sábado, 23 de janeiro de 2010

A CARICATURA GRÁFICA E O ETHOS POPULAR EM POMPÉIA


A CARICATURA GRÁFICA E O ETHOS POPULAR EM POMPÉIA

Pedro Paulo Abreu Funari

1. DO POPULAR AO SAT_RICO: EM BUSCA DO ETHOS POPULAR



Desde suas origens, no século dezenove, os estudos da cultura popular têm sido marcados por discussÆes epistemológicas sobre a especificidade de seu objeto de estudo. A "sabedoria popular" ou folclore, como passou a ser chamada a partir dos anos l840, foi identificada, algumas vezes com a tradiçåo oral (Sebillot 1913:6), principalmente produzida por camponeses iletrados ignorantes das regras dos padrÆes da elite ou oficiais (Est populaire tout ce qui n'est pas officiel, difiniria Marcel Maus). Talvez o melhor exemplo deste ponto de vista encontre-se na ênfase dada a composiçÆes como as mnemonias:

Um, dois, feijåo com arroz;

Três, quatro, feijåo no prato;

Cinco, seis, feijåo português;

Sete, oito, feijåo com biscoito;

Nove, dez, feijåo com pastéis.


Apenas neste século iria se desenvolver uma crítica a esta abordagem e os escritos de Croce, particularmente seu "Poesia popular e poesia artística", datado do final dos anos 1920, iriam por em queståo algumas das características comumente aceitas nos pioneiros estudos do Folclore (Croce,s/d:342), como sua contraposicåo entre Volkslied e Kunstlied. Mikhail Bakhtine (1970:19,21,25 et passim) propunha que a cultura popular fosse caracterizada por brincadeiras, ritos cômicos (narodnii cmekh) assim como por insultos de cunho apotropaico (cf. Burke 1989a:103). Contudo, somente mais tarde a "História dos de baixo" (History from below, Hill l989:12) começaria a produzir monografias sobre a cultura popular medieval (Rosenberg 1980), moderna (Burke l989; Hoggart 1986) e contemporânea (Golby & Pardue 1984) e suas implicaçÆes teórico-metodológicas (cf. Woolen 1991:72). Uma "História cultural dos pobres" (Howkins 1990:120) implica no reconhecimento do efeito potencialmente subversivo e revolucionário da cultura popular (Browne 1989:14) e, ainda, da pluralidade tanto das culturas populares como eruditas (Burke 1989b:20-1) e de sua interdependência. Entretanto, concordo com Carlo Guinsburg (1986:108) que "a bipartiçåo entre cultura popular e erudita é mais útil do que um modelo holístico" que nåo captaria corretamente a especificidade das expressÆes populares considerando-as como derivadas da "cultura dominante" (Trigger 1989:786).

Parece-me, contudo, que persiste, ainda, uma certa incerteza sobre a caracterizaçåo da cultura popular. A definiçåo negativa como culturas que nåo såo da elite (Burke 1989:15) é o suficientemente boa em termos sociológicos mas seria possível defini-la ontologicamente? As instigantes proposiçÆes metafísicas de Croce (s/d:345) a respeito merecem ser citadas: " a poesia (ou a cultura) popular exprime movimentos da alma que nåo têm atrás de si, como precedentes imediatos, grandes elaboraçÆes do pensamento e da paixåo; descreve sentimentos simples em formas correspondentes simples. A alta poesia (ou cultura) move e desperta grandes massas de recordaçÆes, experiências, pensamentos , múltiplos sentimentos com diferentes graus de sutileza; a poesia (ou cultura) popular nåo se alarga por tåo amplos caminhos para chegar ao sentido, mas o atinge de maeira breve e rápida". A oposiçåo crociana entre a experiência, pensamento e sentimentos da elite, com diferentes graus expressivos e o caráter direto do popular talvez nao seja completamente plausível mas, ao menos, sua interpretaçåo levanta algumas questÆes importantes sobre suas diferenças ontológicas. Como as culturas de classe såo historicamente determinadas, qualquer definiçåo ontológica depende da compreensåo dos contextos históricos e sociais específicos através de uma análise microscópica (Nicolet 1988:40). Os desenhos parietais pompeianos adequam-se , perfeitamente, a tal estudo, como espero demonstrar neste artigo. Antes disso, entretanto, devemos considerar como a cultura popular tem sido vista no contexto da sociedade romana.


2. A CULTURA POPULAR E A SOCIEDADE ANTIGA


Quando Mikhail Rostovtzeff (1911:141) escreveu seu exaustivo artigo sobre a paisagem arquitetural romana e helenística, pareceu-lhe absolutamente natural (Brunt 1983:95) citar Vitrúvio (7,5), em sua famosa descriçåo da pintura parietal das casas ricas, sem levar em conta seu viés erudito (cf. Hahn 199: 364 et passim; Bulford 1972:25):

pinguntur enim portus promuntoria litora flumina fontes euripi fana luci montes pecora pastores. As habitaçoes populares (Hobson 1985; Scobie 1986) nåo entravam em seu discurso. R. Bianchi Bandinelli (1970:64), ainda que nåo tratasse, explicitamente, da expressåo "popular", propôs uma análise de classe que distinguisse as tendências "senatorial" e "plebéia" (Bandinelli 1981:45; anteriormente, havia preferido denominar esta última de "corrente popular",1961:231-2). Este "realismo popular tosco" (Brendel 1979:9) tratava, contudo, de referenciais tardios, de ambiente provincial, de classe média (Rodenwaldt 1939:547) e nåo da expressåo de cunho efetivamente popular. Já no início dos anos 1930 E. Lissberger (1934), em sua palestra inaugural em Tubingen, ressaltava que as evidências epigráficas sugeriam um alto nível de alfabetizaçåo e criatividade entre a populaçåo humilde (cf. Guillemin 1935:404).

A despeito do pessimismo de alguns estudiosos a respeito de nossa acessibilidade às evidências populares (cf. MacMullen 1990:186) ou de sua caracterizaçåo como grosseira e vulgar (Cebe 1966:372, referindo-se a grafites), tem-se tido uma crescente consciência de que visÆes comumente aceitas, como o chamado "desprezo dos antigos por atividades manuais", nåo podem ser aplicadas às visÆes de mundo populares (cf. MacMullen 1974:120;202, com discussåo da bibliografia anterior; Wood 1989:137 et passim). Um alto grau de alfabetizaçåo entre a populaçåo romana, graças aos estudos de caso das evidências epigráficas (Gichon 1983:585; Funari 1989), vem a reforçar a impressåo que, embora houvesse diferentes classes (De Martino 1988:223) e culturas (Mattews 1990:339) populares, a Romanizaçåo (Orsted 1985:11) acabaria por levar à constituiçåo de uma koine popular, abrangendo a maioria dos escravos e dos trabalhadores pobres (Harris 1988: 603). Os grafites pompeianos permitem-nos, de maneira única, observar elementos de classe presentes no discurso e visåo populares (cf. Díaz 1990:499). Neste artigo, tratarei somente das caricaturas, deixando, assim , de lado as mensagens verbais, por dois motivos: em primeiro lugar, para tentar abordar o ethos popular através da representaçåo gráfica, particularmente, do exagero; em segundo lugar, para limitar o universo de análise, neste estágio da pesquisa, a um corpus nåo tåo amplo.


3. S_TIRA, CARICATURA: O SIMBOLISMO CARREGADO

Aristóteles, em seu "A Arte da Poesia" (5, 22, 1449 a 32), ressaltava que "a comédia é imitaçåo de homens inferiores; nåo, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. O ridículo é apenas certo defeito , torpeza anódina e inocente (anódinon kai ou phthartikón, ou seja, kharan ablabe, um prazer nåo nocivo). Embora nao sejam nocivas, as situaçÆes risíveis oferecem oportunidades únicas de expressåo de críticas que, de outra maneira, dificilmente poderiam ser expressas abertamente. "O que impede que se diga a verdade com uma risada?" (Ridentem dicere uerum quid uetat?, Hor. S. 1,1,24). "O humor é, com frequência, mais forte e mais efetivo que que a dureza para destrinchar grandes questÆes" (ridiculum acri fortius et melius magnas plerumque secat res, Hor.S.1,10,14-5). Através da zombaria é possível falar abertamente e, assim, questionar idéias e autoridades em voga. Portanto, a risada (rictus ou risus, Quint. 6,3), significa a possibilidade de expressåo particularmente aberta da crítica, permitindo ao homem do povo o fustigamento das autoridades.

Como se poderia definir o que é risível? Parece que a resposta pode ser encontrada no fato que a maioria, se nåo todas (cf. Bergson 1940:95), as situaçÆes ridículas apresentam exageros. Justamente o exagero está na base da satira ou satura, um gênero especificamente latino (Quint. 10,1,93: satira quidem tota nostra est), ligada à lanx satura (prato cheio de frutas) e à satura (um tipo de salsicha) no sentido que a plenitude é a característica comum destes diferentes e carregados (cf. a raiz *sa = saturado) termos. Embora sem nenhuma relacåo direta, a caricatura também retira seu sentido da sobrecarga (caricare) que caracteriza as representaçÆes ridículas. Ainda que o exagero nåo seja o único recurso cômico usado para "fazer o ouvinte mostrar os dentes na gagalhada", nas palavras de Horácio (S.1,10,6), trata-se, contudo, do mais popular, graças à sua clareza (breuitas, Hor. S.1,10,8). O exagero direto permite uma mais fácil compreensåo, evitando longos processos de decodificaçåo por parte do homem comum. Se isto é aplicável à sátira literária, segundo o conselho de Horácio (S.1,10,8-9) que "você precisa da brevidade para permitir que o pensamento corra livremente sem se perder numa massa de palavras que pesará nos ouvidos", tanto mais o é em relaçåo às inscriçÆes vulgares parietais. O exagero, na verdade, constitui característica comum mesmo nas mensagens verbais em Pompéia, como se torna claro na inscriçåo de Florônio (CIL IV 8767):

Floronius.
binet ac miles

leg.(ioni) uii hic.

fuit.neque

mulieres

scierunt.nisi

paucae.et

ses.erunt (FIG. 1)

As antigas transcriçÆes deste grafite de Della Corte (1939; CIL IV 8767) e de Herescu (1969:133) nåo conseguiam explicar, paleograficamente, as leituras que propunham de binet como benef(iciarius) (Della Corte),ou de ses.erunt como se de(de)runt (Della Corte) ou sederunt (CIL IV 8767 e Herescu 1969:126), em sentido obsceno (cf. Petrônio, Sat. 126,10: ego etiam si ancilla sum, nunquam tamen nisi in equestribus sedeo). A interpretaçåo de Pisani (1973) permite explicar binet como binetas (cf. Luciano, Pseudologista, 27) em sentido obsceno (= fututor) e, neste caso, pode-se interpretar a afirmaçåo como um exagero para provocar o riso: "Florônio, fodedor e soldado da sétima legiåo, esteve aqui (sc. uma taberna) e nenhuma mulher notou: eram apenas seis, pouco (sc. para tal garanhåo)". O exagero podia, ainda, induzir ao riso pela zombaria, como neste caso (Della Corte 1954:329, n.851 d-m):

uxisti octies. tibi superat ut habeas sedecies! Coponium fecisti; cretaria fecisti; salsamentaria fecisti; pistorium fecisti; agricola fuisti; aere minutaria fecisti; propola fuisti; luguncularia nunc facis. si cunnum linxseris, consummaris omnia.

Afirma-se que o anônimo foi garçom, oleiro, comerciante de peixe salgado, padeiro, agricultor, vendedor de quinquilharias de bronze, varejista e, agora, vendedor de garrafinhas. Para ter feito tudo, falta-lhe apenas um trabalho: a prática profissional do cunilíngua (sobre o caráter usual desta prática, cf. Adams 1987:135; John 1982:141; contra Foucault 1986:23-4 e Veyne 1986:47).

A caricatura gráfica (Bergson 1940:20-1) como uma forma específica de arte, ainda que compartilhando algumas características gerais do exagero da "baixa" arte, depende de esquemas simbólicos populares próprios, relativos ao desenho parietal e à representaçåo humana, temas que abordo a seguir.


4.O SIMB_LICO E O ESTIL_STICO NA ARTE GR_FICA POMPEIANA


Comparando poemas populares icônicos, como CIL IV 1595 (FIG. 2), 8031 (FIG. 3) ou 8329 (FIG. 4), com os poucos carmina figurata (Haeberlin 1886) ou technopaegnia (Wendel 1920: 159-164) de autores eruditos como Teócrito(Wendel 1920:159-164) e outros da Antologia Palatina, ficamos chocados pela dificuldade representada pelo uso de trocadilhos inusuais e obscuros (Willamovitz 1899:51). Diferentemente da arte pop moderna que reconheceu que "a barreira erigida entre 'alta' e 'baixa' arte nåo poderia ser mantida" (Wollen 199:72) e em oposiçåo, particularmente, à poesia concreta (Teles 1977:22; Crespo & Bedate 1963), ao poema máquina (Pignatari 1965:151), à poesia constelaçåo (Gomringen 1953) ou ao popcreto (Santiago 1977:46), os poemas figurativos da erudiçåo antiga estavam completamente fora do campo de preocupaçåo e percepçåo do homem comum. Mas, se é verdade que " o papel do simbolismo na vida quotidiana tendeu a ser negligenciado tanto por historiadores da cultura (preocupados com as "obras de arte") como por historiadores sociais (preocupados com a "realidade" social)" (Burke 1989:3) - e devemos acrescentar, ainda, os historiadores da literatura (Mac Donald 1991:238)- deve reconhecer-se que o simbolismo gráfico popular permanece quase completamente inexplorado (cf. Gigante 1979:18). Infelizmente, estudos sobre práticas eruditas como pintura parietal (Rostovtzeff 1919), desenho mural (White 1957), quadros (tabulae, Perrin 1989:316), arte em geral (Dentzer 1962) ou mesmo os estilos pompeianos (Schefold 1972) e o imaginário da pintura antiga (Rouveret 1989) såo de difícil uso quando tratamos dos rabiscos populares. Seria possível, lendo apenas os anais do Parlamento, captar a mentalidade popular por detrás de um grafite como "nåo vote vomite" ? (Melley 1976:104).

Para abordar a expressåo estilística gráfica devemos considerar três pontos. Em primeiro lugar, "estilo é poder... criar estilo é criar uma ilusåo de relaçÆes fixas e objetivas. O estilo envolve o acontecimento por interpretaçåo mas fixa esta interpretacåo como um acontecimento. Fornece o potencial para o controle do significado e, assim, do poder" (Hodder 1990:46). Significa, portanto, que o estilo torna-se poder através dos padrÆes ou da repetiçåo regular de traços significativos (Davis 1990:29). Este processo nåo é, necessariamente, um ato consciente, pois "o estilo pode ser, normalmente, passivo mas, mesmo assim, funciona iconicamente porque as pessoas reagem automaticamente de maneira simbólica e sem um estímulo aparente...portanto, pode dizer-se que mensagens étnicas såo muito mais frequentemente lidas do que deliberadamente enviadas" (Sackkett 1990:37). Ainda mais, estilos nåo såo apenas étnicos como sociais (Battisti 1949:42; Candido 1976:169), diretamente relacionados à estratificaçåo social (Lagopoulos 1985:266; Lagopoulos, inéd.:22). Embora evidências diretas das idéias populares estejam ausentes da tradiçåo textual (Pollitt 1989), podemos usar os dados disponíveis para reconstruir sua retórica gráfica (c. Wallace-Hadrill 1990:147).

Como a caricatura trata, principalmente, da aparência humana (especialmente da face), devemos tentar definir como os romanos consideravam significativos os diferentes traços físicos e como podem ser colocados, semioticamente, em um quadro de oposiçÆes conceituais (QUADRO 1). As fontes escritas referem-se a diferentes significados atribuídos ao cabelo, barba, sombrancelha, lábios, queixo, nariz, orelha e pescoço. A calvície (caluities) era associada à idade (Petr. Sat. 27; Suet. Galb.20), e, assim, tanto à senilidade como à experiência e status decorrente do passar dos anos, enquanto que a negligência associava-se a muito cabelo, particularmente quando mal penteado (Ter. Heaut.2,3,49: capillus passus, prolixus, circum caput reiectus negligenter). A barba era, normalmente, identificada com a adolescência (cf. Cic. N.D.1,30: quos aut imberbes aut bene barbatos uidetis), embora adultos barbados fossem ligados a imagens positivas, como os filósofos (Pers.4,1) ou os romanos antigos (C.Coel.14,33: barbula horrida ou barbicha tosca). Portanto, a calvície e a barba produziam reaçÆes contraditórias, ressaltando a ambiguidade associada à faixa etária: juventude/barba/cabelo significam mais força física mas menos status e autoridade, velhice/ face barbeada/calvície associam-se à senilidade (tanto física quanto mental) mas, por outro lado, também ao poder e autoridade advindos da passagem do tempo (QUADRO 2).

Sombrancelhas abundantes significavam alguém orgulhoso e arrogante até o ponto de ser considerado duro e severo (Sen.Ep.123,11); lábios finos geravam o riso (cf. Hier.Ep.7,5: similem habent labra lactugam) (QUADRO 3); o queixo era associado ao poder (cf. Suet. Tib.21). O nariz grande lembrava o sarcasmo (cf. Mart. 2,54,5: nil nasutius hac maligniusque; cf. Mart.12,37,1), enquanto orelhinhas denotavam delicadeza e feminilidade (ou efeminaçåo) (cf. Cic. Q.Fr.2,15,a,4), além de desatençåo, em oposiçåo à atencåo associada às orelhas grandes. O pescoço produzia sensaçÆes contraditórias, sendo associado ao poder, liberdade e vida (Plaut.Trin.2,4,194) e, portanto, à sua privaçåo (cf. Prop.2,10,85: dare colla triumpho). Estes traços físicos podem ser divididos considerando-se suas conotaçÆes em relacåo ao riso, ao poder e à autoridade como nos quadros 1, 2 e 3.


5. AS CARICATURAS POMPEIANAS COMO UM SISTEMA S_CIO-SEMI_TICO


Os estilos arquiteturais na pintural parietal pompeiana (Rostovtzeff 1919:150) eram, propriamente, um esquema decorativo interior (Wheeler 1989:12), ao mesmo tempo de caráter coletivo e de expressåo privada (Perrin 1989:341), sendo a janela falsa a expressåo mais perfeita deste tipo de ilusionismo consciente da classe alta (Rouveret 1989:299). A geraçåo neroniana, embora muito breve, como todas as geracÆes (cf. Segal 1991:81), distinguia-se por traços particularmente marcados, em especial, pela cultura de libertos arrivistas (Stockton 1990:145; cf. Petr. Sat.) e pela introspecçåo das elites locais (Wilson 1990:379). Foi neste contexto que a caricatura desenvolveu-se nas paredes de Pompéia em oposiçåo a estas expressÆes da elite (cf. Petr. Sat.29). Os rabiscos gráficos tinham uma própria lógica interna (cf. Schefold 1972:251, sobre a lógica da pintura erudita), sujeita a estímulos intrassistêmicos (Walicki 1991:101), estruturada , como a língua literária, em termos de compositio, iunctura e synthesis (Freudenburg 1990:197). Como este sistema nunca foi explicitado, devemos seguir o procedimento proposto por Hayek (1940:530), ao tratar da análise de sistemas econômicos, e chegar ao conhecimento a partir de elementos dispersos (cf. Blackburn 199l: 34-5). Auto-retratos e imagines ridiculae permitem-nos notar como o desenho realça os atributos físicos que podiam ser interpretdos como ridículos ou como sinais de falta de poder e autoridade, ou, ao contrário, como símbolos de status e prestígio. Comparemos três duplas de figuras (FIGS. 5, 6 e 7; QUADROS 4, 5 e 6).

O mesmo esquema analítico pode ser aplicado a outros grafites (cf. CIL IV 1464; 7309; 7669; 7671; 8119; 8185;10005;10239). Notamos que auto-retratos tendem a ressaltar traços associados ao poder, autoridade, atençåo, inteligência (cf.QUADRO 4), os traços ambíguos sendo representados, provavelmente, pelo seu lado positivo (cf. QUADROS 5 e 6). Ao contrário, imagines ridiculae ressaltam conotaçÆes reprováveis, provavelmente também determinantes nos traços ambíguos. Podemos concluir, portanto, que , embora nåo explicitamente, havia uma escolha definida de atributos informando uma estrutura icônica carregada de significado (TABELAS 1, 2 E 3). Deve notar-se que a composicåo sintática depende de conotacÆes exossemióticas ou culturais, ou seja, de uma associacåo arbitrária de traços físicos a significados comportamentais implícitos. Ainda mais, estes desenhos demonstram que o homem comum nåo apenas criticava autoridades (cf. , CIL IV, 9226 = FIG. 6), como, também, usava sua própria criatividade estilística e simbólica para levar a cabo esta crítica. Assim, nåo podemos "superestimar o poder das formulaçÆes ideológicas para controlar e manipular as pessoas e subestimar a habilidade das classes baixas em discernir as ideologias pelas quais as elites tentavam dominá-los" (Trigger 1989:786; cf. Rowlands 1983:111).

A caricatura gráfica permite-nos , ainda, compreender como o ethos popular era profundamente afetado por contradiçÆes graças, principalmente, à desumanizaçåo derivada da escravidåo como instituiçåo social. A escravidåo estava no centro da exploraçåo do homem e o fato que "todos os homens såo livres ou escravos" (omnes homines aut liberi sunt aut serui), nas palavras de Gaio (1,3,9), significava que um processo de despossessåo humana atingia a própria gente simples. _ diferença dos jogos de gladiadores representados na pintura erudita (Pl.N.H.35,51-2), os grafites expressam os sentimentos dos torcedores comuns por seus heróis (Funari 1989: 40-42;63-66). Enquanto na elite havia divergências sobre o bom gosto dos munera (Ville 1981), estes espetáculos gladiatórios estavam no centro da percepçåo popular da vida. Gladiadores livres ou escravos provavam que homens podiam ser condenados à morte (cf. Sen.Ep.87: comparare homines ad gladium) para prazer da massa. Em última instância, a sujeiçåo privada de homens a homens, como escravos e senhores, justificava-se, na mentalidade popular, pela posse coletiva de homens (os gladiadores) a serem sacrificados para entretenimento popular. O trabalho e a morte dos gladiadores estavam para o povo como o trabalho e a morte dos escravos privados estavam para seus senhores. Este processo de despossesåo do homem de sua humanidade apresenta-se muito claro nos rabiscos dos torcedores (cf. CIL IV 8055-6;10221;10236). Dois exemplos bastaråo para distinguir diferentes níveis de representaçåo dos traços humanos de acordo com a valorizaçåo social do homem representado (CIL IV 8017; 10237) (FIGS. 8 e 9).

Em CIL IV 8017 (FIG. 8), homem e animal eståo representados como seres iguais, como realmente eram na uenatio enquanto espetáculo público de gala (apparatus, Cic. Off.2,16,55), estando o rosto de Venustus, simplesmente, nåo representado. A maioria dos traços usados no desenho de Venustus referem-se a armas e roupas ligadas à luta: nada mais é que um lutador sem face para a satisfaçåo do povo (cf. FIG. 8 e TABELA 4). Em CIL IV 10237, nota-se facilmente que os atributos tornam-se crescentemente humanos dos gladiadores aos flautistas até os dois deuses visíveis acima da representaçåo (FIG. 9 e TABELA 5). Devemos concluir, portanto, que a percepcçåo da posiçåo social expressava-se, inconscientemente, através de um sistema gráfico semiótico e que , desta maneira, contribuia para o reforço dos laços sociais de exploraçåo.

A caricatura, em Pompéia, podia adquirir um caráter muito abstrato, algumas vezes captando , em um mesmo quadro, três níveis interrelacionados, verbal, fônico e icônico. Constitui um bom exemplo a epígrafe CIL IV 8329 (FIG. 10), ao mesmo tempo uma mensagem escrita (Sseuera phelassss = Seuera felas = Severa, chupas), uma expressåo fônica do ato, graças à repetiçåo da letra s, e uma caricatura dos parceiros (Fig. ). O alto grau de abstraçåo demonstra que a aisthesis e a expressåo populares, antes que simples, cruas e diretas, podiam atingir altos níveis sistêmicos de complexidade e subjetividade (Funari 1987).


6. EM DIREÇÅO _ ESPECIFICIDADE DO ETHOS POPULAR


Podemos concluir este estudo dos desenhos parietais gráficos ressaltando três aspectos interrelacionados:

1. Havia um sistema semiótico específico relativo à expressåo parietal gráfica;

2. Este sistema era, a um só tempo, simbólico e social. Era simbólico na medida em que cresceu em oposiçåo à pintura erudita como uma técnica de rabisco a céu aberto com regras de composiçåo próprias. Era , também, social pois este sistema simbólico expressava, através das contradiçÆes sociais, os sentimentos populares. Particularmente claras apresentam-se as diferenças de classe e status como definidoras tanto da percepçåo como fruiçåo populares;

3. Como consequência, através de mecanismos simbólicos autônomos, a caricatura servia, ao mesmo tempo, para criticar autoridades (cf. CIL IV 9226), para reforçar a diferenciaçåo e exploraçåo social (cf. CIL 10237) e para expressar a auto-estima (cf. CIL IV 9008), interesses (cf. CIL IV 8017) e paixÆes (cf. CIL IV 8329) populares.

Mas , talvez, as caricaturas antigas devam ser, simplesmente, admiradas por sua beleza e espontaneidade. Se assim for, terminaria lembrando as palavras de Machado de Assis, muito a propósito, sobre as expressÆes populares:


"Notai que o que legitima um vocábulo destes, é a sua espontaneidade. Eles nascem como as plantas da terra. Nåo såo flores artificiais de academias, pétalas de papelåo recortadas em gabinetes, nas quais o povo nåo pega. Ao contrário, as geradas naturalmente é que acabam entrando nas academias".

(A Semana, 1893).
UNICAMP

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