terça-feira, 20 de maio de 2014

Alemanha pós Primeira Guerra



Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a revolução socialista parecia avançar na Alemanha. Nas forças armadas e por todo o país formavam-se conselhos de soldados e de operários, inspirados pelos soviets da Revolução Russa. A proclamação da República em 1919 visou conter essa tendência. No mesmo ano, o novo governo alemão, em que estavam representados os socialistas, esmagou uma insurreição conduzida pela Liga Espartaquista. Os líderes Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, que estavam entre os nomes mais respeitados do movimento operário alemão, foram assassinados por forças paramilitares pagas pelo governo. A repressão desmoralizou os socialistas, enquanto os herdeiros dos espartaquistas se fortaleceram.

Nos anos seguintes, a Alemanha teve de enfrentar problemas como a pior inflação da história: o índice inflacionário variou em um trilhão por centro entre janeiro de 1919 e o final de 1923. Nesse ano, em outubro, o Partido Comunista Alemão (KPD) preparou uma insurreição, mas cancelou-a no último minuto. Um mês depois, Hitler tentou derrubar o governo da Baviera com o chamado "putsch da cervejaria", foi preso e escreveu Mein Kampf na prisão.
Revista Nova Escola

Império Romano


Carlos Eduardo Matos
Jornalista e editor de livros didáticos e paradidáticos.
A formação do Império Romano se deu em consequência de muitas ações militares. Foi o militarismo que edificou o império e que também possibilitou muito desse intercâmbio cultural.

Os soldados lutavam em falanges (eles se organizavam em uma formação retangular, em fileiras, e lutavam com longas lanças). Já no século IV a.C., foi adotado um modelo mais flexível, chamado legião manipular. Neste modelo, os soldados se organizavam em três fileiras de infantaria, cada uma com blocos de tropas (manípulos, ou "punhados") com espaços entre si, o que lhes permitia manobrar independentemente do conjunto da linha de batalha. Os soldados mais novos ficavam na primeira linha e os mais experientes, na última.

Outra reforma importante do militarismo romano ocorreu em 100 a.C., com a divisão da legião manipular em dez coortes (uma espécie de milícia) de 480 homens cada. Esses grupos eram equipados com as armas como o pilum (um dardo de arremesso) e o gládio (uma espada curta de lâmina dupla). Além disso, as fileiras de soldados foram abertas aos cidadãos sem recursos, que puderam tornar-se “soldados profissionais”.

Durante a Primeira Guerra Púnica (264 a.C.-241 a.C.), Roma e Cartago, cidade-estado fenícia, disputaram o controle do Mediterrâneo Ocidental. Para enfrentar Cartago nesta guerra naval, os romanos construíram navios com base em uma embarcação cartaginesa capturada. Com a vitória neste conflito, e também na Segunda e na Terceira Guerra Púnica (218 a.C.- 202 a.C. e 149 a.C.-146 a.C. respectivamente), Roma acelerou sua expansão, tornando-se senhora de toda a orla do Mediterrâneo.

As conquistas romanas, intensificadas entre os séculos 3 a.C. e o início da era cristã, fizeram com que o Império acumulasse tesouros e escravos. Questione, então, a turma, quais foram as consequências disso? Com a produção realizada por escravos, as massas pobres de Roma foram apaziguadas pela distribuição gratuita de alimentos. Também ocorreram rebeliões de escravos no império. Entre 135 a.C. e 104 a.C. ocorreram na Sicília a primeira e a segunda Guerras Servis. Em 73 a.C. teve início a terceira Guerra Servil, revolta liderada pelo gladiador Espártaco e esmagada em 71 a.C.

No século 2 da era cristã, quando o afluxo de tesouros e escravos aos poucos diminuiu, a economia da porção ocidental do Império Romano mergulhou em uma crise profunda, enquanto a da parte oriental, mais diversificada, teve melhores condições de sobrevivência. Diante dessa diferenciação crescente, o então imperador Diocleciano nomeou imperadores (augustos) e imperadores auxiliares (césares) para o Ocidente e o Oriente por volta do ano 300; o imperador Constantino fundou Constantinopla, a “Nova Roma”, em 330, fazendo dessa cidade do Oriente a sede do poder imperial, e no governo de Teodósio (morto em 395) o território foi dividido entre o Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente.
No âmbito religioso, os romanos absorveram influências dos etruscos (povos que viviam na península Itálica), dos egípcios e da cultura grega – que resultou na magnífica mitologia greco-romana. O ingresso de deuses e deusas “estrangeiros” no panteão romano prosseguiu na fase republicana e no período imperial.

Íris era reverenciada como "Rainha do céu" e, muitas vezes, era representada tendo nos braços o filho Hórus, ainda bebê. Quanto a Mitra, o deus dos soldados, as lendas dizem que era filho de uma virgem e que nasceu no dia 25 de dezembro, em uma gruta. Diz-se que uma estrela anunciou seu nascimento e que pastores foram os primeiros a homenageá-lo.
Revista Nova Escola

Notícias História Viva

Revelações do mais antigo naufrágio no oceano Indico
O navio de dois mil anos de idade pode ter indícios do comércio entre sociedades romanas e asiáticas

cortesia do Departamento de Arqueologia do Sri Lanka


LEGENDA: Um exemplo de vaso de cerâmica encontrado no naufrágio de Godavaya.


Megan Gannon e LiveScience

O mais antigo naufrágio conhecido do Oceano Índico está no fundo do litoral sul do Sri Lanka há cerca de dois mil anos. Dentro de algumas semanas, arqueólogos mergulhadores iniciarão uma escavação que deve durar meses no local, procurando indícios sobre o comércio entre Roma e Ásia na antiguidade.

O local fica 33 metros abaixo da superfície do oceano, nas proximidades da vila de pescadores Godavaya, onde na década de 90 arqueólogos alemães encontraram um porto importante para a Rota da Seda durante o segundo século depois de Cristo.

O navio naufragado, descoberto há apenas 10 anos, não se parece em nada com o casco esquelético tradicional. Em vez disso, arqueólogos estão lidando com um monte de barras de metal corroído e uma variedade de cargas antigas espalhadas, incluindo lingotes de vidro e vasos de cerâmica, que ficaram rolando pelo fundo do mar durante centenas de anos em meio a fortes correntezas e talvez até um ou outro tsunami.

“Está tudo muito quebrado”, declara Deborah Carlson, presidente do Instituto de Arqueologia Náutica da Texas A&M University, que está conduzindo a expedição até o naufrágio de Godavaya, com colegas dos Estados Unidos, Sri Lanka e França. Por mais confuso que esteja, o local poderia preencher uma lacuna nas evidências existentes sobre o comércio que levou metais e produtos exóticos, como a seda, da Ásia até o mundo romano.

Elo Perdido

Acadêmicos acreditam que o comércio entre o Leste e o Oeste se intensificou após Roma anexar o Egito no primeiro século antes de Cristo, ganhando acesso ao Mar Vermelho, uma passagem para o Oceano Índico. Carlson observa que rotas de comércio estão documentadas em fontes literárias e históricas, como no “Périplo do Mar Vermelho”, um manual do primeiro século D.C., escrito em grego, que explica a marinheiros saindo dos Mares Mediterrâneo e Vermelho aonde ir no Oceano Índico e o que levar, vender e comprar.

“Nós só não temos os navios que realmente faziam parte desse comércio”, contou Carlson à Live Science em uma entrevista por telefone.

Carlson declarou que eles provavelmente não encontrarão algo que prove definitvamente que o navio estava indo para Roma. (De maneira semelhante, os arqueólogos provavelmente não conseguirão saber como o navio afundou, ainda que Carlson – que descreveu as “terríveis correntes” que frustraram muitas das tentativas de mergulho da equipe no ano passado – suspeite que os mares bravios possam ter tido seu papel). Mas Carlson explica que descobertas no navio afundado podem pelo menos ajudar a ilustrar que o Sri Lanka era um “pivô” nesse comércio, já que muitas das mercadorias que passavam pela ilha chegavam ao Mediterrâneo.

O que tem lá embaixo?

Os primeiros traços do naufrágio de Godavaya foram descobertos em 2003 quando pescadores locais mergulharam até o local e voltaram com artefatos antigos, incluindo uma pedra de moagem com a forma de um pequeno banco ou de uma mesa com pernas. De acordo com Carlson, pedras semelhantes já foram encontradas em monumentos budistas ricos em relíquias, conhecidos como stupas.

Carlson viu o local pela primeira em 2010. Ela e seus colegas documentaram parcialmente o naufrágio durante três campanhas exploratórias subsequentes, entre 2011 e 2013. A maior parte dos objetos encontrados ao redor do navio afundado até agora se parecem com produtos locais, e muitos deles ainda estão em sua forma bruta. Existem mais pedrasde moagem com aparência budista; lingotes de ferro e cobre (ou o que sobrou deles após a corrosão); e lingotes de vidro negro e azul-esverdeado que se originaram ao longo do litoral de Tamil Nadu, no sul da Índia, e que talvez fossem derretidos para criar vasos ou contas.

Para determinar a idade do naufrágio, Carlson e seus colegas coletaram três amostras de uma madeira delicadapresa ao navio e as enviaram para serem testadas por dois laboratórios diferentes. Os fragmentos de madeira, que provavelmente são restos do navio, são pelo menos do primeiro século antes de Cristo, ou do primeiro século depois de Cristo.

“Eu fiquei bem cética quando vi esse naufrágio em 2010. Eu pensei ‘não tem como essa coisa ser antiga”, confessou Carlson. “Mas nós coletamos essas amostras de madeira e eu fiquei chocada quando recebemos os resultados.

O local cobre uma área de aproximadamente 6x6 metros, ainda que a equipe não tenha conseguido determinar exatamente onde o navio começa e termina durante suas curtas explorações do local. Neste ano eles terão mais tempo para investigar; se o clima permitir, a equipe espera começar a mergulhar em meados de fevereiro, e continuar trabalhando até maio.

Além de determinar um limite sólido para o naufrágio, Carlson espera que ela e seus colegas consigam separar uma parte do navio submerso, levá-lo até a superfície e peneirar seu conteúdo em uma piscina, procurando moedas, objetos pessoais e tudo mais que estiver preso no sedimento. De jarros lacrados de cerâmica, a equipe pode até mesmo conseguir recuperar materiais botânicos antigos, como pólen, que poderiam até mesmo indicar em que momento do ano o navio estava viajando.

O projeto recebeu financiamento do Fundo Nacional para as Ciências Humanas. Além dos colegas do Instituto de Arqueologia Náutica, Carlson está trabalhando com pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, da University of California, Berkeley, e do Departamento de Arqueologia do Sri Lanka.
 Scientific American Brasil

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Como são os rituais pós-morte das grandes religiões?

 
Sheyla Miranda

BUDISMO

Após sete dias da morte, familiares e amigos reúnem-se para celebrar a memória do falecido, e esse encontro repete-se em intervalos de sete dias, até o 49º, completando sete reuniões. No Brasil, o mais comum é realizar apenas a última reunião

FESTA AO AR LIVRE

O Obon é uma celebração praticada no Japão ou em colônias japonesas, que acontece em 15 de julho ou em 15 de agosto todos os anos. Famílias enfeitam o templo ou áreas ao ar livre com velas e lanternas coloridas, dançam ritmos tradicionais e rezam para homenagear as pessoas queridas que já se foram

VÁRIOS ANIVERSÁRIOS

Também fazem parte da tradição os "ofícios memoriais", em que a família oferece uma cerimônia para celebrar o falecido. Elas ocorrem nos seguintes aniversários de morte: 1º, 3º, 7º, 13º, 17º e 33º. Nessas ocasiões, os mais chegados leem textos sagrados e relembram como era a relação com o morto

HINDUÍSMO

Após a cremação, a família é considerada impura e deve tomar um longo banho ao voltar para casa. O período de reclusão dura de 7 a 40 dias. Todos ficam em casa, comem só coisas leves, livram-se dos pertences do morto e fazem orações. Durante o período, os familiares não frequentam templos nem o comércio

CRISTIANISMO

O luto católico pode durar 7, 30 ou 365 dias, dependendo da vontade dos familiares. Antigamente, as mulheres vestiam preto por pelo menos um ano quando pai, marido ou filhos morriam

ORAR SEM CESSAR

O clássico ritual fúnebre dos católicos é a missa de sétimo dia, celebrada para iluminar a alma do falecido, já que acreditam em ressurreição. Para eles, 2/11 é uma data especial: o Dia de Finados, em que os fiéis oram pelos mortos e os reverenciam. Protestantes oram e se confortam sem rituais marcantes

ISLAMISMO

Em países árabes, três dias após a morte, parentes do falecido contratam vários qãri' , profissionais que declamam o Alcorão ao lado da sepultura. O ato iluminaria o corpo em sua viagem até a eternidade. Ritual mais comum é o encontro de amigos e familiares, depois de 40 dias do óbito, para lembrar o falecido

JUDAÍSMO

Após o enterro, alguns grupos da religião judaica não costumam ir direto para casa; os enlutados mais próximos alteram a rota, param em algum lugar e pedem algo doce para comer. O desvio do caminho é feito para "despistar o anjo da morte" e o açúcar ingerido disfarça o amargor causado pelo óbito

LONGO RECOLHIMENTO

Ao voltar do cemitério, a família fica em casa, de luto, por sete dias. Três vezes ao dia, fazem orações e recebem visitas. Tudo o que reflete, como espelhos e porta-retratos, fica coberto , para que o morto não "veja" a própria imagem. Ao fim do período de luto, a família caminha nas proximidades da casa

ÚLTIMA HOMENAGEM

O último ritual fúnebre dos judeus é a inauguração da lápide , que não é colocada no enterro. O tempo de espera varia de país a país: em Israel, segue-se o tempo mínimo, um mês; no Brasil, a lápide só é colocada 11 meses após a morte. Na cerimônia, o túmulo é coberto com um pano preto e pequenas pedras

CONSULTORIA - Cecilia Ben David, coordenadora pedagógica do Centro de Cultura Judaica; Swami Krishna Priya Ananda, mestre espiritual da Sociedade Internacional Gita do Brasil; Cido Pereira, padre da Arquidiocese de São Paulo; Shake Juma, do Centro de Estudos e Divulgação do Islã; Naguni Seishin, monge do Templo Budista Koyasan Shingonshu Nambei Betsuin da América do Sul
Revista Mundo Estranho

terça-feira, 6 de maio de 2014

Freud e a Guerra de 1914

Ensaio pungente sobre conflito sangrento é lembrado e analisado por cientista político na  interpretação freudiana destaca uma fratura irreparável no processo civilizador.

Renato Lessa


‘Considerações atuais sobre a guerra e a morte’ foi escrito por Freud quando a Guerra de 1914 já revelara marcas que o tornariam muito distinto dos que o precederam. (foto: Wikimedia Commons – CC BY 2.0)

Os 100 anos da deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dão hoje ensejo a reflexões tanto acerca dos fatores que a provocaram quanto sobre as implicações civilizatórias por ela legadas. Muito se escreveu a respeito, mas uma das interpretações mais instigantes da Guerra de 1914 foi produzida, no calor da hora, por Sigmund Freud (1856-1939), em ensaio pungente: Considerações atuais sobre a guerra e a morte, escrito em 1915, quando o conflito já revelara marcas que o tornariam tão distinto dos que o precederam.

É justamente esse juízo – a originalidade da Grande Guerra – que compõe o núcleo do argumento de Freud.

A releitura da interpretação freudiana permite o reencontro com um poderoso argumento a respeito da ideia mesma de civilização, necessário ao entendimento dos fatores que determinaram o colapso desta.
Mais do que da guerra, como episódio geopolítico ou militar, Freud trata das vicissitudes do processo civilizador, que teria sofrido fratura irreparável

Mais do que da guerra, como episódio geopolítico ou militar, Freud trata das vicissitudes do processo civilizador, que teria sofrido fratura irreparável. A Guerra de 1914, segundo especialistas na arte militar, marcou a passagem de um padrão, digamos, civilizado, em que o teatro das operações bélicas mantinha-se segregado do conjunto das rotinas sociais, para uma perspectiva da guerra total, na qual nada menos que o aniquilamento – ou ao menos a sujeição brutal – do oponente aparece como horizonte desejado.

Tal separação apresentava-se, por exemplo, na distinção entre combatentes e não combatentes e na presença de uma ética militar cavalheiresca, que fazia com que soldados, embora em exércitos opostos, fossem tomados como parte de uma mesma sociedade, maior e supranacional, dotada de regras de contenção da própria letalidade da guerra.

É claro que parte considerável dessa ‘ética da guerra’ já havia sido maculada antes. As batalhas da guerra civil norte-americana, e as que opuseram exércitos coloniais a populações aborígenes, exibiram pouco ou nada do espírito das guerras civilizadas.

A Guerra de 1914, porém, trouxe para o cenário europeu, sede do processo civilizador, a experiência com o ilimitado da carnificina, imposta com frequência a povos não europeus, ao longo do tempo. Trouxe, em outros termos, o experimento da incivilidade da guerra. 
 
Para Freud, a Grande Guerra é, antes de tudo, a vivência do abismo de uma forte desilusão, que decorre da perda de sentido do processo civilizador. (foto: Wikimedia Commons – CC BY 2.0)

Para Freud, a Grande Guerra é, antes de tudo, a vivência do abismo de uma forte desilusão. Tal sensação decorre da perda de sentido do processo civilizador e de suas escoras fundamentais: “uma enorme restrição de si mesmo, uma larga renúncia da satisfação instintual”, ambas materializadas em prescrições morais – “frequentemente severas demais” – sobre os indivíduos.

As implicações de tal ‘severidade’ constituem um dos objetos preferenciais da escritura e da clínica de Freud. Seu clássico ensaio ‘O mal-estar na civilização’ fixaria, em 1930, os termos da tensão entre vida instintual e imposições da vida cultural.

Antes, em 1915, Freud fala-nos da quebra civilizacional da guerra, por meio do transbordamento dos instintos, mal contidos por um padrão de ‘hipocrisia cultural’, no qual os hábitos civilizados operam como débil e insuficiente camada protetora contra danos entre os indivíduos.

A hipocrisia cultural decorre, com certeza, da pesada carga de contenção e repressão imposta pelo processo civilizador a indivíduos portadores de pulsões. A aptidão cultural, contudo, não é afetada apenas pela vida pulsional. O próprio ‘Estado civilizado’ nos fornece estímulos para a inaptidão: ele pratica nos campos de batalha – e contra os ‘inimigos’ – aquilo que proíbe expressamente a súditos seus.

Freud revela, assim, uma das principais facetas do Estado, a de buscar exercer o monopólio legítimo da injustiça.

Renato Lessa
Fundação Biblioteca Nacional
Revista Ciência Hoje

O sonho de Martin Luther King

Discurso proferido há 50 anos na Marcha de Washington tornou-se um marco na luta contra a segregação racista nos Estados Unidos.

Celia Maria Marinho de Azevedo


Martin Luther King em 1964. No ano anterior, ele proferiu o famoso discurso “Eu tenho um sonho”, contra a discriminação dos negros nos Estados Unidos. (foto: United States Library of Congress - New York World-Telegram & Sun Collection/ Wikimedia Commons)

Há 50 anos um simples broche de propaganda, distribuído pelos organizadores da então planejada Marcha de Washington, causou profunda apreensão no governo e na mídia dos Estados Unidos. Nele se via um caloroso aperto de mãos – uma negra, outra branca –, em clara manifestação de que norte-americanos descendentes de europeus e de africanos poderiam conviver amigavelmente em vez de continuar divididos pelos muros da segregação racista legalmente instituída.

O evento pretendia dar apoio a um projeto de lei de direitos civis que bania a discriminação em locais públicos, na educação e no emprego, encaminhado ao Congresso pelo próprio presidente John F. Kennedy. Mas o sonho de convivência integrada entre cidadãos negros e brancos projetava-se antes como pesadelo para o governo. O temor da presidência, então em mãos do Partido Democrata, era que a escalada da violência atingisse um ponto incontrolável, prejudicial para o futuro político de seus governantes e da tão aclamada democracia norte-americana em plena tensão da Guerra Fria contra o totalitarismo soviético.

O ano de 1963, que mal chegava à sua primeira metade, havia sido especialmente quente, com cerca de 900 manifestações antirracistas em mais de 100 cidades, mais de 20 mil prisões e ao menos 10 mortes. A princípio restritas aos estados sulistas, onde se implantara desde o final do século 19 um sistema formal de segregação racista nas escolas, nos transportes, nos hospitais, nos locais públicos em geral, as manifestações começavam a ganhar as cidades do norte, onde um racismo informal e encoberto agia nas mais diversas instituições e práticas sociais. Diante disso, Kennedy chegou a se reunir em junho com 30 líderes do movimento dos direitos civis para pedir o cancelamento da marcha, programada para daí a dois meses.
Desde 1954, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos julgara inconstitucional a segregação racista nas escolas, o movimento dos direitos civis lutava para assegurar o cumprimento da medida

Mas Martin Luther King, Jr., ministro de uma igreja batista de Atlanta, Georgia, e doutor em teologia, então com 34 anos, já havia obtido reconhecimento entre bases e lideranças de que já não era mais possível esperar. Afinal, desde 1954, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos julgara inconstitucional a segregação racista nas escolas, o movimento dos direitos civis lutava para assegurar o cumprimento da medida, além de pressionar no sentido da desmontagem de todo o sistema segregacionista. Entre as muitas batalhas, destaca-se aquela voltada para a dessegregação dos ônibus de Montgomery, Alabama. O estopim foi a prisão da costureira e militante do movimento Rosa Parks, que se recusou a ceder seu assento a um homem branco no fundo do ônibus, reservado às pessoas negras.

O boicote aos ônibus teve início em dezembro de 1955. A população negra preferia andar quilômetros a pé, todos os dias, a sofrer as humilhações de um transporte segregado. No início de 1956, já reconhecido como líder do movimento, o reverendo King foi preso, acusado de conspirar contra a normalidade “sem causa justa ou legal”. Quase um ano depois, a Suprema Corte considerou inconstitucionais as leis segregacionistas do transporte coletivo do Alabama.

Outra luta importante foi o movimento de ocupação pacífica das lanchonetes reservadas aos brancos. Iniciado por estudantes negros em Greensboro, Carolina do Norte, em fevereiro de 1960, logo se alastrou para outras localidades. Em 1963, o movimento atingiu o auge em Birmingham, Alabama, em meio a episódios de violência policial contra manifestantes, seguidos de nova prisão de King e de inúmeros militantes.

As fotos que circularam na mídia nacional e internacional contribuíram para firmar uma imagem vergonhosa da democracia norte-americana: policiais com cassetetes instigavam cães contra manifestantes negros, enquanto a Ku Klux Klan lançava bombas nas casas de líderes do movimento e cometia outras atrocidades contra pessoas negras. Muitas imagens apontavam a participação ativa de sulistas brancos na repressão, até de mulheres raivosas a xingar crianças negras na chegada a uma escola integrada. Algumas fotos mostravam jovens brancos divertindo-se em jogar sal e açúcar sobre a cabeça de jovens negros sentados em uma lanchonete cujos assentos eram “só para brancos”.


Um mar de rostos

Não é difícil, portanto, imaginar por que o discurso de Martin Luther King – “Eu tenho um sonho” –, proferido ao final da Marcha de Washington, em 28 de agosto de 1963, causou especial impacto nos cerca de 250 mil manifestantes e no público televisivo. 
 
Broche de propaganda da Marcha de Washington: o sonho estava lançado. (imagem: reprodução)

Do alto do Memorial de Lincoln, no ano do centenário da Proclamação de Emancipação dos escravos, assinada por aquele presidente em meio à Guerra Civil (1861-1865), King revelou o sonho que se projetava por trás do longo e sofrido percurso da luta pelos direitos civis. Nada mais que a concretização das aspirações históricas mais profundas da democracia norte-americana e de sua Declaração de Independência (4 de julho de 1776): o reconhecimento de que todos são iguais, com direito inalienável à liberdade e a uma justiça igualitária.

Inspirado por uma luta antirracista de que já participavam pessoas brancas e tendo diante de si um mar de rostos negros salpicado de rostos brancos, King desfiou seu sonho de liberdade, igualdade e fraternidade: “Tenho um sonho de que um dia... os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores sejam capazes de se sentar juntos à mesa da fraternidade. ...Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia numa nação onde eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. ...Tenho um sonho de que meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas tal como irmãs e irmãos. Hoje eu tenho um sonho!”
King: “Tenho um sonho de que um dia... os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores sejam capazes de se sentar juntos à mesa da fraternidade”

Cabe notar a não referência à ideia de raças humanas, embora desde cedo ela tenha permeado a história dos Estados Unidos, a começar pela separação entre igreja negra e branca e pela proibição legal de casamentos ‘inter-raciais’. Nesse sentido, King começava a remar contra a corrente da história dos Estados Unidos, cuja obsessão em nomear a ‘raça negra’ estava presente até na linguagem de militantes antirracistas. Nos poucos anos de vida que lhe restavam antes de ser assassinado em 4 de abril de 1968, King dedicou-se a causas sociais que abrangiam protestos contra a guerra do Vietnã e reivindicações de trabalhadores brancos e pobres. É que no seu sonho de paz e integração social só havia lugar para o mérito e talento de cada um – jamais para a cor da pele e aparência pessoal.

Celia Maria Marinho de Azevedo
Historiadora, professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas
Revista Ciência Hoje