terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Império Romano - FALSO NASCIMENTO DO CASAL


FALSO NASCIMENTO DO CASAL

Sendo o casamento um dever cívico e uma vantagem patrimonial, tudo que a velha moral exigia dos esposos era que executassem uma tarefa definida: ter filhos, cuidar da casa. Consequentemente a moralidade compreenderá duas esferas: de um lado, esse dever estrito, e, de outro, uma esfera facultativa — mérito suplementar ou oportunidade —, a de formar um casal unido. E aqui que o casal realizará no Ocidente uma entrada falsa. No casamento os esposos terão o dever estrito de cumprir suas respectivas tarefas. Se, além disso, se entenderem bem, será um mérito adicional, não uma pressuposição. As pessoas ficavam contentes de saber que dois esposos se davam bem, como Ulisses e Penélope no passado, ou até se adoravam, como Filêmon e Báucis segundo a lenda; mas sabiam que não era sempre assim. A realidade do casamento não se confundia com o sucesso do casal.
O amor conjugal era sorte, não base do casamento nem condição do casal. Todos sabiam que o desentendimento era um flagelo difundido por toda parte e resignavam-se; os moralistas diziam que, aprendendo a suportar as falhas e os humores de [pág. 50]
uma esposa, o homem se formava para afrontar as penas do mundo; em numerosos epitáfios o marido fala de sua "caríssima esposa", mas em outros epitáfios, não menos numerosos, diz: "Minha esposa, que nunca me deu motivo para queixa" (querella). Os historiadores elaboravam listas de casais unidos até a morte; o que não impedia que, ao cumprimentar um recém-casado, se dissesse, como Ovídio: "Possa tua mulher igualar o marido na incansável bondade! Que raramente uma cena doméstica perturbe vossa união!". Com tais palavras esse poeta fino e cortês não cometia uma gafe, não constrangia ninguém.
Não sendo obrigatório, maior era o mérito de tratar bem a esposa, ser "bom vizinho, anfitrião amável, meigo com a mulher e clemente com o escravo", diz o moralista Horácio. O ideal da ternura entre esposos sempre se acrescentou, desde Homero, à estrita obrigação matrimonial; os baixos-relevos mostram marido e mulher dando-se as mãos, e não se tratava de um símbolo de casamento, diga-se o que se disser, e sim dessa desejável concórdia suplementar. Ovídio, exilado, deixa a mulher em Roma, onde ela administrará seu patrimônio e tentará obter perdão para o poeta, e ele lhe escreve que duas coisas os unem: o "pacto marital", mas também "o amor que nos torna dois associados". Entre o dever e essa meiguice suplementar pode ocorrer um conflito: o que fazer se a esposa amada é estéril? "O primeiro que repudiou a mulher por causa da esterilidade tinha nisso um motivo aceitável, mas não escapou à censura da opinião [reprehensio], porque mesmo o desejo de ter filhos não deveria suplantar o apego duradouro a uma esposa", escreve o moralista Valério Máximo.

A NOVA ILUSÃO
O casal já teria chegado ao Ocidente? Não: mérito não é dever. Nuança! Exalta-se o entendimento onde é constatado, mas ninguém o coloca como norma pressuposta da instituição, [pág. 51]
e o desentendimento passa mais por chocante que por previsível. Esse será o caso na nova moral, aparentada com o estoicismo, em que o ideal do casal se torna um dever. Resultado: ilusão; contemplar a hipótese de um desentendimento entre cônjuges agora passará por maledicência ou derrotismo. Assim como o sintoma que permite reconhecer facilmente os paladinos da nova moral do casal é seu estilo edificante: quando Sêneca ou Plínio falam de sua vida conjugal, é em tom sentimental, virtuoso, exemplar. Consequência prática: o lugar teoricamente reservado à esposa já não é o mesmo. Na antiga moral, ela se classificava entre os domésticos, nos quais mandava, por delegação marital. Na nova moral, eleva-se o nível dos amigos, que tanta importância têm na vida social greco-romana; para Sêneca, o laço conjugal é comparável ao pacto de amizade. Disso resultaram muitas consequências práticas? Duvido. Deve ter mudado, sim, o estilo em que os maridos falavam da mulher numa conversação geral ou se endereçavam a elas na presença de terceiros.
Ocorre com essa transformação moral o mesmo que com toda a história das ideias: depois de um século de sociologia da cultura, mais e mais historiadores confessam-se incapazes de explicar as mudanças culturais e admitem não ter a menor ideia da possível explicação causai nessa matéria. Digamos apenas que a causa não foi o estoicismo; a nova moral teve paladinos também entre os inimigos do estoicismo e entre os neutros.
Plutarco, o filósofo platônico, preocupou-se muito em se desvencilhar do estoicismo, esse rival ainda triunfante que o novo platonismo desafiava. Elabora a teoria do amor conjugal, tido como variedade superior da amizade. O senador Plínio não pertencia a nenhuma seita: escolhera a eloquência mais que a sabedoria. Em suas cartas pinta a si mesmo como homem de bem e decide sobre todas as coisas com a autoridade que os senadores tinham em Roma; resolve, assim, que é louvável um novo casamento, mesmo se um dos cônjuges estiver numa idade que impeça a procriação como finalidade da união: pois o verdadeiro objetivo do casamento é a ajuda e amizade que os esposos proporcionam um ao outro. Ele mesmo declara ter [pág. 52]
com a mulher relações elegantes e sentimentais e demonstrar o maior respeito, profunda amizade e todas as virtudes; o leitor moderno precisa se esforçar para lembrar que a referida esposa, casada por conveniência de carreira e de patrimônio, era uma mulher-criança, tão cedo transformada em esposa que, ao engravidar, sofreu um aborto. Outro neutro, o senador Tácito, admite, contra a tradição republicana, que uma mulher pode acompanhar o marido quando este parte para governar uma província, embora se trate de uma função quase militar e o sexo feminino esteja banido da caserna; uma esposa está ali para o alívio moral do marido, e sua presença, longe de enfraquecer, reconfortará o guerreiro.
É, portanto, pouco surpreendente que os estoicos tenham retomado a nova moral, tida já como segura por ser vitoriosa. Só que, sendo numerosos e com uma voz potente, parecem erroneamente ter sido seus propagadores mais que suas vítimas.
Vítimas, efetivamente, pois nada em sua doutrina lhes impunha pregar a submissão à moral vigente, ao contrário. Em sua primeira versão, o estoicismo ensinava o indivíduo a tornar-se o equivalente mortal dos deuses, autônomo e indiferente como eles aos golpes do acaso, se, graças a sua razão crítica, identificava a inclinação natural que levava a essa autarcia e a seguia corajosamente. O indivíduo só devia se submeter aos papéis sociais compatíveis com a inclinação para a autarcia e com a simpatia não menos natural que impele cada homem a se interessar por seus semelhantes. O que podia levar, e no início levou, a uma crítica das instituições políticas e familiares. Mas o estoicismo foi vítima de seu êxito num meio de letrados ricos e poderosos e tornou-se uma versão douta da moral corrente: os deveres do homem em relação a si mesmo e a seus semelhantes são identificados com as instituições, que essa doutrina degenerada procura interiorizar como moral; o casamento é uma amizade (desigual) entre marido e mulher. Vai longe a época em que os estoicos especulavam sobre o desejo de beleza e o amor dos meninos (tomado como tipo de amor em geral). [pág. 53]

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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