Doutor em História Econômica pela USP
Professor de História Antiga do Departamento de História da UFES
E-mail: gilventura@escelsa.com.br
Professor de História Antiga do Departamento de História da UFES
E-mail: gilventura@escelsa.com.br
Ao longo da história, a fundação de poucas cidades desempenhou um papel tão significativo para os séculos posteriores quanto Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente situada na margem ocidental do Bósforo, sobre um promontório servido a norte por uma magnífica baía, curva como uma foice ou um chifre, de cerca de onze quilômetros de extensão conhecida como o Chifre de Ouro. A criação de Constantinopla se deu a partir da reconstrução da cidade de Bizâncio, fundada provavelmente em meados do século VII a.C. por colonos oriundos da polis de Mégara, os mesmos que alguns anos antes haviam se estabelecido em Calcedônia, do outro lado do Bósforo. O controle da rota do trigo proveniente da Trácia e que era escoado por intermédio do Ponto Euxino conferiu a Bizâncio uma posição estratégica no contexto do mundo grego, razão pela qual a sua conquista por Alexandre representou uma etapa preliminar fundamental para a construção da Oikoumene alexandrina.
Mais tarde, com a expansão romana em direção ao Oriente, Bizâncio celebra com os novos conquistadores um tratado de auxílio mútuo, passando então a receber proteção contra os ataques rotineiros desencadeados pelos habitantes da Trácia. Em 73, a cidade é definitivamente incorporada ao Império por Vespasiano, o qual suprime os seus privilégios, anexando-a inicialmente à província da Bitínia e depois à da Trácia. Na guerra civil desencadeada em 193 com o assassinato de Pertinace, Bizâncio converteu-se na base de operações do então governador da Síria, Pescênio Nigro, na sua cruzada rumo ao Império, o que lhe valeu um tratamento desfavorável da parte de Septímio Severo após a derrota de Nigro em 194 (Norwich, 1989:62). Ao término de um sítio de quase três anos, Severo não apenas destruiu as imponentes muralhas que protegiam a cidade como também rebaixou o seu status, tornando-a dependente de Perinto em termos administrativos, punição que não durou muito tempo. Ainda sob Severo, as fortificações de Bizâncio foram reconstruídas, ao passo que Caracala, sucedendo o pai, cuidou de restabelecer a sua autonomia. Em meados do século III, em plena Anarquia Militar, Bizâncio foi invadida por Galieno, o que facilitou o deslocamento dos piratas godos, os quais se aproveitaram da situação vulnerável da cidade para atravessar o Bósforo e o Dardanelos, lançando-se sobre o Egeu. Sob a Tetrarquia, tornou-se evidente a necessidade de melhorar a defesa da cidade, o que foi feito mediante a construção de novas muralhas (Gwatkin, 1936:17). A posição estratégica de Bizâncio, situada na confluência entre o Oriente e o Ocidente, fez dela a principal fortaleza de Licínio na guerra movida contra Constantino a partir de 323. Em 18 de setembro de 324, Licínio foi definitivamente derrotado em Crisópolis, tornando-se Constantino senhor de todo o Império. Bizâncio e Calcedônia imediatamente abriram suas portas ao novo imperador (Barnes, 1981:77). Cerca de dois meses depois, em 8 de novembro de 324, Constantino iniciou a ampliação das muralhas da cidade, fato que coincide com a elevação de Constâncio, seu filho, à dignidade de César (Tem. Or. IV, 58B).
Nada nos autoriza a concluir, entretanto, que já em 324 Constantino pretendesse fazer de Bizâncio a sede do poder imperial no Oriente. No que diz respeito ao conjunto de reformas empreendidas, devemos considerar dois momentos distintos. Num primeiro momento, tudo leva a crer que Constantino tenha desejado tão somente realizar algumas obras de embelezamento na antiga fortaleza de Licínio. Já num segundo momento, possivelmente após a comemoração das Vicenálias do imperador em Roma, acontecimento que teve lugar em julho de 326, decidiu-se que Bizâncio se transformaria na “Nova Roma”, ou seja, na capital das províncias orientais, como comprova o aumento considerável nas emissões monetárias pelo ateliê da cidade a partir de 327 (Bruun, 1966:562). A adoção do nome de Constantinopla, mesmo em termos oficiosos, deve remontar a 324, uma vez que a reconstrução de cidades pelos imperadores romanos, com a conseqüente alteração do topônimo a fim de perpetuar a memória do evergeta, era uma prática comum no Império, a exemplo do que vemos ocorrer com Trajanópolis e Adrianópolis. De fato, já a partir de 326 as moedas cunhadas em Bizâncio portam no reverso as iniciais CONS, indicando pertencerem ao ateliê de Constantinopla (Bruun, 1966:569). Na realidade, a iniciativa de Constantino em restaurar Bizâncio pode ser compreendida dentro de toda uma tradição segundo a qual a realização de obras públicas era uma das atividades rotineiras dos imperadores, especialmente ao término das guerras civis, quando o poder imperial necessitava reafirmar a sua legitimidade. Disso nos dá testemunho o autor anônimo da Origo Constantini (VI,30), uma curta biografia de Constantino escrita logo após a sua morte em maio de 337, ao declarar que o imperador renomeou Bizâncio em memória da sua vitória sobre Licínio. A construção de uma nova capital destinada a rivalizar em dimensão e beleza com a cidade de Roma, no entanto, é um fato único, merecendo sem dúvida um tratamento mais cuidadoso. Os imperadores da Tetrarquia, é bem verdade, optaram por não fixar residência em Roma, preferindo instalar-se em cidades como Milão, Sírmio e Nicomédia, as quais foram restauradas e embelezadas para abrigarem a sede do poder imperial, ainda que o imperador não permanecesse nelas por muito tempo em função dos múltiplos deslocamentos aos quais estava sujeito por força do cargo. Mesmo assim, não verificamos nesses casos qualquer propósito explícito de tornar tais cidades equivalentes a Roma.
A decisão de Constantino em fazer de Constantinopla a réplica de Roma no Oriente deve ser situada, ao que tudo indica, entre 327 e 328, quando o imperador, retornando da celebração das suas Vicenálias, começa a buscar em território oriental um sítio adequado para a nova cidade que planejava fundar. Nesse ponto coincidem as declarações de Eusébio de Nicomédia, Zózimo, Sozomeno e do autor anônimo do Chronicon Pascale, uma obra do século VII que registra ano a ano os principais acontecimentos da História de Roma.[2] O imperador teria começado a edificar a sua nova cidade em Ílion, na Tróade, plano que logo abandonou em favor de Bizâncio, como nos informam Zózimo (II,30,1) e Sozomeno (II,3,2). Infelizmente, as razões que levaram Constantino a mudar de opinião não são tratadas de modo satisfatório por nossos autores. Apenas Sozomeno (II,3,3) nos fornece uma explicação mais detalhada ao pretender que Constantino teria abandonado Ílion por força de um sonho oracular no qual Deus o transportara a Bizâncio, mostrando-lhe que ali deveria ser erigida a sua cidade. Mesmo que não aceitemos a explicação de Sozomeno, não resta dúvida que a decisão de Constantino em transformar Constantinopla na capital do Oriente apresenta uma inequívoca conotação religiosa, havendo duas versões, uma pagã e outra cristã, para o ritual de fundação da cidade. Segundo uma tradição conservada por João Lídio, a data para a realização da consecratio de Constantinopla teria sido fixada por meio de cálculos astrológicos, ocorrendo no dia em que o Sol se encontrava na constelação de Sagitário e na hora regida por Câncer. A cerimônia de lançamento do milion, a pedra fundamental a partir da qual foram demarcadas as fronteiras urbanas, teria sido presidida pelo hierofante Pretextato e pelo neoplatônico Sôpatros (Norwich, 1989:64). Filostórgio, um autor cristão escrevendo cerca de um século mais tarde, nos fornece um relato da consecratio, a consagração religiosa do território da cidade, no qual são eliminados quaisquer indícios genuinamente pagãos, substituídos pela referência a um poder celestial genérico, o que sem dúvida tornaria o ritual mais aceitável para as consciências cristãs. Segundo o autor (Phil. II,9) Constantino, ao traçar o perímetro da cidade,
(...) caminhou em torno dela com a lança em suas mãos. Quando os seus assistentes pensaram que ele estava traçando um espaço muito extenso, um deles se dirigiu [ao imperador] e perguntou-lhe: “até onde, ó príncipe?”, ao que o imperador respondeu: “até aquele que vai à minha frente parar”. Por esta resposta, manifestava claramente que algum poder celestial o estava conduzindo e dizendo o que fazer.
Uma vez realizada a consecratio, as obras prosseguiram em ritmo acelerado, recebendo Constantinopla inúmeras construções destinadas a fazer dela uma réplica de Roma. Assim como Roma, o novo território da cidade, agora quatro ou cinco vezes maior que o traçado original e gozando do ius italicum, a isenção de impostos sobre a propriedade fundiária, passou a compreender sete colinas e quatorze regiões (Lemerle, 1991:18). A cidade recebeu também um hipódromo, banhos públicos (as termas de Zeuxipo), uma domus imperial, um fórum e uma basílica para as reuniões do Senado (Chron. Pasc. année 328). Um pouco depois, em 332, iniciou-se a distribuição gratuita de trigo à plebe urbana, assim como ocorria em Roma, o que suscitou mais tarde a reprovação de Eunápio (Vit. Soph. p. 381). A despeito da reticência de Millar (1992:55) em atribuir a Constantino o desejo de construir uma cidade que fosse a réplica de Roma no Oriente, considerando que a equiparação entre ambas foi o resultado de uma evolução posterior, parecem subsistir poucas dúvidas acerca das intenções do imperador. Assim é que o seu biógrafo anônimo não hesita em atribuir-lhe o desejo de equiparar Constantinopla a Roma (Orig. Const. VI,30). Do mesmo modo, Aurélio Vítor (Ces. XLI) registra a opinião corrente no IV século segundo a qual Constantino, aos olhos dos seus contemporâneos, foi tido como o fundador de uma Nova Roma. E se dermos crédito ao depoimento tardio de Sócrates (XVI,21), vemos que o imperador determinou que a cidade fosse oficialmente designada como Nova Roma, fazendo gravar a lei em um pilar de pedra erigido no Strategium, próximo a sua estátua eqüestre. Para cumprir uma obra tão grandiosa em tão pouco tempo, Constantino promoveu uma espoliação sistemática dos templos pagãos provinciais, transportando para a nova capital inúmeras estátuas e demais monumentos (Eus. Vit. Const. 54, 1-4).
Muito embora as obras de reconstrução de Constantinopla tenham prosseguido até pelo menos 336, estabeleceu-se que a dedicatio dos novos edifícios públicos deveria coincidir com as comemorações dos vinte e cinco anos de reinado do imperador. A data escolhida para a inauguração foi 11 de maio de 330, dia no qual se celebrava o festival em honra a São Mócio, um mártir de Bizâncio sob Diocleciano ou Licínio, o que enfatizava a derrota do último dos perseguidores por Constantino (Barnes, 1981:222), tendo sido a cidade dedicada ao “Deus dos mártires” segundo o depoimento de Eusébio de Cesaréia (Vita. Const. III, 48, 1).[3] A dedicação solene da nova capital ao Deus cristão parecia traduzir o desejo imperial de construir uma cidade inteiramente cristã, isenta de qualquer elemento pagão, o que sem dúvida estaria em contradição flagrante com o epíteto “Nova Roma” a ela atribuído. Na realidade, a matriz intelectual da tradição que concebe Constantinopla como uma cidade erigida para honra e glória do cristianismo pode ser facilmente identificada, possuindo seus fundamentos na biografia de Constantino escrita por Eusébio de Cesaréia, o qual declara que o imperador:
impregnado por completo de sabedoria divina, considerou justo purgar de toda idolatria aquela cidade [i.e. Constantinopla] que por decisão sua se destacaria levando seu próprio nome, de modo que em nenhum lugar dela haveria rastro algum de estátuas dos pretensos deuses que costumavam ser objeto de culto nos templos, nem altares sujos com jorros impuros de sangue, nem vítimas devoradas pelo fogo, nem festividades demoníacas, nem nada ao qual poderiam estar acostumadas as pessoas supersticiosas (Eus. Vit. Const. III,48,1-2).
A opinião de Eusébio aqui expressa é compartilhada também por Sozomeno (Hist. Eccles. II,3,7), o qual afirma que Constantinopla, tendo se tornado capital num momento em que o cristianismo se encontrava em ascensão, não conheceu a experiência nem dos altares ou sacrifícios pagãos, salvo a que foi tentada mais tarde, durante um breve período, por Juliano, quando foi imperador. Naturalmente que a exposição pública em Constantinopla das estátuas das divindades pagãs arrancadas aos templos, fato impossível de ser ocultado, deveria receber uma justificativa minimamente plausível por parte dos autores cristãos.[4] Assim é que para Eusébio (Vita Const. III,54,1-7), Constantino teria utilizado os espólios dos templos na decoração de sua cidade com a finalidade de dessacralizar os ícones do paganismo, fazendo-os transportar de um lugar para o outro amarrados com cordas, como se fossem escravos. Cerca de um século mais tarde, o mesmo argumento é retomado por Sócrates (Hist. Eccles. I,XVI), sugerindo-se que Constantino destruiu a superstição dos pagãos ao trazer as suas imagens à contemplação pública para ornamentar a cidade de Constantinopla.
Na opinião corrente entre os autores cristãos da época, Constantinopla teria nascido sob a égide do cristianismo, fato comprovado não apenas pela dedicação da cidade ao “Deus dos mártires” , como mencionado anteriormente, mas pela instalação do símbolo da cruz, convertido em talismã tutelar do Império por Constantino, no teto da sala principal do palácio (Eus. Vita Const. III,49). O notório apego de Constantino à potência mágica da cruz o levou igualmente a erigir sobre o milion, um quadrilátero formado por arcos do triunfo encimados por uma cúpula, a venerável Cruz de Cristo trazida de Jerusalém por sua mãe, Helena, quando da peregrinação empreendida entre 326 e 327 (Norwich, 1989:65). Por tudo isso, Constantinopla parece ser dotada de uma inequívoca vocação missionária, razão pela qual Sozomeno (II,3,7) declara que ela atrai de modo tão intenso para a fé no Cristo que muitos judeus e quase todos os pagãos aí se tornam cristãos. Que os autores cristãos compreendam a fundação de Constantinopla nestes termos não constitui motivo de admiração. No entanto, a ênfase na mística cristã que envolve a cidade de Constantino é reproduzida sem maiores reservas por diversos historiadores, os quais se apressam a concluir pela filiação cristã da cidade em detrimento das suas permanências pagãs. Essa é a posição adotada por Barnes (1981:212), para quem a nova capital deveria ser uma cidade cristã na qual os imperadores cristãos poderiam residir em um ambiente não maculado pelos edifícios, ritos e práticas de outras religiões. Opiniões semelhantes são compartilhadas por outros autores, como por exemplo Baynes (1996:14), Stein (1959:128) e, em certa medida, Norwich (1989:63). Em oposição frontal a esta tese, há uma corrente historiográfica que advoga a coexistência de tradições religiosas distintas no contexto de fundação da capital, o que nos impediria de atribuir a Constantinopla uma natureza exclusivamente cristã, ao menos para os primeiros tempos da sua criação[5]. A consulta à documentação disponível parece apoiar muito mais os defensores das permanências pagãs em Constantinopla do que os da cristianização plena. Mais que isso, as evidências sugerem, de modo notável, a existência de um autêntico sincretismo entre as duas correntes religiosas, tendo a figura imperial como denominador comum. Vejamos como isso é possível.
Em primeiro lugar, tendo sido construída para exaltar a grandeza do poder imperial, Constantinopla expressava em seus monumentos a nova representação da realeza que se afirma na passagem do Principado para o Dominato, conforme sugere muito corretamente Diehl (1961:53). Suas festividades e seus monumentos se ajustam com perfeição ao conjunto de símbolos que configuram a basileia, a realeza sagrada helenístico-cristã, a qual possui como uma das suas características mais significativas a conversão do imperador em uma entidade de natureza divina e sua realeza em algo arquetípico, autêntica mimesis da realeza sobrenatural, com a reestruturação do culto imperial de modo a enfatizar os atributos místicos do soberano reinante em detrimento dos demais divi já falecidos. Nesse sentido, Constantinopla é dominada pela figura de seu criador, o qual faz da cidade um espelho a refletir toda a sua majestade celestial. De fato, no centro do vasto e suntuoso fórum, inteiramente pavimentado em mármore, erguia-se uma coluna de pórfiro vermelho trazida especialmente de Heliópolis, a cidade egípcia do Sol. A coluna se apoiava em um pedestal de mármore no interior do qual Constantino havia introduzido o Paládio, uma antiga estátua de Atená que, segundo a mitologia, havia sido transportada de Tróia para Roma por Enéias e entregue aos cuidados das vestais. Junto da estátua foram colocados também, conforme uma lenda corrente, o machado com o qual Noé havia construído a Arca, as cestas com as sobras do pão multiplicado por Jesus para alimentar a multidão faminta e o jarro da unção utilizado por Maria Madalena. No alto da coluna de pórfiro foi erigida uma grande estátua de Constantino proveniente da Frígia. O imperador aparecia representado aqui com a cabeça rodeada de raios solares confeccionados em bronze, atributo característico das divindades solares. (Chron. Pasc. anée 328).
A estátua de Constantino se assemelhava, assim, ao Sol Invictus, expressando a equiparação do imperador com os seus congêneres cósmicos. Muito embora convertido à fé cristã, Constantino nunca abandonou por completo nem a devoção a Apolo que havia marcado os seus primeiros anos de governo nem a tradição familiar que o fazia herdeiro de Cláudio, o Gótico, o qual se acreditava pertencer a uma estirpe solar (Maurice, 1911). Na qualidade de Sol Invictus, ele é não apenas o guardião onipotente, onipresente e invencível da capital, mas também a reatualização de Enéias, o herói fundador de Roma, conjugando-se no monumento todos os elementos que compunham o universo religioso da época. Incrustradas nele, tanto as relíquias cristãs quanto as pagãs são preservadas para a eternidade, postas aos cuidados de um soberano que é o paredro terrestre do Sol Invictus, uma divindade reverenciada por todo o Oriente. A assimilação entre a imagem de Constantino e o Sol Invictus se tornou tão intensa que a estátua logo se converteu em objeto de adoração para os habitantes de Constantinopla. Filostórgio (II,17) declara que os cristãos ofereciam sacrifícios a uma imagem de Constantino colocada sobre uma coluna de pórfiro e a honravam com lâmpadas acesas e incenso, e ofereciam votos a ela como a Deus, e faziam súplicas a ela para desviar as calamidades. Desse modo, na suposta capital cristã do Oriente o culto imperial que durante três séculos havia sido um motivo de tormento permanente para os cristãos recebe um extraordinário impulso. Nesse momento, as oferendas votivas que outrora eram reservadas apenas aos deuses passam a ser consagradas ao próprio imperador.
A presença dominante de Constantino na capital não é evocada apenas por intermédio da monumental estátua erguida no fórum, mas pela cerimônia anual de comemoração da dedicatio. No decorrer dessa cerimônia, diante da população reunida no hipódromo, era apresentada para adoração uma estátua do imperador confeccionada em madeira e revestida de ouro. Na mão direita da estátua se encontrava a representação de uma Tyche, a Fortuna da cidade. Conduzida sobre um carro por um cortejo solene de soldados vestidos com a clâmide e portando círios brancos, a estátua se deslocava em torno do hipódromo até parar diante da tribuna imperial, ocasião na qual o imperador se levantava e se prosternava diante da imagem de Constantino e da Fortuna (Chonic. Pasc. Anée 330), no que era acompanhado por todos os espectadores. A cerimônia aqui descrita é a da adoratio, a adoração da pessoa sagrada do imperador, a qual integrava o conjunto de rituais próprios da basileia. Nesse caso específico, a cerimônia tem por finalidade exigir, da parte do imperador reinante, o reconhecimento e a reverência devidos para com o fundador de Constantinopla. Ritual de natureza pagã e cumprido diante das imagens dos deuses pelos suplicantes, a adoratio foi assimilada sem maiores traumas pela elite eclesiástica após a conversão de Constantino, de modo que a sua existência dentro de um Império cada vez mais cristão não deve nos causar surpresa. Já a presença no ritual da imagem da Fortuna, a qual deveria ser reverenciada juntamente com o imperador, representa sem dúvida uma inovação significativa, atestando uma inequívoca permanência das tradições pagãs em Constantinopla.
O culto à Fortuna na qualidade de protetora ou fundadora das cidades, e não apenas como a divindade tutelar dos indivíduos, remonta ao início da época helenística, quando os Diádocos dividiram entre si o Império de Alexandre. Deusa caprichosa, responsável pelos imprevistos incoerentes e até mesmo injustos da existência humana, a Fortuna personifica ao mesmo tempo a opulência das cidades, razão pela qual seus atributos principais são a pátena e a cornucópia (Hild, s/d.). No caso de Constantino, a deferência para com o culto à Fortuna é um fato incontestável. Por intermédio da narrativa de Zózimo (II,31,3), temos conhecimento de que o imperador teria feito erguer um templo ou uma êxedra em homenagem à Fortuna próxima a um dos pórticos que integravam o conjunto arquitetônico do fórum. Além disso, em 328 Constantino celebrou também um sacrifício não sangrento no decorrer do qual batizou a Fortuna da cidade com o nome de Anthousa, em grego “Florescente” (Chron. Pasc. Anée 328). Em uma moeda de prata cunhada para as comemorações da dedicatio de 330, vemos a imagem de Antusa portando a cornucópia (Bruun, 1966:578, n º 53). Mediante o culto à Fortuna, associado agora ao próprio culto imperial, Constantino sem dúvida pretendia garantir para a sua nova capital a mesma eternidade da qual gozava Roma, o que o levou a declarar que havia dotado Constantinopla, por mandato de Deus, com um nome eterno (C. Th. XIII,5), muito provavelmente o nome de Flora ou Antusa, denominações sacerdotais secretas de Roma (Burckhardt, 1938:394).
A adoração à Fortuna não foi o único culto pagão permitido oficialmente em Constantinopla. Graças ao testemunho de Zózimo (II,31,1-2), sabemos que próximo ao hipódromo foi erguido também um templo aos Dióscuros, os gêmeos mitológicos filhos de Zeus, muito provavelmente como uma referência à irmandade entre Roma e Constantinopla. Outra divindade a receber um templo ou um santuário foi Réia-Cibele, a deusa frígia cujo culto era desde a República um dos mais importantes de Roma. A estátua da deusa, trazida de Cícico, teria sido adulterada por Constantino, que retirou os leões que a ladeavam, convertendo-a em uma orante a velar pela cidade (Zoz. II,31,1-2), o que se adequava melhor ao espírito sincrético da capital. De qualquer modo, as informações contidas em Zózimo contrariam de modo flagrante a afirmação dos autores eclesiásticos segundo a qual Constantinopla teria sido preservada de qualquer influência pagã.
De acordo com a mentalidade romana, a conexão entre a ordem visual e o regime político era indissolúvel, necessitando os imperadores que o seu poder fosse evidenciado, de modo duradouro, por intermédio de monumentos e obras públicas (Sennet, 1997:81), razão pela qual se esmeraram sempre em construir ou reconstruir cidades como uma forma de celebrar a sua glória sobre a terra. Disso resulta que as cidades, erigidas em pedra e devotadas à eternidade, representavam um poderoso instrumento de perpetuação da memória imperial, assinalando que a missão civilizadora de Roma diante do mundo bárbaro se cumpria por determinação dos imperadores. A ação de Constantino, nesse caso, não foge à regra, exceto pelo fato de o imperador ter projetado não uma cidade qualquer, mas uma réplica oriental de Roma, o centro do mundo então conhecido, pólo irradiador da romanidade sobre o território circundante. A obra de Constantino o equiparava ao mesmo tempo a Enéias e a Rômulo, não sendo por acaso que a fundação de Constantinopla se encontrava relacionada, desde o início, a Tróia. Nesse aspecto, a Nova Roma recolhia todas as tradições pagãs acerca da criação da Urbs, herança essa da qual, em nossa opinião, Constantino jamais pretendeu se afastar. Por outro lado, a influência cristã em Constantinopla é um fato inegável, tendo a cidade cedo se constituído no mais importante bispado do Oriente, rivalizando com sés antigas e veneráveis, tais como Alexandria, Antioquia e Jerusalém (Angold, 2002:19).
Na verdade, a criação de Constantinopla representa um feito espetacular na medida em que o basileus surge, frente à sociedade romana da época, como um ser capaz de dotar o mundo de um novo centro, melhor dizendo, de reordenar o próprio cosmos, delimitando um novo espaço a partir do qual o sagrado se difunde sobre a superfície terrestre, protegendo-a da ameaça permanente do caos (Eliade, 1992:34). No contexto de redefinição dos fundamentos do poder imperial, de construção de uma realeza sagrada eivada de elementos pagãos e cristãos, era necessário que Constantino produzisse uma nova abertura por meio da qual se pudesse realizar a comunicação entre o céu e a terra. Roma não era inadequada aos propósitos de Constantino por ser uma cidade pagã, mas por ser o baluarte de uma concepção política de origem republicana que relutava em reconhecer os imperadores vivos como seres sagrados. Já Constantinopla, encravada na fronteira entre o Oriente Próximo e a Grécia, compartilhava de todas as tradições helenísticas sobre a realeza, as quais por sua vez resultavam da reelaboração de símbolos e rituais que remontam sem dúvida à monarquia faraônica, como comprova a perpetuação ao longo de todo o Império do costume de se atribuir aos imperadores a titulatura própria dos antigos soberanos egípcios. Em termos simbólicos, fazia-se necessário encontrar uma nova capital que pudesse expressar o sincretismo e as novas concepções que cercavam a basileia, e a escolha finalmente recaiu sobre Bizâncio, por razões de ordem diversa que não temos condições de discutir aqui. O importante é registrar que em Constantinopla o basileus romano representa, tanto na vida como na morte, uma autêntica epifania, tornando-se o seu corpo, depositado no mausoléu anexo à Igreja dos Santos Apóstolos, objeto de culto e veneração. Desse modo, Constantinopla se convertia em um extraordinário santuário a conservar para a eternidade as relíquias dos seus imperadores embalsamados e depositados em sarcófagos de ouro e madeira, como convinha a membros de uma estirpe sagrada.
Matéria completa
http://www.unicamp.br/nee/arqueologia/arquivos/historia_antiga/constantinopla.html
Mais tarde, com a expansão romana em direção ao Oriente, Bizâncio celebra com os novos conquistadores um tratado de auxílio mútuo, passando então a receber proteção contra os ataques rotineiros desencadeados pelos habitantes da Trácia. Em 73, a cidade é definitivamente incorporada ao Império por Vespasiano, o qual suprime os seus privilégios, anexando-a inicialmente à província da Bitínia e depois à da Trácia. Na guerra civil desencadeada em 193 com o assassinato de Pertinace, Bizâncio converteu-se na base de operações do então governador da Síria, Pescênio Nigro, na sua cruzada rumo ao Império, o que lhe valeu um tratamento desfavorável da parte de Septímio Severo após a derrota de Nigro em 194 (Norwich, 1989:62). Ao término de um sítio de quase três anos, Severo não apenas destruiu as imponentes muralhas que protegiam a cidade como também rebaixou o seu status, tornando-a dependente de Perinto em termos administrativos, punição que não durou muito tempo. Ainda sob Severo, as fortificações de Bizâncio foram reconstruídas, ao passo que Caracala, sucedendo o pai, cuidou de restabelecer a sua autonomia. Em meados do século III, em plena Anarquia Militar, Bizâncio foi invadida por Galieno, o que facilitou o deslocamento dos piratas godos, os quais se aproveitaram da situação vulnerável da cidade para atravessar o Bósforo e o Dardanelos, lançando-se sobre o Egeu. Sob a Tetrarquia, tornou-se evidente a necessidade de melhorar a defesa da cidade, o que foi feito mediante a construção de novas muralhas (Gwatkin, 1936:17). A posição estratégica de Bizâncio, situada na confluência entre o Oriente e o Ocidente, fez dela a principal fortaleza de Licínio na guerra movida contra Constantino a partir de 323. Em 18 de setembro de 324, Licínio foi definitivamente derrotado em Crisópolis, tornando-se Constantino senhor de todo o Império. Bizâncio e Calcedônia imediatamente abriram suas portas ao novo imperador (Barnes, 1981:77). Cerca de dois meses depois, em 8 de novembro de 324, Constantino iniciou a ampliação das muralhas da cidade, fato que coincide com a elevação de Constâncio, seu filho, à dignidade de César (Tem. Or. IV, 58B).
Nada nos autoriza a concluir, entretanto, que já em 324 Constantino pretendesse fazer de Bizâncio a sede do poder imperial no Oriente. No que diz respeito ao conjunto de reformas empreendidas, devemos considerar dois momentos distintos. Num primeiro momento, tudo leva a crer que Constantino tenha desejado tão somente realizar algumas obras de embelezamento na antiga fortaleza de Licínio. Já num segundo momento, possivelmente após a comemoração das Vicenálias do imperador em Roma, acontecimento que teve lugar em julho de 326, decidiu-se que Bizâncio se transformaria na “Nova Roma”, ou seja, na capital das províncias orientais, como comprova o aumento considerável nas emissões monetárias pelo ateliê da cidade a partir de 327 (Bruun, 1966:562). A adoção do nome de Constantinopla, mesmo em termos oficiosos, deve remontar a 324, uma vez que a reconstrução de cidades pelos imperadores romanos, com a conseqüente alteração do topônimo a fim de perpetuar a memória do evergeta, era uma prática comum no Império, a exemplo do que vemos ocorrer com Trajanópolis e Adrianópolis. De fato, já a partir de 326 as moedas cunhadas em Bizâncio portam no reverso as iniciais CONS, indicando pertencerem ao ateliê de Constantinopla (Bruun, 1966:569). Na realidade, a iniciativa de Constantino em restaurar Bizâncio pode ser compreendida dentro de toda uma tradição segundo a qual a realização de obras públicas era uma das atividades rotineiras dos imperadores, especialmente ao término das guerras civis, quando o poder imperial necessitava reafirmar a sua legitimidade. Disso nos dá testemunho o autor anônimo da Origo Constantini (VI,30), uma curta biografia de Constantino escrita logo após a sua morte em maio de 337, ao declarar que o imperador renomeou Bizâncio em memória da sua vitória sobre Licínio. A construção de uma nova capital destinada a rivalizar em dimensão e beleza com a cidade de Roma, no entanto, é um fato único, merecendo sem dúvida um tratamento mais cuidadoso. Os imperadores da Tetrarquia, é bem verdade, optaram por não fixar residência em Roma, preferindo instalar-se em cidades como Milão, Sírmio e Nicomédia, as quais foram restauradas e embelezadas para abrigarem a sede do poder imperial, ainda que o imperador não permanecesse nelas por muito tempo em função dos múltiplos deslocamentos aos quais estava sujeito por força do cargo. Mesmo assim, não verificamos nesses casos qualquer propósito explícito de tornar tais cidades equivalentes a Roma.
A decisão de Constantino em fazer de Constantinopla a réplica de Roma no Oriente deve ser situada, ao que tudo indica, entre 327 e 328, quando o imperador, retornando da celebração das suas Vicenálias, começa a buscar em território oriental um sítio adequado para a nova cidade que planejava fundar. Nesse ponto coincidem as declarações de Eusébio de Nicomédia, Zózimo, Sozomeno e do autor anônimo do Chronicon Pascale, uma obra do século VII que registra ano a ano os principais acontecimentos da História de Roma.[2] O imperador teria começado a edificar a sua nova cidade em Ílion, na Tróade, plano que logo abandonou em favor de Bizâncio, como nos informam Zózimo (II,30,1) e Sozomeno (II,3,2). Infelizmente, as razões que levaram Constantino a mudar de opinião não são tratadas de modo satisfatório por nossos autores. Apenas Sozomeno (II,3,3) nos fornece uma explicação mais detalhada ao pretender que Constantino teria abandonado Ílion por força de um sonho oracular no qual Deus o transportara a Bizâncio, mostrando-lhe que ali deveria ser erigida a sua cidade. Mesmo que não aceitemos a explicação de Sozomeno, não resta dúvida que a decisão de Constantino em transformar Constantinopla na capital do Oriente apresenta uma inequívoca conotação religiosa, havendo duas versões, uma pagã e outra cristã, para o ritual de fundação da cidade. Segundo uma tradição conservada por João Lídio, a data para a realização da consecratio de Constantinopla teria sido fixada por meio de cálculos astrológicos, ocorrendo no dia em que o Sol se encontrava na constelação de Sagitário e na hora regida por Câncer. A cerimônia de lançamento do milion, a pedra fundamental a partir da qual foram demarcadas as fronteiras urbanas, teria sido presidida pelo hierofante Pretextato e pelo neoplatônico Sôpatros (Norwich, 1989:64). Filostórgio, um autor cristão escrevendo cerca de um século mais tarde, nos fornece um relato da consecratio, a consagração religiosa do território da cidade, no qual são eliminados quaisquer indícios genuinamente pagãos, substituídos pela referência a um poder celestial genérico, o que sem dúvida tornaria o ritual mais aceitável para as consciências cristãs. Segundo o autor (Phil. II,9) Constantino, ao traçar o perímetro da cidade,
(...) caminhou em torno dela com a lança em suas mãos. Quando os seus assistentes pensaram que ele estava traçando um espaço muito extenso, um deles se dirigiu [ao imperador] e perguntou-lhe: “até onde, ó príncipe?”, ao que o imperador respondeu: “até aquele que vai à minha frente parar”. Por esta resposta, manifestava claramente que algum poder celestial o estava conduzindo e dizendo o que fazer.
Uma vez realizada a consecratio, as obras prosseguiram em ritmo acelerado, recebendo Constantinopla inúmeras construções destinadas a fazer dela uma réplica de Roma. Assim como Roma, o novo território da cidade, agora quatro ou cinco vezes maior que o traçado original e gozando do ius italicum, a isenção de impostos sobre a propriedade fundiária, passou a compreender sete colinas e quatorze regiões (Lemerle, 1991:18). A cidade recebeu também um hipódromo, banhos públicos (as termas de Zeuxipo), uma domus imperial, um fórum e uma basílica para as reuniões do Senado (Chron. Pasc. année 328). Um pouco depois, em 332, iniciou-se a distribuição gratuita de trigo à plebe urbana, assim como ocorria em Roma, o que suscitou mais tarde a reprovação de Eunápio (Vit. Soph. p. 381). A despeito da reticência de Millar (1992:55) em atribuir a Constantino o desejo de construir uma cidade que fosse a réplica de Roma no Oriente, considerando que a equiparação entre ambas foi o resultado de uma evolução posterior, parecem subsistir poucas dúvidas acerca das intenções do imperador. Assim é que o seu biógrafo anônimo não hesita em atribuir-lhe o desejo de equiparar Constantinopla a Roma (Orig. Const. VI,30). Do mesmo modo, Aurélio Vítor (Ces. XLI) registra a opinião corrente no IV século segundo a qual Constantino, aos olhos dos seus contemporâneos, foi tido como o fundador de uma Nova Roma. E se dermos crédito ao depoimento tardio de Sócrates (XVI,21), vemos que o imperador determinou que a cidade fosse oficialmente designada como Nova Roma, fazendo gravar a lei em um pilar de pedra erigido no Strategium, próximo a sua estátua eqüestre. Para cumprir uma obra tão grandiosa em tão pouco tempo, Constantino promoveu uma espoliação sistemática dos templos pagãos provinciais, transportando para a nova capital inúmeras estátuas e demais monumentos (Eus. Vit. Const. 54, 1-4).
Muito embora as obras de reconstrução de Constantinopla tenham prosseguido até pelo menos 336, estabeleceu-se que a dedicatio dos novos edifícios públicos deveria coincidir com as comemorações dos vinte e cinco anos de reinado do imperador. A data escolhida para a inauguração foi 11 de maio de 330, dia no qual se celebrava o festival em honra a São Mócio, um mártir de Bizâncio sob Diocleciano ou Licínio, o que enfatizava a derrota do último dos perseguidores por Constantino (Barnes, 1981:222), tendo sido a cidade dedicada ao “Deus dos mártires” segundo o depoimento de Eusébio de Cesaréia (Vita. Const. III, 48, 1).[3] A dedicação solene da nova capital ao Deus cristão parecia traduzir o desejo imperial de construir uma cidade inteiramente cristã, isenta de qualquer elemento pagão, o que sem dúvida estaria em contradição flagrante com o epíteto “Nova Roma” a ela atribuído. Na realidade, a matriz intelectual da tradição que concebe Constantinopla como uma cidade erigida para honra e glória do cristianismo pode ser facilmente identificada, possuindo seus fundamentos na biografia de Constantino escrita por Eusébio de Cesaréia, o qual declara que o imperador:
impregnado por completo de sabedoria divina, considerou justo purgar de toda idolatria aquela cidade [i.e. Constantinopla] que por decisão sua se destacaria levando seu próprio nome, de modo que em nenhum lugar dela haveria rastro algum de estátuas dos pretensos deuses que costumavam ser objeto de culto nos templos, nem altares sujos com jorros impuros de sangue, nem vítimas devoradas pelo fogo, nem festividades demoníacas, nem nada ao qual poderiam estar acostumadas as pessoas supersticiosas (Eus. Vit. Const. III,48,1-2).
A opinião de Eusébio aqui expressa é compartilhada também por Sozomeno (Hist. Eccles. II,3,7), o qual afirma que Constantinopla, tendo se tornado capital num momento em que o cristianismo se encontrava em ascensão, não conheceu a experiência nem dos altares ou sacrifícios pagãos, salvo a que foi tentada mais tarde, durante um breve período, por Juliano, quando foi imperador. Naturalmente que a exposição pública em Constantinopla das estátuas das divindades pagãs arrancadas aos templos, fato impossível de ser ocultado, deveria receber uma justificativa minimamente plausível por parte dos autores cristãos.[4] Assim é que para Eusébio (Vita Const. III,54,1-7), Constantino teria utilizado os espólios dos templos na decoração de sua cidade com a finalidade de dessacralizar os ícones do paganismo, fazendo-os transportar de um lugar para o outro amarrados com cordas, como se fossem escravos. Cerca de um século mais tarde, o mesmo argumento é retomado por Sócrates (Hist. Eccles. I,XVI), sugerindo-se que Constantino destruiu a superstição dos pagãos ao trazer as suas imagens à contemplação pública para ornamentar a cidade de Constantinopla.
Na opinião corrente entre os autores cristãos da época, Constantinopla teria nascido sob a égide do cristianismo, fato comprovado não apenas pela dedicação da cidade ao “Deus dos mártires” , como mencionado anteriormente, mas pela instalação do símbolo da cruz, convertido em talismã tutelar do Império por Constantino, no teto da sala principal do palácio (Eus. Vita Const. III,49). O notório apego de Constantino à potência mágica da cruz o levou igualmente a erigir sobre o milion, um quadrilátero formado por arcos do triunfo encimados por uma cúpula, a venerável Cruz de Cristo trazida de Jerusalém por sua mãe, Helena, quando da peregrinação empreendida entre 326 e 327 (Norwich, 1989:65). Por tudo isso, Constantinopla parece ser dotada de uma inequívoca vocação missionária, razão pela qual Sozomeno (II,3,7) declara que ela atrai de modo tão intenso para a fé no Cristo que muitos judeus e quase todos os pagãos aí se tornam cristãos. Que os autores cristãos compreendam a fundação de Constantinopla nestes termos não constitui motivo de admiração. No entanto, a ênfase na mística cristã que envolve a cidade de Constantino é reproduzida sem maiores reservas por diversos historiadores, os quais se apressam a concluir pela filiação cristã da cidade em detrimento das suas permanências pagãs. Essa é a posição adotada por Barnes (1981:212), para quem a nova capital deveria ser uma cidade cristã na qual os imperadores cristãos poderiam residir em um ambiente não maculado pelos edifícios, ritos e práticas de outras religiões. Opiniões semelhantes são compartilhadas por outros autores, como por exemplo Baynes (1996:14), Stein (1959:128) e, em certa medida, Norwich (1989:63). Em oposição frontal a esta tese, há uma corrente historiográfica que advoga a coexistência de tradições religiosas distintas no contexto de fundação da capital, o que nos impediria de atribuir a Constantinopla uma natureza exclusivamente cristã, ao menos para os primeiros tempos da sua criação[5]. A consulta à documentação disponível parece apoiar muito mais os defensores das permanências pagãs em Constantinopla do que os da cristianização plena. Mais que isso, as evidências sugerem, de modo notável, a existência de um autêntico sincretismo entre as duas correntes religiosas, tendo a figura imperial como denominador comum. Vejamos como isso é possível.
Em primeiro lugar, tendo sido construída para exaltar a grandeza do poder imperial, Constantinopla expressava em seus monumentos a nova representação da realeza que se afirma na passagem do Principado para o Dominato, conforme sugere muito corretamente Diehl (1961:53). Suas festividades e seus monumentos se ajustam com perfeição ao conjunto de símbolos que configuram a basileia, a realeza sagrada helenístico-cristã, a qual possui como uma das suas características mais significativas a conversão do imperador em uma entidade de natureza divina e sua realeza em algo arquetípico, autêntica mimesis da realeza sobrenatural, com a reestruturação do culto imperial de modo a enfatizar os atributos místicos do soberano reinante em detrimento dos demais divi já falecidos. Nesse sentido, Constantinopla é dominada pela figura de seu criador, o qual faz da cidade um espelho a refletir toda a sua majestade celestial. De fato, no centro do vasto e suntuoso fórum, inteiramente pavimentado em mármore, erguia-se uma coluna de pórfiro vermelho trazida especialmente de Heliópolis, a cidade egípcia do Sol. A coluna se apoiava em um pedestal de mármore no interior do qual Constantino havia introduzido o Paládio, uma antiga estátua de Atená que, segundo a mitologia, havia sido transportada de Tróia para Roma por Enéias e entregue aos cuidados das vestais. Junto da estátua foram colocados também, conforme uma lenda corrente, o machado com o qual Noé havia construído a Arca, as cestas com as sobras do pão multiplicado por Jesus para alimentar a multidão faminta e o jarro da unção utilizado por Maria Madalena. No alto da coluna de pórfiro foi erigida uma grande estátua de Constantino proveniente da Frígia. O imperador aparecia representado aqui com a cabeça rodeada de raios solares confeccionados em bronze, atributo característico das divindades solares. (Chron. Pasc. anée 328).
A estátua de Constantino se assemelhava, assim, ao Sol Invictus, expressando a equiparação do imperador com os seus congêneres cósmicos. Muito embora convertido à fé cristã, Constantino nunca abandonou por completo nem a devoção a Apolo que havia marcado os seus primeiros anos de governo nem a tradição familiar que o fazia herdeiro de Cláudio, o Gótico, o qual se acreditava pertencer a uma estirpe solar (Maurice, 1911). Na qualidade de Sol Invictus, ele é não apenas o guardião onipotente, onipresente e invencível da capital, mas também a reatualização de Enéias, o herói fundador de Roma, conjugando-se no monumento todos os elementos que compunham o universo religioso da época. Incrustradas nele, tanto as relíquias cristãs quanto as pagãs são preservadas para a eternidade, postas aos cuidados de um soberano que é o paredro terrestre do Sol Invictus, uma divindade reverenciada por todo o Oriente. A assimilação entre a imagem de Constantino e o Sol Invictus se tornou tão intensa que a estátua logo se converteu em objeto de adoração para os habitantes de Constantinopla. Filostórgio (II,17) declara que os cristãos ofereciam sacrifícios a uma imagem de Constantino colocada sobre uma coluna de pórfiro e a honravam com lâmpadas acesas e incenso, e ofereciam votos a ela como a Deus, e faziam súplicas a ela para desviar as calamidades. Desse modo, na suposta capital cristã do Oriente o culto imperial que durante três séculos havia sido um motivo de tormento permanente para os cristãos recebe um extraordinário impulso. Nesse momento, as oferendas votivas que outrora eram reservadas apenas aos deuses passam a ser consagradas ao próprio imperador.
A presença dominante de Constantino na capital não é evocada apenas por intermédio da monumental estátua erguida no fórum, mas pela cerimônia anual de comemoração da dedicatio. No decorrer dessa cerimônia, diante da população reunida no hipódromo, era apresentada para adoração uma estátua do imperador confeccionada em madeira e revestida de ouro. Na mão direita da estátua se encontrava a representação de uma Tyche, a Fortuna da cidade. Conduzida sobre um carro por um cortejo solene de soldados vestidos com a clâmide e portando círios brancos, a estátua se deslocava em torno do hipódromo até parar diante da tribuna imperial, ocasião na qual o imperador se levantava e se prosternava diante da imagem de Constantino e da Fortuna (Chonic. Pasc. Anée 330), no que era acompanhado por todos os espectadores. A cerimônia aqui descrita é a da adoratio, a adoração da pessoa sagrada do imperador, a qual integrava o conjunto de rituais próprios da basileia. Nesse caso específico, a cerimônia tem por finalidade exigir, da parte do imperador reinante, o reconhecimento e a reverência devidos para com o fundador de Constantinopla. Ritual de natureza pagã e cumprido diante das imagens dos deuses pelos suplicantes, a adoratio foi assimilada sem maiores traumas pela elite eclesiástica após a conversão de Constantino, de modo que a sua existência dentro de um Império cada vez mais cristão não deve nos causar surpresa. Já a presença no ritual da imagem da Fortuna, a qual deveria ser reverenciada juntamente com o imperador, representa sem dúvida uma inovação significativa, atestando uma inequívoca permanência das tradições pagãs em Constantinopla.
O culto à Fortuna na qualidade de protetora ou fundadora das cidades, e não apenas como a divindade tutelar dos indivíduos, remonta ao início da época helenística, quando os Diádocos dividiram entre si o Império de Alexandre. Deusa caprichosa, responsável pelos imprevistos incoerentes e até mesmo injustos da existência humana, a Fortuna personifica ao mesmo tempo a opulência das cidades, razão pela qual seus atributos principais são a pátena e a cornucópia (Hild, s/d.). No caso de Constantino, a deferência para com o culto à Fortuna é um fato incontestável. Por intermédio da narrativa de Zózimo (II,31,3), temos conhecimento de que o imperador teria feito erguer um templo ou uma êxedra em homenagem à Fortuna próxima a um dos pórticos que integravam o conjunto arquitetônico do fórum. Além disso, em 328 Constantino celebrou também um sacrifício não sangrento no decorrer do qual batizou a Fortuna da cidade com o nome de Anthousa, em grego “Florescente” (Chron. Pasc. Anée 328). Em uma moeda de prata cunhada para as comemorações da dedicatio de 330, vemos a imagem de Antusa portando a cornucópia (Bruun, 1966:578, n º 53). Mediante o culto à Fortuna, associado agora ao próprio culto imperial, Constantino sem dúvida pretendia garantir para a sua nova capital a mesma eternidade da qual gozava Roma, o que o levou a declarar que havia dotado Constantinopla, por mandato de Deus, com um nome eterno (C. Th. XIII,5), muito provavelmente o nome de Flora ou Antusa, denominações sacerdotais secretas de Roma (Burckhardt, 1938:394).
A adoração à Fortuna não foi o único culto pagão permitido oficialmente em Constantinopla. Graças ao testemunho de Zózimo (II,31,1-2), sabemos que próximo ao hipódromo foi erguido também um templo aos Dióscuros, os gêmeos mitológicos filhos de Zeus, muito provavelmente como uma referência à irmandade entre Roma e Constantinopla. Outra divindade a receber um templo ou um santuário foi Réia-Cibele, a deusa frígia cujo culto era desde a República um dos mais importantes de Roma. A estátua da deusa, trazida de Cícico, teria sido adulterada por Constantino, que retirou os leões que a ladeavam, convertendo-a em uma orante a velar pela cidade (Zoz. II,31,1-2), o que se adequava melhor ao espírito sincrético da capital. De qualquer modo, as informações contidas em Zózimo contrariam de modo flagrante a afirmação dos autores eclesiásticos segundo a qual Constantinopla teria sido preservada de qualquer influência pagã.
De acordo com a mentalidade romana, a conexão entre a ordem visual e o regime político era indissolúvel, necessitando os imperadores que o seu poder fosse evidenciado, de modo duradouro, por intermédio de monumentos e obras públicas (Sennet, 1997:81), razão pela qual se esmeraram sempre em construir ou reconstruir cidades como uma forma de celebrar a sua glória sobre a terra. Disso resulta que as cidades, erigidas em pedra e devotadas à eternidade, representavam um poderoso instrumento de perpetuação da memória imperial, assinalando que a missão civilizadora de Roma diante do mundo bárbaro se cumpria por determinação dos imperadores. A ação de Constantino, nesse caso, não foge à regra, exceto pelo fato de o imperador ter projetado não uma cidade qualquer, mas uma réplica oriental de Roma, o centro do mundo então conhecido, pólo irradiador da romanidade sobre o território circundante. A obra de Constantino o equiparava ao mesmo tempo a Enéias e a Rômulo, não sendo por acaso que a fundação de Constantinopla se encontrava relacionada, desde o início, a Tróia. Nesse aspecto, a Nova Roma recolhia todas as tradições pagãs acerca da criação da Urbs, herança essa da qual, em nossa opinião, Constantino jamais pretendeu se afastar. Por outro lado, a influência cristã em Constantinopla é um fato inegável, tendo a cidade cedo se constituído no mais importante bispado do Oriente, rivalizando com sés antigas e veneráveis, tais como Alexandria, Antioquia e Jerusalém (Angold, 2002:19).
Na verdade, a criação de Constantinopla representa um feito espetacular na medida em que o basileus surge, frente à sociedade romana da época, como um ser capaz de dotar o mundo de um novo centro, melhor dizendo, de reordenar o próprio cosmos, delimitando um novo espaço a partir do qual o sagrado se difunde sobre a superfície terrestre, protegendo-a da ameaça permanente do caos (Eliade, 1992:34). No contexto de redefinição dos fundamentos do poder imperial, de construção de uma realeza sagrada eivada de elementos pagãos e cristãos, era necessário que Constantino produzisse uma nova abertura por meio da qual se pudesse realizar a comunicação entre o céu e a terra. Roma não era inadequada aos propósitos de Constantino por ser uma cidade pagã, mas por ser o baluarte de uma concepção política de origem republicana que relutava em reconhecer os imperadores vivos como seres sagrados. Já Constantinopla, encravada na fronteira entre o Oriente Próximo e a Grécia, compartilhava de todas as tradições helenísticas sobre a realeza, as quais por sua vez resultavam da reelaboração de símbolos e rituais que remontam sem dúvida à monarquia faraônica, como comprova a perpetuação ao longo de todo o Império do costume de se atribuir aos imperadores a titulatura própria dos antigos soberanos egípcios. Em termos simbólicos, fazia-se necessário encontrar uma nova capital que pudesse expressar o sincretismo e as novas concepções que cercavam a basileia, e a escolha finalmente recaiu sobre Bizâncio, por razões de ordem diversa que não temos condições de discutir aqui. O importante é registrar que em Constantinopla o basileus romano representa, tanto na vida como na morte, uma autêntica epifania, tornando-se o seu corpo, depositado no mausoléu anexo à Igreja dos Santos Apóstolos, objeto de culto e veneração. Desse modo, Constantinopla se convertia em um extraordinário santuário a conservar para a eternidade as relíquias dos seus imperadores embalsamados e depositados em sarcófagos de ouro e madeira, como convinha a membros de uma estirpe sagrada.
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http://www.unicamp.br/nee/arqueologia/arquivos/historia_antiga/constantinopla.html
UNICAMP
2 comentários:
Eduardo,
parabéns pelas postagens maravilhosas que têm sido feitas aqui no História Viva.
Esse blog é fantástico, por isso eu o recomendo em mu blog.
Abçs e Paz!
eduardo,
parabems pelas postagens
q tem sido feitas aqui
no História Viva,
mais eu acho q vc
poderia fazer
um resuminho.
obrigada.
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