pois, permaneceu, em grande parte, no "terreno do Direito". Fez justamente aquilo que Engels criticou ainda no século XIX, em sua obra O Socialismo Jurídico.

Isso dito, é preciso apontar que tanto os social-democratas como o marxismo oficial nominalmente apoiaram-se em Marx, assim disse o maior colaborador do autor alemão: "O direito jurídico, que apenas reflete as condições econômicas de determinada sociedade, ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34).


É preciso notar que as obras dos fundadores da tradição marxista talvez possam ser extremamente atuais

Há duas hipóteses a considerar: ou a esquerda não podia buscar auxílio no autor de O Capital, ou essa esquerda não soube, não pôde (ou não quis) compreender de modo adequado a teoria em que se baseou. Sobre essas hipóteses, é bom lembrar que o próprio Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha, teceu comentários ácidos acerca do movimento socialista de sua época, movimento esse que buscava o chamado "direito ao fruto integral do trabalho": "O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" (MARX, 2012, p. 33).
O socialismo que triunfou no século XX, ainda que de modo limitado, foi o que, em prol da coletividade, teve uma regulamentação jurídica da produção e da distribuição confundida com o socialismo


Na passagem, Marx critica aqueles que, tal qual a social-democracia do século XX, não buscaram a transformação substancial da produção social, deixando intocados os alicerces da relação-capital e: "o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho, um processo que, por um lado, transforma os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores imediatos em operários assalariados" (MARX, 1988, p. 252).

Caso se queira falar em socialismo, seria preciso, segundo o autor, superar a separação entre o trabalhador e suas condições de vida. É sobre essa base que se assenta o modo de produção capitalista, tendo por tarefa essencial à política anticapitalista a supressão daquilo que Marx chamou acima de relação-capital.

O autor de O Capital defende a transformação das bases da produção social. E, aqui, já se pode dizer: aqueles que entendem a distribuição de renda como uma medida socialista, como os militantes que o autor alemão criticava, deixariam justamente aquilo que precisaria ser questionado intacto. Tratar de "expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" seria um erro crasso, pois. Dando-se independência à distribuição ter-se-ia, na melhor das hipóteses, um "socialismo vulgar". Portanto, aos olhos do autor, a tradição social-democrata pode ser vista como aquela que, juntamente com parte dos "democratas" de sua época, "herdou da economia burguesa" equívocos que precisam ser ultrapassados por aqueles que buscam um socialismo digno de tal nome.

Essa busca somente seria possível com a supressão da relação-capital. E nesse último ponto é preciso apontar: as duas passagens de Marx mencionadas logo acima não atingem só a esquerda social-democrata. Os autointitulados comunistas não passam incólumes às críticas do autor.

As duas principais formas pelas quais a esquerda se articulou no século XX foram a social-democracia e o "comunismo" soviético

Trabalhador x propriedade
Na URSS, muito embora possam ter ocorrido alguns avanços em pontos específicos, como saúde e educação, a "separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho" permaneceu. Continuaram a existir "meios sociais de subsistência e de produção" como capital, e "produtores imediatos" como "operários assalariados" - por conseguinte, a relação-capital permaneceu nas sociedades de tipo soviético. E, da perspectiva marxista, talvez se possa dizer que esse tenha sido o problema fundamental dessas sociedades.
A social-democracia primou pela universalização dos direitos sociais, do direito ao trabalho e dos direitos civis, buscando diminuir as desigualdades sociais do capitalismo e ponderando uma transição gradual e progressiva ao socialismo

A fonte das vicissitudes da sociedade capitalista, mesmo que modificada, esteve presente de modo que, ao final, o socialismo do tipo soviético girou, principalmente, "em torno da distribuição".
Direito: impensável além do capital

Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Segundo o marxismo, no capitalismo, a raiz, a base da sociedade, está assentada na perpetuação da relação-capital. Uma crítica radical, pois, tem consigo busca da supressão da mencionada relação. E essa última traz consigo as figuras do burguês e do trabalhador assalariado.

O assalariamento, por sua vez, pressupõe tanto a relaçãocapital como o mercado. No caso, o mercado de trabalho, no qual a força de trabalho é uma mercadoria como outra qualquer. Em uma crítica marxista verdadeira é preciso considerar a mercantilização da vida cotidiana - nesta última, na sociedade capitalista, o homem aparece reduzido a uma engrenagem na reprodução social. Para que essa crítica possa ter fundamentos sólidos, é bom entender os mecanismos capitalistas em sua complexidade, a qual envolve a esfera jurídica. "O desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social - isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos - engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade - normas jurídicas estabelecidas pelo Estado. [...] Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 19).

A expansão do mercado em escala tendencialmente universal é uma exigência da produção capitalista. Ela traz consigo o domínio político do Estado e a regulamentação do Direito, os quais darão uma veste jurídica ao caráter universal do mercado.

Os indivíduos passam a se deparar com seus semelhantes como concorrentes potenciais, sendo, a despeito de suas diferenças reais, considerados "livres produtores de mercadorias" e "iguais" perante o Direito. Na esfera jurídica, pois, têm-se a igualdade e a liberdade, grandes ideias da burguesia em sua fase ascensional e revolucionária (basta pensar na Revolução Francesa) como essenciais.

No entanto, esses ideais, segundo Engels, estão realizados na própria sociedade capitalista - não são incompatíveis com a dominação. Antes, são componentes da igualdade e da liberdade jurídicas, as quais dizem respeito, em verdade, à concorrência, à situação do homem como vendedor de mercadorias. Portanto, os ideais mencionados, ao menos na forma como aparecem no discurso burguês, têm um solo específico, aquele da produção capitalista. Eles não podem ultrapassar esse solo.

Com a concorrência, "a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia" porque a "concessão de incentivos e créditos" e a compra da força de trabalho alheia sustentam a relação entre trabalho e capital, e essa relação configura o burguês como tal. Vê-se, assim, que a defesa do discurso jurídico liga-se à consolidação da ordem capitalista. Porém, não é só: dado que o papel central do Direito é essencial no encobrimento das desigualdades reais presentes na sociedade, segundo Engels, a "concepção jurídica de mundo" torna-se clássica para a burguesia. "A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 18).

Se a concepção religiosa fora "clássica" para a nobreza, a concepção jurídica assim pode ser considerada para a burguesia. Tem-se uma "nova concepção de mundo". Ela tem seu solo nas relações econômicas engendradas na separação entre o trabalhador e os meios de produção. Está também relacionada com a consolidação do trabalho assalariado em escala tendencialmente universal. Tratase de uma concepção de mundo que visava à preservação da nova ordem tal qual a visão teológica buscara preservar a ordem feudal: "trata-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado" (ENGELS, KAUTSKY, 2012, p. 18).

Para Engels, pois, o Direito tem uma função essencialmente conservadora na sociedade capitalista. Ele mascara as relações reais, dando a elas uma veste de "igualdade" e de "liberdade" - por conseguinte, para aqueles que buscam uma crítica radical ao capitalismo, vale aquilo que György Lukács disse: é preciso "afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica" (LUKÁCS, 2007, p. 57). O autor de O Socialismo Jurídico, inclusive, é explícito quando se trata da necessidade da crítica à concepção jurídica de mundo por parte daqueles engajados no movimento dos trabalhadores. "A classe trabalhadora [...] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes da burguesia" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 21).

A concepção jurídica de mundo, pois, é indissociável do domínio capitalista, sendo incapaz de ir "além do capital".


Conclui-se, desse modo, que em ambas as figuras pelas quais a esquerda se apresentou preponderantemente no século XX, como disse Engels acerca do socialismo jurídico, deixou-se - mesmo que com tensões que não podem ser analisadas aqui - "de modo mais ou menos intacto o cerne do problema, a transformação do modo de produção" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20).

Em ambos os casos mencionados se permaneceu, em grande parte, no nível da distribuição de bens e de renda. A superação da relação-capital (com a consequente transformação real do modo de produção) acabou sendo vista, no melhor dos casos, como uma tarefa futura. Pode-se dizer que a espécie de socialismo que triunfou de modo limitado no século XX foi aquele que Marx chamou de "vulgar" - nele a regulamentação jurídica da produção e da distribuição, em teoria, em prol da coletividade, foi confundida com o socialismo.

Portanto, deve-se perceber que uma crítica às experiências passadas pode vir da direita ou da esquerda - o século XXI vem sendo aquele do triunfo do neoliberalismo, da crítica de direita. Assim, é preciso ver a crítica marxista também. Ela, em considerável parte, baseia-se na crítica à "total incapacidade de compreender aquilo que ultrapasse o estreito horizonte jurídico" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 35). Ou seja, tem-se postura contrária tanto ao capitalismo como às formas ilusórias de superá- lo, como o socialismo vulgar.

A postura marxista é radical, certamente - busca a transformação substantiva da tessitura da sociedade. No entanto, diante de uma sociedade em que o "socialismo real", a social-democracia e o projeto neoliberal foram golpeados de modo sério, o radicalismo consequente talvez seja proveitoso.
Marx teceu comentários ácidos acerca do movimento socialista de sua época, que herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção


O marxismo hoje 
Agora já se pode dizer: tanto a socialdemocracia como o "socialismo real" ficaram vinculados, mesmo que com tensões, ao domínio do capital. Ou seja, seguindo Marx e Engels, ao contrário do que se diz muitas vezes hoje, a esquerda não fracassou por querer demais.

O que O Socialismo Jurídico esclarece para o presente não diz respeito só à necessidade da crítica à "concepção jurídica de mundo"; a obra deixa claro que sem a radicalidade não há crítica verdadeira ao capitalismo. Quando se trata de "transformação do modo de produção", não há meio termo. A busca de uma sociedade mais humana, uma sociedade emancipada, não vem com as conquistas parciais que pressupõe o capitalismo; também não parte pela mera mudança do regime de propriedade (da propriedade juridicamente individual para a propriedade coletivo-estatal).

Pode-se dizer que a espécie de socialismo que triunfou de modo limitado no século XX foi aquele que Marx chamou de "vulgar"

A teoria marxista pode ser mais atual do que nunca por ser a única capaz de ir às raízes dos problemas que afligem a vida do homem da sociedade capitalista. Diante do fracasso relativo da esquerda do século XX e das desigualdades e distorções geradas pelo neoliberalismo, a mencionada obra de Engels pode nos fazer questionar os próprios fundamentos da sociedade contemporânea - esse seria o único caminho para um mundo essencial e verdadeiramente melhor.

* Vitor Bartoletti Sartori é mestre em História pela PUC-SP, doutorando em Filosofia do Direito pela USP e autor do livroLukács e a Crítica Ontológica ao Direito.

Referências 
ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O Socialismo Jurídico. Trad. de Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.

LUKÁCS, György. O Jovem Marx e Outros Escritos Filosóficos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.

_______. O Capital. Vol. II. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital: Rumo a uma Teoria da Transição. Trad. de Paulo Cezar Castanheda e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002
Revista Sociologia

sábado, 25 de agosto de 2012

A supremacia política do Partido Comunista da União Soviética – Estaline (1924)



Todos os grupos pequeno-burgueses penetram, de uma forma ou de outra, no Partido; eles trazem-lhe o espírito de hesitação e de oportunismo, o espírito de desmoralização e de incerteza.
É neles, principalmente, que reside a fonte do fraccionismo e da desagregação, a origem da desorganização do Partido que eles minam do interior. Fazer a guerra ao imperialismo, tendo tais «aliados» na retaguarda, é expor-se a suportar o fogo dos dois lados [...]. A luta sem tréguas contra tais elementos e a sua expulsão do Partido são, pois, condição prévia do sucesso da luta contra o imperialismo.
Fonte: PORTUGAL - EXAME NACIONAL DO ENSINO SECUNDÁRIO

segunda-feira, 23 de julho de 2012

As realizações da revolução bolchevique, segundo Lenine (1921)


Documento

Fizemos uma obra gigantesca na transformação socialista da sociedade, […] varremos por completo da face da terra russa os latifundiários e todas as suas tradições. […] Lutámos e continuamos a lutar seriamente contra a religião. Demos a todas as nacionalidades não russas as suas próprias repúblicas ou regiões autónomas. Na Rússia não existe já a restrição dos direitos da mulher. […] O regime soviético é o 
máximo de democracia para os operários e os camponeses e, ao mesmo tempo, significa o aparecimento de um novo tipo de democracia: […] a democracia proletária ou ditadura do proletariado. […] A última tarefa é a construção económica, o lançamento dos alicerces económicos do edifício novo, socialista […]. É nessa tarefa que temos sofrido mais insucessos e cometido mais erros. […] Contávamos que, com imposições diretas do Estado proletário, poderíamos organizar de maneira comunista, num país de pequenos camponeses, a produção estatal e a distribuição estatal dos produtos. A vida mostrou o nosso erro. […] E nós pusemo-nos a estudar uma nova viragem, a «nova política económica». […] O incentivo pessoal eleva a produção; nós necessitamos, antes de mais nada e a todo o custo, de aumentar a produção.
Discurso de Lenine no 4.º aniversário da Revolução de Outubro, in www.marxists.org (consultado em 03/02/2012) (adaptado)
EXAME NACIONAL DO ENSINO SECUNDÁRIO

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Stalinista húngaro recrutou assassino de Trotski







A maioria dos livros de história relata que o espanhol Ramón del Rio Mercader foi recrutado pelo general russo Leonid Eitingon, amante de Caridad Mercader, mãe do ex-tenente dos republicanos na Guerra Civil Espanhola, para matar Liev Trotski, em agosto de 1940, no México. Sabe-se que o articulador do assassinato foi Lavrenti Béria, o chefão da polícia secreta. O historiador Dmitri Volkogonov relata, na biografia “Stálin — Triunfo e Tragédia (1939-1953)” , que, Trotski morto, Béria foi promovido a comissário geral de Segurança do Estado. Em “Stálin — O Czar Vermelho”, Simon Sebag Montefiore diz que Mercader era “agente de Béria”. Montefiore acrescenta: “O arquiinimigo [Trotski] pode ter minado a política externa de Stálin, mas sua morte realmente encerra o capítulo do Grande Terror. Stálin estava vingado”. 

No esplêndido “Doze Dias: A Revolução de 1956 — O Levante Húngaro Contra os Soviéticos” (Objetiva, tradução de Saulo Adriano, 423 páginas), o jornalista Victor Sebestyen acrescenta informações à extensa bibliografia sobre a morte de Trotski. O czar econômico da Hungria stalinista, Ernö Gerö, participou da conspiração para matar o intelectual russo. Note-se que dois grandes historiadores e biógrafos de Stálin, Dmitri Volkogonov e Simon Montefiore, nada dizem a respeito do envolvimento de Gerö. 

Relata Sebestyen: “Ele [Ernö Gerö] ingressou na KGB e, durante os anos 1930, foi agente da Internacional Comunista. Era um segredo revelado nos círculos de exilados em Moscou que fora Gerö quem fizera o papel de sargento recrutador de Ramón Mercader, o assassino de Trotski, para a causa stalinista. Gerö conquistou a reputação de impiedoso durante a Guerra Civil Espanhola. Ele era o chefe da KGB na Catalunha, sob o codinome Pedro, com a tarefa de reforçar a ortodoxia comunista entre os republicanos e de liquidar os rivais de esquerda e os anarquistas. Ele desempenhou seu trabalho meticulosamente e se tornou conhecido como ‘o açougueiro de Barcelona’”. Numa nota de rodapé, Sebestyen acrescenta: “Não existem provas concretas, mas é quase certo que ele tenha encorajado e auxiliado no assassinato de Andrés Nin, presidente da República Catalã, em 1937”. (Sebestyen prefere usar KGB, e explica que é para facilitar o entendimento, mas, na época, a polícia secreta soviética era chamada de NKVD.) Gerö é citado no livro “A Batalha Pela Espanha: A Guerra Civil Espanhola — 1936-1939”(Editora Record, 714 páginas), de Antony Beevor. “Nin foi morto por agentes de [Aleksander] Orlov” (chefão da NKVD na Espanha “russificada”). A informação de Sebestyen prova (melhor, confirma) que a conspiração stalinista para matar Trotski foi multinacional, embora, é claro, sob comando da União Soviética. 

Um dos capítulos mais interessantes do livro de Sebestyen é o dezesseis. Revela o momento exato em que o presidente americano, Dwight D. Eisenhower decidiu abandonar os dissidentes do Leste Europeu ao deus-dará. Eisenhower gostava de citar um documento do Comitê de Segurança Nacional: “‘A separação de qualquer um dos grandes satélites europeus [como a Hungria] do bloco soviético não parece viável no momento, exceto se feita com a aquiescência soviética ou pela guerra’. (...) O vice-presidente Richard Nixon foi ainda mais incisivo, ao sugerir que uma insurreição malsucedida em algum ponto do bloco oriental, sufocada pelos russos, ajudaria a América em termos de relações públicas: ‘Não seria de todo um mal, do ponto de vista dos interesses norte-americanos, se a mão de ferro soviética se voltasse com força novamente contra o próprio bloco soviético’”. 

Ressalve-se que o governo americano recebia informações imprecisas e mesmo incorretas sobre a situação real da resistência húngara. “As informações dos serviços de inteligência norte-americanos e ocidentais sobre a Hungria eram de uma pobreza lamentável”, conta Sebestyen. “Nem os espiões nem os diplomatas norte-americanos enviaram a Washington relatos precisos da pressão que se avolumava na Hungria. Quando os jornalistas que estavam no país previram uma mudança iminente, as agências de inteligência os tacharam de sensacionalistas. (...) Os ingleses não estavam muito mais bem informados”. 

Um apoio decisivo dos Estados Unidos ao governo de Imge Nagy teria fortalecido o socialismo com face humana e evitado a carnificina comandada pelos soviéticos? Possivelmente, mesmo sob Nikita Kruschev, não. Uma posição mais firme poderia ter evitado, pelo menos, medidas tão duras. Por fim, socialismo de face humana é uma fantasia intelectual. Se tem face humana, deixou de ser socialismo e caminhou para a democracia, que não é possível no regime socialista.

Revista Bula

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Anatomia de um histórico fracassos

Reprodução
Nikita Kruchev, secretário-geral do PC soviético entre 1953 e 1964


'Ascensão e Queda do Comunismo', de Archie Brown, revisa a doutrina que vigorou na URSS e outros países

Elias Thomé Saliba
Todo livro de história que inclua em seu título a dupla ascensão & queda, já carrega um tom monumental que faz lembrar a clássica narrativa de Edward Gibbon sobre Roma antiga: um império fadado à autodestruição pelo próprio sucesso. O mais recente livro de Archie Brown, Ascensão e Queda do Comunismo não foge à regra - com a única diferença que ele trata de um império fadado à autodestruição não pelo sucesso, mas pelo próprio fracasso.


A narrativa começa pelo impacto que a ideia comunista, com sua mistura original de ilusão romântica e determinismo histórico intransigente, exerceu sobre corações e mentes. O dado mais revelador é que a fonte intelectual que deslanchou a atração de muitos pelo comunismo, pelo menos no mundo anglo-saxônico, não foi propriamente a leitura de O Capital, de Marx, mas do Guia da Mulher Inteligente para o Socialismo e o Capitalismo, de George Bernard Shaw, publicado em 1928. O pragmatismo irônico de Shaw, oriundo do seu antigo engajamento no socialismo fabiano, estava mais próximo do oxigênio mental aspirado pela juventude britânica na época.

Didático, mas sem se apegar a lugares-comuns, Brown, historiador britânico e professor emérito da Oxford University, realiza uma autêntica anatomia dos sistemas comunistas, atribuindo-lhes seis características essenciais: o papel de liderança do Partido Comunista; o "centralismo democrático" (que, na verdade, acabou virando um "centralismo autocrático"); a posse pelo Estado dos meios de produção; uma economia de comando e não uma economia de mercado; o propósito declarado de construir o comunismo como um objetivo final e, finalmente, a existência de um movimento comunista internacional com o respectivo senso de pertencer a ele. Em todos os capítulos estas características são destrinchadas, uma a uma, e confrontadas com a história peculiar de cada país. Por que o comunismo durou tanto tempo? Muitas respostas são possíveis, porém a resposta mais óbvia se situa na determinação política e no poder militar da União Soviética. Brown sabe disso, já que mais da metade do livro trata da história da URSS. Mas não deixa de examinar, num impressionante exercício de história comparada, todas as outras experiências muito peculiares a cada um dos 15 países comunistas: Albânia, Bulgária, Camboja, China, Coreia do Norte, Cuba, Hungria, Iugoslávia, Laos, Mongólia, Polônia, Alemanha Oriental, Romênia, Checoslováquia e Vietnã.

Brown mostra-se extremamente capaz de enxergar diferenças entre as escolhas pessoais de militantes comunistas e as razões abstratas, imponderáveis, e não raro, insondáveis, dos Partidos Comunistas, tanto no exercício do poder quanto fora dele. Nos países ocidentais, o percurso óbvio daqueles militantes que ingressaram no partido por motivos idealistas foi deixá-lo, quando ficou evidente a distância entre suas doutrinas e os crimes coletivos perpetrados pelos Estados comunistas. Era, contudo, bem mais fácil dizer isto do que fazer, pois aqueles que deixavam o partido sentiam o estigma de traidores de uma causa sagrada. Brown fornece muitos exemplos de tais trajetórias dramáticas de militantes que ele conheceu pessoalmente. Como o movimento comunista tendia a envolver suas vidas inteiramente, o rompimento com o partido era também uma espécie de luto pessoal: uma ruptura com quase todos os seus amigos e com grande parte de sua vida anterior. Permanecia apenas a atração pela mensagem ética subjacente ao marxismo, ou seja, a convicção de que o destino do mundo como um todo estava ligado à condição dos seus membros mais pobres e desfavorecidos.

Entre muitos, um dos capítulos mais reveladores mostra as falácias por trás da ideologia da "desestalinização" que marcou a era Kruchev (1953-1964). Um dos setores mais afetados foi o front artístico e literário. Artistas e escritores - se quisessem sobreviver - tinham de ouvir e interpretar atentamente a orientação dos dirigentes do partido em prol do "realismo socialista". Uma anedota que circulava, à boca pequena, naquela época, perguntava: "Qual a diferença entre arte impressionista, expressionista e o realismo socialista?". A resposta vinha rápida: "Os impressionistas pintam o que veem, os expressionistas pintam o que sentem e os realistas socialistas pintam o que ouvem".

Com dados reveladores, Brown mostra também os outros lados da era Kruchev. Foi a época da maior revolução imobiliária na Rússia: o índice de construção triplicou e milhares de pessoas mudaram suas vidas para melhor - embora os prédios de apartamentos fossem arquitetonicamente sombrios. O programa de moradias de Kruchev foi a mudança social e política mais importante dos anos pós-Stalin: "Pela primeira vez - declarou um dissidente em 1976 - milhares de famílias russas puderam trancar a porta da frente". Com exceção de dissidentes políticos reconhecidos que tiveram suas casas grampeadas, a grande maioria da população conseguiu entabular conversas livres sobre os mais diversos assuntos, incluindo as perversidades do regime. Decididamente, a glasnost de Gorbachev, três décadas depois, não poderia ter avançado se não tivesse sido precedida por esta espécie de glasnost privada.

Já a ideia de construir o comunismo, uma sociedade na qual o Estado definhou revelou-se a ilusão mais perigosa. O que se construiu, em vez disso, foi o comunismo com um partido-Estado opressivo que, na melhor das hipóteses, foi autoritário e, na pior das hipóteses, implacavelmente totalitário.

Quando a coisa começou a degringolar - no final dos anos 1990, a partir do epicentro situado em Moscou e seus satélites -, nenhuma doutrina unificada e nenhum de seus muitos revisionismos mostraram-se eficientes para controlar a derrocada e, nas palavras do porta-voz soviético Gerasimov, em todos os países comunistas acabou prevalecendo a "doutrina Frank Sinatra" em My Way: "Cada um faria do seu próprio jeito". Com o perdão do anacronismo, até o chiste lembrava aquelas monumentais ironias de Gibbon sobre o Império Romano.

ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP E AUTOR DE, ENTRE OUTROS, RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A escola totalitária


A escola totalitária

Nos dois projetos mais articulados de dominação social do século 20, a educação operava um papel crucial

Fabiano Curi

Em regimes despóticos, a educação tem um papel estratégico na propagação das ideias de seus governantes. Nos dois grandes exemplos de sociedades totalitárias do século 20, a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stálin, as escolas e seus programas foram drasticamente reformulados para atender aos interesses do Estado.

Na Alemanha nazista, o programa nacional-socialista reescreveu a pedagogia com base no Mein Kampf, de Adolf Hitler, para aplicá-la em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade. Logo ganharam importância as teorias raciais nazistas que enalteciam os arianos e colocavam todas as outras etnias como raças subalternas.

Campos do conhecimento foram alterados, surgindo assim uma "ciência alemã pura" - física alemã, matemática alemã, química alemã - livre da interferência bolchevique e judaica. A religião judaica se transformou em raça e passou a representar todo o mal do mundo. Judeus foram proibidos de lecionar ou de estudar.

Para se tornar professor era necessário passar por treinamento sob observação de funcionários do partido nazista. Os candidatos deviam demonstrar ser pessoas confiáveis na propagação da política do Terceiro Reich. Mais tarde, era vetada a carreira de docente aos que não tivessem passado anteriormente pelos campos de trabalho nazistas, pela Juventude Hitlerista ou pela SA (tropa de assalto do partido).

Durante o regime, as antigas escolas públicas foram abandonadas e a educação de jovens e crianças em boa parte ficou concentrada na organização da Juventude Hitlerista, para a qual os pais eram obrigados a deixar seus filhos ingressarem sob pena de serem presos. Esse modelo visava uma profunda imersão dos alunos em treinamentos físicos e ideologia nazista com um programa militarizado.

A partir de 1937 são estabelecidos três tipos de escolas para as elites: Escolas Adolph Hitler, Institutos de Educação Nacionais e Políticos e Castelos da Ordem. Para os primeiros, iam os jovens de 12 anos que se destacaram em suas escolas; para os segundos, sob supervisão da SS (tropa de elite nazista), eram direcionados aqueles habilitados à vida militar; finalmente, nos Castelos da Ordem, era formada a elite da elite, num cenário teutônico dos séculos 14 e 15, com intensivo treinamento físico e especialização nas "ciências raciais".

Esse processo de apagamento de quaisquer outras ideias que não as que fundamentavam o nazismo não foi menos desastroso do que em outros setores da sociedade alemã. Houve diminuição do número de estudantes e de professores, assim como da qualidade acadêmica. Os professores, intelectuais e artistas judeus ou comunistas importantes que não foram mortos deixaram o país e se estabeleceram em centros de ensino espalhados pelo mundo.

Na União Soviética de Stálin, a política educacional passou por profundas mudanças já na década de 1930, buscando conexão com a industrialização das cidades e com a coletivização das fazendas. O novo sistema tornava obrigatórios quatro anos de educação no campo e sete nas cidades. O número de alunos cresceu rapidamente em instituições rigidamente controladas pelo Estado para a promoção de um patriotismo soviético.

A partir da década de 1940, foi criada uma reserva de trabalhadores intercambiável entre escolas e fábricas com alunos que não tinham um bom desempenho acadêmico. Essa política educacional não admitia pluralidade ideológica e tinha o objetivo de formar trabalhadores para o modelo econômico socialista.

Stálin cunhou o termo "pseudo-ciências burguesas" para definir campos de conhecimento como genética, sociologia, semiótica e cibernética. Tais estudos foram proibidos durante sua permanência no poder. Professores, artistas e intelectuais que não aderiram ao regime foram duramente perseguidos. (Fabiano Curi)

Variações de um conceito

Poucos conceitos têm significados tão oscilantes quanto o de ideologia. Presente pela primeira vez na filosofia moderna em 1801, no livro Elementos da ideologia, do materialista iluminista francês Destutt de Tracy (1754-1836), era concebido como uma ciência do surgimento das ideias na relação do corpo humano com o meio ambiente. Logo foram publicados estudos de outros ideólogos franceses pautando um movimento liberal materialista que se posicionava contra a monarquia, o clero e a metafísica. Esse grupo apoiou Napoleão Bonaparte (1769-1821), que o deixou de lado quando assumiu o poder. Num discurso em 1812, o imperador declarou que a ideologia e os ideólogos eram responsáveis pelas desgraças da França.

Uma outra concepção, talvez a mais reproduzida, ganha força com Karl Marx (1818-1883), para quem o conceito de ideologia diz respeito a um "falseamento da realidade", um obscurecimento das relações que nos leva a naturalizar estruturas consumadas de poder, sem contestá-las. Apesar de a análise de Marx ter como foco a ideologia de filósofos alemães posteriores a Hegel, ela alimentou muitos estudos de pensadores de cepa marxista e continua sendo uma definição bastante presente no senso comum.

Depois de Marx, entre os autores que se debruçaram sobre o assunto destacam-se o italiano Antonio Gramsci (1891-1937) e o francês Louis Althusser (1918-1990). Ambos discordam do conceito segundo o qual uma classe dominante usa a ideologia para ludibriar as classes dominadas, tomando-o a partir de outro ângulo. Para Gramsci, a ideologia articula e sustenta a sociedade, sendo absolutamente necessária para manter a coesão de diferentes realidades sociais. Já Althusser vê na ideologia a proteção que possibilita a sustentação da sociedade. Por seu principal texto, Aparelhos Ideológicos de Estado, o filósofo francês é frequentemente citado como um dos pioneiros da discussão da relação da escola com ideologia, considerando-a um importante aparelho ideológico. Sílvio Gallo, da Faculdade de Educação da Unicamp, contudo, lembra de outro autor que havia discutido a questão anteriormente: "sempre me intrigou muito um autor do final do século 18, chamado (William) Godwin (1756-1836), que alertou, no momento em que se construíam os sistemas públicos de ensino europeus, sobre a necessidade de que houvesse cautela antes de colocá-los todos nas mãos do Estado. Ele antevia que certamente os sistemas seriam utilizados para defender os interesses dos representantes desses Estados".

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O século soviético


Moshe Lewin – O século soviético

Antonio Paim *

Neste livro, Moshe Lewin sistematiza a crítica que tem desenvolvido contra a nova liderança russa, pós-soviética, na medida em que fomenta a crítica ao passado.
Deixa-o agastado o fato de que, como escreve, obscureça-se a circunstância de que “o sistema soviético salvou a Rússia da desintegração em 1917. Recuperou-a novamente e a Europa com ela após uma dominação nazista que se estendia de Brest a Vladivostok. ... A essas façanhas devemos acrescentar outras, avaliadas pelos critérios do século XX, para definir um país desenvolvido: a Rússia soviética tinha um bom desempenho em demografia, educação, saúde, urbanização e no papel da ciência tão importante, e que seria desperdiçada pelos reformistas dos anos 1990”. (tradução indicada, pág. 452)

No Rússia atual sobrevive o Partido Comunista (denominado da Federação Russa), que dispõe de representação na Duma (Câmara Baixa do Parlamento). Ocorrem manifestações inclusive em favor da reabilitação de Stalin. Tudo isto faz parte da tentativa (em curso) de erigir, no velho império russo, as instituições do sistema democrático representativo que, na Europa Ocidental e em outras partes do mundo comprovaram ser a mais adequada (e civilizada) forma de convivência social. Assim, o fato de que o prof. Lewin assuma a defesa daqueles saudosistas faz parte do jogo.

O aspecto que vamos considerar diz respeito à distorção de circunstâncias históricas amplamente documentadas, como se estivéssemos ainda na União Soviética onde o acesso a essas fontes era rigorosamente proibido e vigiado. Vale dizer: os argumentos que invoca são tão estapafúrdios que até parece não se dar conta do ambiente cultural em que atua.

A primeira tese de Lewin consiste na afirmativa de que o bolchevismo era democrático, merecendo essa qualificação seu criador e líder, Lenine. A segunda: não havia alternativa na Rússia de 1917 senão tomar o poder pela força. A terceira: a Nova Política Econômica (NEP) mostra que Lenine tinha um projeto de desenvolvimento econômico que prescindia, como afirma, “das execuções sumárias” (pelo menos traduz implicitamente o reconhecimento de sua precedente existência). A quarta: a liquidação do Partido e sua transformação num aparelho burocrático seria obra de Stalin. Por fim, no período subseqüente, gasta páginas e páginas para demonstrar que a burocracia pós-stalinista estava ciente dos defeitos do sistema e tratava de corrigi-los.

No que respeita ao pensamento de Lenine acerca do Estado Liberal de Direito, Moshe Lewin faz de conta que não escreveu O Estado e a Revolução (1917), livro no qual cuida de demonstrar que o Parlamento é uma farsa, a liberdade de imprensa um engodo e mesmo os sindicatos operários estariam a serviço do sistema dominante. Na obra indicada, escreve: “Olhai para qualquer país parlamentar, da América à Suíça, da França à Noruega, etc., o verdadeiro trabalho de Estado faz-se nos bastidores, é executado pelos departamentos, pelas chancelarias, pelos estados-maiores. Nos parlamentos apenas se palra, com a finalidade específica de enganar a gente simples.” Preconiza o estabelecimento da ditadura do proletariado que, como se viu, tratava-se na verdade de ditadura do Partido Comunista e daquele que consegue empolgar a sua chefia.

Quanto à tese de que, na Rússia de 17 não havia alternativa senão uma saída violenta, omite as eleições para a Assembléia Constituinte. Realizaram-se quando os bolcheviques já haviam tomado o poder. Compareceram 36,3 milhões de eleitores. O grande vitorioso seria o Partido Social Revolucionário,que representava a massa camponesa. Obteve 58% dos votos, ficando os comunistas com 25% e os liberais (Partido Constitucional Democrata, conhecido com Kadiete, em decorrência da sigla em russo) com 13%. Esse resultado demonstra que parcela expressiva da opinião pública apostava no reordenamento de índole democrático. A título ilustrativo indique-se que Lenine não conseguiu impedir que a Assembléia se instalasse em janeiro de 1918. Nesta, o ambiente lhe era tão hostil que lhe foi negada a palavra como chefe do governo, tendo de fazê-lo como líder dos bolcheviques. O PSR conseguiu que ali fosse votada a reforma agrária. Lenine comprometeu-se a respeitar a redivisão da terra que viesse a ser efetivada, em troca da anuência dos sociais revolucionários em não opor resistência à dissolução da Assembléia, levada à cabo no próprio mês de janeiro de 1918.

A história da Nova Política Econômica, decretada em 1921, também está muito mal contada, no livro considerado.

Nas cidades, o governo leninista ocupou todas as indústrias e serviços, eliminando de vez a presença da iniciativa privada. O problema remanescente consistia no meio rural, que abrigava a esmagadora maioria da população. Tenha-se presente que a Rússia era, na época, grande produtora de cereais, de que dependia, em grande medida, a Europa Ocidental. Keynes focaliza diretamente essa questão no livro Conseqüências econômicas da paz (1919).

Tendo presente a falta de apoio no campo, Lenine decretou o que chamou de “comunismo de guerra”. Autorizava o governo a confiscar excedentes agrícolas, no caso de que os camponeses não o fizessem voluntariamente. A resistência à medida se fez presente desde a primavera/verão de 1918. Lenine imaginou que reprimindo violentamente essas manifestações obrigaria o campesinato a capitular.

Valendo-se da abertura de diversos arquivos do regime soviético, no livro Lênin: a Biography (Harvard University Press, 2001), Robert Service transcreve o seguinte memorando encaminhado pelo chefe do governo à Tcheca (polícia política, mais recentemente batizada de KGB), no início daqueles conflitos, isto é, meados de 1918:
“Camaradas! A insurreição em cinco distritos camponeses (kulaks, no texto) precisa ser implacavelmente esmagada... 1)Enforquem (e estejam seguros de que o enforcamento terá lugar às vistas de todo o povo) não menos que uma centena de conhecidos kulaks, pessoas ricas, especuladores; 2)Publiquem seus nomes; 3)Confisquem toda a sua produção; 4) Façam reféns ... Alardeiem tudo isto de modo que, centenas de quilômetros em torno, o povo possa ver, inteirar-se e tremer, gritando: eles estão estrangulando e irão estrangular até à morte os kulaks especuladores.”

O terror no campo, desencadeado por Lenine, teve efeito justamente contrário. Os soviéts de soldados, controlados pelos sociais revolucionários, não haviam entregue as armas de que estavam de posse. A resistência camponesa transformou-se na guerra civil, que durou cerca de dois anos. O Exército Vermelho chegou a lutar numa frente e 1.800 km no Norte e mais ou menos a mesma extensão no Sul.

No documento intitulado Discurso sobre o engano do povo com as palavras de ordem de liberdade e igualdade de 1919, que corresponde a um violento ataque dirigido aos sociais revolucionários, mas passou a ser considerado como expressivo do pensamento de Lenine, o chefe do governo soviético diz claramente que o desejo dos sociais revolucionários consiste no estabelecimento gradual e depois mais amplo “do comércio livre dos produtos alimentícios e à garantia da propriedade privada.” Lenine sequer a discute, limitando-se a afirmar: “Eu digo que isso é o programa econômico, a base econômica de Koltchak”.

Alexander Vassilievitch Koltchak (1874/1920), almirante da marinha imperial russa, tornou-se um dos chefes militares da revolta iniciada pelos sociais revolucionários, transformada na guerra civil. Embora diversos outros oficiais do czarismo tivessem feito idêntica opção, Lenine sempre desferiu seus ataques a Koltchak.

Pois bem, a novidade contida na Nova Política Econômica reside precisamente na criação de mercado livre, nas cidades, para a comercialização de excedentes agrícolas, prática que sobreviveria ao longo do regime soviético, mesmo depois da coletivização. A circunstância parece demonstrar que, sem embargo de que Trotski haja transformado o Exército Vermelho numa força militar digna do nome, a NEP não deixa de ser uma comprovação de que os camponeses venceram a guerra civil. Sem embargo das diversas derrotas militares parciais, a resistência só cessou totalmente quando suas reivindicações foram atendidas.

O livro de Lewin é parte da orquestração destinada a fazer crer que o totalitarismo soviético não provem do leninismo mas do estalinismo. Aceita essa premissa cabe esquecer O Estado e a Revolução e, mais que isto, nem de longe dar-se ao trabalho de verificar a origem de suas teses. Embora seja muito fácil localiza-las na Crítica ao programa de Gotha (1875), de Karl Marx.

Mosche Lewin
Mosche Lewin (nascido em 1921), polonês de nascimento e cidadão soviético, foi oficial do Exército Vermelho. De origem judaica, emigrou para o recém criado Estado de Israel. Ingressou na Universidade de Tel Aviv, onde concluiu o mestrado. Doutorou-se pela Sorbone, seguindo carreira universitária na França, tendo igualmente ensinado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Começa a escrever sobre a Rússia em 1968. Surpreendido com o colapso da União Soviética, tem se revelado ativo opositor da nova liderança, a começar de Yelstin.
Revista Liberdade e Cidadania

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Durante 40 anos, Alemanha fez parte de bloco liderado pela ex-URSS

IAGO BOLÍVAR

Durante as quatro décadas em que ficou separada da Alemanha Ocidental, a República Popular da Alemanha foi integrada a um bloco econômico, militar e ideológico comandado pela ex-União Soviética, como parte do núcleo que ficou conhecido como "segundo mundo", representado pelas nações comunistas desenvolvidas.

As fronteiras do bloco foram oficializadas durante as conferências organizadas pelos aliados --entre elas as de Ialta e Teerã e Potsdam-- nos anos finais da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e logo depois do conflito, mas a definição delas só foi feita de fato no campo de batalha.

Yevgeny Khaldei - 1945/AP/ITAR-TASS

Soldado ergue bandeira soviética em Berlim após a derrota nazista

A extensão do domínio comunista no Leste Europeu correspondeu ao avanço do Exército Vermelho contra os nazistas, que os levou a capturar Berlim em 1944, marcando o fim de seis anos de conflito na Europa.

Entre os países que ficaram sob a "esfera soviética", na linguagem diplomática, estavam a Tchecoslováquia --que havia sido invadida pela Alemanha nazista-- aliados de Hitler (Hungria, Romênia e Bulgária) e a Polônia, cuja parte oriental a própria ex-União Soviética havia invadido no final dos anos 30, de acordo com um pacto de partilha assinado com Hitler. O acordo foi quebrado em 1941, quando a Alemanha lançou a Operação Barbarossa, de invasão dos domínios e do território soviético.

Sobre as repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia), vistas como historicamente pertencentes à Rússia, o domínio soviético acabou sendo total --foram absorvidas na URSS. Nos demais países, a estratégia foi transformá-los em Estados-satélites.

O processo seguiu linhas gerais semelhantes. Primeiramente, formou-se uma aliança de partidos socialistas, comunistas e "antifascistas" para teoricamente disputar eleições livres. Depois, com diferença de ordem de país para país, foram dados os passos seguintes: as forças vistas como burguesas foram perseguidas; as eleições moldadas no estilo soviético de votação; o próprio partido comunista sofreu expurgos para alijar possíveis lideranças nacionais ou muito independentes e os governos eleitos colocaram em prática o modelo soviético de estatização dos meios de produção.


Arte/Folha Online


Colaboração

O resultado foi que, quatro anos após o fim da Segunda Guerra, havia um cinturão de "repúblicas populares" obedientes a Moscou entre a União Soviética e a Europa ocidental. Tentativas de caminho independente foram suprimidas.

A Tchecoslováquia, que manteve parte da estrutura anterior do Estado, com um Parlamento, cogitou receber ajuda americana do Plano Marshall [plano econômico de recuperação da Europa], mas foi dissuadida por forte pressão soviética. O mesmo acabou acontecendo com a Polônia, a quem foi fornecido um empréstimo de Moscou.

Formalmente independentes, os países continuavam com tropas do Exército Vermelho em seus territórios e foram enquadrados em organizações que eram espelhos das novas instituições do oeste do continente. À Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) opunha-se o Pacto de Varsóvia; à Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), correspondia o Conselho para Assistência Econômica Mútua, (Comecon), que a partir do final dos anos 50 passou a ser visto como a alternativa à Comunidade Econômica Europeia, antecessora da União Europeia.

Fora do financiamento americano para a recuperação econômica do pós-guerra, os países desenvolveram estratégias de colaboração técnica e trocas comerciais entre eles, dificultadas pela falta de uma moeda conversível como a adotada no oeste.

Apesar da supremacia soviética, as tentativas de fazer com que a planificação das economias nacionais passasse a ser coordenada acabaram sendo em grande parte infrutíferas, assim como os ensaios de divisão de tarefas econômicas --a Romênia, por exemplo, se opôs a ser relegada apenas ao papel de fornecedor de produtos agrícolas, sem industrialização.

Um dos elementos-chave para o desenvolvimento do bloco nos anos iniciais foi a virtual quebra de patentes da desenvolvida economia alemã, o que permitiu um avanço significativo nas indústrias da região. O preço a pagar foi o desestímulo à inovação tecnológica, o engessamento em uma economia de escala reprodutora que, mesmo com mudanças legais nos anos 70, acabaram levando a um fosso tecnológico nos bens de consumo TVs, carros, eletrodomésticos-- em relação ao ocidente.

Tecnologia

Na outro extremo, a ex-União Soviética conseguiu manter uma tecnologia avançada em setores de ponta, como armas nucleares, mísseis balísticos e na área aeroespacial, da qual os maiores símbolos foram o lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik em 1957, e a primeira viagem do homem ao espaço, Yuri Gagarin, em 1961, eventos que desencadearam a reação americana de levar o homem à Lua, em 1969.


Libor Hajsky -21.ago.1968/AP-CTK

Manifestantes atacam tanque durante invasão de Praga para reprimir reformas

Mas, no solo, o descontentamento crescia com a supressão das liberdades "burguesas" de livre expressão, religião e livre empresa, apesar de uma elevação geral do nível de vida quando comparada ao período das guerras mundiais e mesmo ao anterior, embora os governos ocidentais também fizessem grandes avanços na área social, classificados pelos soviéticos de concessões pífias e tentativas vãs de conter a luta de classes.

O levante popular na Hungria em 1956 contra o governo stalinista do país foi contido por tanques soviéticos, e em 1968 uma força conjunta de cinco países do Pacto de Varsóvia invadiu a Tchecoslováquia para encerrar com a política de liberalização do líder tcheco Alexander Dubcek.

A falta de colaboração ativa dos EUA e da Europa ocidental em apoio às tentativas de abertura mostraram claramente que, na Europa, os limites da Cortina de Ferro seriam respeitados e que cabia à ex-União Soviética decidir o futuro de cada um dos países da região.

Resistência

Apesar da posição ocidental, a leste da fronteira entre as duas Europas nem todos os países comunistas se submeteram ao domínio soviético. A primeira resistência importante e com consequências duradouras foi a atitude de independência do general Josip Broz Tito em relação ao ditador soviético Joseph Stálin, que levou à expulsão da Iugoslávia do Cominform, a aliança de partidos comunistas.

Tito havia liderado a resistência aos nazistas nos Bálcãs e não se via como um devedor em relação à ex-União soviética, mas como um líder em igualdade de condições com Stálin, uma situação única no bloco.


Koca Sulejmanovic - 26.dez.2006/Efe

Visitante observa os retratos de Tito (à esq.) e Stálin, expostos em Belgrado em 2006; os dois líderes comunistas romperam em 1948


No outro extremo ideológico, --dentro da limitada gama da época e região-- a Albânia, pequeno país agrícola cuja integração com a Bulgária foi inutilmente defendida por Tito, em desafio à União Soviética, acabou se isolando cada vez mais com o passar dos anos pelo inflexível stalinismo de seu ditador, Even Hoxa. Após a morte de Stálin, em 1953, ele se opôs às críticas feitas ao ex-ditador soviético pelo novo líder da URSS, Nikita Kruschev, que empreendeu uma campanha de denúncias dos massacres e expurgos ordenados pelo antecessor.

Hoxa voltou-se então para Mao Tse Tung. A China comunista se tornou o principal parceiro comercial e fonte de financiamento e ajuda técnica da Albânia, mas a aproximação chinesa com os EUA no governo do presidente americano Richard Nixon deterioraram os laços, e Hoxa rompeu definitivamente as relações com a China em 1978, denunciando o "revisionismo chinês" e proclamando a Albânia o único Estado comunista do mundo. O gesto garantiu a simpatia de militantes comunistas em vários países, mas aprofundou o isolamento da Albânia.

Decadência

A crescente falta de dinamismo econômico do bloco soviético nos anos 60 foi em parte compensada por um boom no início da década seguinte, devido ao fornecimento de petróleo e gás russos de jazidas cuja exploração foi em grande parte financiada pelos estados-satélites. O crescimento foi ainda mais significativo porque coincidiu com estímulos dados pelo próprio ocidente na política de "détente", uma tentativa de diminuir as tensões com o bloco comunista por meio de concessão de crédito e de licenças tecnológicas.

Em contraste, a década de 70 foi marcada pela crise do petróleo, que minou as economias ocidentais, o que, em comparação aumentou a visibilidade do sucesso econômico do leste. O fim da détente, em meio ao crescimento das tensões, problemas de pagamento dos créditos e uma crescente ineficiência da máquina burocrática planificada fizeram com que o bloco entrasse em um processo de crescente estagnação, que perdurou do fim da década de 70 até a implosão do sistema comunista de molde soviético na região após as políticas de abertura de Gorbatchov, nos anos 80.


Marek Zarzecki/REUTERS/Kfp

Sindicalista polonês Lech Walesa é levado por grevistas em 1980; em meio a crise econômica, ele fundou sindicato não comunista

A segunda metade da década de 80 foi cheia de presságios do fim do "segundo mundo". O crescimento do sindicato Solidariedade, na Polônia, o visível enfraquecimento soviético durante a invasão do Afeganistão e o sucesso em imagem, mas fracasso em resultados econômicos, das políticas de abertura de Gorbatchov encorajaram manifestações de descontentamento interno e impulsionaram o apoio cada vez mais ativo do Ocidente a grupos locais descontentes.

Colapso

Em 25 de Outubro de 1989, o porta-voz da Chancelaria russa forneceu a senha para o colapso do bloco. Em entrevista ao programa da TV americana "Good Morning America", Gennadi Gerasimov tentou resumir um discurso do ministro das Relações Exteriores soviético, Eduard Shevardnadze, que falara que os soviéticos reconheciam a liberdade de escolha de todos os países, incluindo os membros do Pacto de Varsóvia.

"Nós temos agora a doutrina de Frank Sinatra. Ele tem uma música, "I Did It My Way" [Eu fiz do meu jeito, trecho da música "My Way"]. Assim, cada país decide sobre o seu próprio caminho a tomar". Questionado sobre se isso incluía a possibilidade do fim do domínio dos partidos comunistas nas "repúblicas populares", ele disse: "Com certeza [...] estruturas políticas devem ser decidido pelo povo que vive lá".

O fim da ameaça explícita de uma retaliação do Exército Vermelho encorajou os insatisfeitos e aqueles que já estavam em ação contra os regimes locais.

A Hungria, que passara por uma reforma liberalizante, já havia aberto a fronteira com a Áustria nos meses anteriores, permitindo a fuga de milhares de seus cidadãos e de alemães. Quinze dias depois da declaração do porta-voz soviético, simbolicamente usando uma canção americana em uma TV americana, os alemães escolheram o próprio jeito de reabrir o caminho fechado por um muro desde 1961 entre Berlim ocidental e Berlim oriental.

A partir de então, as repúblicas populares enfrentaram revoluções em grande parte pacíficas, e o segundo mundo deixou de existir, com seus países tentando integrar-se ao sistema econômico e político dos vizinhos vistos como inimigos durante meio século.

Folha de São Paulo

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Como a Polônia e a Hungria, em 1989, abriram caminho para o fim do comunismo


Todos se recordam das imagens icônicas da dramática derrubada do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989. Mas as iniciativas que possibilitaram a queda do muro foram tomadas em outros países. O destino da Alemanha e do resto da Europa foi decidido em Varsóvia, Budapeste e Moscou.

Naquela noite de 10 de novembro de 1989, Anatoly Sergeyevich Chernyayev vinha escrevendo meticulosamente um diário durante 20 anos. Todos os dias, após chegar no seu apartamento em Deneshny Pereulok, vindo da sede do partido na Praça Velha ou do Kremlin, ele sentava-se à sua mesa de para redigir o seu diário.

Após olhar pela janela para o prédio do Ministério das Relações Exteriores, uma monstruosidade em estilo classicista-socialista construída pouco antes da morte de Stalin no bairro no qual os fabricantes de moeda de Moscou antigamente tinham as suas lojas, ele anotava detalhadamente as suas experiências diárias. Ele concentrava-se particularmente naqueles pensamentos que não podia manifestar no trabalho, onde estava sempre cercado dos camaradas do partido: as suas esperanças fúteis, frustrações e decepções.

Chernyayev, que tinha vínculos estreitos com o então presidente soviético Mikhail Gorbachev, fez uma anotação curta e lacônica no seu diário em 10 de novembro: "O Muro de Berlim caiu. Uma era na história do 'sistema socialista' está chegando ao fim", escreveu o assessor do presidente e diretor do partido naquela noite de sexta-feira.

"Após os episódios envolvendo os partidos dos trabalhadores poloneses e húngaros, agora foi Honecker que caiu, e hoje ouviram-se notícias sobre a queda de Shivkov. Tudo o que nos restou agora foram os nossos 'amigos íntimos': Castro, Ceausescu e Kim Il Sung. Todos eles pessoas que nos detestam".

O seu tom não era de amargor, mas sim de profundo sarcasmo. Fazia muito tempo que Chernyayev enxergava a chegada desse dia. "Isto é o fim de Ialta e do legado stalinista", concluiu ele.

Não enxergando a História passar
O lema "Trabalhadores do mundo, uni-vos!" ainda estava impresso na primeira página do "Pravda", o jornal controlado pelo partido, que encontrava-se sobre a mesa à sua frente. A manchete de primeira página da edição de 10 de novembro dizia, "Hoje é o dia da polícia soviética".

O "Pravda" não enxergou a História passar.

Em outros locais da Europa a história foi totalmente diferente. As pessoas celebravam com extrema alegria, quase sem poderem controlar a emoção diante das imagens de Berlim mostrando alemães orientais e ocidentais se abraçando. "A Alemanha chora de alegria. Berlim é novamente Berlim!", anunciou o jornal BZ. A notícia de que Berlim, dividida durante 28 anos, estava novamente unida chegou a lugares tão remotos quanto a costa oeste da Austrália.

O diretor de cinema alemão Win Wenders, que visitava a região naquela época ("Eu não poderia estar mais longe de Berlim do que estava naquele momento", diz ele), encontrou um eremita vivendo em uma caverna. "Era bem cedo, de manhã, e ele estava totalmente bêbado. O homem era um lituano que falava um pouco de alemão. Ele não parava de beber, fazendo brindes a Berlim, e falando em voz alta, na tentativa de superar a música de Wagner que estrondava na sua moradia. "Acabaram-se os muros! Acabaram-se os muros! Não haverá mais muros em lugar nenhum do mundo!".

1989 passou para a História como o ano da queda do Muro de Berlim e da revolução pacífica na Alemanha Oriental. Esta pelo menos é a forma como os alemães veem aqueles fatos. E foi esta também a forma como o então chanceler alemão-ocidental Helmut Kohl enxergou os acontecimentos desde o início. "Nós estamos escrevendo um capítulo na história mundial, mais uma vez, isto precisa ser dito", afirmou o chanceler em 9 de novembro, em um discurso emocionado durante uma visita de Estado à vizinha Polônia.

Mas por que a queda do muro demorou tanto tempo? E quem na verdade o destruiu?

Pedaço a pedaço
Os responsáveis pela queda do muro teriam sido os berlinenses que ocuparam o posto de passagem de fronteira na Bornholmer Strasse em 9 de novembro? Aqueles indivíduos que a seguir usaram picaretas para quebrar o muro, pedaço a pedaço, até que ele caiu? Ou foram as pessoas que criaram as condições que permitiram que cidadãos de outras cidades alemãs-orientais, Leipzig, Plauen e Dresden, se manifestassem nas ruas em outubro?

Será que o muro teria caído se aquilo que era inconcebível não tivesse já ocorrido em Moscou, Varsóvia e Budapeste? Quando e onde exatamente atingiu-se aquele ponto a partir do qual a libertação da Europa Oriental não poderia mais ser contida?

Uma busca honesta por respostas concluirá que a abertura da fronteira em Berlim foi sem dúvida o acontecimento mais espetacular ocorrido durante o período em que o bloco soviético chegou ao fim. Mas aquilo não foi o verdadeiro ponto histórico de inflexão de 1989.

"Para que se perceba como é limitada a imagem heroica de 1989 que nós criamos de forma retrospectiva basta ler os jornais de 1988 e 1989", afirma o historiador Karl Schlögel. Ele associa "outras datas, outros locais e outros povos" ao fim de uma era. "Na noite da queda do Muro de Berlim, por mais deslumbrante que aquilo tenha sido, só foram sancionadas aquelas coisas que já haviam sido decididas anteriormente e em outros locais".

"A queda do muro foi sem dúvida um símbolo de mudança - ela nos proporcionou aquelas incríveis imagens de Berlim", admite o ex-presidente polonês Alexander wasniewski. "Nós poloneses tivemos que negociar a nossa transformação política em conversações árduas". Em outras palavras, Kwasniewski está tentando dizer que a revolução alemão só teve início quando a revolução polonesa estava quase concluída. Quando o Muro de Berlim veio abaixo, a Polônia já tinha um presidente não comunista. Os ativistas do Solidariedade são ainda mais diretos. Eles afirmam que, sem Lech Walesa, o Muro de Berlim não teria caído.

Uma jornada de volta ao passado
A maioria dos alemães já esqueceu - ou jamais percebeu - que os acontecimentos na Europa Oriental constituíram-se em um roteiro para a virada na Alemanha Oriental. O conceito de conversações em mesa redonda na Alemanha, que teve início no Hotel Dietrich Bonhoeffer Haus, em Berlim, no mês de dezembro, foi importado da Polônia. Os poloneses haviam se reunido da mesma forma dez meses antes, e foi apenas naquela
mesa redonda que eles conseguiram provocar a mudança de governo.

Uma jornada de volta ao passado até aquele dia fatídico; uma lida de documentos anteriormente desconhecidos; reuniões com protagonistas-chaves daquele dia - tudo isso resulta em algumas descobertas surpreendentes duas década depois. O monopólio do poder dos comunistas húngaros, por exemplo, já havia sido quebrado em janeiro.

Àquela época, o Partido Unidade Socialista (SED, na sigla em alemão) do líder alemão-oriental Erich Honecker, ainda parecia estar firme no controle do país. Não havia nenhum grupo de reformistas dentro do partido e tampouco existia um verdadeiro e amplo movimento de luta por direitos civis no seio da população.

Igualmente intrigante é o fato de que o sindicato polonês Solidariedade, apesar da sua magnífica vitória eleitoral em junho de 1989, foi incapaz de enxergar uma chance real de assumir o controle político do país.

Enquanto isso, o presidente soviético Mikhail Gorbachev enfrentava problemas internos tão difíceis que uma intervenção de tropas soviéticas no exterior era inimaginável.

"Uma revolução sem uma revolução"
No início de 1989, apenas duas nações europeias orientais buscavam o seu próprio caminho: Polônia e Hungria. Em Budapeste, a mudança começou dentro do Partido Comunista Húngaro; em Varsóvia o Solidariedade deu início a uma reforma polonesa.

Mas mesmo nesses países, ninguém percebeu para onde aquela jornada conduziria os fatos nos meses seguintes.

"Aquilo foi uma revolução sem uma revolução", afirma o ex-dissidente polonês Adam Michnik, que criou o jornal oposicionista "Gazeta Wyborcza" em maio de 1989 e a seguir tornou-se membro do senado democraticamente eleito. "Ninguém saiu às ruas, e não houve barricadas nem pelotões de fuzilamento".

"1989 foi um ano de milagres", diz Michnik. "Aquilo que ainda não era possível em janeiro tornou-se realidade em fevereiro, e em março era possível exigir ainda mais. Nenhum de nós entendia o que estava acontecendo".

Tradução: UOL

Revista Der Spiegel