sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A Tragédia de Pompéia

Nas horas que se seguiram à erupção do Vesúvio, morreram 16 mil habitantes de Pompéia, praticamente 80% de toda a população.
por René Guerdan
Cinzas e lama moldaram os corpos das vítimas, permitindo que fossem encontradas do modo exato em que foram atingidas pela erupção do Vesúvio, cujo vulto vê-se ao fundo


Nas horas que se sguiram à erupção do Vesúvio, morreram 16 mil habitantes de Pompéia. Hoje, é possível reconstituir esta tragédia passo a passo, como se estivéssemos presentes.

Pompéia, uma cidade de 20 mil habitantes, produtora de vinho e azeite, vive hoje, 24 de agosto de 79 d.C., um dia de festa. Um grupo de teatro vindo de Roma deve se apresentar no Grande Teatro. Começando por volta das 11 horas da manhã, o espetáculo deve durar, como sempre, até a noite. São um pouco mais de dez horas.

Os padeiros, com suas cestas de doces nos braços, se dirigem às arquibancadas. Diante das thermopolia, bares ao ar livre da Antigüidade, os consumidores terminam de beber suas últimas taças de posca e as lojas começam a descer as persianas de madeira, sinal de fechamento. O dia está bonito e, como na véspera, se anuncia quente.

De repente, ouve-se uma explosão. Espanto! Num instante, todos estão na rua. Espetáculo alucinante, o topo do Vesúvio havia se partido em dois. Uma coluna de fogo escapa dali. É uma erupção! De início, todos se assustam e se interpelam. Havia pelo menos 900 anos que o vulcão não dava sinais de vida. Dizia-se que ele estava extinto. Logo depois é a agitação. Em volta começa a desabar uma chuva de projéteis: pedras-pomes, lapíli e, às vezes, pedaços de rochas - fragmentos arrancados do topo da montanha e da tampa de lava resfriada que obstruía a cratera.

Num instante, as praças e ruas se esvaziam. Aqueles que não moram no bairro correm para se refugiar sob uma abóbada, um pórtico, qualquer abrigo, enquanto outros se apressam em correr para se proteger em casa. O que fazer, pensam, a não ser esperar? O bombardeio terminaria mais cedo ou mais tarde. Durante 20 minutos, a erupção faz misérias, cobrindo a cidade com 2,60 metros de escórias. Em seguida, uma poeira arenosa toma o lugar das pedras-pomes e os lapíli diminuem. A esperança aumenta. Alguns audaciosos arriscam até a colocar o nariz para fora. Do Vesúvio sai somente uma coluna de fumaça. Mais um pouco de paciência e tudo deverá voltar ao normal.

DESTRUIÇÃO

Assim, duas horas se passam. O que fizeram os habitantes de Pompéia durante este período? Não se sabe muito. Em compensação, sabemos o que fez o Vesúvio. No interior da cratera, após a expulsão da tampa de lava, a pressão começou a cair vertiginosamente. O magma vulcânico, que dormia há séculos, começou lentamente a espumar e, às 13 horas, rasgando o ar, destruindo as casas, virando de ponta-cabeça as colunas dos pórticos, saiu bruscamente numa série de explosões. Do vulcão vê-se escapar uma nuvem monstruosa em forma de pinheiro - um cogumelo, como nós diríamos hoje. E, subitamente, fez-se noite em pleno dia. Uma noite marcada com alguns raios lívidos. As cinzas agora caem na forma de uma chuva tão densa que obscurece o sol.

Infelizmente, a chuva não é somente densa: ela está carregada de vapores clorídricos. É pela intoxicação por gás, e não por soterramento, que morrerão as pessoas em Pompéia. A primeira guerra química contra o homem foi feita pelo Vesúvio. Só agora, enfim, os habitantes de Pompéia decidem fugir. Mas eles haviam perdido duas horas preciosas. Abandonando seus abrigos, suas casas, tomando ou não o cuidado de levar consigo seus tesouros, milhares se dirigem às portas da cidade nesta noite negra.

Aqueles que moravam no noroeste se precipitaram naturalmente para a porta de Herculanum. Alguns carregavam diante de si uma lâmpada a óleo, como se uma chama pudesse resistir algum tempo àqueles ventos, àquela chuva viscosa de cinzas. A maioria colocou sobre a boca uma almofada ou uma telha encontrada pelo caminho. Mas será que alguém pode se defender contra um inimigo que se insinua em todas as partes através de uma fina poeira carregada de vapores clorídricos?
Nessa escuridão varrida por um vento de tempestade, fragilmente iluminada de vez em quando por projéteis de fogo, não há mais pobres ou ricos. Somente sombras que se debatem, desesperadas, umas contra as outras e que tropeçam nas escórias ou sobre o corpo de alguém agonizando após ter sido abatido pelo furor do Vesúvio. Em sua pressa de chegar mais rápido, alguns chegaram até a tirar as roupas e correm nus.

À porta! Chegar até ela antes que os destroços voando das casas nos derrubem, antes que a chuva de cinzas nos asfixie! E à porta, à porta miraculosa, a maioria chegará. Mas não será a porta do Paraíso, será a porta do Inferno!

O vento soprava do noroeste e vinha do Vesúvio. Sair pela porta de Herculanum significava ir em sua direção, ou seja, jogar-se numa tempestade que nenhuma construção ou abrigo poderia amenizar. Sufocados e cegos, aqueles que depois de tantos esforços tinham conseguido atravessá-la têm apenas um desejo: dar meia- volta e encontrar o que, no instante anterior, parecia o paroxismo do horror. Mas como lutar contra a multidão que sobe? Mulheres, crianças tentam e são imediatamente pisoteadas.

ABRIGO

E assim, por ironia, em meio ao pânico generalizado, é nos jazigos pelo caminho que os vivos vão buscar abrigo. Uma mulher que carregava uma criança corre para se abrigar num mausoléu, mas este desaba sobre ela. Um grupo de quatro pessoas, dentre as quais uma mulher ricamente enfeitada - apertando um bebê contra o seio -, se refugia com pressa sob o pórtico de uma tumba. Mas o pórtico também desaba e mata a todos. A Via dos Sepulcros nunca mereceu tanto o seu nome como neste dia! Os banqueteiros se reuniram num triclínio fúnebre. Estendidos sobre seus leitos de repouso, eles honram a morte. Celebrando o soterramento de um parente, é o deles próprios que terminarão por celebrar.

Mas voltemos à multidão desesperada que procurava chegar até as outras portas da cidade. No sudeste, a porta Marina estava particularmente lotada. Longe do Vesúvio e da direção do vento, ela levava ao mar aberto, à salvação. Primeiro passaram por ela todos os que passeavam ou trabalhavam no Fórum, ou ainda aqueles que tinham ido banhar-se nas termas. Em seguida, no momento do pânico geral, veio juntar-se a eles a multidão que tinha abandonado as casas e os casebres. Cheia de esperança, a massa de fugitivos despenca para além da porta, pela ladeira que conduz ao Sarno, e depois segue pelo caminho que acompanha o curso do rio.

Ontem, nesse mesmo caminho, quando ocorrera a procissão de Ísis, muitas e muitas vezes eles pararam ali para rir, cantar e descansar. Hoje correm o mais rápido que lhes permitem os montes de entulho. Vários tropeçam, sem dúvida, mas logo se levantam, pois a menos de um quilômetro encontrarão o mar, um barco e a fuga. Enfim, ofegantes, os primeiros fugitivos chegam ao porto. Ao porto? Ondas de vários metros de altura batem na areia. O mar está muito agitado. Navegar? Como e com o quê? Todos os barcos foram destruídos. Desse lado não há saída. Então novamente se produzem as cenas de confusão cujo teatro é a porta de Herculanum. Aqueles que queriam dar meia-volta deparam com a massa que tenta descer.

DESESPERO

Na noite escura, no meio de assovios do vento que, à beira do mar, recobrou toda a sua fúria, eles se esmagam uns contra os outros. Muitos morrerão pisoteados. Morte relativamente doce, no entanto, se pensarmos que, nessa mesma margem, todos os sobreviventes terminarão com os pulmões tomados de gases. Não havia porta de salvação para os habitantes de Pompéia. Chance de salvação só houve para aqueles que moravam no sul e no sudeste da cidade. E, ainda assim, somente se eles não tivessem demorado para fugir e, durante a fuga, tivessem passado pela porta de Nocera em vez da porta de Stábia. A porta de Stábia também tinha sido soterrada. Mas essa dupla condição foi poucas vezes encontrada. Desse lado, portanto, foram igualmente numerosas as cenas de desolação.

Na grande palestra (ginásio), a erupção surpreendeu os pedreiros em pleno trabalho. Durante alguns instantes eles permaneceram sob os pórticos. Em seguida, um deles teve uma idéia: a latrina. Ela poderia, com efeito, representar um abrigo seguro contra o bombardeio das escórias. Eles correram para lá e se trancaram. No início, demonstraram altruísmo. Quando outros que tiveram a mesma idéia vinham bater na porta, eles abriam. E assim, rapidamente eles se julgaram bastante numerosos e não abriram mais. Quantos, rejeitados desta forma, morreram esmagados pelas colunas do pórtico vizinho? Não se sabe com certeza. De qualquer modo, a julgar pelas ossadas, foram muitos. Mas foi possível reconstituir a agonia de três pessoas, pois, ao asfixiá-las, as cinzas moldaram seus corpos.

Os operários que tinham se trancado não foram salvos por seu egoísmo. Em sua latrina estavam abrigados do bombardeio de escória, mas não da chuva de cinzas. Quando esta se infiltrou, todos pereceram, até o último. Mas muitas outras ossadas foram encontradas no interior e nas proximidades da grande palestra - inclusive mais aqui do que em todos os outros lugares, mostrando que mesmo nesse bairro rico, assim como nas insulae pobres, a maioria não pôde se salvar a tempo. Quando a erupção começou, eles se fecharam, como os ricos, em suas casas. Depois a chuva de cinzas começou, então fugiram. Em família, em grupos patéticos de quatro, cinco ou seis pessoas: o pai, a mãe e os filhos.

Às vezes duas famílias - sem dúvida vizinhas de porta - se uniram, como se este fato tornasse a salvação mais segura. Quando tinham o cuidado de levar consigo seus tesouros, estes não representavam grande coisa: algumas jóias de pouco valor, pouco dinheiro, às vezes absolutamente nada. Pessoas simples, portanto, que, antes de sufocar, caíam ou se lançavam de boca no chão.

Mesmo a porta de Nocera não foi para todos a porta da salvação. Um jovem casal chegou até ela e conseguiu mesmo atravessá-la. Como os outros, os dois se trancaram em casa durante o primeiro bombardeio de pedras-pomes. Agora, para avançar, tinham de lutar contra essa tempestade de cinzas que cega, que se cola à pele e queima a garganta. Grande, vigoroso, com corpo de atleta, o homem caminha na frente, tentando abrir passagem para sua companheira em meio dos montes de lixo. De repente, a mulher cai com o rosto no chão e não consegue mais se levantar. O homem quer ajudá-la, mas também cai. Num último esforço, suas mãos tentam unir-se, mas a chuva de cinzas lhes nega este último favor.

Mas de todas estas histórias da porta de Nocera o mais patético é, sem dúvida, o que segue. Trata-se de 13 pessoas que formavam três famílias - duas famílias de fazendeiros e a família de um comerciante. Eram vizinhos que moravam perto e, provavelmente, se entendiam muito bem. Quando o bombardeio começou, eles conversaram e decidiram se refugiar na casa mais sólida. Depois, quando a chuva de cinzas começou decidiram fugir. Todo o campo já estava coberto de uma mortalha de detritos. Cegos, sufocando, eles pegaram o caminho que passava diante de suas casas. Em primeiro lugar vinha um escravo levando nos ombros um saco de provisões. Atrás dele, dois meninos de 4 a 5 anos caminhavam de mãos dadas para dar coragem um ao outro; tinham colocado sobre eles um pedaço de tela e eles procuravam colocá-la sobre a boca. Em seguida vinham seus pais, o pai ajudando a mãe, sem dúvida uma inválida, a continuar a caminhar. A segunda família era composta de um jovem casal e de uma menina. Cada um protegia a boca com um pedaço de tecido. Enfim vinha a família do comerciante: duas crianças com 10 anos que também estavam de mãos dadas, uma menina mais nova que a mãe conduzia e depois o pai.

E estas 13 pessoas, nessa tempestade de cinzas, nessa noite escura, no meio da escória, continuavam seu caminho. Como poderiam pensar em escapar com crianças tão pequenas? Eles continuavam porque o homem não se resigna facilmente à idéia de morrer imóvel.

RESQUÍCIOS

Vinte séculos mais tarde, nós os encontramos, modelados pelas cinzas, na mesma posição, com as expressões de seus últimos momentos, uns curvados sobre si mesmos, outros estendidos, seja de costas, seja com o rosto contra a terra. Os meninos de 4 a 5 anos tinham as feições calmas; as crianças com 10 anos, os membros entrelaçados, ainda segurando as mãos uma da outra. Quanto ao mercador, caído sobre os joelhos, o braço direito apoiado na terra, as costas estendidas, tentava ainda se levantar quando a morte tomou conta dele.
Tais foram, portanto, as tristes histórias que as diversas portas contaram aos escavadores quando estes as descobriram.

Mas as casas tiveram igualmente inúmeros dramas para contar, pois muitos dos habitantes de Pompéia não se resignaram a abandonar seus bens. Quantos esqueletos intactos ou mutilados foram encontrados nas casas! No subsolo, no térreo, no primeiro andar e mesmo sobre os telhados, já que alguns não hesitaram em subir para a parte mais alta de suas casas, na tentativa de escapar à invasão crescente dos resíduos.

Na propriedade chamada de Diomedes, no Caminho das Sepulturas, o pai fez sua família descer ao porão: uma galeria cuja iluminação provinha de aberturas em sua abóbada e onde ele conservava suas ânforas de vinho com as pontas enterradas no chão. Na pressa, sua mulher passou em volta do pescoço um pesado colar de ouro e nos braços, pulseiras. Sua filha também colocou suas jóias mais preciosas; ele mesmo colocou numa sacola todo seu dinheiro líquido: dez moedas de ouro e 88 moedas de prata com a efígie de Nero, Vitélio e Vespasiano.

E, com boas provisões de pão, frutas e outros alimentos diversos, eles esperam. As horas passam. Eles estão seguros, ou pelo menos acreditam estar. Mas o ar começa a piorar cada vez mais. O pai decide investigar. Com uma chave na mão, seguido por um escravo, ele sai. Uma vez do lado de fora, a chuva de cinzas o sufoca imediatamente. Ele morre. Mas os reclusos da galeria não serão protegidos tampouco.

Impalpável, a cinza não pára de penetrar pelas aberturas, cinza carregada de vapores clorídricos. A moça tenta em vão proteger a cabeça com sua túnica, e os companheiros tentam, também em vão, cobrir o nariz e a boca com tecidos. Séculos mais tarde, os 18 esqueletos serão descobertos, incluindo o de uma criança.

Uma descoberta mais surpreendente ainda aconteceu um pouco mais longe, na propriedade chamada de Mistérios. Na entrada da galeria subterrânea onde se refugiaram os operários que trabalhavam em sua reforma os escavadores foram obrigados a recuar imediatamente. Após tantos séculos, os vapores deletérios ainda estavam ali. Tão presentes que só foi possível enfrentá-los com máscaras contra gás.

Durante todo o dia 24 e todo o dia 25, e ainda no dia 26, a chuva de cinzas não parou. Quando, enfim, na aurora do dia 27, o sol reapareceu, o Vesúvio tinha mudado de forma. Ele possuía agora um topo duplo e, no lugar da antiga cratera, um cone havia se formado. Quanto aos habitantes de Pompéia, 80% deles - 16 mil numa população de 20 mil - jaziam a vários metros de profundidade. A cidade estava morta, mas uma morte que a tornaria imortal.

-Tradução de Mariana Teixeira

René Guerdan é historiador.

Revista Historia Viva




São Bartolomeu : O Massacre em nome de Deus

O reinado de Carlos IX é conturbado, marcado pelos conflitos entre católicos e protestantes. Os vacilos do soberano resultam numa carnificina que praticamente dizima os huguenotes.
por Georges Bordonove

O rio Sena, banhado de sangue, como cemitério a céu aberto - O massacre de São Bartolomeu, agosto de 1572, em gravura anônima do século XVI

O ano é 1572. Carlos IX tem 22 anos, e seu reinado é conturbado devido aos conflitos que opõem católicos e protestantes. A conjuração de Amboise precedeu, um pouco, sua coroação, em 1560.Os grandes do reino, como os Montmorency, os Guise e os Bourbon, disputam o poder sob o pretexto da religião e em nome de um jovem monarca que pretendem derrubar. Catarina de Médici, a rainha-mãe, joga uns contra os outros para garantir a herança de Henrique II e lograr um modus vivendi entre as duas facções. Apesar da derrota imposta pelo duque de Anjou, irmão de Carlos IX, nas batalhas de Jarnac e de Moncontour, os calvinistas conseguem recompor suas forças. Tendo por capital La Rochelle, chamada de a "Jerusalém Marítima", eles formam um estado dentro do estado, sob a autoridade do almirante Gaspard de Coligny, da rainha de Navarra, Joana d´Albret, e de seu filho Henrique (futuro Henrique IV). Eles têm agentes diplomáticos, exército, armada, finanças e, como aliados, a rainha Elizabeth da Inglaterra e seus correligionários de Londres.

São uma ameaça crescente à autoridade real, ou o que resta dela. Mas a rainha-mãe, cujo otimismo não fica aquém de sua tenacidade, não se desespera. Ela decide dar sua filha Margot como esposa a Henrique de Navarra. Acredita piamente que esse casamento terá o condão de reconciliar os franceses. Ela pretende também conseguir a conversão do futuro genro e, com isso, enfraquecer o partido calvinista, mas se choca com a intransigência de Joana d\\'Albret. Para abrandar a rainha de Navarra e tirá-la do prumo, ela necessita do apoio de Coligny. É com essa perspectiva que convoca o almirante a comparecer à Corte.

Carlos IX venera a mãe - um pouco demais, talvez -, mas suporta cada vez menos governar à sua sombra, e ainda ser um rei de fachada e ver seus feitos e gestos incessantemente controlados e suas iniciativas contrariadas. Além disso, ele sofre por não ser o filho predileto. Catarina idolatra o duque de Anjou, a quem chamam Monsieur. Ela assegurou sua fortuna e sua glória, sob pretextos falaciosos e em detrimento de Carlos, o filho mais velho, que se vê obrigado a conceder ao irmão o título de intendente geral do reino com poderes exorbitantes. Carlos tem fibra militar. Ele sonha imitar seu avô Francisco I e superar seu pai Henrique II.

É precisamente esse filão que o almirante vai explorar. Catarina assumiu um grande risco ao chamá-lo à Corte, porque, entrando no jogo, ele aposta no jovem rei. Escuta-o com atenção respeitosa, infla sua ambição, atiça seu ódio contra Filipe II da Espanha - assim, ganha sua simpatia. Carlos sente prazer em conversar com esse homem maduro. Não partilha de sua fé, mas admira sua coragem. O almirante o aconselha a governar sozinho, já que ele tem o poder, a idade e as capacidades para desafiar a rainha-mãe e sua roda excessivamente italiana, e, sobretudo, Monsieur que, campeão do catolicismo, está a serviço de Filipe II. Coligny lhe repete que ele tem o estofo de um grande rei, de um conquistador, e que lhe basta querer. Essas palavras são um bálsamo para o coração ulcerado de Carlos, que passa a nutrir um sentimento quase filial pelo almirante, a quem chama de "meu pai", certo de ter encontrado nele a figura paterna que perdera muito jovem, o conselheiro que tão penosamente lhe faltara. Quando admite entre seus familiares os auxiliares do almirante, Briquemault, Rohan, Téligny, La Rochefoucauld, os cortesãos começam a se agitar, cogitando se não estará disposto a abjurar a religião romana.

O Plano abandonado
O almirante tece pacientemente a sua teia, vislumbrando que logo terá influência para levar Carlos IX a apoiar os rebeldes flamengos contra Filipe II, com o risco de provocar uma guerra com a Espanha. Uma ocasião logo se apresenta. Em abril, um vasto movimento de revolta incendeia a província de Zelândia. Os rebeldes imploram a ajuda da França e da Inglaterra. Coligny convence o rei a autorizar Ludovico de Nassau a montar uma tropa. Carlos doa-lhe dez mil francos. Em 29 de maio, Nassau toma Mons e Valenciennes.

Entretanto, o marechal de Tavannes e o duque de Longueville, ambos militares experientes, entram na disputa. Eles declaram a Carlos que com a ajuda aos rebeldes flamengos ele expõe seu reino a um perigo maior. A França é incapaz de sustentar uma guerra que pode se prolongar por muitos anos. Sua economia está enfraquecida, seu exército reduzido e dividido. O rei está confuso, ainda mais que duvida da lealdade de Monsieur, em caso de conflito.

A rainha-mãe o resgata da perplexidade. Ela representa uma de suas grandes cenas, cujo segredo domina. Em lágrimas, censura-lhe a ingratidão e a imprudência: se perder essa guerra, seu reino será no mínimo desmembrado e submetido por muito tempo à Espanha; se ganhar, ficará a reboque dos huguenotes. Ela ameaça abandonar os negócios reais e se retirar para Florença se ele persistir no projeto. Mas Coligny introduz um novo argumento: a guerra estrangeira é o único meio de reconciliar os franceses. Se Carlos IX alcançar a vitória, ele anexará Flandres e será reconhecido como o maior soberano da Europa. Nas sessões de 16 e 26 de junho, o conselho do rei examina a questão e rejeita o projeto do almirante. Rejeição confirmada no dia seguinte por um conselho puramente militar. Coligny não desiste: "Senhor, como o conselho destas pessoas persuadiu Vossa Majestade, não posso mais me opor a vossa vontade, mas estou seguro de que vós vos arrependereis".

A AGITAÇÃO ESTÁ NO AUGE. UNS FALAM EM DEGOLAR OS GUISE. OUTROS PRESSIONAM COLIGNY A DEIXAR A CAPITAL. O REI LHE PROMETERA JUSTIÇA E MERECE SUA CONFIANÇA

A 12 de julho, Carlos IX permite que um contingente expedicionário parta da França para socorrer os rebeldes sitiados em Mons. É simplesmente esmagado pela tropa espanhola. Nos dias 9 e 10 de agosto, durante uma reunião do conselho, o plano de guerra é definitivamente abandonado. Coligny declara: "O rei se recusa a empreender essa guerra. Queira Deus que não lhe aconteça outra da qual não estará em seu poder omitir-se". Palavras desastradas, ameaçadoras até, que não impedem Catarina de partir para Monceaux, para junto da cabeceira de sua filha, a duquesa da Lorena. Ela considera o caso encerrado. Ademais, o almirante se comprometera a não fazer nada sem preveni-la. Nessa falsa segurança, ela pode, no ócio, ocupar-se dos preparativos para o casamento "misto". O almirante, porém, trai seu juramento. Estimula Carlos IX, dizendo-lhe que é livre para seguir ou não o voto de seus conselheiros. O rei quer a guerra, mas se recusa a ser empurrado: ele escolherá o seu momento.

Quando a rainha-mãe retorna a Paris, constata que o rei prossegue nos preparativos de guerra e que um contingente de arcabuzeiros está a caminho da Picardia. Então, seu filho ingrato a enganou mais uma vez, cedendo às pressões de seu grande amigo. Razão a mais para acabar com o sujeito. Ela entra em contato com Ana d\\'Este, duquesa de Nemours, viúva de Francisco de Guise, que fora assassinado em 1563. O jovem duque Henrique de Guise jurou vingança pela morte de seu pai e responsabiliza Coligny. Catarina avisa que o rapaz tem carta branca para agir e ele, mesmo contra a vontade da mãe, aceita. Agora as coisas andam depressa. Monsieur encontra o duque de Guise. Juntos eles fixam a data, a hora e o lugar da execução. Eles escolhem o matador, um certo Maurevert, atirador de elite.

O casamento de Henrique de Navarra com Margot se desenrola sem incidentes, apesar da hostilidade dos parisienses. Monsieur e sua mãe aplacaram as desconfianças dos senhores huguenotes, que comparecem para homenagear Henrique de Navarra. Alguns partem antes do fim das festividades. O almirante permanece. O rei lhe prometera resposta sobre a declaração de guerra, em quatro dias. As advertências, porém, se multiplicam. Há rumores sinistros, mas além da coragem, Coligny tem guarda pessoal.

Na sexta-feira 22 de agosto, ele se apresenta no Louvre. O conselho, presidido por Monsieur na ausência do rei, termina às 10 horas. Ao sair do palácio, Coligny encontra o rei, que vai para o seu jogo de péla. Depois se retira e envereda pela rua da Poulies: é o caminho mais curto para chegar a sua casa, na rua de Béthisy. Uma guarda de 15 cavalheiros o escolta. Ele lê uma petição, sempre mascando seu palito. Maurevert está de tocaia atrás de uma janelinha. Estouram dois tiros. Naquele instante o almirante se abaixara para amarrar um de seus sapatos. Uma bala estraçalha-lhe um dedo; a segunda se incrusta em seu braço. Ele exclama: "Vede como são tratadas as pessoas de bem na França!". Ele é levado até a rua de Béthisy e Ambroise Paré, o célebre cirurgião, é convocado às pressas. Avisado, Carlos IX, furioso, volta para o palácio. Toma imediatamente três medidas provando que ignora tudo sobre o complô: a abertura imediata de um inquérito, a evacuação das casas vizinhas à residência de Coligny, a interdição do porte de armas nas ruas de Paris.

Para a rainha-mãe e Monsieur, o fracasso do atentado é uma catástrofe. Eles jamais tinham imaginado que Maurevert pudesse falhar. O rei decide, um pouco mais tarde, fazer uma visita a Coligny, favor insigne! Catarina recupera então o sangue frio e o gênio. Ela propõe que toda a Corte acompanhe o rei, a fim de homenagear o ilustre ferido. Está certa de que os Guise se absterão, convidando assim a vindita dos huguenotes, mas essa comédia não alcança o resultado esperado. Ao contrário, redobra as desconfianças dos huguenotes. A velha soberana está enrascada. O inquérito determinado pelo rei levará direto a Henrique de Guise e, deste, a Monsieur e sua mãe.

Na rua de Béthisy a agitação está no auge. Uns falam em degolar os Guise. Outros pressionam o almirante para deixar imediatamente a capital. Ele se recusa. O rei prometera-lhe justiça e merece toda sua confiança. Rejeita, porém. a oferta que Carlos lhe faz para se hospedar no Louvre ou no castelo de Vincennes. Pouco depois, Henrique de Navarra e o príncipe de Condé se apresentam ao rei. Eles exigem o total esclarecimento do atentado e uma punição severa. O soberano responde que o inquérito está em curso. Ele reitera a ordem de reagrupamento dos senhores huguenotes da rua de Béthisy para garantir a segurança do ferido e oferece aos dois príncipes a sua suíte pessoal no palácio. O rei escreve aos governadores de suas províncias para lhes informar do infame atentado que vitimou Coligny e imputa, com certa precipitação, a responsabilidade ao duque de Guise.

A Noite interminável
Encerrada em seu quarto, a rainha-mãe está sobre o fio da navalha. Ela teme a cólera de seu filho, quando ele souber da verdade. Ele é bem capaz de apunhalar o irmão. Ela não teme menos a vingança dos huguenotes. A noite interminável transcorre nessa angústia. Na manhã de 23 de agosto, o rei recebe um enviado de Coligny. Este lhe pede a guarda prometida para vigiar a rua de Béthisy. O rei concede. Monsieur, que assiste à audiência, designa o capitão Casseins, criatura dos Guise. A chegada de Casseins e de 50 homens reacende a ira e a inquietude dos huguenotes. Seguem-se discussões acaloradas das quais participam dois "espiões", Bouchavannes e Gramont. Estes correm ao Louvre para informar a rainha-mãe de um complô que se prepara: no dia 26 de agosto, 4.000 huguenotes se reunirão no bairro de Saint Germain, sob as ordens de Montgomery, atacarão o Louvre, degolarão a família real e proclamarão rei Henrique de Navarra.

A rainha-mãe cede ao terror e fica transtornada. Ela se recorda da conjuração de Amboise, mas naquele caso os conjurados queriam somente capturar o rei para exercer o poder em seu nome. O que eles querem agora é suprimi-lo, ele e todos os seus. Catarina tem todos os motivos para desconfiar de Montgomery: ele já matou Henrique II, involuntariamente, é fato, é um exaltado e um furioso. Mas ela percebe, subitamente, que esse complô, apesar do perigo que representa, a tirará dos apuros.

Ela vai passear no jardim das Tulherias com Monsieur. Ela chama seus leais servidores, Tavannes, Rirague, o conde de Retz e o duque de Nevers, aos quais apresenta um plano: decapitar o partido huguenote suprimindo Coligny e uma dúzia de seus auxiliares. Nenhum deles faz objeções. Discute-se apenas a lista dos condenados. Catarina diz que lamenta chegar a esse extremo. Depois da entrevista de Bayonne, Filipe II não cessara de lhe aconselhar essa solução. É de convir que ele tinha razão. Portanto, a decisão de princípio está tomada. Resta fazer o mais difícil: para torná-la exeqüível, é preciso obter a ordem de Carlos, único detentor da autoridade.

Carlos IX se preocupa com a manutenção da ordem na capital. Ele envia Monsieur para sondar a opinião pública. Missão delicada que este último aceita com alguma apreensão, mas logo se tranqüiliza. Tão logo reconhecem o vencedor de Jarnac e Moncontour, os parisienses o aclamam. Monsieur percebe que os Guise simularam uma falsa partida e que tratam de agrupar seus partidários. De volta ao Louvre, ele declara que está tudo calmo e que os huguenotes se alarmam à toa.

Nas horas seguintes, a tensão não pára de crescer. Durante a ceia da rainha-mãe, os senhores huguenotes fazem declarações ameaçadoras. O senhor de Pardaillan se permite dizer: "Se o almirante perder um braço, milhares de outros se levantarão para fazer tamanho massacre que os rios do reino se encherão de sangue!" Catarina não vacila. Os que ouviram a arenga de Pardaillan poderiam negar a existência de um complô?

Enquanto isso, Carlos IX, novamente alertado pela roda de Coligny, reforça as medidas de proteção. Ele convoca Le Charron, preboste em exercício desde 16 de agosto, e ordena que feche as portas, multiplique as patrulhas, tire os navios do lado da cidade. Mas o preboste que saíra, Claude Marcel, é o verdadeiro dono de Paris. O rei, à sua própria revelia, acaba de fornecer aos chacinadores os meios de perpetrarem seus crimes.

Chega o momento de lhe abrir os olhos. A rainha-mãe teme esse confronto. Gondi cuidará disso. Ele sabe como falar ao rei numa circunstância tão grave e lhe revela que o duque de Guise não é o único responsável pelo atentado, mas que sua mãe e Monsieur são cúmplices, para evitar os perigos a que submeteria o reino ao intervir nos Países Baixos. Mais: conta o objetivo secreto do almirante - manietar o rei e "huguenotizar" todo o reino. Depois do atentado frustrado, seus partidários clamam vingança, conspiram contra ele. Todos são culpados de lesa-majestade. Algumas execuções, diz, desmantelarão o complô.

O rei protesta com veemência. Não quer acreditar na traição de Coligny, mas titubeia, duvida. Gondi sente que a partida está quase ganha. Aí entra em cena a rainha-mãe, Monsieur, seus aliados. Um a um eles assediam o infeliz monarca durante duas horas! Sua resistência enfraquece. A rainha-mãe desfere o golpe final. Ele estaria com medo dos huguenotes? Seria menos corajoso do que seu irmão fora em Jarnac e em Moncontour? Acusado de covardia pela própria mãe, ele solta um uivo de fera: "Vós o quereis! Pois bem! Matai! Matai todos!".

E desaba, exausto. A rainha-mãe e seus acólitos levantam-se em silêncio, para executar a ordem real. Completam a lista de vítimas, convocam os Guise e os encarregam de suprimir Coligny. Fora um dos huguenotes hospedados no Louvre, eles não imaginam nenhum massacre geral. No entanto, convocam Claude Marcel, cujo fanatismo é conhecido. Eles o recordam de que está incumbido de manter seus homens em estado de alerta para apoiar, em caso de desordem, as tropas reais e a milícia burguesa. Seus quaterniers (chefes de bairro) recebem a missão de agir de forma que nenhum "desses ímpios" possa escapar. Ele já mandou levantar a lista das casas huguenotes. Claude Marcel tem responsabilidade esmagadora na organização do massacre.


Caçados como animais
Carlos IX recobra a calma e entra no papel que dele se espera. Como seu pai, ele é lento para decidir, mas uma vez convencido vai até o fim. Ele se comporta como um rei que, em perigo extremo, garante, custe o que custar, a segurança do seu reino. Exige de sua guarda um juramento estrito de obediência e deixa partir La Rochefoucauld, um de seus companheiros prediletos, sabendo que o está enviando para a morte...

Ao raiar do dia 24 de agosto, o rei convoca Henrique de Navarra e Condé, ambos príncipes de sangue, e os intima a escolher entre a abjuração e a morte. Do lado de fora, os cavalheiros de seus séquitos são desarmados e massacrados. Os que tentam escapar são caçados como animais. Nos pátios do palácio, abate-se tudo que seja huguenote. Soa o rebate em Saint-Germain l\\'Auxerrois. Os sinos graves de Notre Dame e de todos os relógios de Paris respondem. O sinal está dado. Rua de Béthisy, os acólitos do duque de Guise acabam de assassinar o almirante e de jogar seu corpo pela janela. Em todos os bairros da cidade, desencadeia-se infame carnificina que durará até 30 de agosto! No dia 26, quando Carlos IX se dirige ao Parlamento para uma sessão solene, ele é aclamado pelos parisienses. Essa súbita popularidade o conforta em sua ilusão de ser, enfim, o monarca que sonhava ser, todo-poderoso e venerado pelos súditos. Em discurso, oficializa a tese do complô para justificar a execução de Coligny e de seus subalternos. Depois, cumprindo os desejos da rainha-mãe e de Monsieur, acrescenta: "Tudo o que se passou em Paris foi feito, não só por meu consentimento, mas por minha ordem e de meu próprio movimento."

São palavras que a posteridade conservou, mas permanece a questão de saber se ele é responsável ou culpado pelo massacre de São Bartolomeu. Os fatos aqui relatados trazem a resposta. Responsável, Carlos IX é totalmente pois, enquanto soberano, ele dá a ordem fatal. Culpado também é, pois permitira o massacre dos huguenotes hospedados em seu palácio. Mas ele não é, com certeza, pelo massacre coletivo perpetrado na capital por Marcel e os Guise. O infeliz é sobretudo vítima das intrigas de seu círculo, do disparate de Coligny e do mal que o corrói. Em 1572, restam-lhe somente dois anos de vida. Não foi o remorso que o matou, mas a tuberculose. Ele começa a escarrar sangue.

Georges Bordonove é historiador e escritor, dentre outros títulos, é autor de Charles IX, Hamlet couroné, da série Les rois qui ont fait la France, da editora Pygmalion.

Revista Historia Viva

Bin Sabbah, o homem que inspirou Bin Laden

O precursor de Osama bin Laden viveu no século XI e criou os comandos suicidas da seita Assassinos, uma ramificação do ismaelismo que atuou no Irã, na Síria e no Iraque.
por Marie Helène Parinaud

Cabul, a capital do Afeganistão, onde se refugia Osama Bin Laden, o mais famoso seguidor de Bin Sabbah

Os seguidores de Bin Sabbah - que se intitulava a sétima encarnação do Imã Ismael - eram homens dispostos a obedecê-lo cegamente, aceitando até mesmo o sacrifício da própria vida.

Eu farei todo o Oriente tremer!"... No dia 4 de setembro de 1090, quando Hassan bin Sabbah Homairi proferiu sua ameaça, acabava de conquistar sua mais importante vitória. A fortaleza de Alamut, que ele cobiçava havia anos, estava em suas mãos, enfim. Essa posição estratégica, chamada de "fortaleza dos abutres", estava no coração das montanhas Elbourz, a 1.800 metros de altitude, no noroeste do Irã.

Dominando três vales férteis, o local era o centro de uma rede de comunicações que conduzia, principalmente, a Teerã. Hassan bin Sabbah usou a mesma operação já testada com sucesso em outras incursões: seus seguidores se misturaram com a população, penetraram na fortaleza e abriram passagem para o seu chefe. Dessa cidadela inexpugnável, que ele não abandonaria durante os 35 anos seguintes e que seus sucessores também usaram como apoio por mais de um século, Bin Sabbah impôs à região sua religião e a lei do terror.

Bin Sabbah era filho de uma poderosa família iraniana de Qom, centro de propagação, desde o século IX, do ismaelismo, ramo dissidente dos xiitas que, ultrapassando o Corão, acrescentou aos seis profetas do Verbo (Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus, Maomé) um sétimo enviado, Ismael.

Hassan estudou na capital do Egito, Cairo. Ali viveu a partir de 1079, onde aperfeiçoou seu conhecimento do Corão, descobriu o Antigo e o Novo Testamentos e os textos vedas hindus, conhecidos desde as invasões de Alexandre, o Grande. Ele tentou fazer uma síntese de todas essas religiões, misturando ainda o zoroastrismo, crença abraçada pelas populações iranianas desde o século VII a.C. Nesta síntese, ele acrescentou ainda um pouco de neoplatonismo. Durante sua permanência no Cairo, Hassan relacionou-se com Nizar, filho do califa da dinastia fatímida, al-Mustansir.

O herdeiro foi afastado da sucessão pelo primeiro-ministro, o vizir al-Afdal. Talvez fosse desse período o ódio de Hassan à dinastia fatímida, que reinava naquela região que os ocidentais - desde os gregos e os romanos - chamavam de Pérsia, mas que os seus habitantes já chamam de Irã. Foi em torno do nome de Nizar - depois assassinado - que ele reuniu os seus primeiros fiéis, os nizaritas.

A fortaleza da fortuna
Ao retornar para o Irã, Hassan difundiu sua doutrina em Isfahan. Sua pregação religiosa inquietou as autoridades. Na Pérsia, os turcos seljúcidas controlavam o poder e, como adeptos da ortodoxia sunita, perseguiam os xiitas. Por respeito à sua rica família, Hassan foi apenas expulso. Suas andanças o levaram e a seus fiéis para a Síria e, depois, para as montanhas ao sul do Mar Cáspio, que se tornaram seu feudo.

Ele adotou como lema o "tudo ousar". Para si mesmo é Davi, e o resto do mundo muçulmano, Golias. As fortalezas caíram, uma após a outra, em suas mãos. Até que, em 4 de setembro de 1090, ele conquistou Alamut. A "fortaleza dos abutres" foi rebatizada como "fortaleza da fortuna". Bin Sabbah estava certo de que conseguiria controlar os reinos localizados entre o Mar Cáspio e o Mediterrâneo.

O dinheiro não era sua principal motivação, mas o instrumento que lhe permitiu liberar a Pérsia, restaurar sua raça e impor sua própria concepção dos ismaelismo. Revoltado com a ocupação de seu país - primeiro pelos abássidas (árabes que reivindicam a ascendência de Abbas, tio de Maomé) e depois pelos seljúcidas (turcos sunitas) - ele estava decidido a eliminar a dinastia reinante dos fatímidas (descendentes de Fátima, filha de Maomé).

Ele não queria, porém, recrutar mercenários, mas sim contar com homens que se entregassem de corpo e alma à sua doutrina. Seus discursos, em que se apresentava como o houdschet, a reencarnação do sétimo Imã Ismael, seduziam cada vez mais os fiéis. Os novos adeptos estavam dispostos a obedecer cegamente a seu grande líder, aceitando até mesmo o sacrifício supremo da própria vida. Na época, eram chamados de os "assassinos". Não sabemos, hoje, exatamente quais eram os ensinamentos e as práticas desses Assassinos, já que os textos da seita desapareceram. Restaram os testemunhos dos seus adversários e dos cronistas europeus que participaram das Cruzadas.

TUDO O QUE PUDESSE ENFRAQUECER OS INVASORES ÁRABES ERA BOM PARA O GRANDE SENHOR, CUJA MÁXIMA ERA "OS INIMIGOS DE MEUS INIMIGOS SÃO MEUS AMIGOS"

Seus inimigos contavam que, para assegurar a fidelidade de seus seguidores, Bin Sabbah levava-os, sob o efeito do haxixe, para um maravilhoso jardim perfumado onde fontes derramavam água fresca e jovens mulheres nuas faziam generosas carícias. Durante este estado, era fácil conseguir dos adeptos um juramento de obediência absoluta. Quando despertavam, os sectários eram convencidos de que o paraíso que conheceram brevemente na terra era o mesmo que os aguardava após a morte. Mas era preciso, ainda, que a morte servisse aos interesses do soberano, eliminando seus inimigos. Seus seguidores passavam por um treinamento físico para aprender, entre outras coisas, o uso do punhal com que eliminavam o inimigo. Além disso, eram submetidos à doutrinação religiosa, com nove etapas de iniciação.

No ponto mais baixo da hierarquia estavam os lassek, a massa dos fiéis, constituída pelos habitantes das regiões vizinhas. Acima deles estavam os mujib, os noviços. Dependendo das suas aptidões, eles estavam destinados a formar os quadros da seita ou a se tornar fedayin, os que se sacrificam. Os quadros, chamados de rafik, eram capazes de comandar uma fortaleza e dirigir a organização secreta no âmbito de uma cidade ou de uma província. Restavam os daï, os propagandistas, os missionários, os pregadores da nova religião. Por fim, no ápice dessa pirâmide, estava o grande senhor, o próprio Hassan.

Coube a Hussein Qâ\\'ini, seu melhor agente, a formação da organização clandestina. Os futuros Assassinos aprendiam a língua do país para o qual eram enviados, o modo de se vestir de seus habitantes, seus usos e costumes. Abû Ibrâhim Asibâdâsi, capturado durante uma missão suicida em Bagdá, resumiu de forma simples o modus operandi dos sectários. Quando os carcereiros levavam um Assassino para ser executado, ele solicitava a presença do califa e dizia: "Você pode me matar, mas poderá matar todos aqueles que se encontram em seu castelo?"

De fato, antes de praticar os atentados, os agentes do senhor de Alamut realizavam um longo trabalho de infiltração. Ganhavam a confiança da futura vítima e a matavam, quando ela acreditava estar segura no seio de sua fortaleza. Tal como resumia essa ameaça proferida por um outro seguidor: "O nosso senhor elaborou ciladas e armadilhas para prender nas malhas da morte os seus inimigos e os da religião.

Ninguém está ao abrigo de sua vingança: a vítima será atingida no coração de sua própria cidade e no centro de seu próprio palácio." Os príncipes temiam ver um de seus favorecidos se precipitar em sua direção com um punhal na mão.
O primeiro dignitário vítima da lâmina de um punhal foi o vizir de Isfahan, Nizam al-Mulk Tusi.

O atentado foi preparado pelo próprio Hassan bin Sabbah. Um dos Assassinos, Rachi al-Dîn contou: "O grande senhor nos convocou e perguntou qual dentre nós livraria nosso Estado do maligno Nizam al-Mulk Tusi. Era uma bela caça para os membros da seita. Um dos fedayim, Bu Tâhin Arrani, levanta-se e, colocando a mão no peito, oferece-se. Ele é assim eleito. Disfarçado de religioso muçulmano, ele se aproxima de Nizam e o apunhá-la."

A marca da adaga
Do Irã ao Cáucaso, da Síria ao Egito, acumulavam-se os cadáveres dos príncipes muçulmanos. Todos traziam a marca da adaga de Hassan bin Sabbah. A partir de então, nenhum chefe árabe ou turco "ousou sair de sua residência sem escolta, e todos usavam uma armadura sob a vestimenta, temerosos de ser atingidos pelo punhal dos Assassinos". Estava fora de questão o uso de veneno, que poderia fazer o crime passar por uma morte natural. O lema da seita era: "Só podemos curar a ferida do mundo com a lâmina que a gerou."

Príncipes, vizires, emires, sultãos: todos temiam, ignorando quando e de onde viria o golpe fatal. Mas avisos não faltavam. De fato, a melhor maneira de aterrorizar a vítima era deixá-la de sobreaviso. Assim, o cronista Djoueïny contou que Hassan bin Sabbah, ao perceber que um sultão estava decidido a proteger as caravanas de suas investidas e que organizava um exército para combatê-lo, corrompia membros da corte, em particular um dos eunucos.

"Subornado pelo dinheiro, o eunuco é encarregado de fixar um punhal ao lado do travesseiro do sultão enquanto este dorme e de depositar uma carta nas proximidades. Quando o sultão acorda, ele vê o punhal e lê a carta: \\'Se eu não te quisesse bem, esta lâmina estaria em teu peito e não em tua cama. Não recuses minhas ofertas, ou te farei mal\\'. Aterrorizado, o sultão decidia deixar que o grande senhor atacasse as caravanas. Entre a sua vida e a sua fortuna, o soberano fazia sua escolha.

Outros não ousavam nem obedecer nem desobedecer. Como o cádi que, intimado a abandonar sua fortaleza, decidiu destruí-la. Foi a única solução que ele encontrou para permanecer fiel ao seu sultão e não contrariar as ordens do terrorista.
Foi nesse Oriente Médio ameaçado pelos Assassinos que desembarcam os cruzados vindos da Europa cristã. O objetivo deles era recuperar Jerusalém, a cidade santa. Não é o caso de refazer, aqui, o percurso das oito cruzadas que se desenrolam entre 1096 e 1270. Mas o que chamaríamos hoje de "operações conjuntas" não perturbou em nada a política terrorista de Bin Sabbah.

Em várias ocasiões, os cruzados negociaram até mesmo a sua neutralidade. A cada um a sua guerra santa. Quando Bin Sabbah morreu, em 1124, era tempo da Segunda Cruzada e as tropas cristãs haviam fundado o reino latino de Jerusalém, o principado de Antióquia, os condados de Edessa e de Trípoli.

Um de seus filhos, Buzourg Umid, tomou o comando da seita e o nome do pai. Foi o início da lenda do Velho da Montanha. Ignorando a morte de Hassan bin Sabbah pai, seus adversários pensavam que o chefe dos Assassinos era imortal. Tal pai, tal filho: as rapinas e os atentados aos dignitários se sucediam: dois vizires, dois califas, um prefeito, um governador, um mufti feneciam sob o punhal dos assassinos.

Os aliados objetivos
Buzourg morreu em 1138, mas o fim do terror ainda estava longe. Muhammad, neto de Hassan pai e filho de Buzourg, tornou-se chefe da seita. Seu "reinado" de 23 anos viu a morte de sultãos, cádis, vizires, outros califas, e até mesmo um primeiro príncipe cristão, o conde Raymond II, de Trípoli, em 1150. A dinastia e a lenda do Velho da Montanha perpetuaram-se em 1161 com Qadal al-Dîn Hassan, um dos filhos de Muhammad.

Nada provocava medo neste quarto grande senhor, nem a seus seguidores. Decidido a pôr fim à dinastia dos Ayyubidas, ele ordenou, por três vezes, a morte de Saladino, seu mais célebre representante. A primeira tentativa ocorreu em 1174, a segunda, em 1175 e a última, em 22 de maio de 1176. Assassinos disfarçados de soldados da guarda pessoal de Saladino tentaram enforcar o sultão do Egito e da Síria. Antes da morte de Raymond II de Trípoli, os Assassinos consideravam os cruzados como "aliados objetivos".

Felipe Augusto e Ricardo Coração de Leão até mesmo se entenderam com o chefe da seita. O tratado foi regido pela máxima: "os inimigos de meus inimigos são meus amigos." O grande senhor considerava que tudo o que podia enfraquecer os invasores árabes era bom para os persas.
Ele começou, assim, a estabelecer em torno de Alamut uma rede de fortalezas, como postos avançados destinados a propagar sua autoridade e sua força. Lamiassar e Meimoundiz foram também anexadas à sua rede, que se estendeu da Síria até o Iraque.

Assim, quando São Luís desembarcou no Oriente, em 1248, os Assassinos eram uma força a levar, forçosamente, em conta. O apetite de dinheiro e de reconhecimento da seita permanecia igual. Após sua derrota em Mansoura, o rei franco recebeu uma mensagem que não poderia ser mais clara: "Os príncipes ocidentais anteriores, como o rei da Hungria e o imperador da Alemanha, pagaram-me um tributo, e o senhor, que foi derrotado, deve fazer o mesmo." Os embaixadores exibiam os atributos habituais do Velho da Montanha: o punhal, símbolo de sua força, e a mortalha com a qual envolvia suas vítimas. A ameaça era clara. Mas, se outros cederam à chantagem, São Luís resistiu.

Com isso, ele ganhou a consideração do grande senhor. Duas semanas mais tarde, o grande senhor ofereceu ao rei da França seu anel e a sua camisa: "A camisa é a vestimenta que está mais próxima do corpo; o grande senhor quer estar assim mais próximo do rei franco." Esta declaração de amizade foi acompanhada por presentes: um jogo de xadrez de âmbar perfumado, um elefante e uma girafa de cristal. O rei, em retribuição, ofereceu-lhe jóias e deixou no local um embaixador permanente, o dominicano Yves Le Breton.

Outro príncipe, Halagu, recusou a chantagem do Velho da Montanha. Era um chefe mongol e estava decidido a acabar de uma vez por todas com os Assassinos e seu chefe. Em 1256, ele conquistou e arrasou a cidadela de Alamut, pondo fim a 166 anos de terrorismo. Um cronista da época alardeava: "Eles ousaram ameaçar o tigre e este os esmagou." Passados nove séculos, uma ameaça semelhante se ergue, desta vez do Oriente rumo ao Ocidente.
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Marie Helène Parinaud é doutora em História, é autora de La Revolution Française a Paris.

Revista Historia Viva

O Fantasma de Jack, o Estripador

O Assassino de Whitechapel ainda assombra a pérfida Albion

Jack, o estripador


Os assassinatos perpetrados durante o último mês de 1888, e atribuídos ao maior "serial killer" de Londres, constituem o maior enigma da história criminal. Todas as vítimas foram degoladas, mas o qualificativo de estripador (ripper - rip = rasgar) provém do fato de todas as vítimas terem tido o ventre dilacerado e os órgãos extirpados. É impossível descrever com mais detalhes a natureza dos ferimentos, dado o seu horror.

Buck\\'s Row, 31 de agosto de 1888, 3h40. A viela está iluminada apenas por um candeeiro. George Cross, comerciante, vai para o trabalho. Na calçada, vê algo parecido com um grande fardo. Na verdade, trata-se do corpo de uma mulher. A infeliz teve a garganta cortada de uma orelha à outra. A lâmina penetrou até a coluna vertebral. A vítima tem entre 40 e 45 anos. Segundo o médico que efetua a autópsia, a arma utilizada deve ter sido um punhal, daqueles usados para cortar cortiça ou couro, com uma lâmina de 15 a 20 centímetros. Não há marcas sobre as roupas e os objetos pessoais limitam-se a um pente, um espelho quebrado e um lenço. A polícia identifica o corpo como sendo de Mary Ann Nichols, conhecida por Polly, 42 anos, 1,55 m, cabelos castanhos e um sinal particular, a falta de cinco dentes frontais.

Nascida em 1851, aos 12 anos de idade, Polly Walker casa-se com Nichols, funcionário de uma gráfica. Seis anos de casamento e cinco filhos. Ela é alcoólatra e o casal acaba por se separar. Nichols fica com a guarda das crianças e paga pensão à ex-mulher, até que ela começa a se prostituir. O álcool a deixa violenta, mas o fato de levar uma vida dissoluta e ser agressiva não basta para explicar o seu assassinato. Como primeira hipótese, a polícia acredita na ação de uma gangue de exploradores de prostitutas. No hospital, os policiais interrogam uma colega de Polly, Emma Smith, que fora atacada e espancada por quatro homens. Mas, sem forças para fornecer qualquer informação, morre em conseqüência dos ferimentos. Outra mulher é considerada como a segunda vítima da gangue, ou a primeira de Jack, o Estripador. Martha Tabram, nascida Turner, foi assassinada com 39 facadas e seu corpo encontrado em 7 de agosto, num imóvel em Whitechapel, no edifício George Yard Building (atualmente Gunthorpe Street).

A segunda mulher assassinada, ou a terceira, conforme a tese escolhida, chama-se Annie Chapman. O morador de uma pensão, situada no número 29 da Hambury Street, a cinco metros da Buck\\'s Row, encontra o corpo de Annie em 8 de setembro, às 6h00. A cabeça estava praticamente separada do corpo e, aos pés, foram cuidadosamente dispostos seus anéis e dinheiro. No local, a polícia só descobre provas insignificantes. O médico-legista manda levar o corpo, por curiosidade, no mesmo caixão usado para transportar Polly Nichols. Às 14h00 do mesmo dia, prossegue o interrogatório das testemunhas. Uma mulher diz ter visto Annie Chapman às 5h30 com um homem. Ela afirma ter escutado o desconhecido perguntar: "...e então, está de acordo?" e Annie responder-lhe afirmativamente. O homem era moreno, parecia estrangeiro, e aparentava possuir uns 40 anos. Amelia Farmer, amiga de Annie Chapman, conta que, pouco tempo antes de ser morta, ela havia brigado com outra prostituta.


As vítimas
Timothy Donovan, que toma conta da pensão de Dorset Street, também avistou Annie uma ou duas horas antes de sua morte. A investigação policial não chega a nenhuma conclusão determinante, exceto a de que o punhal correspondia ao utilizado no assassinato de Polly Nichols. A lâmina media entre 15 e 25 cm e tinha 2,5 cm de largura. Segundo os policiais, tratava-se da faca de um dos empregados do abatedouro ou de um instrumento para dissecação, muito afiado. A polícia conclui que o assassino, extremamente hábil, possui conhecimentos de anatomia.

Um certo William Piggott é preso num bar com as roupas manchadas de sangue e um ferimento na mão. Piggott argumenta que foi mordido ao tentar socorrer uma mulher, vítima de crise epiléptica. Furioso, o bom samaritano a teria espancado com toda a força. Por fim, as alegações dele tornam-se tão incoerentes e o seu comportamento é tão bizarro que o enviam para um hospício!

John Pizer, outro suspeito, é interrogado. É conhecido por "avental de couro", pois conserta botas e sempre veste esse tipo de avental, e já foi visto espancando mulheres. Pizer possui um boné parecido com o usado pelo homem que estivera com Annie e ele também confecciona chapéus. Polly Nichols, por sua vez, usava um chapéu algumas horas antes de ser morta. Por fim, um pedaço de couro é encontrado perto do corpo de Annie Chapman, e um avental de couro é visto mergulhado num balde a alguns metros do corpo. Mas a faca de Pizer não corresponde à arma utilizada no crime. Além disso, na noite da morte de Polly Nichols, Pizer esteve com algumas pessoas que confirmaram seu álibi. Assim, ele é liberado. O público se mantém em silêncio. O Times acusa a sociedade de tornar-se indiferente aos deserdados. O reverendo Barnett, vigário da Igreja São Judas, em Whitechapel, garante que só algumas centenas de metros quadrados oferecem perigo. Para o religioso, bastaria a presença de mais policiais para trazer a tranqüilidade de volta ao bairro. A polícia, entretanto, continua alerta. Oferecem-se recompensas e é constituído um comitê de vigilância.

Em 30 de setembro, à 1h00, Louis Diemschutz sai com o seu cavalo da cocheira, em Berner Street, mas o animal recusa-se a seguir adiante. Diemschutz acende um fósforo, e vê uma mulher caída no chão. Ele ergue a cabeça e os ombros da desconhecida e quase dois litros de sangue se espalham pela calçada de pedra. A polícia chega e cerca o local. O legista manda os agentes examinarem as mãos e as roupas de todos os vizinhos e os domicílios são cuidadosamente inspecionados. Um pedaço do lenço que envolve o pescoço do cadáver é encontrado pelos policiais a 300 metros do local. O pano parece ter servido para enxugar a lâmina do punhal.

Às 5 horas, os policiais deixam Berner Street, mas, em Mitre Square, um outro assassinato seria cometido naquela mesma noite. O cadáver de uma mulher é encontrado virado de costas, com a garganta cortada. Falta uma parte da orelha direita, bem como a extremidade do nariz. Um corte segue do reto ao esterno.

A autópsia não encontra novidades. Por um grande azar, Catherine Eddowes, a vítima de Mitre Square, esteve nas mãos da polícia um pouco antes de ser morta, pois foi conduzida, bêbada, por um policial, ao posto de Bishopsgate, às 20h30. Catherine havia sido liberada perto da meia-noite e, nesse intervalo, a vítima de Berner Street foi identificada. Trata-se de Elizabeth Stride, nascida na Suécia, em 1843. Sua biografia é uma reedição das anteriores. Elizabeth é reconhecida pelo Dr. Barnardo, médico que convive com prostitutas, e conhece o East End (bairro londrino) como a palma da mão. O médico vive há 40 anos na região, e torna-se suspeito por algum tempo. As acusações, no entanto, não se sustentam.

Elizabeth Pratter, prostituta, mora numa pensão em Miller\\'s Court, no número 26 da rua Dorset, a uma centena de metros do local onde Annie Chapman foi assassinada. Em 9 de novembro, por volta das 4h00, Pratter ouve gritos próximos de seu quarto, mas não fica alarmada, pois as brigas produzidas por bebedeiras são freqüentes no local. Ela adormece novamente e vai trabalhar por volta das 5h00, pois os trabalhadores do mercado constituem sua principal clientela. Às 10h45, um empregado da pensão bate na porta de Mary Jane (ou Mary Ann) Kelly, vizinha de Elizabeth Pratter, para cobrar-lhe o aluguel. Irlandesa, 24 anos, um pouco mais sedutora que as outras vítimas, Kelly mora no térreo. Ela mudou-se para a pensão em fevereiro, junto com o seu parceiro, Joseph Barnett, que depois a abandonou.

O cobrador dos aluguéis, um certo Bowyer, não obtém nenhuma resposta. Ele olha para o quarto pelo vidro quebrado da janela, e vê um corpo na cama e uma poça de sangue espalhada pelo chão. A polícia chega, chamada pelo proprietário do imóvel, John MacCarthy, e manda abrir a porta. Curioso: a porta está trancada, embora a chave tenha sido dada como perdida há algum tempo. Os policiais abrem a porta, puxando o ferrolho através do vidro quebrado. Quem teria a chave para trancar a porta atrás de si após o assassinato? A cena é mais horripilante do que as anteriores: a cabeça está praticamente decepada, o rosto é irreconhecível, e apenas os olhos estão intactos.

A polícia descobre que uma vizinha de Kelly, Sara Lewis, lavadeira e prostituta, viu um homem parado nas proximidades de Miller\\'s Court. Trata-se de George Hutchison, que, freqüentemente, recorre aos favores sexuais de Mary Kelly. Interrogado, Hutchison afirma ter visto Mary Kelly entrar com um homem pouco antes do assassinato. Ele disse que a esperou do lado de fora por algum tempo e depois foi embora. Espantosamente, a polícia não se interessa por John MacCarthy, o proprietário do imóvel. No entanto, por que ele afirma desconhecer as atividades da vítima? Todas as moradoras da pensão são prostitutas e, no bairro, corre o boato de que ele é o cáften. Além disso, MacCarthy cobra cada centavo do aluguel toda manhã. Então, por que Mary Kelly teria algo a pagar?
A investigação patina em ponto morto. Em Londres, a tensão aumenta, com acusações a juízes e irlandeses. A polícia é inundada por cartas-denúncia, mas apenas duas ou três são levadas a sério. A primeira está assinada por Jack, o Estripador. Escrita com tinta vermelha, anuncia o envio das orelhas de uma das vítimas à polícia. Na verdade, Catherine Eddowes teve as orelhas decepadas, detalhe que havia sido mantido em sigilo. Outra carta refere-se aos dois crimes cometidos na mesma noite, mas foi enviada no dia seguinte aos assassinatos. A polícia supõe que o autor seja um impostor bem informado. A terceira carta é a mais convincente: não está assinada por Jack, o Estripador, e vem "do Inferno", acompanhada por um rim humano. Justamente o rim que faltava no corpo de Catherine Eddowes. No órgão extirpado, tudo faz sentido: traços de alcoolismo, idade da vítima e sinais de uma doença renal, o mal de Bright.
Os grafologistas procuram levantar o perfil psicológico do assassino por intermédio do exame dos manuscritos. O autor parece instruído, mas deseja passar-se por inculto, impressão confirmada por outra carta, um poema. Definitivamente, não se trata de obra de um iletrado.


Mas, teria Jack, o Estripador, terminado sua obra macabra? Três outros crimes ainda ocorrem para assustar a população londrina. As opiniões a respeito dos assassinatos se dividem entre os que atribuem a autoria das mortes a Jack e os que rejeitam essa hipótese. As vítimas são Elizabeth Jackson, meretriz, cujo corpo decapitado é retirado do rio Tâmisa em junho de 1889; Alice Mackenzie, encontrada enforcada e mutilada em 17 de julho em Whitechapel; e Frances Coles, prostituta, socorrida ainda agonizante sob o arco de uma ponte ferroviária, também em Whitechapel. A polícia investiga, interroga algumas pessoas, analisa os álibis... e, finalmente, detém dez suspeitos que poderiam ser o estripador.

O primeiro dos suspeitos é George Chapman, de origem polonesa, cujo verdadeiro nome é Severin Klosovski, proprietário de um salão de cabeleireiros a alguns metros do local onde Martha Tabram foi assassinada. Chapman é parecido com o homem visto com Mary Kelly. Além disso, algumas das cartas assinadas por Jack, o Estripador, contêm expressões idiomáticas americanas, e Chapmam morou durante dois anos nos Estados Unidos. Mas ele é enforcado em 1903, condenado pelo envenenamento de três de suas amantes. Um outro é o suspeito mais famoso, o duque de Clarence, filho mais velho do futuro rei da Inglaterra Eduardo VII. Mentalmente retardado, aos 24 anos, o duque sofre de gota e de sífilis. Ele corteja uma mendiga, o que não o impede de sentir atração por meninos. Clarence não possui disposição para nada e, em 1892, deixa a lista de suspeitos após morrer de pneumonia, ou sífilis.

Entretanto, o duque costumava contar à família que ele e Jack, o Estripador, eram uma só pessoa. Os companheiros de Clarence compõem um vasto leque de criminosos potenciais. O tutor do duque em Cambridge, James Stephen, é um dos suspeitos, enquanto o escudeiro é primo de dois outros suspeitos, Milis e John Druitt. Voltaremos a isso.

O doutor Neil Cream envenenou quatro prostitutas com estricnina, e ficou conhecido como o "Envenenador de Lambeth". Por esses crimes, é enforcado em 1892. No cadafalso, suas últimas palavras para o carrasco são: "Eu sou Jack, ...". Contudo, no momento dos assassinatos, Cream estava preso em Illinois, nos Estados Unidos. Absolvido pela Justiça norte-americana em julho de 1891, está na Grã-Bretanha desde setembro. A situação complica-se quando Cream envolve no caso um sósia dele. De fato, anteriormente, para se defender num processo de bigamia, ele afirma que, à época dos crimes, estava detido em Sydney, na Austrália. O diretor da prisão confirma que um homem com as características de Cream esteve preso na instituição, o que basta para esclarecer as dúvidas. Obviamente, dois homens serviram-se mutuamente de álibis, e as derradeiras palavras de Cream ao carrasco teriam sido uma última demonstração de generosidade ao seu cúmplice.

De origem burguesa, Montagne John Druitt nasce em 1857. Extremamente inteligente, obtém uma bolsa de estudos no Winchester College e, depois, em Oxford. É um estudante brilhante, popular entre os colegas, pratica remo e críquete. Em 1880, Druitt se forma, mas sua vida começa a ficar complicada. Ele inicia o curso de Direito, mas abandona a escola. Entra para a faculdade de Medicina, desiste do curso e retoma o de Direito. Trabalha numa escola para sobreviver. Em 1888, é despedido.

Homossexualidade ou conduta irresponsável? Druitt sentia que estava ficando louco como a mãe, internada para sempre num hospital psiquiátrico. Druitt foi visto pela última vez em 3 de dezembro de 1888, e seu corpo foi resgatado do Tâmisa, próximo a Londres, no dia 31. Os bolsos, cheios de pedras, não deixam dúvidas quanto ao suicídio. A morte de Druitt coincide com o fim da onda de crimes, mas o fato de que jogava críquete em Blackheath na manhã da descoberta dos corpos de Mary Chapman e de Polly Nichols seria suficiente para inocentá-lo. Em março de 1889, os policiais garantem a um membro do comitê de vigilância que reclama da redução das rondas, que Jack, o Estripador, estava morto. Segundo a polícia, o fato não fora divulgado para poupar a mãe do criminoso, que estava internada.

No decorrer das investigações, aparece também um conceituado médico, dr. Lees, pertencente ao círculo próximo à rainha Victoria. Lees afirma à polícia ter tido três visões premonitórias dos crimes, e chegou a descrever a roupa do assassino. No início, os agentes de polícia escutam o médico por educação, mas, quando ele faz referências às orelhas decepadas, ficam atentos, pois ninguém havia comentado esse fato. Lees conduz os policiais à casa de William Gull, também freqüentador do palácio de Buckingham como médico da rainha e do príncipe de Gales.

A filha de Gull afirma aos inspetores que, vitimado por um ataque em 1887, o pai regularmente assume um comportamento violento. A casa é revistada e os policiais encontram no guarda-roupa um terno de tweed e uma capa que correspondem à descrição feita por Lees. O médico não consegue explicar por que suas roupas estão sujas de sangue. Convencido do poder de suas relações pessoais, Gull inicialmente não se preocupa. Morre em 29 de janeiro de 1890. Corria também uma outra versão: Gull encobria algum membro da família real, pois, debilitado psiquicamente, não possuía condições de cometer os assassinatos.

Finalmente, Rasputin, o polêmico bruxo da corte do czar Nicolau II, da Rússia, entra no caso. Um manuscrito, intitulado Les Grands Criminels Russes (Os Grandes Assassinos Russos), é encontrado num cofre na casa de Rasputin, após ele ter sido assassinado pelo príncipe Félix Yussupov. O documento aponta um médico, o doutor Konovalov, como o verdadeiro Jack, o Estripador. Konovalov freqüentemente exibia impulsos homicidas e, por conta disso, a Okhrana, polícia secreta czarista, o teria mandado para a Grã-Bretanha. Assim, Konovalov teria sido o sósia de Klosovski-Chapman.

Mais tarde, as suspeitas atingem um certo Michael Ostrog - que seria Konovalov - um médico considerado louco, que conseguiu se livrar de várias condenações. Ostrog tem a reputação de bater em mulheres e de nunca se separar de seus instrumentos cirúrgicos. Um homem com as características de Ostrog foi assassinado num asilo para loucos, logo após a morte de uma mulher em Petrogrado. Por coincidência, essa mulher foi morta após a volta de Konovalov à Rússia.

Frank Milles é pintor e viveu por algum tempo com o poeta Oscar Wilde. Eles se separam em 1881. Milles é um exibicionista que gosta de chamar a atenção das prostitutas. Artista talentoso, é internado num hospital para doentes mentais em dezembro de 1887. A data da morte de Milles é motivo de dúvidas: pode ter sido em março de 1888 ou em julho de 1891- e essa divergência muda tudo. Como vimos, o primo de Miles era escudeiro do duque de Clarence e os dois homens se conheciam. Quais seriam as relações entre eles? Mistério. Indubitavelmente, O Retrato de Dorian Gray apresenta analogias com os acontecimentos de 1888. Daí, conclui-se que Wilde escreveu um romance com um segredo...

Voltemos à associação Druitt, Clarence, Miles, Stephen. O destino deste último lembra o de Druitt. Após misterioso acidente, no qual fere a cabeça, enlouquece. É o que se conclui a partir dos fatos relatados por sua ilustre prima, a romancista Virginia Woolf. Stephen, filho de célebre magistrado, passa a se dedicar à poesia, na qual deixa transparecer a raiva contra as mulheres. Misoginia extrema ou furor causado pelo fim de sua relação com Clarence, enviado pela família a um regimento de hussardos? Em razão desses transtornos psicológicos, Stephen teria consultado um médico... o doutor Gull. Todos os protagonistas estão reunidos e o caso é encerrado. No fim de 1891, Stephen é internado num asilo e morre em 3 de fevereiro do ano seguinte.

Mais de um século depois dos acontecimentos, continua o mistério do assassino das mulheres de Whitechapel. Jack, o Estripador, torna-se definitivamente um mito repleto de histórias sombrias.

O PRIMEIRO DOS SERIAL KILLERS
Jack, o Estripador, ocupa um lugar à parte no ranking dos assassinos famosos. As características particulares de sua empreitada são percebidas de forma confusa por seus contemporâneos. A sociedade vitoriana trata duramente a classe trabalhadora, mas os britânicos, ricos ou pobres, possuem o sentimento de pertencer a uma comunidade na qual cada um tem o seu lugar. Jack, o Estripador, nesse contexto, aparece como um pária. Ele é um revoltado, um provocador.

A nascente industrialização faz surgir uma sociedade desumana, cujas crianças trabalham 14 horas por dia. Com o progresso industrial, a cidade substitui as vilas e pequenas comunidades, e o sentimento de pertencer a uma família desaparece. Jack, o Estripador, é o pai espiritual dos serial killers. O caráter sexual dos seus crimes constitui um elemento distintivo - as vítimas dele são as prostitutas. Assim, é necessário compreender o puritanismo e o rigor moral da era vitoriana. Jack, o Estripador, exerce o papel de anjo exterminador - ele não constitui uma ameaça se estivermos do lado certo. Na verdade, Justiça, Polícia e Imprensa não têm interesse pelas meretrizes: o assassinato de Ema Smith, provavelmente a primeira vítima do estripador, numa segunda-feira de Páscoa, em 1888, não foi nem mencionado pelos jornais. Trata-se, com uma exceção, de mulheres com mais de 40 anos, que aparentavam o dobro da idade, de tão castigadas pela miséria. A impunidade, que criou o mistério e produziu as hipóteses mais insanas, foi o último componente da celebridade do estripador. Ninguém sabe quem é Jack, o Estripador, e nem porque interrompe a série de crimes antes de ser descoberto. Se as suas vítimas representam "menos do que o nada", é melhor deixar-se levar pelo anarquismo pequeno burguês, que sente prazer em ver a polícia ridicularizada e Arsène Lupin triunfar.

A CORTE DOS MILAGRES VITORIANOS
A vida é atroz em Whitechapel, com uma população fervilhante de 80 mil almas enclausuradas num labirinto de pequenos pátios. No bairro, vivem até nove pessoas por cômodo. Whitechapel é também o quarteirão dos abatedouros; os gritos dos animais são ouvidos o dia todo. Muitos dos estivadores e pedreiros não têm trabalho permanente. Os pobres confeccionam bolsas, caixas de fósforos. As mulheres são lavadeiras, limpam os pisos, remendam tecidos. Cinqüenta e cinco por cento das crianças não atingem os cinco anos; 10% dos escolarizados são praticamente débeis. O incesto é uma instituição. As meninas prostituem-se aos 12 anos. Considera-se que uma a cada 60 casas seja um bordel; uma a cada 16 mulheres, prostituta. Nove mil pessoas residem em quartos de aluguel. É o local de encontro dos pequenos vagabundos, dos receptadores, dos marinheiros. As mulheres trocam uma noitada por um passe. As coisas não podem continuar assim. O catalisador da revolta foi o inverno de 1885-1886, o mais rigoroso em 30 anos.

Estivadores e trabalhadores reúnem-se em Trafalgar Square e andam pelo Hyde Park. A manifestação transforma-se em tumulto popular. A polícia intervém - 150 manifestantes são feridos e 300 são detidos. A agitação teria sido o pavio necessário para a explosão da loucura de um certo Jack, o Estripador?

-Tradução de Vera Lúcia dos Anjos e Gislene Vicentini
EXAME GRAFOLÓGICO DOS BILHETES DE JACK
A redação de Historia confiou uma carta redigida por Jack, o Estripador, a um grafólogo de Lyon. A identidade do autor não foi revelada ao especialista. Eis a sua análise: "A caligrafia revela uma personalidade obcecada pela pureza, pela ordem e pela organização, provavelmente até à neurose. O traço dominante do caráter de seu autor é a autodisciplina, o domínio de si mesmo, o que pode ser qualificado de preocupante, pois pode funcionar como autismo e fuga em relação aos outros". Perturbador, não é verdade?
Revista Historia Viva

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Nazistas a contragosto

De 1942 a 1945, cerca de 140 mil moradores da região da Alsácia-Lorena foram incorporados ao exército de Hitler. Após a guerra, muitos desses franceses morreram como prisioneiros nos campos soviéticos
por Jean-Jacques Mourreau
©RUE DES ARCHIVES

Encontro do Partido Nazista em Estrasburgo, principal cidade da Alsácia-Lorena, em outubro de 1941

“Pobres de nós. Participamos de todas as guerras e vestimos todos os uniformes. Na minha família, nascemos franceses e nos tornamos soldados alemães, ou vice-versa. Nesse imbróglio, freqüentemente não sabíamos mais o que éramos.”

Esse é o lamúrio de um dos três heróis alsacianos de As noites de Fastov, romance cruel e perturbador que se passa na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda que na ficção, o protagonista fez parte da tragédia vivida pela região da Alsácia-Lorena no conflito entre nazistas e Aliados.

Com uma história repleta de disputas (ver quadro na pág. 79), esse pequeno território no nordeste francês foi invadido pelas tropas alemãs no primeiro semestre de 1940. Os Aliados não conseguiram resistir ao exército de Hitler e abandonaram os moradores da Alsácia-Lorena à própria sorte. Os nazistas atravessaram o rio Reno em 15 de maio e menos de 48 horas depois já estavam em Estrasburgo, principal cidade da região. Em 15 de julho ergueram uma barreira intransponível, estabelecida sobre as antigas fronteiras de 1871.

A ocupação militar se transformou em anexação de fato. A região foi desmembrada imediatamente: a Alsácia integrou-se ao Gau Oberrhein (ver glossário) e a Lorena se juntou à região do Sarre, no Gau Westmark. A língua alemã se tornou obrigatória e, em meados de outubro, a comissão de armistício exigiu que todos os alsácio-lorenos abandonassem o que restava do exército francês. Foi um enquadramento rápido.



© AKG IMAGES/LATINSTOCK

Próximo à Alsácia-Lorena, político do Partido Nazista visita garotos recrutados em 1942

A IMPLANTAÇÃO DO NAZISMO
Lá, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, conhecido como Partido Nazista (NSDAP), foi oficialmente fundado em 22 de março de 1941. Já o Reichsarbeitsdienst (RAD), o Serviço de Emprego do Reich, foi introduzido em 8 de maio de 1941. Perto de 70 mil jovens ingressaram nesse programa. Em seguida, mais de 40 mil deles foram incorporados à Wehrmacht, as forças armadas nazistas.

A partir de 2 de janeiro de 1942, o alistamento na Juventude Hitlerista tornou-se obrigatório. No início daquele ano, os Gauleiter Wagner, Bürckel e Simon fizeram um acordo sobre a participação dos alsacianos, lorenos e luxemburgueses na guerra. A luta contra o bolchevismo foi invocada, para estimular o alistamento voluntário. Lançaram então uma campanha de propaganda que trazia um apelo assinado por antigos combatentes alsacianos. O balanço oficial contabilizou 2.100 inscrições, ou seja, apenas 2% da população.

Os governantes logo pensaram em submeter os alsacianos e lorenos ao recrutamento forçado, mas a idéia provocou reservas do alto-comando da Wehrmacht e dos juristas do Reich. Afinal, pelo direito internacional eles continuavam sendo franceses. Em 9 de agosto de 1942, Hitler tomou sua decisão: a incorporação desses homens e mulheres provaria ao alto-comando da Wehrmacht que a autoridade política do Reich era perfeitamente capaz de mobilizar reservas importantes.

Fiel companheiro do Führer, o Gauleiter Wagner sustentava também que o alistamento dos alsacianos garantiria sua integração de fato à Alemanha. Em 25 de agosto, ele mandou promulgar um decreto sobre o Wehrdienst, o serviço armado. Três dias depois, anunciou que a cidadania alemã seria conferida aos alsacianos que a merecessem. Eles gozariam dos mesmos direitos e deveres que os outros soldados do Reich.



© PRESSE LIBERATION/AFP

Humilhados, os alsacianos participaram de desfiles de prisioneiros em Moscou

A partir de 28 de agosto, os jovens nascidos entre 1920 e 1924 tiveram de se apresentar ao serviço médico. Outras faixas etárias também foram convocadas. Todos seriam incorporados progressivamente ao Exército, Marinha e Aeronáutica, além de outras organizações como a Todt, responsável pela infra-estrutura militar, e as milícias populares.

Em 1944, a maioria dos novos combatentes seria ligada à Waffen SS, braço de combate da temida Schutzstaffel (SS). Na Alsácia e na Lorena, todo esse processo foi um grande trauma. Muitos dos alistados se revoltaram e tentaram fugir para a Suíça. Capturados, foram enviados ao campo de Struthof e morreram fuzilados. Os rebeldes passaram a se esconder ou até mesmo se mutilar para não serem obrigados a usar o uniforme com a suástica.

DEPORTAÇÕES
Os nazistas removeram famílias inteiras para o interior da Alemanha ou para a Polônia, então sob domínio de Hitler. Parte deles recusava-se a prestar juramento ao novo governo. Em um caso exemplar, 44 alsacianos, oficiais da reserva do exército francês, foram convocados para servir a Waffen SS. Apenas dois aceitaram. Os demais foram mandados para campos de concentração.

Chamados de Beutedeutschen, “os alemães conquistados”, os alsacianos e lorenos viram-se dispersos entre a imensidão de unidades. Imersos na máquina de guerra, em pouco tempo submetidos às exigências das operações, eles seriam chamados a combater em todas as frentes: Itália, Iugoslávia, Grécia, Dinamarca, Noruega, Normandia. O fracasso da campanha na Rússia levou o estado-maior alemão a enfrentar a recuperação soviética. Os alsacianos e lorenos tiveram de lutar no front oriental.


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Em abril de 1945, soldados alemães são capturados pelo Exército Vermelho

Do outro lado da linha de combate, o Exército Vermelho soviético multiplicava os apelos à deserção dos nazistas por meio de panfletos e alto-falantes. Prometia aos alsacianos e lorenos que eles poderiam se juntar às tropas do general De Gaulle, figura pública da Resistência francesa. Muitos foram convencidos por essa propaganda. Porém, quando chegavam às trincheiras russas, eram considerados inimigos.

Sem suas alianças, relógios, botas e outros parcos pertences, eles foram tratados como gado e levados aos campos de concentração. Eles não figuravam em nenhuma lista, sua captura não fora registrada.

OS CAMPOS SOVIÉTICOS
Em 1944, entre 450 mil e 500 mil soldados alemães caíram nas mãos dos soviéticos, e, nos primeiros cinco meses de 1945, 1 milhão. Os presos eram mandados a campos por toda a Europa conquistada pelo Exército Vermelho. Jean Thuet, presidente da Federação dos Antigos Combatentes de Tambow, listou mais de uma centena deles em locais até hoje desconhecidos. Contrariando as convenções internacionais, as condições eram desumanas. Tambow, a 350 km de Moscou, era o temido campo número 188. Sujeitos à autoridade direta da polícia secreta de Joseph Stálin, cerca de 13 mil alsácio-lorenos foram internados ali, junto com outros 17 mil prisioneiros de guerra. Trabalhos forçados, subalimentação, o rigor do clima e uma onda de disenteria elevaram muito a taxa de mortalidade: mais de 12 mil pessoas morreram no local.

A “conversão” dos detentos de Tambow ao comunismo era um dos objetivos dos soviéticos. Para impor a “reeducação política”, eles encontraram auxiliares nas fileiras dos presos. Alguns alsacianos e lorenos se transformariam em funcionários dos soviéticos, por interesse ou convicção. Outros foram redirecionados a uma caserna próxima de Moscou, na escola antifascista de Krasnogorsk, onde receberiam a visita de Maurice Thorez e de eminentes figuras do regime stalinista.

Em 7 de julho de 1944, na presença do general Petit, comandante da missão militar francesa em Moscou, 1.500 alsacianos e lorenos foram libertados do campo de Tambow. Antes de sua partida, receberam alimentação privilegiada. Equipados com uniformes soviéticos, foram encaminhados por Odessa à África do Norte e participaram de forma compulsória de uma operação de propaganda. A verdadeira intenção de Moscou era constituir unidades pagas, explorando prisioneiros de guerra como mão-de-obra e utilizando os cidadãos franceses mantidos prisioneiros como moeda de troca. Os alsácio-lorenos incorporados ao exército alemão eram reféns dessa estranha “reciprocidade”.

Ainda em julho, 57.600 prisioneiros alemães desfilaram em Moscou sob insultos dos soviéticos. Alguns alsacianos participaram desse triunfo do Exército Vermelho.

A capitulação da Alemanha, em 8 de maio de 1945, não pôs fim ao martírio desses soldados. Apesar do acordo entre França e URSS, estabelecido em 29 de junho, os soviéticos libertaram os cidadãos franceses a conta-gotas. Os soldados alsacianos voltaram verdadeiros esqueletos ambulantes. Em Chalon-sur-Saône, onde as autoridades francesas abriram um “centro de acolhimento” destinado a “filtrar” os resgatados, os testemunhos, de tão aterradores, chegavam a incomodar.

Na Alsácia e na Lorena, circulavam listas, ilustradas por fotografias. Elas traziam as últimas informações sobre os desaparecidos. Em 11 de julho de 1946, diante da Assembléia Nacional, o deputado Pierre Clostermann afirmava que na Alsácia “todas as questões econômicas e políticas perdiam em importância para a questão dos que lutaram a contragosto”.

Ainda levaria quatro anos para que a União Soviética anunciasse o fim do repatriamento dos prisioneiros de guerra alemães. A agência soviética indicava que 1.939.063 soldados detidos por eles teriam voltado à Alemanha desde a capitulação, e que restariam 9.717 prisioneiros acusados de crimes de guerra. Em 21 de novembro de 1950, um jornal de Estrasburgo exibia a manchete: “13.615 alsacianos e lorenos desapareceram vestindo o uniforme alemão, e seu paradeiro é desconhecido”.

Mas a esperança da volta ainda permaneceria por muito tempo, mantida por informações de soldados que conseguiram regressar por conta própria, em pequenos grupos. Foram 75 homens em 1947, 19 em 1948, 12 em 1949, 18 em 1951, quatro em 1952 e sete em 1953. Em 13 de abril de 1955, o estrasburguês Jean-Jacques Remetter foi o último a chegar. Dado como desaparecido desde 3 de maio de 1947 e declarado morto por processo administrativo em 1952, seus familiares já não esperavam mais por ele. Vestido à moda russa, Remetter mal compreendia a língua alsaciana. Aos 43 anos, parecia ter 60. Tinha vivido quatro anos em guerra e outros dez em campos de prisioneiros e de trabalhos forçados.

UMA MEMÓRIA DOLOROSA Os primeiros testemunhos desse drama apareceram em livros já nos anos 50. Por sugestão do general Touzet du Vigier, governador militar de Estrasburgo, constituiu-se a Associação dos Refugiados e Incorporados à Força (Adeif) para a defesa de seus interesses materiais e morais. A organização também divulgava a lista dos desaparecidos e estimulava o governo a reclamar notícias deles. Ela teria um papel importante na reintegração aparente dos incorporados.

Para René Kapps, alistado à força no exército alemão em 1944 e capturado na Polônia no ano seguinte, os resgatados são “testemunhas incômodas, ou então acusados. Nossa história foi escondida porque, infelizmente, nossa sorte incomoda todo mundo. Alguns de nossos camaradas foram escamoteados, como prisioneiros franceses detidos na Prússia Oriental, que os soviéticos espalharam por seus incontáveis campos. Os mortos não falam”.

A memória alsaciana e lorena continua dolorosa. Para aplacar as chagas, sempre existe a possibilidade de indenizar os alsacianos e lorenos. Mas permanece a incompreensão. E não falta quem ironize a “síndrome alsaciana”, se interrogando sobre a “memória negada” e reprovando os alsacianos e lorenos por supostamente se colocarem na posição de vítimas. Mas os fatos falam por si. Os alsacianos e lorenos pagaram à guerra um tributo mais alto do que a média dos franceses. Eles pertencem à multidão de pequenos povos maltratados pelos Estados. Não é surpreendente que encontremos entre eles os mais ardentes defensores da unidade européia.

CRONOLOGIA
1618
O Sacro Império Romano Germânico é consumido por disputas internas e tem início a Guerra dos Trinta Anos

1648
Paz de Vestfália: a Alsácia-Lorena fica sob controle da França

1870
Explode a guerra franco-prussiana. No tratado de 1871, a Alsácia-Lorena volta para as mãos dos germânicos

1918
Fim da Primeira Guerra Mundial. No Tratado de Versalhes, a França obtém a Alsácia-Lorena

1939
Início da Segunda Guerra Mundial

15 de maio de 1940
Os nazistas tomam a Alsácia-Lorena

9 de agosto de 1942
Alistamento da população da Alsácia-Lorena nas forças armadas alemãs

7 de julho de 1944
1.500 alsacianos e lorenos são libertados do campo de concentração de Tambow

13 de abril de 1955
O estrasburguês Jean-Jacques Remetter foi o último alsaciano prisioneiro político a regressar à França

UMA DISPUTA SECULAR


ILUSTRAÇÃO: ERIKA ONODERA

A região da Alsácia-Lorena era germânica. Ao menos até o século XVII. Naquela época, o Sacro Império Romano Germânico, sob a coroa dos Habsburgo, estava tomado por conflitos religiosos entre católicos e protestantes. Os governantes, influenciados pela Contra-reforma da Igreja, tomaram um lado da briga, o do catolicismo, e começaram a impor esta religião como instrumento de unificação política.

Porém, eles não previram que seus inimigos também poderiam querer entrar nessa confusão. Afinal, era um momento de fragilidade do império e uma boa oportunidade para aqueles que desejavam ver o poder dos Habsburgo diminuído. A disputa por hegemonia culminou na Guerra dos Trinta Anos, que envolveu, entre outros países, a França. Com os germânicos derrotados, as regiões da Alsácia e da Lorena passaram para as mãos dos franceses na Paz de Vestfália, tratado de 1648.

Em 1848, 200 anos depois, a Alemanha ainda não tinha se constituído como um Estado. Duas forças disputavam a Confederação Alemã: a Prússia e a Áustria. A querela seria resolvida por Otto von Bismarck, décadas depois. Nomeado primeiro-ministro da Prússia em 1862, ele planejou meticulosamente a unificação da Alemanha. Em 1867, após uma guerra contra a Áustria, conseguiu que todos os Estados do norte aceitassem seu domínio, formando a Confederação Germânica do Norte. O sul, porém, permanecia um problema. Bismarck decidiu incentivar o nacionalismo das regiões, inclusive as francesas. Foi o suficiente para explodir, em 1870, a guerra franco-prussiana. Bismarck saiu vitorioso e obteve como recompensa, entre outras, a anexação da Alsácia-Lorena. Para evitar rebeliões locais, instalou lá uma administração severa, com rígida vigilância militar.
A população local engoliu a seco. ”Depois da humilhação de 1871, as crianças francesas passaram a ser educadas para um único fim: a vingança. Todas as canções que se escutavam nas festas familiares falavam da Alsácia-Lorena”, relatou a historiadora Josette François.

A paz duraria pouco. Com a queda de Bismarck, em 1890, o Kaiser Guilherme II levou a Alemanha a um belicismo exacerbado, acentuando o clima de conflito na Europa. Seus inimigos, entre eles a França, que justamente reivindicava a devolução da Alsácia-Lorena, formaram alianças contra Guilherme II e o Império Austro-Húngaro. Em 1914, a Primeira Guerra Mundial foi declarada. Ao seu fim, o Tratado de Versalhes, assinado com a derrotada Alemanha, tinha como um dos pontos a devolução da Alsácia-Lorena para a França. Não tardaria muito para os alemães tentarem pegá-la de volta, na Segunda Guerra Mundial.

GLOSSÁRIO
GAU: espécie de condado, província ou região administrativa do III Reich.

GAULEITER: administrador ou prefeito dos Gau.

SCHUTZSTAFFEL (SS): organização militar do Partido Nazista.

Jean-Jacques Mourreau é jornalista e escritor. De origem alsaciana, seu pai foi um dos convocados à força, ferido e capturado pelas tropas soviéticas na Prússia Oriental

Revista Historia Viva

KLAUS BARBIE: o ocaso do carrasco

Klaus Barbie, o açougueiro de Lyon, capturou Jean Moulin, o principal chefe da Resistência Francesa, mandou milhares de judeus para os campos de concentração e, depois da guerra, colaborou com a ditadura boliviana. Sádico e cruel, o oficial de Adolph Hitler executava com muito empenho as ordens de seus superiores.
por Rémi Kauffer

Em 1935, Klaus Barbie ingressou na SS, atingindo em pouco tempo um posto de comando na tropa de Hitler. Em novembro de 1942, foi enviado a Lyon para chefiar a Gestapo na cidade francesa

Entre sua chegada a Lyon, no fim de 1942, e sua fuga precipitada diante dos exércitos aliados no verão de 1944, foi ele o caçador. Vinte meses de batidas, de perseguições, de armadilhas. O prazer de perceber a angústia em lábios que tremem, em joelhos vacilantes. Pois ele, o Obersturmführer das SS, número 272284, espécime eminente da raça dos senhores, não temia Deus nem o diabo. Fanfarrão, era visto percorrendo com freqüência as ruas de Lyon acompanhado de três ou quatro homens, não mais.

Nessa época, ainda não era chamado de o carrasco de Lyon - um achado do pós-guerra. Mas o Obersturmführer Klaus Barbie já tinha um considerável currículo como caçador. Clandestinos ligados a redes de resistência francesas ou britânicas, maquis, judeus - inclusive crianças, como em Izieu. Centenas de deportações raciais ou não, assassinatos, torturas, execuções. E o fino do fino, a captura dos chefes da Resistência - entre eles Jean Moulin, reunidos para designar o novo chefe do exército secreto - em Caluire, no dia 21 de junho de 1943.

Brutal, sádico, desprovido de escrúpulos: assim era Klaus Barbie. Um puro produto do fanatismo ideológico nazista, com seu desfile de racismo, de desprezo pelos seres inferiores.

EUA protegem o nazista

A estada de Barbie em Lyon foi agradável. Depois da derrota do III Reich começam os dias penosos em que o caçador se faz caça, e o oficial das SS passa a se esquivar. Promovido a Hauptsturmführer (capitão) em novembro, o ex-chefe do Amt IV do KdS de Lyon retornou a uma Alemanha que, sob as bombas dos aliados, não pára de se encolher.

Barbie figura como criminoso de guerra no Central Registry of Wanted War Criminals and Security Suspects, o Crowcass, um arquivo organizado pelos aliados. Na lista dos agentes alemães que atuaram na França, criada pela polícia do exército francês, ele aparece com o nome de "Barbier".

Mas é preciso ter cuidado, pois uma guerra pode esconder outra, e a Segunda Guerra Mundial dá lugar à Guerra-Fria. Em abril de 1947, Barbie é recrutado em Munique por uma unidade especial do Counter Intelligence Corps americano. Os objetivos do CIC não eram a perseguição de criminosos de guerra, atributo de outro ramo da organização, mas a luta contra a espionagem soviética na zona de ocupação americana, a infiltração no KPD, o partido comunista alemão, e a obtenção de informações sobre o aliado francês - alvo de desconfianças.

Teria o ex-chefe do Amt de Lyon relatado a seus superiores americanos o martírio de Jean Moulin, o representante pessoal do general de Gaulle na França ocupada, e de seus camaradas de Caluire? É pouco provável. Mas por que não mencionar as operações que efetuou em maio de 1944? Com as informações de um agente duplo, o franco-alemão Lucian Wilhelm Iltis, responsável pelo aparelho clandestino da Internacional Comunista e simultaneamente informante da Gestapo de Estrasburgo, Barbie desarticulou o estado-maior da resistência militar comunista da zona sul da cidade em apenas três dias.

Cerca de 40 dirigentes, dezenas de franco-atiradores e de combatentes caíram na armadilha nazista apenas um mês antes do desembarque na Normandia: um exemplo eloqüente de eficiência, apropriado para ser exposto a seus interlocutores - e logo patrões - americanos.

Vida na Bolívia

No começo de 1951, depois de cinco anos de bons e leais serviços, Klaus Barbie e sua família seguem a linha dos ratos, esta sucessão de etapas que conduz antigos nazistas para a América do Sul. É na Bolívia que ele se instala, um país de 3 milhões de habitantes, onde os imigrantes alemães são tradicionalmente numerosos. Naturalizado boliviano em outubro de 1957, sob o falso sobrenome de Altmann, começa a engordar seu patrimônio. Acolhe com fleuma a visita oficial do general de Gaulle em setembro de 1963. Por que deveria inquietar-se, já que o presidente francês, em seus projetos de reaproximação com a Alemanha Federal, já libertou seus dois ex-chefes, os generais Oberg e Knochen? Dois meses mais tarde, o exército francês, tendo localizado Barbie em La Paz, solicita que o Sdece, os serviços especiais franceses, se ocupem do caso, mas o pedido não dá resultados.

Em 1966, o ex-agente das SS número 272284 começa a lidar com armamento naval. Com o apoio do general-presidente Barrientos, ele cria a Transmaritima Boliviana, uma sociedade da qual possui 49% das ações (os 51% restantes pertencem ao Estado).

Colaboração com a ditadura boliviana

Localizado pelos serviços franceses, Barbie também é encontrado pelos americanos. A CIA chegou a cogitar propor-lhe uma nova colaboração antes de desistir da oferta, depois de uma queixa feita por um senador influente, Jacob Javits, alertado por um de seus eleitores. Pior para a CIA que, inquieta por causa do crescimento das idéias castristas na América do Sul, procura informantes na região. Ela localiza Che Guevara na Bolívia, onde o revolucionário argentino tenta implantar uma oposição armada ao regime de Barrientos. Pouco depois, a polícia boliviana captura um jovem militante de extrema-esquerda, Régis Debray, teórico do foco guerrilheiro.

Com a ajuda da CIA, os militares bolivianos cercam Che Guevara que, ferido, será executado sem processo a 9 de outubro de 1967. Uma complicação surge dois anos mais tarde: informado da presença de Barbie pelo cônsul da França em La Paz, o embaixador e o ex-chefe da Resistência do maquis de Glières, Joseph Lambroschini, reconhece sua impotência.

Negociando com as autoridades bolivianas para obter a libertação de Régis Debray, condenado a 30 anos de prisão, os diplomatas franceses não estão em condições de exigir a extradição de Barbie simultaneamente. Libertado, Debray volta a Paris em 1970. No ano seguinte, o ex-oficial nazista recolhe contribuições na região de Cochabamba, onde tem vários negócios.

O carrasco de Lyon trabalha para o general Hugo Banzer, um militar de extrema direita decidido a derrubar o governo de esquerda do general Torres. A missão foi cumprida em junho de 1971. Como recompensa pelos bons e leais serviços, os amigos de Banzer nomeiam Barbie tenente-coronel honorário dos serviços secretos. Onipresente, o ex-oficial das SS também serve de intermediário com a Alemanha para a compra de armas. Mas um dia o vaso se quebra. Beate e Serge Klarsfeld, os caçadores de nazistas seguem seu rastro. Em janeiro de 1972, Beate vai ao Peru, onde Barbie passa férias, e depois chega à Bolívia. Sua iniciativa permite tornar público o caso. No dia 1.o de fevereiro, a França pede a extradição. Evidentemente, La Paz não se empenha em agir rapidamente.

Régis Debray reaparece a esta altura dos acontecimentos. Ele se tornara conselheiro do presidente socialista chileno Salvador Allende, e toma a iniciativa de entrar em contato com Klarsfeld durante uma visita a Paris. Um projeto ambicioso nasce do encontro dos dois, num café de Saint-Germain-des-Prés: oficiais ligados à oposição de esquerda ao regime de Banzer e guerrilheiros bolivianos raptariam Barbie, que seria levado ao Chile, de onde seguiria por barco à França. Refugiado político no Chile, Gustavo Sánchez, ex-chefe da polícia de Cochabamba, também de passagem pela França, se une ao complô que apóia o ex-presidente Torres, agora refugiado no Uruguai, onde será assassinado pouco tempo depois.

Com o passaporte de um amigo, Serge Klarsfeld vai ao Chile no fim de dezembro de 1972. Leva 5 mil dólares para comprar um carro destinado a levar Klaus Barbie clandestinamente. Klarsfeld e Debray vão até a fronteira, onde encontram Sánchez e outros bolivianos, entre eles dois oficiais.

Nos meses seguintes, dois acontecimentos inesperados mudam infelizmente o quadro. Primeiro, um acidente com o carro comprado graças aos 5 mil dólares de Klarsfeld; em seguida, a prisão momentânea de Barbie, em 2 de março de 1973, por causa de dívidas não pagas e do exame do pedido de extradição feito pela França. Conforme o previsto, no dia 5 de julho a corte suprema da Bolívia recusa o pedido de extradição: Herr Altmann não pode ser extraditado para a França, pois não há nenhum tratado neste sentido entre os dois países. Mas Barbie só sai de sua cela na prisão de San Pedro no dia 25 de outubro, um mês e meio depois do golpe contra Allende no Chile, o que torna impossível a realização do plano de Debray e dos Klarsfeld.

Prisão perpétua

Mas o desfecho da história foi apenas adiado. O casal de caçadores de nazistas logo consegue infiltrar uma amiga alemã - cuja identidade se recusam até hoje a revelar - nos círculos freqüentados por Barbie. Sempre protegido pelas autoridades bolivianas, Barbie esconde cada vez menos seu passado nazista. Mas em julho de 1978, seu amigo, o general Banzer, renuncia e foge. Golpes de Estado (o ex-SS desempenha, às vezes, papel importante, como em julho de 1980), demissões forçadas, manifestações. No começo de 1982, os EUA, cansados das ditaduras militares latino-americanas, impõem o retorno ao poder do democrata Hernán Siles Zuazo, cujo secretário de Estado da Informação, e logo chefe da polícia do exército, é Gustavo Sánchez, velho cúmplice de Debray e dos Klarsfeld. Debray se tornou conselheiro do presidente Mitterrand. Com o apoio dos Klarsfeld, o ex-companheiro do Che exuma o dossiê de Barbie. Tudo se acelera. Privado de sua nacionalidade boliviana por causa de falsas declarações de identidade quando de sua entrada no país, o carrasco de Lyon é preso. É necessário entregá-lo à França, onde cometeu uma boa parte de seus crimes; ou à Alemanha, seu país de origem, que o reclama para julgá-lo.

Depois de hesitações e ofertas comerciais e econômicas, Sánchez e os bolivianos escolhem a França. No dia 4 de fevereiro de 1983, às 21 horas, oficialmente extraditado para o único país que aceita acolhê-lo, Barbie deixa algemado a prisão de San Pedro. No aeroporto, aviadores franceses e agentes da DGSE se ocupam dele. No dia seguinte, às 22h25, um camburão leva o carrasco de Lyon para a prisão de Montluc, lugar de suas sinistras façanhas, 40 anos antes. Na sexta-feira, dia 3 de julho de 1987, Klaus Barbie é condenado pelo tribunal de Lyon à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Em 1991, no dia 25 de setembro, o ex-oficial nazista morre na prisão, vítima de câncer.

Rémi Kauffer é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris.

Revista Historia Viva