domingo, 30 de setembro de 2012

França Antártica - Plano secreto

Luís XIV pretendia estabelecer um vice-reinado francês no Brasil no século XVIII

Maria Fernanda Bicalho

Se parece difícil acreditar que alguém tenha autorização oficial do rei para saquear navios e sequestrar portos, a História diz o contrário. No início do século XVIII, os oceanos ficaram coalhados de corsários, que desfrutavam exatamente desse privilégio. Entre eles destacavam-se os franceses, que recebiam de seu rei, na época Luís XIV (1638-1715), uma “carta de marca”, uma espécie de permissão para furtar embarcações e ocupar os portos de nações inimigas, como era o caso de Portugal.

O corso era uma tática para enfraquecer os inimigos sem o dispêndio financeiro exigido pela construção e manutenção naval. Durante a Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713), aos comerciantes e contrabandistas, que já percorriam o litoral do Brasil havia 200 anos, somaram-se inúmeros corsários, que passaram a bordejar a costa americana. Além de dar cobertura aos salteadores, Luís XIV ainda enviou à colônia portuguesa duas esquadras, com o intuito de fragilizar o país adversário. 

Em 1710, a expedição comandada por Jean-François Duclerc (1670-1711) tentou adentrar as águas da Baía de Guanabara, onde havia se estabelecido a França Antártica, colônia que existiu durante 12 anos em meados do século XVI. Hostilizado por disparos das fortalezas do Rio de Janeiro, o corsário decidiu navegar em direção ao sul e atracar na Ilha Grande. Lá também foi rechaçado. Voltando a expedição à praia de Guaratiba, 1.200 homens desembarcaram e seguiram a pé por caminhos pantanosos e acidentados até o engenho dos jesuítas. Na manhã seguinte, chegaram à cidade, onde soldados e moradores os esperavam. O combate durou pouco e os franceses foram derrotados.

No ano seguinte, em setembro de 1711, outra esquadra francesa, desta vez sob o comando de René Duguay-Trouin (1673-1736), fez a entrada mais espetacular de que se tem notícia no Rio de Janeiro. Em poucas horas, encobertas por denso nevoeiro, dezoito embarcações posicionaram-se diante dos olhares incrédulos de seus habitantes. Dois dias depois, cerca de três mil homens desceram na Ilha das Cobras (atual Arsenal da Marinha), na Baía de Guanabara, e enviaram mensagem para que a cidade se rendesse. Francisco de Castro Morais, governador do Rio de Janeiro entre 1710 e 1711, fugiu para o interior com as tropas de defesa e a maioria dos moradores, escondendo-se na fazenda dos jesuítas no Engenho Velho (atual Tijuca). Intimado por Duguay-Trouin, que ameaçava bombardear a cidade, pagou pelo sequestro do Rio de Janeiro o resgate de 610.000 cruzados em ouro, 100 caixas de açúcar e 200 cabeças de gado.

Se esses episódios são pouco tratados nos livros de História, o mesmo acontece com o projeto de Luís XV (1710-1774) de conquistar o Rio de Janeiro em 1762. Seu plano, diferente dos anteriores, não se resumia a invadir a cidade, saqueá-la, sequestrá-la e pedir considerável resgate para devolvê-la intacta. Isso já havia sido feito por Duguay-Trouin. A intenção do rei era bem mais ousada: estabelecer um vice-reinado francês no Brasil. Para compreendê-lo, é preciso reportar aos acontecimentos de meados do século XVIII. 

Entre 1756 e 1763, a Europa vivia a Guerra dos Sete Anos. Como nos conflitos anteriores, França e Inglaterra eram as grandes rivais. A Espanha tomou partido da primeira, e Portugal tentava, a todo custo, manter sua posição de neutralidade. Temia que, ao apoiar a Inglaterra, sua grande aliada desde o século anterior, seus territórios ultramarinos fossem conquistados pelos franceses ou invadidos pelos espanhóis. A França já havia atacado o Rio de Janeiro por duas vezes. Quanto à Espanha, não parecia propício declarar inimizade: os limites territoriais entre os domínios portugueses e espanhóis na América continuavam em litígio mesmo depois do Tratado de Madri, assinado em 1750 e revogado 11 anos depois.

Naquela época, qualquer conflito entre as monarquias europeias repercutia necessariamente em seus territórios ultramarinos. A Guerra dos Sete Anos só iria aprofundar as disputas coloniais entre as grandes potências. As colônias, sobretudo na América, tornaram-se verdadeiros campos de batalha. Ao Norte, os ingleses conquistaram parte do Canadá, até então sob controle francês. Ao Sul, tropas castelhanas saídas de Buenos Aires invadiram as planícies do Rio Grande, conquistando vilas e fortalezas até Santa Catarina. Não era à toa que Portugal temia entrar na guerra. Sua neutralidade, porém, foi rompida em fins de 1761, diante de um ultimatum da França, que desejava utilizar os portos da península ibérica como base de suas investidas contra a Inglaterra.

Um ano mais tarde, quando já se falava em negociações de paz, Luís XV, aconselhado por seus ministros, planejou conquistar o Rio de Janeiro. Astuto, antevia um amplo campo de manobra se seu plano fosse bem-sucedido. Seu objetivo era dispor de um trunfo, uma espécie de moeda de troca que lhe permitisse negociar compensações nos tratados de paz que se avizinhavam. A França sofria derrotas para tropas e armadas britânicas no Canadá e na parte oriental da Louisiana, na América, e na costa do Coromandel, em Pondichéry, no Malabar e em Bengala, no Índico. O Brasil, além de pertencer a Portugal, era uma rica colônia e o Rio de Janeiro, o principal porto de escoamento do ouro das Minas. Conquistando-o, o rei de França atingiria os interesses de sua principal rival, a Grã-Bretanha, pois comerciantes e contrabandistas ingleses atuavam na região do Rio da Prata, acobertados por negociantes e autoridades do Rio de Janeiro.

Em outubro de 1762, apenas quatro meses antes do Tratado de Paris, que poria fim à guerra, uma carta de Luís XV dirigida a Beaussier de l’Isle (1700-1765), oficial da Marinha francesa, encarregava-o do comando da expedição. A esquadra seria formada por oito naus de guerra e duas fragatas pertencentes à Armada Real. Dois outros navios seriam comprados na cidade de Brest e dez adquiridos em Nantes. Oito batalhões, num total de 4.800 homens, comporiam as tropas de desembarque, além de dois destacamentos do Corpo Real de Artilharia. Ao todo, somavam 5.150 soldados, fora os oficiais.

O ministro da Marinha de Luís XV, o duque de Choiseul (1719-1785), instruiu Beaussier d’Isle para que se dirigisse primeiro à Bahia e depois ao Rio de Janeiro. Em Salvador, deveria permanecer apenas o tempo necessário para conquistar a cidade, destituir o vice-rei e cobrar os tributos de praxe em casos de guerra. Seguiria então para o Rio, alvo principal. Enviou-lhe mapas e descrições minuciosas das duas cidades. Dizia não ter mandado fazer cópias para distribuí-las entre os demais oficiais da expedição, pois todos os detalhes deveriam ser tratados em absoluto segredo. Caso contrário, o plano poderia ser descoberto, o que poria em risco toda a empreitada. 

Além de Beaussier de l’Isle, o único que sabia do projeto era o conde d’Estaing (1729-1794). Nomeado pelo rei comandante e estrategista das tropas terrestres, ele discordava do início da expedição pela Bahia. Para ele, o Rio era, sem dúvida, a cidade mais importante, pois em seu porto era embarcado o ouro proveniente das Minas. Invadir Salvador significava arriscar a melhor arma em qualquer confronto: a surpresa. Não era aconselhável dividir esforços nem desperdiçar homens e munição. Uma estratégia bem elaborada era um ingrediente indispensável ao sucesso da empresa.

Mas d’Estaing não deixava de apontar razões favoráveis à investida contra a Bahia. A vitória seria certa e a cidade, sede do vice-reinado, não havia sido anteriormente invadida, ao menos pelos franceses. Sua conquista por Luís XV causaria boa impressão na Europa. Se o intuito real era dispor de uma valiosa moeda de troca nas negociações da paz, tomar Salvador significava, pelo menos simbolicamente, conquistar o Brasil inteiro. Porém, na balança dos prós e contras, d’Estaing recomendava atacar somente o Rio de Janeiro. Cantando louros antes da vitória, o experiente oficial se comprometia a surpreender o governador, as forças de defesa e os moradores da cidade. Dizia conhecer bem os portugueses, que tinham medo dos franceses e se defendiam com pífias demonstrações militares ou com muita missa, reza e procissão.

Em suas instruções, d´Estaing não descrevia com detalhes sua passagem anterior pelo Rio, embora tenha comentado que observara as fortificações da cidade em 1757. Essa referência e o fato de ter servido a Luís XV na Índia entre 1757 e 1758 indicam que ele participara da expedição do conde d’Aché, em julho de 1757. Nesse episódio, o rei de Portugal recebeu a notícia de que seis navios franceses, comandados por esse nobre oficial, haviam entrado na Baía da Guanabara. Faziam parte de uma esquadra que seguia para o Oriente, onde deveriam atacar os ingleses, sempre no contexto da Guerra dos Sete Anos. 

Os relatos sobre a chegada dos franceses, como o do bispo do Rio de Janeiro, descreviam com nitidez o “terror pânico” que assolou a cidade, cuja população ainda guardava na memória o episódio de 1711, quando Duguay-Trouin a invadiu e a sequestrou. Enquanto a esquadra de d’Aché assustava seus moradores, o governador Gomes Freire de Andrade (1685-1763) e parte das tropas que defendiam a cidade encontravam-se no sul, onde negociavam com o governador de Buenos Aires as determinações do Tratado de Madri. 

Como Portugal não havia ainda, àquela altura, declarado guerra à França, os acordos internacionais determinavam que qualquer porto, em caso de urgência ou necessidade, deveria ser hospitaleiro com os navios de nações “amigas”. Mesmo apavorados, os moradores tiveram que acolher os franceses, embora impusessem restrições ao seu deslocamento pela cidade, sistematicamente ignoradas. Os oficiais andaram livremente pelo Rio, inclusive à noite, embora devessem voltar a seus navios pela hora da Ave-Maria (seis da tarde). Observaram as fortalezas, fizeram perguntas sobre a frota, queriam saber quanto ouro transportava para Portugal e em que período do ano partia. 

Essa atitude não contribuiu para acalmar os ânimos da “plebe miúda”, que, a certa altura, queria expulsá-los. A situação não ficou mais tensa porque Antônio Freire de Andrade (1708-1784), governador interino, desceu das Minas em direção ao Rio. Experiente no governo, ele conseguiu aplacar o medo e a fúria dos moradores. Desde sua chegada até a partida dos indesejáveis visitantes, a convivência entre portugueses e franceses tornou-se, se não amistosa, pelo menos pacífica. 

D’Estaing era, provavelmente, um desses oficiais que andaram livremente pelo Rio de Janeiro em 1757. Em comunicado a Luís XV, informou ter agido como espião e fez observações militares. Seus comentários sobre o modo de vida dos habitantes não destoavam da visão que os estrangeiros tinham do Brasil. Ele mencionava a utilização de vadios na constituição das tropas mineiras, a situação dos escravos, a cumplicidade entre a população e os jesuítas, a lendária rebeldia dos paulistas e sua resistência a se submeterem ao poder metropolitano. Por fim, d’Estaing concordava com o projeto de instituir um vice-reinado francês no Brasil. Bem sabia que a tarefa de conservá-lo não seria fácil. Por isso, propunha o envio de grandes contingentes militares. Como as terras eram férteis e abundantes em animais, as tropas de ocupação teriam como se sustentar. Da França viriam os tecidos e, principalmente, o vinho. Comerciantes franceses seriam certamente atraídos pela abundância do ouro.

Não foi à toa que Luís XV escolheu o conde d’Estaing para ocupar o cargo de vice-rei do Brasil. Apesar da pouca idade, sua experiência militar e seu tino de estrategista eram admiráveis. Charles Henri d’Estaing, filho do marquês de Sillans, nasceu em 1729 em Puy-de-Dôme, na França. Começou sua carreira na infantaria e participou de importantes batalhas na Guerra dos Sete Anos. Protegido do ministro da Guerra de Luís XV, o duque de Choiseul, passou à Marinha de Guerra e lutou na Índia. Ferido em Madras, foi feito prisioneiro dos ingleses. Ao ser libertado, retornou a Paris em 1762. Tinha apenas 32 anos ao ser designado futuro vice-rei do Brasil, caso o projeto de conquista do Rio de Janeiro fosse vitorioso.

No entanto, um plano tão bem concebido não teve chance de ser executado. A paz chegou antes que os navios franceses partissem em direção ao Brasil. Não se conhecem os detalhes do que se passou entre o fim de 1762 e o início do ano seguinte. Em meados de 1763, alguns meses após o fim da guerra ser declarado em Paris, M. Beaussier de l’Isle chegava às Antilhas francesas, provavelmente com parte das forças arregimentadas para o Rio.

Porém, o mais curioso são as peças pregadas pelo tempo ou pela História. Se em 1763 os franceses não chegaram a invadir o Brasil e d’Estaing não ocupou o palácio dos vice-reis no Rio de Janeiro, atualmente a residência dos embaixadores brasileiros em Paris situa-se justamente na Rua do Almirante d’Estaing.

Maria Fernanda Bicalho é professora de História na Universidade Federal Fluminense e autora de A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII. (Civilização Brasileira, 2003) e co-autora de O Governo dos Povos (Laura de Mello e Souza e Júnia Ferreira Furtado (org)). (Alameda, 2009). 

Saiba Mais - Bibliografia:

MARIZ, Vasco (org.). Brasil-França: Relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 2006.

FRANÇA, Jean Marcel C. & RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil Colonial: Catálogo comentado (1503-1808). São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Conflitos da França Antártica

Franceses se instalaram na Guanabara em 1555, mas diferenças religiosas enfraqueceram a empreitada

Luiz Fabiano de Freitas Tavares

Onde estava, afinal, o testamento no qual o “Pai Adão” legara o mundo às Coroas portuguesa e espanhola? Quem fez esta pergunta foi Francisco I (1494-1547), rei da França, que desafiou o Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494 por Portugal e Espanha para assegurar o domínio ibérico sobre as terras do Novo Mundo. O monarca respondeu ao Tratado com uma provocação, declarando a política de mare liberum (em latim, “mar livre”). Como resultado, navios de comerciantes franceses percorreram o litoral brasileiro em meados do século XVI, criando bases de comércio ao longo da costa. Uma delas deu origem à colônia França Antártica, em 1555, situada na Baía de Guanabara, e assim batizada devido à crença de que se localizava perto do polo antártico. Doze anos depois, após um intenso combate, os portugueses conquistaram definitivamente a cidade do Rio de Janeiro.

As forças portuguesas vitoriosas foram comandadas pelo governador-geral Mem de Sá (1500-1572), que, como o padre José de Anchieta (1534-1597), descreveu a colônia francesa como um ninho de hereges, composto exclusivamente de seguidores da Reforma Protestante. Diziam ainda que tinham sido encontrados livros sobre o protestantismo nas fortificações. Dessa forma, o combate ganhava ares de luta contra a heresia reformada, tornando-se meritório aos olhos de Deus e da comunidade católica. Mais que uma disputa territorial, a expulsão dos franceses se tornava uma guerra santa.

Esses relatos portugueses foram usados mais tarde pelo historiador Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878) na elaboração de sua obra História do Brasil, escrita no século XIX. A ideia de uma França Antártica formada exclusivamente por protestantes foi confirmada pelo autor e propagada entre diversos historiadores brasileiros. Mas as narrativas francesas sobre o episódio mostram o contrário: a colônia abrigava diferentes tendências religiosas, e essa variedade causara conflitos internos que dividiram a comunidade. De fato, na Europa a Reforma protestante revolucionava a experiência religiosa em diversas terras e gerava grandes oposições. No âmbito francês, destacava-se a liderança de João Calvino (1509-1564), exilado em Genebra, de onde exercia grande influência, principalmente teológica, sendo suas intervenções no campo político pouco significativas.

A versão dos derrotados diz que, em 1555, o monarca francês Henrique II (1519-1559) concedeu ao experiente militar Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1572) a elevada quantia de dez mil libras tornesas para conduzir uma esquadra da França ao Brasil. Nascido em família de nobreza recente, Villegagnon tornou-se cavaleiro da Ordem de Malta, organização militar e religiosa fundada no tempo das Cruzadas. Após uma longa ascensão social, ocupou o posto de vice-almirante da Bretanha. 

Os adversários protestantes de Villegagnon diriam mais tarde que o cavaleiro tinha se convertido à Reforma e desejava fundar um refúgio no Novo Mundo, onde seria possível “melhor servir a Deus”. De acordo com essa ideia, Villegagnon teria aderido ao protestantismo e depois traído a religião. Mas ao partir da Europa, sua companhia não deixava perceber nenhuma predileção religiosa. A bordo estavam o piloto adepto da Reforma Nicolas Barré (? –1562) e o cosmógrafo franciscano André Thévet (1504-1592). 

Após meses de viagem, em março de 1556 os navios franceses comandados por Villegagnon chegaram à Guanabara. Os viajantes ocuparam a ilha de Serigipe, iniciando a construção do Forte Coligny, assim batizado em homenagem a Gaspar de Coligny (1519-1572), almirante de França e um dos incentivadores do projeto. 

Segundo os primeiros relatos de Thévet e Barré, publicados em1557 na Europa, o convívio entre católicos e protestantes foi inicialmente pacífico. A relação amistosa com os índios tupinambás também foi fundamental para a consolidação da colônia. Os nativos forneciam alimentos e água aos franceses, pois a ilha de Serigipe, escolhida por razões puramente militares, não possuía fonte de água doce. Em troca, os indígenas obtinham mercadorias europeias, especialmente instrumentos de ferro. 

A comunicação com os índios era feita pelos trugimães, franceses que conviviam com os indígenas havia anos, tendo aprendido sua língua e seus hábitos. Mas em pouco tempo esses intérpretes entrariam em conflito com os novos colonos. Villegagnon exigiu que todos os homens que desejassem manter relações sexuais com as índias se casassem com elas. Os trugimães, que viviam na terra em contato com as mulheres nativas havia muito tempo, foram contra. Fez-se um complô contra os chefes da colônia para matá-los, mas o plano foi descoberto a tempo, permitindo a captura dos organizadores do motim e a morte dos líderes.

Os meses seguintes de 1556 transcorreram sem sobressaltos, mas em março de 1557, uma comitiva de adeptos da Reforma, liderada pelo nobre Du Pont e por dois pastores, Pierre Richer e Guillaume Chartier, chegou à Guanabara vinda de Genebra. Eram convidados do almirante francês Gaspar de Coligny, que se convertera ao protestantismo. A iniciativa foi orientada pelo líder reformador João Calvino. Entre os recém-chegados também estava o huguenote Jean de Léry (1534-1611), que, após retornar à Europa, escreveu o relato História de uma viagem feita à Terra do Brasil, uma das mais importantes obras sobre a França Antártica. 

Inicialmente, o relacionamento entre o chefe da colônia e a comitiva de Du Pont foi amistoso, segundo as cartas de Villegagnon e dos pastores a Calvino. Porém, menos de um mês após a chegada dos protestantes, surgiu um conflito relacionado à celebração do culto de Páscoa. Para os católicos, o pão se transformava realmente no corpo de Cristo durante o ritual, enquanto para os protestantes seria apenas um símbolo da presença do filho de Deus. Para Villegagnon, a comunhão era uma das bases do poder real, e a negação da presença do corpo de Cristo abalava as bases em que a monarquia se apoiava.

Num primeiro momento, os grupos em litígio tentaram chegar a um acordo. O pastor Guillaume Chartier foi enviado de volta à Europa para consultar Calvino sobre o tema. Mas os debates não se resolviam, e a divergência religiosa foi tamanha que no fim de 1557 a comitiva de Genebra retornou à Europa. Contudo, o navio começou a afundar quando estava ainda na altura de Cabo Frio, e cinco genebrinos resolveram voltar de bote. Os náufragos foram recebidos por Villegagnon, que executou três por afogamento poucos dias depois. Segundo Jean Crespin (1523-1572), célebre editor militante reformado, autor de importante martirológio protestante, os três eram mártires da causa reformada, condenados por razões religiosas. Mas para o cavaleiro de Malta, os ditos “mártires” teriam provocado tumultos, incitando os colonos à insurreição e, dessa forma, sua condenação se dava exclusivamente por motivos civis.

O resto da comitiva seguiu para a Europa num navio em condições precárias. Segundo Jean de Léry, a viagem se prolongou além do esperado e os viajantes foram obrigados a devorar os macacos e papagaios que transportavam e, em seguida, os ratos. Por fim, hidrataram e comeram seus utensílios de couro. Muitos morreram de fome ao longo da tormentosa travessia. De acordo com Léry, apenas a piedade cristã os impedira de praticar a antropofagia.

Finalmente, chegando à Europa, os huguenotes iniciaram uma campanha difamatória contra Villegagnon, acusando-o de ter se convertido à Reforma e depois traído a causa. Em 1559, o cavaleiro de Malta retornou à França para se defender das acusações e publicou um livro discutindo a teologia de Calvino, convidando o reformador para um debate, que jamais aconteceu. A fidelidade à ortodoxia católica demonstrada por Villegagnon provocou uma guerra de panfletos, com muitas respostas e réplicas por parte dos protestantes. Ele acabou reconquistando a confiança do jovem rei Francisco II (1544-1560), e preparava outra expedição rumo ao Novo Mundo, em 1561, quando chegou a notícia da queda do Forte Coligny, na França Antártica, tomado pelos portugueses em 1560. Villegagnon abandonaria este plano, tratando apenas de obter uma indenização da Coroa portuguesa. E ganhou, apesar das pretensões lusitanas de legitimidade do tratado de Tordesilhas.

Os franceses ainda persistiram na Guanabara até 1567, quando seriam definitivamente expulsos por Mem de Sá. Embora tenham construído duas fortalezas nesse período, Paranapuã e Uruçumirim, a colônia jamais voltou a ser o que fora antes.

Pouco se sabe do que se passou nesses últimos sete anos, mas os relatos portugueses apontam que nas fortificações havia muito mais indígenas que franceses. 

Na década de 1570, o debate foi retomado na França, quando André Thévet publicou a Cosmografia Universal, que acusava os protestantes pela perda da França Antártica. Respondendo a essa obra, Jean de Léry escreveu sua História de uma viagem feita à terra do Brasil, em que defenderia os huguenotes dessa acusação, atribuindo o verdadeiro fim da colônia às atitudes de Villegagnon, traidor da confiança de Coligny.

Independentemente da disputa de versões, as obras de Thévet e Léry constituem preciosos registros sobre o Brasil da época. Embora a experiência da França Antártica tenha sido temporária, legou essas fontes de pesquisa e, mais ainda, a “cidade maravilhosa” de São Sebastião do Rio de Janeiro. Já dizia Jean de Léry que não havia no mundo paisagem mais bela que a Baía de Guanabara. Este talvez seja um dos raros fatos incontestáveis sobre o episódio da França Antártica. 

Luiz Fabiano de Freitas Tavares é professor Universidade Castelo Branco e da Rede Municipal do Rio de janeiro, Autor do Livro entre Genebra e a Guanabara: A discussão política huguenote sobre a França Antártica (TopBooks, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia:

LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. Villegagnon e a França Antártica. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

MARIZ, Vasco (org.). Brasil França – relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Bibliex, 2006.

MENDONÇA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da Pacificação. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, Departamento de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1991.

O protestantismo de Calvino

Noventa e cinco teses contra os abusos da hierarquia eclesiástica afixadas na porta da igreja de Wittenberg, Alemanha, em 1517. Este gesto de denúncia, realizado por Martinho Lutero (1483-1546), geralmente é considerado o início da Reforma Protestante. O monge agostiniano é excomungado. Em resposta, a bula papal é queimada. Como um incêndio, as novas ideias vão se propagando: católicos e reformados se confrontam, sobretudo na Europa Central. O francês João Calvino (1509-1564) adere ao protestantismo, desenvolvendo uma linha particular que enfatiza a predestinação, segundo a qual o homem já nasce escolhido por Deus para a vida eterna ou para a condenação. Do ponto de vista moral, o calvinismo é marcado por um extremo rigor, visível na própria cidade de Genebra, governada por Calvino e seus seguidores, onde danças e jogos são proibidos, e é imposta uma rígida disciplina a todos os habitantes. A doutrina do reformador genebrino se difunde principalmente nos Países Baixos, na Escócia, na Inglaterra (dando origem a duas correntes: os presbiterianos, mais moderados, e os puritanos, mais radicais) e na França, onde os calvinistas recebem o nome de huguenotes. (Equipe RHBN)
Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

De Roma a Constantinopla, pensar o império para entender o mundo

Num momento em que Estados-nação se dobram diante das forças do mercado, dirigentes políticos sonham com estabilidade. Ora, as formas de governo utilizadas pelos impérios fascinam por sua resistência aos sobressaltos da história, sua plasticidade e sua capacidade de unir populações diferentes. O que podemos aprender?
por Jane Burbank e Frederick Cooper


(Soldados turcos em trajes otomanos participam de cerimônia em comemoração do aniversário da conquista de Istambul)

Por que nos interessar pela noção de império? Não vivemos hoje um mundo de Estados-nação? São eles, por exemplo, que têm seus assentos na ONU, com suas bandeiras, seus selos postais e suas instituições.

Mas acontece que, em comparação com a longevidade do Império Otomano (600 anos) ou com a sucessão de dinastias chinesas ao longo de vários milênios, a “era do Estado-nação” poderia parecer uma anomalia passageira na história da humanidade. Ainda mais quando tantos conflitos recentes – em Ruanda, no Iraque, no Afeganistão, na antiga Iugoslávia, no Sri Lanka, no Cáucaso, em Israel etc. – explicam-se justamente pela dificuldade de encontrar novas formas de organização para substituir os impérios, em 1918, 1945 ou após 1989.

Ninguém está sugerindo sucumbir à nostalgia imperial: os mundos perdidos do Raj britânico ou da Indochina francesa não iluminam nossas reflexões políticas modernas. Tampouco o recurso sistemático aos termos “império” ou “colonialismo” – atalhos muitas vezes insuficientes, destinados a desacreditar alguma intervenção norte-americana, francesa ou outra qualquer – contribui para a análise da geopolítica contemporânea. No entanto, o estudo dos impérios, antigos ou recentes, permite acessar as raízes do mundo contemporâneo e aprofundar nossa compreensão das modalidades de organização do poder político, ontem, hoje e – por que não? – amanhã.

O conceito de Estado-nação se baseia numa ficção, a da homogeneidade: um povo, um território, um governo. Os impérios nascem da extensão do poder através do espaço e se assentam na diversidade: eles governam de maneiras diferentes povos diferentes, sob uma dupla tensão. Por um lado, a vontade dos líderes políticos de estender seu controle territorial, num contexto em que os povos vivem realidades socioculturais variadas, alimenta o expansionismo. Por outro, o fato de o império absorver povos diferentes faz com que alguns de seus componentes desejem destacar-se do conjunto. Isso explica por que os impérios perduram, racham, reconfiguram-se e caem.

Os reis da selva

O repertório de métodos para governar a distância grupos humanos diferentes é particularmente rico. Alguns impérios desenvolveram estratégias herdadas de seus antecessores ou emprestadas de seus rivais. Os otomanos conseguiram misturar tradições turcas, bizantinas, árabes, mongóis e persas. Para gerenciar seu império multiconfessional, apoiaram-se nas elites de cada comunidade religiosa, sem tentar assimilá-las ou destruí-las. O Império Britânico utilizou durante séculos ferramentas de governo tão diversas quanto os territórios sobre os quais foi levado a reinar: domínios, colônias etc. Um órgão específico governava a Índia, um protetorado disfarçado presidia os destinos do Egito, e o “imperialismo de livre-comércio” estendia-se a muitas áreas de influência. Um império que contava com uma caixa de ferramentas tão bem provida podia pontualmente mudar de tática, sem se ver forçado a assimilar ou administrar todos os seus territórios segundo os mesmos mecanismos.

Há diversos esquemas de base, recorrentes, embora heterogêneos, nas modalidades de governo de populações variadas. Em alguns impérios, a “política da diferença” consistia em reconhecer uma multiplicidade de povos, assim como seus costumes e tradições. Outros traçavam uma fronteira clara entre os autóctones e os elementos vindos do exterior, considerados “bárbaros”. Os dirigentes dos impérios mongóis, nos séculos XIII e XIV, viam as diferenças como normais e benéficas. Eles asseguraram a influência do budismo, do confucionismo, do taoismo e do islamismo, bem como as artes e as ciências produzidas pelas civilizações árabe, persa e chinesa. Roma, ao contrário, aspirava a uma homogeneidade fundada em sua cultura, sincrética, é claro, mas ainda assim identificável; na atração que poderia exercer a aquisição da cidadania romana; e, mais tarde, num cristianismo transformado em religião de Estado.

Os impérios evoluíram em torno dessas duas tendências, às vezes combinando ambas (como nos casos otomano e russo). Na África, as potências europeias dos séculos XIX e XX oscilaram entre uma abordagem assimilacionista, motivada pela certeza da superioridade da civilização ocidental, e formas de governo indiretas, apoiadas nas elites das comunidades conquistadas.

A “missão civilizadora” de que os europeus se autoinvestiram às vezes entrava em contradição com as teorias raciais comumente aceitas na época. Qualquer que fosse a imagem que tivessem dos “outros” e de suas culturas, os conquistadores nunca conseguiram administrar seus impérios sozinhos. Sempre utilizaram conhecimentos, competências e autoridades das sociedades que controlavam, apoiando-se em “intermediários”: membros da elite local que pudessem se beneficiar de alguma forma da cooperação; pessoas antes marginalizadas, que encontravam uma vantagem em servir ao poder vitorioso; ou ainda cidadãos da potência colonial, colonos ou pequenos funcionários. Em todos os casos, a questão era tirar proveito das redes sociais do intermediário para garantir uma colaboração eficaz.

Outra estratégia procedia no sentido inverso: colocar em posição de autoridade escravos ou pessoas destacadas de sua comunidade de origem, que dependiam inteiramente dos senhores imperiais para seu bem-estar e sobrevivência.

A teoria afirma que os impérios europeus abandonaram esses métodos de delegação pessoal de poder para privilegiar estruturas burocráticas. Na verdade, no meio das vastas extensões africanas, os administradores frequentemente consideravam a si próprios como “reis da selva”. Os oficiais solicitavam a assistência de chefes costumeiros, guardas ou tradutores, os quais tentavam tirar proveito de sua posição. Mas, em todas as épocas, os intermediários revelaram-se tão perigosos quanto necessários. Colonos, elites indígenas ou funcionários de escalões inferiores, todos sonharam, em um momento ou outro, tomar o poder.

Trazer à luz o papel dos intermediários leva a destacar as relações verticais dentro da estrutura de poder – entre dirigentes, agentes e submetidos –, uma relação cujo estudo costuma ser negligenciado em favor de uma abordagem mais horizontal, baseada nas afinidades étnicas ou de classe.

Nem infinita nem rígida, a imaginação política dos construtores de impérios e das elites locais foi outro elemento essencial de suas práticas e de seu sucesso. Por exemplo, o imperador romano Constantino e, mais tarde, Maomé adotaram o monoteísmo, que lhes forneceu o poderoso modelo “um império, um deus, um imperador”. Escolha que, todavia, levou ao cisma quando surgiu o argumento de que o imperador não seria o guardião legítimo da verdadeira fé.

Os impérios tentaram colocar-se como guardiões da justiça e da moral – pretensão que algumas vezes se voltou contra eles: podemos nos lembrar de Bartolomeu de Las Casas defendendo as populações indígenas americanas no século XVI,1 dos movimentos de libertação dos escravos no Império Britânico do século XIX, ou dos povos asiáticos e africanos reivindicando a “missão civilizadora” da França para sugerir que a democracia não deveria ser apanágio de um só continente.

O conceito de “trajetória” aplicado aos impérios permite analisar suas transformações e interações de modo diferente do prisma tautológico habitual: o de uma história vista como sucessão de épocas distintas. O que chamamos comumente de “expansionismo europeu”, a partir do século XV, não foi o produto de um instinto inerente ao povo do continente, mas a consequência de uma conjuntura específica. O Império Otomano – maior, mais poderoso e mais integrado que as unidades políticas fragmentadas da Europa ocidental – constituía um obstáculo fundamental ao comércio com a China e o Sudeste Asiático, cujas incontáveis riquezas despertavam todas as cobiças. Os reis de Espanha e Portugal e, mais tarde, os soberanos holandeses e ingleses não cansaram de buscar meios para contornar os territórios sob domínio otomano e dar fim à sua dependência em relação aos magnatas de seus próprios países. Uma das consequências inesperadas desse fenômeno foi colocar em contato povos de ambos os lados do Atlântico, quando Cristóvão Colombo, navegando em direção ao Oeste para chegar à Ásia, descobriu por acaso aquilo que viria a se tornar a América.

Estados-nação e limpeza étnica

Outros eventos críticos da história do mundo aparecem sob uma luz diferente quando os estudamos do ponto de vista das relações que os impérios mantinham entre si. É o caso das revoluções europeias e americanas dos séculos XVIII e XIX. As revoluções na ilha francesa de Santo Domingo, na América do Norte (sob domínio britânico) e na América do Sul (sob domínio espanhol) foram inicialmente conflitos internos a um império, antes de se transformarem em tentativas de saída desse império.

Se considerarmos agora o destino flutuante dos regimes que marcaram o século XIX e a primeira metade do século XX, descobriremos então um mundo agitado por novos projetos imperiais – da Alemanha, Japão e União Soviética – e pela mobilização de recursos e povos de outras potências imperiais para combater essas ambições. Em meados do século XX, a transição do império para Estados-nação não tinha nada de evidente. As populações mistas do sul da Europa, que haviam conhecido muitos regimes, inclusive a lei otomana e o reino dos Habsburgos, sofreram diferentes ondas de limpeza étnica, todas sob o pretexto de dar a cada nação seu Estado. Esse foi especialmente o caso dos Bálcãs, na guerra de 1870, em 1912-1913 e após a Primeira Guerra Mundial, durante o desmantelamento dos impérios vencidos. Depois novamente, após a Segunda Guerra Mundial, quando alemães, ucranianos e poloneses foram expulsos de alguns territórios. Apesar disso, o Estado não conseguiu casar-se com os contornos da nação e, nos anos 1990, a região dos Bálcãs foi mais uma vez cenário de limpezas étnicas. O genocídio em Ruanda, em 1994, também deve ser lido como resultado de uma tentativa pós-imperial de produzir um povo unificado, que se autogovernaria. O Oriente Médio ainda não se recuperou do desmantelamento do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial: nacionalismos opostos disputam os mesmos territórios em Israel e na Palestina.

A União Europeia é hoje a mais inovadora das grandes potências. As lutas pela Europa ou contra ela atravessam os tempos, de Carlos Magno a Hitler, passando por Carlos V e Napoleão. Foi somente após o cataclismo da Segunda Guerra Mundial e a perda de suas colônias que os impérios europeus colocaram realmente fim à competição que sempre haviam mantido. Apesar disso, até a década de 1960 a França e o Reino Unido ainda tentaram reconfigurar seus impérios, a fim de torná-los ao mesmo tempo mais legítimos e mais produtivos. Afastados do jogo imperial, Alemanha e Japão conseguiram prosperar como Estados-nação, coisa que não haviam alcançado até então.

Entre as décadas de 1950 e 1990, os Estados europeus, livres do peso de seus impérios, dedicaram a maior parte de seus recursos a construir alianças entre si. Assim, lançaram as bases de uma confederação que funcionou de maneira eficaz enquanto suas ambições limitaram-se à administração e à regulamentação. Quem quer que observe um posto de fronteira abandonado, em uma linha demarcatória que milhões de pessoas morreram para defender, provavelmente irá considerar a criação do espaço Schengen um avanço. Um dos principais atributos da soberania, o controle das fronteiras, foi empurrado para as bordas do continente.2 Das ambições bélicas de constituição de impérios ao surgimento de Estados nacionais sem colônias, seguindo-se o projeto de uma confederação de nações, a evolução europeia destaca a complexidade do arranjo das soberanias. E demonstra que a concepção de Estado nacional emancipou-se recentemente de seus precursores imperiais.

Depois de 11 de setembro de 2001, os especialistas sagraram o “império norte-americano”, seja para denunciar a arrogância de sua política externa, seja, ao contrário, para celebrar seus esforços em favor da paz e da democracia. Mas a única questão realmente importante é a que toca o repertório do poder estabelecido em Washington, o qual se baseia no uso seletivo de estratégias imperiais. Ao longo de todo o século XX, os Estados Unidos fizeram uso da força, violaram a soberania de muitos Estados e ocuparam territórios, embora raramente tenham estabelecido colônias. O patriotismo norte-americano nasceu de uma trajetória imperial: em 1776, Thomas Jefferson declarava que as províncias rebeladas contra a coroa britânica fariam nascer um “império da liberdade”. O sistema que daí emergiu tinha como fundamento um princípio semelhante à política romana da diferença: ele dedicava a igualdade e o direito de propriedade aos cidadãos, excluindo autóctones e escravos. Estendido a todo o continente, o sistema permitiu que os norte-americanos de ascendência europeia concentrassem em suas mãos a maior parte dos recursos. Após hesitar um tempo em torno da questão da escravidão, os dirigentes viram-se numa posição forte o bastante para decidir o momento e os termos de suas intervenções no resto do mundo.

Uma transição inexorável?

A forma império existiu em relação, e muitas vezes em conflito, com outras formas de governo. Os impérios conseguiram facilitar (mas também impedir) a circulação de bens, capitais, indivíduos e ideias. Sua emergência é resultado de processos violentos, e a conquista costuma ser seguida pela exploração e mesmo pela aculturação forçada e pela humilhação. Eles moldaram sistemas políticos poderosos, mas também causaram sofrimentos humanos consideráveis. Entretanto a ideia de nação, ela própria desenvolvida no contexto imperial, não tem mostrado eficácia, como evidenciam os conflitos não resolvidos no Oriente Médio e em várias regiões da África.

Trilhamos hoje os íngremes caminhos que conduzem ao “pós-império”, bem no meio de uma ficção segundo a qual todas as soberanias são iguais, mas que não consegue mascarar as desigualdades entre os Estados. Pensar o império não significa querer ressuscitá-lo dos mundos passados. Trata-se de considerar a multiplicidade de formas de exercício do poder sobre um dado espaço. Se pudermos considerar a história como outra coisa que não a inexorável transição da forma império para a forma Estado-nação, talvez possamos apreender o futuro de um ponto de vista mais vasto. E considerar outras formas de soberania que respondam melhor a um mundo caracterizado ao mesmo tempo pela desigualdade e pela diversidade.

Jane Burbank e Frederick Cooper

Professores de História da Universidade de Nova York e autores de Empires, de la Chine ancienne à nos jours {Impérios: da China antiga a nossos dias}, Payot-Rivages, Paris, 2010

Ilustração: Murad Sezer / Reuters

1 Dominicano espanhol (1474-1566) que denunciou a condição dos indígenas nas colônias da coroa espanhola, Las Casas foi acusado de querer perpetuar o poder imperial, dando-lhe um rosto “humano”.

2 Ler Alain Morice e Claire Rodier, “Comment l’Union européenne enferme ses voisins” [Como a União Europeia fecha seus vizinhos], Le Monde diplomatique, jun. 2010.
Le Monde Diplomatique

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Bandalha liberada

No Brasil Colônia, várias formas de apropriação de dinheiro público eram institucionalizadas.

Ronaldo Vainfas
Não resta dúvida de que a corrupção endêmica que marca o Estado brasileiro deita raízes em nosso passado colonial. Mas naquele tempo, o que hoje chamamos de peculato – apropriação de dinheiro público em proveito próprio – não chegava a ser uma irregularidade. Pelo contrário, era coisa institucionalizada e derivava do que o historiador e cientista político Raymundo Faoro (1925-2003) chamou de Estado patrimonial, no qual as esferas pública e privada se confundem. 

Era comum a Coroa arrendar o direito de cobrar impostos a particulares, assim como o direito de explorar produtos monopolizados pelo Estado. O regime de capitanias hereditárias foi um modelo desse esquema, no qual os donatários eram oficiais do rei recompensados com privilégios particulares, incluindo terras e parte da receita fiscal devida ao monarca. O que chamamos hoje de bem público era, então, propriedade do rei. 

Naquela época proibia-se, antes, a malversação em excesso. Se não chegava a configurar um crime de lesa-majestade, era delito passível de punição. O Livro V das Ordenações Filipinas (1603) estabelecia que “qualquer oficial nosso ou pessoa outra que alguma coisa por nós houver de receber, guardar ou arrendar nossas rendas, se alguma das ditas coisas furtar ou maliciosamente levar”, ficava condenado a perder o ofício e ressarcir o Tesouro. Se o roubo fosse muito grande, aí sim, poderia ser tratado como simples ladrão.

Uma prova de que o Tesouro era lesado em escala maior do que a prevista encontra-se no livro A arte de furtar, escrito em 1652. Irônico, o autor abre o livro dizendo que o furto era mesmo algo nobre, e, à moda barroca, caracteriza dezenas de fórmulas desta arte. Dos que furtam com unhas reais, agudas, militares, disfarçadas, postiças, maliciosas e descuidadas. Dos que furtam com mão de gato. Além disso, expõe os princípios gerais da dita ciência. Exemplos: como tomando pouco, se rouba mais; como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões; como se podem furtar a El Rei vinte mil cruzados e demandá-lo por outros tantos. 

A obra foi, por muito tempo, atribuída ao Padre Antônio Vieira (1608-1697) e mais tarde ao jesuíta Manoel da Costa e a Antônio de Sousa Macedo, um dos principais diplomatas de D. João IV. Em sua primeira edição, trazia subtítulos curiosos: “Espelho de enganos”, “Teatro das verdades”, “Gazua geral dos reinos de Portugal”… Não foi publicada no século XVII, mas somente em 1744. Foi desses livros escritos antes do tempo.

Ronaldo Vainfas é professor titular de História da Universidade Federal Fluminense e autor de Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição (Companhia das Letras, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:
A arte de furtar. Edição crítica, com introdução e notas de Roger Bismut. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1991.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1974.

Ordenações Filipinas, Livro V (introdução e organização de Sílvia Lara). São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 
Revista de História da Biblioteca Nacional

O declínio do império astrológico


No fim do século XVI, fenômenos como o surgimento de cometas e de “estrelas novas” levantam dúvidas sobre o poder dos astros de influenciar a vida na Terra

Luís Miguel Carolino

Na gravura de 1647, representação do astrônomo polonês Johannes Havelius. Aos poucos, a Astrologia foi perdendo o status de ciência. (Biblioteca Nacional da França))

Depois de longo período de influência na vida de gente letrada e iletrada, a Astrologia foi perdendo o encanto, e até mesmo sua utilidade foi questionada. Novos rumos foram impostos a seus cultores nos séculos XVII e XVIII, num cenário recheado de críticas. Consumida e admirada na sociedade, ela chegou ao apogeu ainda na primeira metade do século XVII. Conquistou leitores do mundo moderno por causa das cartas celestes que previam o futuro das pessoas, bem como os almanaques astrológicos, com grandes tiragens. Na Europa, as práticas astrológicas eram amplamente cultivadas nas cortes; a influência celeste era motivo de teses nas universidades europeias e a Teologia se ocupou da discussão sobre seus limites.

Prova da imensa aceitação da Astrologia na sociedade europeia seiscentista foi, sem dúvida, a ampla circulação dos almanaques a partir das primeiras décadas do século XVII. Eram pequenas publicações com 16, 24 ou 32 páginas, vendidas por cerca de um décimo do salário semanal de um trabalhador manual. Como a proposta era divulgar as influências planetárias específicas para cada ano, eles eram publicados nas primeiras semanas de cada um. Em Portugal, por exemplo, a estimativa é que no início do século XVIII fossem vendidos 17.500 exemplares por ano. França e Inglaterra vendiam mais.

A parte mais importante dos almanaques astrológicos era o chamado juízo do ano, um prognóstico sobre a influência dos planetas, antecedido por um prólogo em que o astrólogo discorria sobre temas variados. Na sequência, a referência aos dias das quatro têmporas, ou seja, os dias em que se devia jejuar em cada estação do ano, e aos eventuais eclipses e conjunções daquele ano, a indicação do calendário das festas móveis, como a Páscoa, e das fases da Lua.

O astrônomo e astrólogo Cláudio Ptolomeu foi essencial no processo de estabilização dos conteúdos da Astrologia, que se estabelecera havia muito tempo. No século II da era cristã, ele sintetizou os conhecimentos astronômicos e as hipóteses astrológicas anteriores, codificando aquele saber num livro muito seguido durante os séculos seguintes: o Tetrabiblos. No início dos Seiscentos, essa era a fonte de conhecimento que servia de referência para publicações que tratavam das bases da Astrologia ocidental.

A natureza dos corpos celestes era diferente da dos terrestres. Essa concepção cosmológica serviu de base para Ptolomeu ao formular sua teoria. Astros e estrelas eram aparentemente imutáveis e, portanto, superiores aos corpos terrestres, sujeitos a constante mudança, nascimento e morte. Ptolomeu estabeleceu que determinado poder emanava dos astros e se difundia na região terrestre, provocando alterações nos quatro elementos primários que formavam a base da vida na Terra: fogo, ar, água e terra. O Sol agia sobre a vida na Terra, provocando o calor e a secura, enquanto a Lua fomentava o frio e a umidade na região terrestre. Saturno estava na origem do frio e da secura; Júpiter, do calor e da umidade; Marte, do calor e da secura; Vênus, do frio e da umidade; e, por último, a influência de Mercúrio provocava na Terra a secura e a umidade.

Determinados planetas eram considerados benéficos; outros, maléficos. A Lua, Júpiter e Vênus eram vistos como planetas benéficos, pois produziam uma síntese de calor e umidade com moderação. Pelo contrário, Saturno e Marte, pelo frio e secura excessivos que respectivamente originavam, concebiam-se como planetas maléficos. Ptolomeu atribuía ainda outras características aos planetas: diurnos ou noturnos, femininos ou masculinos.

Sobre esta base, estabeleceu-se um corpo complexo de princípios e regras que permitiam prever o temperamento das pessoas e, em certa medida, também a ocorrência futura de grandes eventos coletivos. De forma muito sucinta, o astrólogo, nas suas previsões, tinha de considerar o movimento e a posição relativa dos astros entre si, bem como a posição destes no zodíaco.

Um fato inesperado teve papel de relevo no início ao declínio do império astrológico. Foi o surgimento de cometas e de “estrelas novas” em fins do século XVI e no início do seguinte. Estes fenômenos, que inicialmente foram seguidos com particular entusiasmo pelas populações e explorados com sucesso pelos astrólogos, levantaram fortes dúvidas sobre o real poder dos astros de influenciar a vida na Terra. Se novos cometas apareciam nos céus, estes então não poderiam ser perfeitos. O debate cosmológico sobre as novidades celestes intensificou-se e levou a que a maioria dos filósofos e astrônomos reconhecesse, no fim do século XVII, que os céus eram corruptíveis, tal como a Terra. E, reconhecendo-o, aproximavam céus e Terra, abolindo a separação em que se baseava tradicionalmente a Astrologia. 

Essas dúvidas acabaram se juntando a outras de natureza mais teórica, que decorriam da proposta de Nicolau Copérnico (1473-1543), segundo a qual a Terra não estava no centro do universo recebendo as influências celestes, mas era, ela própria, um corpo girando em torno do Sol. O modelo cosmológico de Ptolomeu foi gradualmente substituído pelo modelo heliocêntrico, segundo o qual o Sol se encontrava fixo no centro do universo, girando a Terra e os planetas em torno dele, contribuindo para agravar a crise em que a Astrologia se encontrava no fim dos Seiscentos.

Se a estas razões juntarmos a crítica racionalista dos autores iluministas do século XVIII, que consideravam a Astrologia um conhecimento sem qualquer fundamento científico, é compreensível que a Astrologia fosse cada vez mais associada às crenças e superstições próprias das pessoas pouco letradas.

Astrólogos não assistiram de forma passiva à falência da sua ciência e do seu ganha-pão. Os mais letrados se empenharam em reformar o corpo teórico da Astrologia, numa tentativa de assimilar novas teorias e observações astronômicas. Exemplo deste movimento reformador é a Astrologia Gallica, livro escrito pelo francês Jean-Baptiste Morin, publicado em 1661.Por outro lado – o dos populares almanaques astrológicos –, assistiu-se a uma lenta diminuição dos conteúdos astrológicos, suplantados por informação de caráter mais prático e, sobretudo, por historietas e outra informação lúdica. A informação astrológica cedeu lugar à narração de histórias e aventuras de personagens de ficção. Lendo estes exemplares de literatura popular, os astrólogos tornaram-se seus críticos mais agudos. Foi assim que, por exemplo, num almanaque de 1735, Vitorino José da Costa apresentou, de forma jocosa, o seu astrólogo como “Cosme Francez, Sarrabal Saloio, Doctorinpartibus, Magisterinartibus, declaro por mim, e por todos os da minha faculdade, que tudo o que se lê neste, e nos mais Prognósticos, não é mais do que uma travessura da idea, uma ficção engenhosa; e pelo que respeita às predições dos tempos, revoluções politicas, e ameaços de enfermidades, uma ténue conjectura, ou para melhor dizer, uma mentira de 24 quilates, artificio de pobres vergonhosos, com que procuram garfiar a vossas mercês os vintens, que lhe não haviam de dar remédio de tantas fomes. Assim declaro, que neste papel tudo são patranhas [...]”.

A Astrologia deixara de ser ciência.
Luís Miguel Carolino é professor da Universidade de Coimbra, pesquisador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, UL/UNL, e autor de A escrita celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. (Access Editora, 2002)

Saiba Mais - Bibliografia
CAPP, Bernard. Astrology and the popular press. English almanacs, 1500-1800.Londres: Farber & Farber, 1979.
CORONA, Carmen. Lunarios. Calendarios Novohispanicos del siglo XVIII. Cidade do México: Publicaciones Mexicanas, 1991.
GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A mãe das batalhas

Há 90 anos, terminava o primeiro combate armado de escala global. O armistício, assinado em 11 de novembro de 1918, colocava ponto final a quatro anos das batalhas mais sangrentas que o mundo havia assistido até então. Durante o confronto, a indústria bélica lançou tecnologias inéditas e, pela primeira vez, populações inteiras foram afetadas diretamente pelas conseqüências da guerra. O saldo incluiu 20 milhões de mortos e igual quantidade de feridos.
Ilustração: Sandro Castelli

Os números impressionam. Mas, ao abordar esse tema, é importante lembrar que o ensino de História não tem a finalidade apenas de condenar os horrores do passado e incutir nos jovens o desejo de construir um futuro diferente. "Isso não se ref lete em aprendizado. Os alunos precisam entender como os fatos aconteceram e em quais contextos se inseriam - até para ter elementos e condenar as guerras no futuro", explica Daniel Vieira Helene, selecionador do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10.

No caso da Primeira Guerra Mundial, a contextualização pede um estudo cuidadoso sobre as causas do conf lito (veja o mapa da página ao lado). A Europa passava por um período de forte crescimento industrial e as grandes potências, em especial a Grã-Bretanha e a Alemanha, disputavam mercados. Também havia questões territoriais em jogo: Japão, Itália e Alemanha estavam descontentes com o número de colônias que controlavam. E o crescimento do nacionalismo, principalmente entre os bósnios (que buscavam a independência do Império Austro-Húngaro) e nos povos árabes (que queriam se libertar do Império Turco-Otomano), esquentava ainda mais os ânimos. Para completar o cenário, várias nações - Grã-Bretanha, França e, novamente, a Alemanha - estavam se armando e desenvolvendo novas tecnologias bélicas, como tanques, metralhadoras e armas químicas (veja os infográficos da próxima página). 

O estopim: um assassinato

O barril de pólvora estourou com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro. Em 28 de junho de 1914, em uma visita a Sarajevo, na Bósnia, ele e a esposa foram mortos por um nacionalista partidário da união com a Sérvia. O Império Austro-Húngaro culpou a Sérvia pelo crime e, um mês depois, declarou guerra ao país. A partir daí, foi uma bola-de-neve: para resolver antigos impasses, as potências também aderiram ao combate.
Ilustração: Sandro Castelli

Assim que cada nação alinhou seus interesses para se posicionar no conflito, formaram-se duas frentes: os Aliados (os principais eram Grã-Bretanha, França, Itália, Sérvia, Rússia e, mais tarde, Estados Unidos) e os Impérios Centrais (Alemanha, Império Austro-Húngaro, Império Turco-Otomano e Bulgária). Quando irromperam os combates mais violentos (veja a linha do tempo abaixo), a realidade da guerra chegou ao cidadão comum, que sofreu com os bombardeios, os racionamentos e a destruição de cidades (leia o plano de aula na página ao lado). Toda a população européia estava mobilizada em torno das batalhas, que receberam o nome de Grande Guerra - a expressão Primeira Guerra Mundial viria mais tarde, depois da Segunda.


A tecnologia no front

ARMAS QUÍMICAS 
Em 1915, os alemães lançaram gás cloro sobre as tropas aliadas. Seu efeito é devastador: se inalado, destrói os órgãos respiratórios. 

AVIÃO 
No começo, era usado em missões de mapeamento e observação. Mas logo integrou planos de ataque, com bombardeios sobre trincheiras e cidades. 

TANQUE 
Contra as metralhadoras, parte das tropas avançava em tanques blindados, que superavam arames farpados e trincheiras. 

SUBMARINO 
Usado para isolar os Aliados e responder a bloqueios da marinha inglesa, os submarinos alemães destruíram mais de 6,5 mil navios. 

METRALHADORA 
Disparando até 450 tiros por minuto, deixou as batalhas mais violentas e dificultou a aproximação dos adversários.

Morte globalizada

De fato, esse foi o primeiro conf lito de proporções globais. Os Estados Unidos, por exemplo, entraram nele em 1917, usando o pretexto do afundamento de navios por submarinos alemães (a verdade é que os aliados haviam contraído grandes dívidas com os Estados Unidos. Temendo um calote por causa da derrota, os americanos foram para a briga). Até mesmo o Brasil se viu obrigado a enviar tropas - foram 1.502 homens, no total. 

Ao fim de 1918, a paz, enfim, chegou, mas destinada a durar pouco. Com a vitória dos Aliados, as quatro principais potências do bloco (Estados Unidos, Inglaterra, França e Itália) reuniram-se em uma conferência em Paris e assinaram o Tratado de Versalhes. O documento, de 28 de junho de 1919, responsabilizou a Alemanha pela guerra e deu margem a um forte sentimento revanchista, que culminaria na Segunda Guerra Mundial. Outros tratados, como os de Trianon, Neuilly e Sèvres, também redesenharam a geografia da Europa (veja o mapa da página 101) e abriram as portas para conf litos locais. Prova de que a Liga das Nações, entidade internacional criada para evitar novos confrontos, havia fracassado. 

Pior: a sensação de humilhação dos perdedores deu força ao surgimento de ditaduras e movimentos de extrema direita, como o fascismo e o nazismo. A "guerra que prometia acabar com todas as guerras", como definiu o historiador Eric Hobsbawn no livro Era dos Extremos, fez do cenário mundial um berço para ainda mais desentendimentos e violência.


Seis momentos cruciais

jun/1914 
ASSASSINATO DE FRANCISCO FERDINANDO 
O Império Austro-Húngaro culpou a Sérvia por não impedir o crime e declarou guerra um mês depois. 

ago/1914 
BATALHA DAS FRONTEIRAS 
Entre a Alemanha e a França, diversas batalhas simultâneas resultam em 1,3 milhão de mortos para cada lado. 

abr/1917 
ENTRADA AMERICANA 
Respondendo ao afundamento de navios pelos alemães, os Estados Unidos enviam dinheiro e soldados aos Aliados. 

dez/1917 
SAÍDA RUSSA 
Após a revolução comunista de 1917, os russos assinam a paz com a Alemanha, que volta sua atenção ao front ocidental. 

ago/1918 
2ª BATALHA DO MARNE 
Com reforço americano, franceses e ingleses batem os alemães. A partir daí, os Aliados dominam as batalhas. 

nov/1918 
RENDIÇÃO 
Em 30 de outubro, o Império Turco-Otomano assina o armistício. Em 3 de novembro, é a vez do Império Austro-Hungaro. No dia 11, da Alemanha.
Daniel Vieira Helene 
Revista Nova Escola

Quem eram os centauros?



Eram seres fabulosos da mitologia grega, metade homem e metade cavalo, que habitavam as regiões da Arcádia (Peloponeso Central) e Tessália (sul da Macedônia). De acordo com a crença, teriam surgido de uma união proibida entre Íxion, rei da Tessália, e a deusa Hera, mulher de Zeus. Não há consenso sobre a formação do mito, mas é provável que tenha sido inspirado em tribos selvagens das regiões mais agrestes da Grécia ou mesmo em cavalarias nômades da Ásia Central (hunos, turcos, citas, cimérios ou sarmátios). A receita inclui, seguramente, o fascínio que os cavalos, viris e velozes, exercem sobre o ser humano desde a antigüidade. "A história dos centauros está quase sempre associada a episódios de barbárie", diz o historiador e mitólogo Cid Vasques, da PUC de São Paulo. Um dos qüiproquós atribuídos aos centauros aconteceu no casamento de Pirítoo, rei dos lápitas, quando, embaladas pela fartura de vinho, as bestas tentaram raptar ninguém menos que a noiva.
Os melhores e piores momentos dessa festa de arromba foram incluídos nos relevos do Partenon grego e, mais tarde, serviram de inspiração em obras de arte pagãs e renascentistas, colaborando para a manutenção do mito ao longo dos séculos. Não faltam histórias sobre a índole radical dos centauros, mas é certo que nem todos agissem como celerados o tempo todo. Há registros de que também sabiam se comportar com sabedoria, demonstrando habilidades especiais na equitação (por razões óbvias), caça, música e medicina. Um desses homens-cavalos, Quíron (ou Quirão), foi instrutor e professor de Aquiles, Heráclito, Jasão e outros heróis da mitologia grega.

Revista Mundo Estranho

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Revoluções de independência na América Hispânica: uma reflexão historiográfica



Maria Elisa Noronha de Sá Mäder
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)


"Desde que a traiçoeira conduta do Imperador da França arrancou da Espanha o mais amado de seus monarcas, o reino ficou acéfalo, e dissipado o princípio no qual unicamente podiam concentrar-se os verdadeiros direitos da soberania. [...] Fernando VII tinha um reino, mas não podia governá-lo; a monarquia espanhola tinha um rei, mas não podia ser governada por ele; e neste conflito a nação devia recorrer a si mesma para governar-se, defender-se, salvar-se e recuperar seu monarca1". Com estas palavras Mariano Moreno, político e jurista atuante no movimento de independência da região do Prata, manifestava sua opinião sobre os eventos vividos àquela época. Estávamos no ano de 1810, o chamado ano revolucionário, e ele falava da conjuntura iniciada com a invasão napoleônica da Península Ibérica em 1807. Apesar das inúmeras diferenças, este acontecimento provocou mudanças definitivas no mundo colonial ibérico. Seja em Portugal, onde a invasão napoleônica ocasionou a transferência da família real para o Brasil, seja na Espanha, onde ocorreu a chamada "acefalia do reino", com a deposição do rei Fernando VII, as colônias ibéricas viveram a partir daí uma fase de intensa experimentação política, na qual se construíram novos conceitos, palavras e projetos na tentativa de dar sentido às situações então vivenciadas.
Neste ano de 1810, surpreendentemente, os movimentos de independência se manifestaram na América Hispânica com enorme velocidade e assombrosa simultaneidade, do México, no vice-reino da Nova Espanha, a Buenos Aires, no vice-reino do Rio da Prata. Apesar das dificuldades de comunicação e das imensas distâncias físicas, esta sincronização revelava não só ecos dos acontecimentos externos, mas também o surgimento no interior da elite colonial de diversos, e muitas vezes contraditórios, posicionamentos e projetos políticos que visavam responder aos desafios impostos por este contexto político.
Em 1810, 18 milhões de habitantes viviam nas Américas sob o governo da Espanha. Destes, oito milhões eram indígenas originários do Novo Mundo; um milhão eram negros trazidos da África; cinco milhões eram mestiços; e a minoria de quatro milhões era de brancos, tanto espanhóis peninsulares, os chamados chapetones, como crioulos, isto é, brancos nascidos nas Américas. Estes últimos viviam uma contraditória situação: estavam no topo da sociedade colonial, mas, no entanto, desempenhavam um papel secundário ante os espanhóis peninsulares em termos de privilégios, acesso à riqueza, aos monopólios, à administração e às decisões políticas. Além disso, sentiam-se ameaçados pelas maiorias não-crioulas de índios, negros e mestiços.
Durante a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, o mundo espanhol sofreu uma grande transformação. Os reinados de Carlos III e Carlos IV (1759-1808) testemunharam o desenvolvimento de um pensamento político moderno ilustrado – que enfatizava a liberdade, igualdade, direitos civis, o governo das leis, a representação constitucional e o laissez-faire econômico – entre um pequeno, porém significativo, número de espanhóis-peninsulares e espanhóis-americanos. Baseadas nestas idéias as reformas bourbônicas, impostas pela metrópole espanhola às suas colônias americanas com os objetivos de aumentar a prosperidade econômica da Espanha e manter a sua hegemonia política, aumentaram o descontentamento de grande parte da elite colonial crioula. Ao enquadrar o mundo hispano-americano dentro de seus interesses, a Coroa ameaçava os múltiplos interesses locais desenvolvidos durante os três séculos de colonização, seus sentimentos de autonomia e de identidade.
O colapso da monarquia espanhola, em 1808, deixou essa minoria liberal em condições, sem precedentes, para implantar alguns destes objetivos. A abdicação forçada do rei da Espanha, unanimemente rejeitada pelos americanos e peninsulares abriu caminho para que estes assumissem os poderes detidos pelo rei e começassem a debater sobre o fundamento e o conceito de soberania, sobre a representação, a idéia de nação, e a necessidade de dar uma nova constituição à monarquia. Estes homens começavam a compartilhar sentimentos e a constituir um novo vocabulário político, capazes de fazer nascer uma modernidade política, tanto em termos de idéias como de ações que configurariam uma nova prática política no interior das sociedades coloniais. Uma verdadeira revolução que o tradicionalismo da monarquia espanhola não conseguiu pressentir tão próxima.
É a partir dessas afirmativas iniciais que proponho analisar como a historiografia tem pensado o caráter revolucionário dos movimentos de independência na América Hispânica. Na última década do século passado, diversos estudiosos retomaram o interesse pelo estudo dos processos de independência, elaborando novas abordagens que tratavam de temas como as origens ideológicas desses movimentos, seu caráter continuísta ou de ruptura com o período anterior, o papel da Constituição espanhola de Cádiz como inspiradora dos processos constitucionais americanos, o questionamento da figura dos caudilhos, entre outros. Estudos como os de José Carlos Chiaramonte, Túlio Halperín Donghi, John Lynch, Manuel Chust, Jaime Rodríguez, François-Xavier Guerra, Antonio Annino2, destacam-se nesta retomada do tema das independências, a partir de diferentes perspectivas e/ou diversas áreas geográficas. Trabalharei aqui mais de perto com o conceito de revolução e a análise empreendida por François-Xavier Guerra nos anos 1990, a partir da publicação de seu livro Modernidad y Independencias: ensayos sobre las revoluciones hispanicas3. Acredito que seu trabalho foi fundamental para trazer de volta o tema da revolução às discussões historiográficas sobre as independências na América Hispânica.
Para François-Xavier Guerra tanto a Revolução Liberal espanhola quanto as independências hispano-americanas foram um processo único que começou com o surgimento da modernidade em uma monarquia do Antigo Regime e vai desembocar na desintegração desse conjunto político em múltiplos estados soberanos. Quanto à natureza desse processo, tanto para seus protagonistas – sejam os espanhóis americanos ou os espanhóis peninsulares – quanto para uma antiga tradição historiográfica, trata-se, sem dúvida, de um processo revolucionário. A questão é que o consenso terminológico sobre o caráter revolucionário desses fenômenos escamoteia diferenças consideráveis que dependem dos diversos significados dados ao conceito de revolução. Assim, por exemplo, o caráter revolucionário daqueles acontecimentos vividos como certeza pelos seus protagonistas, tendeu a ser minimizado e tornou-se bastante problemático à luz de uma concepção de revolução entendida como uma radical transformação das estruturas sociais e econômicas, ou como o meio de chegada ao poder de uma nova classe social. Como deste ponto de vista as independências na América Hispânica trouxeram consigo poucas transformações substanciais nas estruturas econômicas ou sociais, a tendência de certa historiografia foi atenuar ou até negar seu caráter revolucionário. Assim, as revoluções de independência passaram a ser consideradas por muitos autores como um fenômeno de caráter puramente político – aqui entendido como a ruptura dos vínculos coloniais com a metrópole e também como a mera substituição no poder político dos peninsulares pelos crioulos –, e, portanto, de importância secundária no que diz respeito às permanências estruturais.
O mesmo ocorreu com relação à análise sobre o caráter revolucionário do processo iniciado em 1808 na Espanha. Apesar de constantemente reconhecido, este aparece sempre acrescido do adjetivo "liberal", com a intenção de qualificá-lo como uma revolução limitada, diminuindo a força da palavra revolução. O fato é que em ambos os casos, utilizando-se de critérios surgidos das interpretações clássicas da Revolução Francesa, elas são tratadas quase sempre como revoluções burguesas, realizadas na Espanha por uma burguesia revolucionária, e na América Hispânica por uma burguesia crioula.
Para François-Xavier Guerra esse tipo de interpretação não se sustenta mais, na medida em que "reduzir estas revoluções a uma série de mudanças institucionais, sociais ou econômicas, deixa de lado o traço mais evidente daquela época: a consciência que têm os atores, e que todas as fontes refletem, de abordar uma nova era, de estar fundando um homem novo, uma nova sociedade e uma nova política4". Importante observar os novos conteúdos semânticos imputados a estes termos: o homem novo é agora concebido como um indivíduo, livre dos vínculos da sociedade estamental e corporativa; a nova sociedade é uma sociedade contratual originada de um novo pacto social; e a novidade na política é a idéia da soberania encarnada no povo. A força e a amplitude com que estas transformações se impõem, criando profundas e irreversíveis rupturas, são observadas pelos próprios atores e aparecem englobadas por François-Xavier Guerra no conceito de modernidade.
O autor também questiona o problema de se afirmar que este novo sistema de referências tenha sido elaborado e imposto por um grupo social determinado e que este seja chamado de burguês. Entre os principais atores do processo revolucionário estão alguns burgueses, mas sua maioria é composta por clérigos, professores e estudantes, empregados públicos, profissionais liberais, nobres, etc., homens cuja característica comum não é uma mesma situação socioeconômica, mas seu pertencimento a um mesmo mundo cultural.
O importante a ressaltar é que apesar do termo revolução até então aparecer com freqüência na historiografia associado aos movimentos de independência hispano-americanos5, este parecia sempre indicar uma ausência, sendo construído a partir de uma concepção de história marcada pelo continuísmo e pelo conservadorismo. Partia-se de uma historiografia marcadamente nacionalista e liberal, que desde o século XIX utiliza o termo revolução como sinônimo de guerras de independência, ressaltando apenas a ruptura do vínculo colonial existente entre a metrópole e suas colônias. O conceito de revolução é utilizado aí de maneira pouco elaborada ou problematizado. Além disso, essa historiografia é marcada por uma postura anacrônica e teleológica, que pressupõe a existência de um nacionalismo que teria precedido o processo de construção dos estados nacionais, levando à crença de que a maioria das nações americanas já existia desde o momento da independência. Busca-se assim reconhecer nos movimentos de independência a origem dos estados nacionais que se formarão posteriormente ao longo do século XIX.
Manuel Chust e José A. Serrano, no livro que organizaram sobre as independências ibero-americanas6, referem-se ao predomínio desta historiografia liberal e nacionalista como um "consenso historiográfico" que vigorou até finais dos anos 1950 em grande parte do meio acadêmico ibero-americano. As historiografias das diversas repúblicas coincidiam no forte nacionalismo que impregnava todas as análises das guerras de independência da região. Para a maioria destes historiadores tratava-se de uma luta entre realistas e insurgentes, entre gachupines e patriotas, constituindo interpretações maniqueístas da independência, entre bons e maus, entre patriotas e traidores, posicionados a partir de sua adesão ou não à causa nacional. Construiu-se assim um discurso que se tornou hegemônico e que teve o sentido de unificar a história das sociedades ibero-americanas profundamente diversificadas étnica e socioeconomicamente, e com grandes contrastes regionais. As guerras de independência interpretadas assim à luz do nacionalismo se converteram em substrato histórico comum das nações ibero-americanas, produzindo uma importante síntese étnica, cultural, social e territorial.
Desta leitura adveio também uma concepção de povo como um ente homogêneo e sem fissuras, ou melhor, com algumas pequenas fissuras como a dos realistas ou "não nacionais", identificados aos espanhóis peninsulares em geral e a alguns grupos indígenas que se opuseram à "independência nacional", em contraposição ao "povo" que defendeu a independência da nação "oprimida por mais de trezentos anos de colonização". No caso dos espanhóis peninsulares – burocratas, eclesiásticos, militares, comerciantes monopolistas, etc. –, os vínculos de nascimento teriam prevalecido sobre os vínculos políticos ou econômicos. Quanto aos indígenas, a maior parte de suas comunidades permaneceu alijada dos processos de independência porque se tratava de uma guerra entre crioulose peninsulares, e também pela sua alienação, fruto de séculos de colonialismo e dominação. Esta concepção de povo contribuiu fortemente para o entendimento também pouco problematizado do caráter revolucionário dos movimentos de independência.
A idéia de revolução entendida como uma ruptura radical aparecia, no entanto, sempre relacionada ao processo de independência das treze colônias inglesas, a chamada Revolução Americana, e também, com mais desconforto pelo seu elemento mais radical, ao caso da independência do Haiti em 1804. Se na América Hispânica nada havia mudado, na América anglo-saxônica a ruptura havia ampliado a noção de cidadania e um inédito sistema político nacional, republicano e democrático havia sido instaurado naquele mundo. Além disso, a unidade territorial havia sido preservada, garantindo a estabilidade e a coesão daquele estado nacional. O processo de independência da Hispano-América era apresentado como o oposto a tudo isso. Contrariamente ele dera origem a repúblicas marcadas pela instabilidade, pelo fracionamento, pelo caudilhismo e pela desordem. Assim, por comparação, a noção de revolução como novidade ou ruptura era descartada, à medida que o grupo social que havia liderado a construção dos estados nacionais hispano-americanos era a elite crioula, grupo hegemônico desde os tempos coloniais.
Outra tendência historiográfica que merece destaque pela sua força e longevidade é a que apresentou a idéia de revolução apenas como a expressão de uma causalidade externa. Nessas interpretações as independências têm seu caráter revolucionário reconhecido pelo fato de terem sido parte integrante de um processo maior e inevitável de revoluções burguesas que afetaram todo o mundo Atlântico naquele período. Tendência forte nos anos 1950, período da Guerra Fria, quando o mundo capitalista liderado pelos Estados Unidos esforçava-se para conter os avanços do bloco socialista no contexto do pós 2ª Guerra. Essa historiografia de cunho liberal atribuía a um conjunto de causas gerais e externas aos próprios processos de independência a responsabilidade pela ruptura dos laços coloniais.
Os autores mais importantes associados a esta tradição historiográfica são Jacques Godechot (1956) e Robert R. Palmer (1959), em cujos trabalhos ressaltaram a "vocação burguesa" do "mundo Atlântico" na época das revoluções. Para esses autores, no contexto da crise do absolutismo que afetava o mundo europeu e metropolitano levando-o às revoluções, era natural que estas se generalizassem pelas colônias, incluindo aí as colônias inglesas, o que caracterizava a ocorrência de uma revolução "atlântica e burguesa". As idéias iluministas teriam desempenhado aí um papel fundamental fazendo que, quase que de maneira automática, as elites crioulas na Hispano-América as tivessem prontamente adotado como justificativa para a pronta ruptura. O conceito de revolução também aqui não aparece problematizado, pois pouca atenção era dispensada às características próprias dos processos internos de cada uma das regiões da Hispano-América e nem sequer se analisava como as idéias liberais iluministas foram apropriadas e re-significadas naquele outro ambiente intelectual.
A publicação do livro La Independencia de America Latina7 de Pierre Chaunu, no início dos anos 1970, romperá com esta visão ao formular uma análise que privilegia as contradições e complexidades internas da sociedade colonial como fatores importantes para explicar os movimentos de independência. A contraditória situação vivida pela elite crioula é aqui explicitada. Ela é o grupo social dominante na colônia pela sua condição econômica e social, mas ao mesmo tempo está excluída do acesso aos cargos administrativos, políticos e eclesiásticos, monopólio dos espanhóis peninsulares. Além disso, ela teme a maioria de negros, índios e mestiços, criando muitas vezes mecanismos de exclusão política e social, causando grande tensão racial. Chaunu inova também ao destacar o caráter de guerra civil destes movimentos, por envolveram realistas de um lado e patriotas de outro. Sua análise não deixa de valorizar os fatores externos, apontando a revolução liberal de 1820 na Espanha como o fator decisivo para a definitiva ruptura política e institucional com o império espanhol.
É interessante ressaltar que a historiografia produzida nos anos 1960/70, ao colocar em pauta uma nova agenda de investigação sobre as independências, representou uma ruptura importante com o "consenso historiográfico", a que nos referimos anteriormente, e veio a configurar o que se pode chamar de uma "historiografia revisionista"8. Nesses anos coincidiram muitos fatores políticos, econômicos, sociais e também acadêmicos, nos planos nacional e internacional, que tiveram grande impacto sobre os historiadores latino-americanos, norte-americanos e europeus que pesquisavam os movimentos de independência no mundo ibero-americano. Além do surgimento de uma nova geração de historiadores profissionais que questionava a ausência de rigor com que as fontes primárias haviam sido utilizadas até então, multiplicou-se o número de alunos nas carreiras de ciências sociais como as de História, Antropologia, Sociologia e Ciência Política, aumentando a diversidade das abordagens e a quantidade de teses, artigos, livros e resenhas sobre o tema das independências. O processo de descolonização pós 2ª Guerra Mundial e o triunfo da Revolução Cubana ajudam ainda a explicar o crescente interesse pela história da América Latina por parte de historiadores estrangeiros, em particular franceses e britânicos. É sabido também que nos Estados Unidos, nos anos 1960, muitos suportes privados e públicos foram destinados às universidades e centros de estudos, criando ou fortalecendo os chamados Latin American Studies.
A nova agenda investigativa que surge nesta época também foi profundamente marcada pelos debates gerados pela teoria da dependência e pelas diversas correntes do marxismo existentes na época. Essas interpretações colocaram na pauta de discussão conceitos como classes sociais, lutas de classe, dependência e, o que mais nos interessa, o conceito de revolução, suscitando questões relevantes para a análise dos processos de independência: houve alguma mudança nas estruturas econômicas e sociais coloniais? O que aconteceu foi uma "verdadeira" revolução ou uma simples reforma marcada pelo signo da continuidade? As massas populares eram simples atores sociais que seguiam passivamente os líderes crioulos insurgentes? O conflito era de classes, entrecrioulos – donos dos meios de produção – e as camadas populares, a favor da independência e contra a opressão espanhola, ou entre realistas e patriotas?
O importante é que, ao chamar a atenção para as contradições internas da sociedade colonial, interpretações como a de Pierre Chaunu abriram caminho para a valorização do caráter de ruptura e de novidade destes movimentos que aparecerá posteriormente nas abordagens historiográficas da década de 1980, e que ultrapassarão em grande medida os estudos marcados até então pela idéia de continuidade. Mas era necessário dar um passo adiante, precisando a natureza e as especificidades dessas mudanças e continuidades. As comemorações dos 200 anos da Revolução Francesa no final da década contribuíram definitivamente para a reavaliação do conceito de revolução, incentivando novos estudos sobre os movimentos de independência na América Hispânica.
François Furet em seu livro Pensando a Revolução Francesa9, publicado em 1978, reflete sobre o significado da revolução de 1789 e como ela foi pensada através dos tempos. Sua interpretação examina de forma crítica as correntes que dominaram a análise da revolução ao longo do século XX. Furet opõe-se à tradição de história comemorativa, que remonta a Jules Michelet – cuja interpretação, segundo o autor, vai pouco além da repetição dos argumentos dos próprios participantes da revolução –, e recupera a história conceitual, cujo paradigma se encontra em Aléxis de Tocqueville, que ele considera um dos únicos historiadores a propor uma conceitualização rigorosa da Revolução Francesa, fundada em uma crítica da ideologia revolucionária e daquilo que constitui, em sua opinião, a ilusão da Revolução Francesa sobre si própria. Ele também rompe com as interpretações situadas no horizonte do marxismo, propondo novas vias de compreensão do passado. Para Furet as interpretações marxistas da Revolução são produto "de um encontro confuso entre bolchevismo e jacobinismo", que se alimenta de uma concepção linear do progresso humano e que retoma com força as idéias do advento de um novo tempo e do mito da origem advinda de uma ruptura como constitutivas da própria Revolução, tal como foi vivida por seus atores e veiculada por seus herdeiros10.
A análise alternativa da Revolução Francesa proposta por Furet enfatiza tanto a importância das rupturas como a das continuidades no desenrolar do processo revolucionário francês. Sob a influência das idéias de Tocqueville o autor recupera o peso da permanência da tradição absolutista na Revolução, mas não deixa de analisar os elementos de ruptura subjacentes à instauração de uma política democrática que passou a ocorrer naquele tempo. A Revolução é pensada ao mesmo tempo como um processo histórico, conjunto de causas e conseqüências, e como acontecimento, uma modalidade de mudança e dinâmica particular de uma ação social coletiva.
A obra de Furet teve profunda influência na formulação da análise de François-Xavier Guerra sobre o conceito de modernidade e as independências da América Hispânica. Guerra procede desta mesma tradição historiográfica inovadora e teve entre seus interlocutores mais próximos, inclusive participando da sua banca de doutoramento11, alguns dos estudiosos do tema citados aqui, como Pierre Chaunu e François Furet. Desde cedo compartilharam os pontos de vista que privilegiavam tanto a longa duração na cultura hispânica, quanto a crise da modernidade na Europa e em seus impérios coloniais. Sua percepção do caráter revolucionário das independências hispano-americanas enfatizava também assim o seu duplo caráter: ser um processo e umacontecimento ao mesmo tempo.
Segundo Guerra, a partir de 1808, o mundo hispânico iniciou sua passagem para a modernidade política por um duplo caminho. De um lado a ruptura com o Antigo Regime, provocada pelas sucessivas abdicações reais, permitia experimentar e realizar novas formas de soberania e representação política. O primeiro passo nesse sentido foi dado pela formação, tanto na Espanha como na América, de Juntas de governo locais que invocavam o princípio legal hispânico de que a soberania, na ausência do rei, reverteria para os povos. De outro lado, essa conjuntura de crise abriu um espaço concreto para que novas e inesperadas experiências fossem vivenciadas, permitindo aos homens daquele tempo construir novos conceitos, palavras e projetos como respostas a estes desafios.
No interior desse processo de desintegração do império espanhol, François-Xavier Guerra identifica dois cortes cronológicos importantes. O primeiro deles o período entre 1808 e 1810, que ele denomina de ponto de mutação. "El período de que va de los levantamientos peninsulares de la primavera de 1808 a la disolución de la Junta Central en enero de 1810, es sin duda la época clave de las revoluciones hispánicas, tanto en el tránsito hacia la Modernidad, como en la gestación de la Independencia12".
Esse período é chamado por ele de ponto de mutação ideológica, momento no qual se trava pela primeira vez o duplo debate: sobre a natureza da representação que traz à tona a questão da igualdade política entre Espanha e América dentro do conjunto mais amplo da Monarquia, e sobre a natureza íntima da nação, a partir das novas referências surgidas no próprio contexto de desintegração do Antigo Regime. Nestes debates se inserem os questionamentos fundamentais sobre os conceitos de soberania e de representação. A ruptura estaria na quebra da antiga relação pessoal e recíproca existente entre os súditos e o rei, definida como uma relação binária. Também a concepção de nação como uma grande família se desintegrava a partir do desaparecimento da figura do rei.
Neste sentido se colocam dois problemas: de um lado, qual o direito que tinham as colônias (na visão dos peninsulares) ou qual o privilégio do outro pilar do império (na ótica dos americanos), de constituir suas próprias Juntas de governo; e, de outro, a igualdade de representação destes "membros do império" nos poderes centrais da monarquia, problema no qual se enfrentavam duas visões da monarquia: a dos peninsulares, unitária e desigual, fundada na Modernidade absolutista, e a dos americanos, plural e igualitária, fundada na tradição pactista.
Segundo François-Xavier Guerra, dois novos fenômenos viabilizaram essa mutação ideológica pelo continente americano: a abundante proliferação de publicações que tornava viável o acesso de uma boa parte da população às novas idéias liberais que passaram a circular mais no ambiente colonial hispano-americano; e o surgimento de novas formas de sociabilidade, como as tertúlias e os Clubes Literários, que passavam a constituir importantes espaços nos quais esse pensamento ilustrado era discutido. São esses novos espaços políticos que permitem que os homens daquele tempo compartilhem visões de mundo, sentimentos e projetos, constituindo um novo vocabulário político, capaz de gerar uma modernidade política.
O segundo corte cronológico identificado na obra de Guerra é delimitado pelo ano de 1810, ano em que as revoluções de independência foram desencadeadas. As vitórias francesas decisivas de 1809 provocaram a dissolução da Junta Central em janeiro de 1810 e a designação de um Conselho de Regência para atuar em seu lugar. A partir daí algumas províncias da Espanha e vários reinos da América recusaram-se a reconhecer o novo governo, questionando a legitimidade do Conselho e o seu direito de falar em nome da Nação Espanhola. Aruptura se dava então a partir destes acontecimentos detonando o processo revolucionário das independências.
A convocação das Cortes Generales y Extraordinárias em Cádiz, buscou responder às preocupações da maioria das províncias da Espanha e de muitas partes do Novo Mundo. O parlamento espanhol tentava assim proporcionar aos autonomistas americanos um meio pacífico para a obtenção do governo local. Mais ainda, os extensos debates naquele congresso, amplamente disseminados pela imprensa no período de 1810 a 1812, influenciaram significativamente tanto os espanhóis-americanos que apoiaram, como aqueles que se opuseram ao novo governo na Espanha13.
Os deputados da Espanha e da América, que promulgaram a Constituição de Cádiz em 1812, transformaram de fato o mundo hispânico. Esta Constituição não foi apenas um documento espanhol, foi igualmente americano – atendendo ao mundo atlântico em sua totalidade. Em verdade, pode-se dizer que, sem a participação dos deputados do Novo Mundo, dificilmente a Carta de 1812 tomaria a forma que tomou. Foram os seus argumentos e propostas que convenceram os espanhóis da necessidade de importantes reformas liberais, como no caso da criação de comissões ou delegações provinciais e da permissão para que cidades com mais de mil habitantes formassem ayuntamientos, transferindo assim o poder do centro para muitas localidades.
A Constituição de 1812 aboliu as instituições senhoriais, a Inquisição, o tributo pago pelas comunidades de índios e o trabalho forçado – como a mita na região andina. Criou um estado unitário com leis iguais para todas as partes da Monarquia Espanhola, restringiu substancialmente a autoridade do rei e confiou às Cortes o poder da decisão final. Ao conferir o direito de voto a todos os homens, com exceção dos de ascendência africana, sem requerer qualificações de renda ou exigir grau de alfabetização, a Constituição de Cádiz superou as dos demais governos representativos existentes à época – como Grã-Bretanha, Estados Unidos e França – no que se refere à extensão de direitos políticos para a maioria da população adulta masculina.
Em que pese à ampliação sem paralelos da representação política, guerras civis irromperam na América entre aqueles grupos que, insistindo na formação de Juntas locais, se recusavam a aceitar o governo na Espanha, e aqueles outros que reconheciam a autoridade da Regência e das Cortes, mantendo-se fiéis a elas. As divisões políticas entre os membros das elites mesclavam-se às antipatias regionais e tensões sociais, na exacerbação dos conflitos no Novo Mundo. Essa sucessão de eventos criou as condições para vivências definidoras de novos comportamentos e atitudes que, segundo Guerra, gestavam a modernidade política em seu sentido plenamente processual.
É hoje uma hipótese bastante trabalhada a idéia de que a fase crucial da transformação semântica que mudou profundamente as linguagens políticas e sociais no âmbito histórico-cultural do mundo ibérico se abriu com a crise dinástica, bélica e constitucional de 1807-1808, que afetou profundamente a ambas as monarquias ibéricas. Este momento decisivo deu início a um período de instabilidade que se prolongaria durante décadas. Tendo em conta a multiplicidade de ensaios constitucionais em toda a região, a dificuldade de fixar limites e fronteiras entre as unidades políticas nascentes que se atribuíam e disputavam entre si a soberania, o variável balanço, enfim, da transição entre o mundo tradicional e as novas práticas e categorias políticas ao longo do tempo, não é exagero caracterizar este período como um gigantesco laboratório aberto à experimentação política. Por tudo isso pode ser pensado como o do advento da modernidade na era das revoluções liberais e das independências.
Tratou-se aqui de desenvolver uma reflexão historiográfica que, sem pretender esgotar tema tão amplo e complexo, buscou analisar como a historiografia tem interpretado os movimentos de independência na América Hispânica, atribuindo-lhes ou não um caráter revolucionário. A idéia foi fazer um balanço de algumas das mais importantes abordagens historiográficas acerca do tema, em especial a análise empreendida por François-Xavier Guerra, destacando principalmente os diferentes conceitos de revolução e os múltiplos significados a partir dos quais estas são conformadas. É reconhecida a amplitude da influência das teses de Guerra nos inúmeros trabalhos publicados atualmente sobre o tema, mas é necessário também apontar para a existência de outros trabalhos inovadores e divergentes que vêm igualmente pautando os debates contemporâneos a respeito das independências no mundo ibero-americano14.
É indiscutível o impacto que a democratização, ocorrida no final dos anos 1980 e princípio dos anos noventa, e as críticas aos postulados da teoria da dependência, aos marxismos e à Escola dos Annales – teorias "estruturalistas" que sem dúvida marcaram as pesquisas históricas da Hispano-América –, tiveram sobre os temas de investigação, não só na historiografia, mas nas ciências sociais em geral. As questões da cidadania e da representação política, o liberalismo das Cortes de Cádiz, o papel dos realistas nas guerras de independência, a história dos grupos subordinados e o estudo da linguagem política, por exemplo, apresentam-se desde então com renovada e ampla força, como temáticas atuais que têm contribuído para o enriquecimento das múltiplas possibilidades históricas que se apresentaram à época e para o questionamento da tese da inevitabilidade das independências e, com ele, o do necessário processo de emancipação da nação.
A proximidade das comemorações dos 200 anos da invasão napoleônica e do início dos movimentos revolucionários de independência na América Hispânica tem incentivado um grande número de estudos sobre estes temas nos últimos anos. Os novos olhares lançados especialmente sobre a relação entre as independências e o conceito de revolução, parecem indicar a insuficiência das interpretações clássicas e a tomada de consciência das novas perguntas que podemos lançar ainda sobre esta época-chave para o mundo ibérico. Sem dúvida deste tempo em diante um conjunto de transformações se mostrou irreversível e modificou o porvir do continente americano radicalmente. Constituiu-se aqui um laboratório político e constitucional no qual, ao longo de várias décadas de convulsões e sobre as ruínas dos antigos impérios ibéricos, foi construído um novo mundo político cuja legitimidade se apoiava em um conjunto de noções (constituição, separação de poderes, representação nacional, opinião pública, soberania popular, etc.) que serviram de suporte para as instituições políticas erguidas em nossas sociedades durante aquele século, com todas as suas vicissitudes e descontinuidades. Um período particularmente rico em alternativas políticas e na constituição de sujeitos atuantes deve, certamente, continuar sendo um tema de debates gerados a partir de questionamentos colocados por um presente sempre pronto a trazer novas indagações ao passado.

clicar no link para ver 
Referências Bibliográficas
Revista USP