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sábado, 15 de setembro de 2012

Assim se colonizou a África negra


No século 16, as invasões portuguesa e marroquina iniciaram a desestruturação dos reinos e impérios ao sul do Saara — onde havia cidades de mais de 100 mil habitantes. Após três séculos de guerras, e escravidão ocidental e árabe, a população estaria reduzida a um quarto da original e as sociedades, arrasadas
por Louise Marie Diop-Maes
No século 16, na maior parte das regiões da África subsaariana, existiam cidades de tamanho considerável para a época (de 60 mil a 140 mil habitantes ou mais), aldeias grandes (de mil a 10 mil habitantes), parte de reinos e impérios notavelmente organizados, territórios de habitat disperso denso. É isso que revelam os vestígios e escavações arqueológicas, bem como as fontes escritas, tanto externas (árabes e européias, anteriores a meados do século 17) como internas (autóctones, escritas em árabe, língua da religião, ou no latim da Europa). A agricultura, criação de animais, caça, pesca, artesanato muito diversificado (tecidos, metais, cerâmica etc.), navegação fluvial e lacustre, comércio local e distante, com moedas específicas, eram bem desenvolvidos e ativos.
O nível intelectual e espiritual era análogo ao do Norte da África na mesma época. O grande viajante árabe do século 14, Ibn Battuta, louva a segurança e a justiça encontrada no império do Mali. Antes da utilização de armas de fogo, o comércio árabe permanecia secundário em relação à atividade econômica e ao volume da população. Leão, o Africano (início do século 16), menciona que o rei de Bornu (região chadiana) organizava apenas uma expedição por ano para capturar escravos [1].
A partir do século 16, a situação modifica-se radicalmente. Os portugueses penetram ao sul da foz do rio Congo, conquistam Angola, destróem os principais portos da costa oriental e alcançam o atual território de Moçambique. Os marroquinos atacam o império songai, que resiste durante nove anos. Os agressores dispõem de armas de fogo; os subsaarianos, não. Milhares de habitantes são mortos ou capturados e condenados à escravidão. Os vencedores se apossam de tudo: homens, animais, provisões, objetos preciosos e o que mais possam pegar.
Reinos e impérios são pulverizados em principados ? levados a guerrear com freqüência cada vez maior, a fim de ter prisioneiros que possam ser trocados, principalmente por fuzis, indispensáveis na defesa e no ataque. Populações são deslocadas ? provocando novos choques, campos de refugiados, a propagação de um estado de guerra latente até o coração do continente. As investidas militares multiplicam-se, ao ponto de atingir, no nordeste da África Central do início do século 19, o número de 80 por ano, segundo o erudito tunisiano Mohamed el Tounsy, que viajou por Darfur e Ouaddaï (atual Chade) nessa época [2]. A porcentagem de cativos em relação ao conjunto da população aumenta continuamente, entre o século 17 e o fim do 19. "Distritos outrora densamente povoados foram reconquistados pelo mato" ou pela floresta [3].
A partir das invasões portuguesa e marroquina, 
toda a estrutura social entra em colapso

O tecido sócio-econômico e político-administrativo, que fora constituído aos poucos, se corrompe e arruína inteiramente. Nos locais onde o cultivo de alimentos e a obtenção de água são difíceis, as pessoas vêem-se, com freqüência, reduzidas à auto-subsistência. Uma regressão enorme ocorre em todos os domínios. O destino dos cativos se agrava. Uma nova categoria social nociva emerge: a dos agentes comerciais, dos encarregados de caravanas, dos intérpretes, dos intermediários, dos abastecedores ? os "colaboracionistas" da época, enfim. Alguns príncipes tentam, em vão, se opor a esse comércio cada vez maior de seres humanos. Mas o rei de Portugal responde negativamente às cartas de protesto de Alfonso, o rei do Congo — convertido ao cristianismo. Um de seus sucessores é reduzido ao silêncio pelas armas. O mesmo em Angola.
O posto de comércio francês no Senegal fornece armas aos mouros para que ataquem o damel [4], que não autoriza a passagem das caravanas de escravos. É portanto a demanda externa que provoca uma enorme disseminação e proliferação da escravidão na África negra.
No começo, os reis entregavam apenas os condenados à morte. Mas os portugueses desejam efetivos mais volumosos, que eles próprios se encarregam de capturar, atacando sem qualquer outro pretexto. De 1575 a 1580, Dias Novais, primeiro governador de Angola, expedia cativos a um ritmo de 12 mil por ano em média [5]. É duas vezes mais, só partindo de Angola, que todo o tráfico transaariano na mesma época, se tomarmos como referência, por exemplo, os números colhidos pelo historiador norte-americano Ralph Austen.
No século 17 e, principalmente, no 18, a maior parte dos armadores europeus — sobretudo os holandeses, ingleses e franceses — dedica-se a tal tráfico marítimo ultra-lucrativo. Na segunda metade do século 18, atingem-se números extraordinários: exceto nos anos de guerra entre franceses e ingleses, centenas de navios embarcam de 150 mil a 190 mil cativos por ano [6]. A insegurança generalizada e crescente multiplica a penúria, fome, doenças locais e, pior de tudo, doenças trazidas de fora — particularmente, a varíola. As endemias se instalam e as epidemias se alastram.
Guerras, tráfico de escravos, queda da natalidade: um enorme déficit demográfico reduz a um quarto a população

Surge um enorme déficit demográfico. Ele é devido, em primeiro lugar, a todos os que morreram por causa dos ataques e durante as transferências do interior para os pontos de partida e os entrepostos; aos que se suicidaram e aos revoltosos executados no momento do embarque; aos óbitos resultantes da multiplicação das investidas e das guerras internas provocadas pela desarticulação de entidades políticas, pela fuga das populações, pela vontade cada vez maior de fazer prisioneiros; aos mortos pela fome (após pilhagem de colheitas e estoques) e por doenças de todo tipo; aos que padecem devido à introdução de armas de fogo e álcool adulterado, ao retrocesso da higiene e dos conhecimentos adquiridos.
A todos esses mortos somam-se os cativos e cativas arrancados do subcontinente. O próprio número de nascimentos entra em queda, devido à desarticulação da sociedade. Como durante a Guerra dos Cem Anos, que levou a França a perder metade de sua população, o decréscimo se fez de maneira irregular, variando conforme a região. Acentua-se fortemente a partir do fim do século 17. De meados do século 18 em diante, o decrescimento global é maciço e rápido.
É possível avaliar esse decrescimento? Para medir os efeitos demográficos da Guerra dos Cem Anos na França, comparamos o número de residências existente antes da guerra com o número contabilizado depois. Na África, tanto quanto na Índia, não dispomos de registros de batismos e outros, mas sabemos, a partir dos viajantes e exploradores do século 19, que, na parte ocidental, as maiores aglomerações não contavam com mais de 30 mil a 40 mil habitantes. Eram, portanto, cerca de quatro vezes menores do que as maiores cidades do século 16.
Segundo os mesmos testemunhos, pode-se observar que a diferença era ainda maior entre a população rural ou entre o número de combatentes que um príncipe ou um líder guerreiro podia arregimentar. Será a relação aproximada de 4 para 1, observada na África Ocidental, representativa da diminuição do conjunto da população africana negra entre os séculos 16 e 19? Do cabo das Palmas [7] ao sul de Angola, as perdas foram ainda mais elevadas. Gwato (Ughoton), o porto de Benin, contava 2 mil residências quando os portugueses lá chegaram e não mais que 20 ou 30 quando os exploradores do século 19 apareceram [8]. O historiador norte-americano William G. Randles mostra que a população de Angola havia igualmente se reduzido em proporções imensas [9]. Por outro lado, as regiões do Chade, no interior, permaneceram bastante povoadas até cerca de 1890 — com cidades de 3 mil habitantes em 1878.
A mesma destruição da Guerra dos Cem Anos na Europa, 
porém por mais de três séculos...

No atual Sudão, o despovoamento começa com a dominação escravista do paxá egípcio Mohammed Ali, em 1820. Na África Oriental, os planaltos elevados, como em Ruanda e Burundi, permanecem densamente povoados, em torno de 100 habitantes por quilômetro quadrado, contrariamente ao que se deu na região do lago Niassa. Na África do Sul, a partir da primeira metade do século 19, a ação dos ingleses se soma à dos bôeres [10] para dizimar as populações autóctones. No conjunto, parece razoável considerar que a população da África negra era, no século 19, três a quatro vezes menor do que no século 16.
Mas será possível saber o tamanho da população da África negra perto de meados do século 19? A conquista colonial (artilharia contra fuzis de tráfico), o trabalho forçado multiforme e generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a subalimentação, as diversas doenças locais e, de novo, as doenças importadas e a continuação do tráfico oriental reduziram ainda mais a população que baixara para quase um terço, já em 1930. Nessa época, medidas administrativas e sanitárias propiciaram a retomada do crescimento demográfico, que foi cada vez maior.
Essa avaliação foi possível porque, com a presença européia no interior dos territórios, certos dados estatísticos foram acrescentados às fontes narrativas [11]. Em 1948-1949, um recenseamento geral e coordenado foi efetuado em toda a África subsaariana. Após a correção por falta de declaração, a população foi estimada em, aproximadamente, 140 a 145 milhões de pessoas. Pode-se supor que, em 1930, a população somava de 130 a 135 milhões de indivíduos. Esses representavam, então, dois terços da população aproximada das décadas de 1870-1890 — cerca de 200 milhões. Segundo o resultado de minhas pesquisas, a população era da ordem de pelo menos 600 milhões (uma média de 30 habitantes por km2) no século 16 . Os números antigos de 30 a 100 milhões são totalmente imaginários, como bem o mostrou Daniel Noin, ex-presidente da Comissão de População da União Geográfica International (IGU, segundo as iniciais em inglês) [12].
Entre meados do século 16 e 19, a população subsaariana decaiu em cerca de 400 milhões. Desse total, a porcentagem dos que foram deportados do litoral e do Sahel é impossível de precisar, em função do volume do contrabando e do número muito elevado de clandestinos, antes e depois da proibição do tráfico. Segundo diversas fontes e pesquisas, os números oficiais para o tráfico europeu são, na realidade, o dobro [13]. As estimativas do tráfico árabe são também aleatórias. Para fornecer uma ordem de grandeza, digamos que o número, para os dois tráficos somados, deva se situar entre 25 e 40 milhões. Continua ainda um tanto discutível, mas não resta dúvida que as estimativas frágeis não dão conta da enormidade das dissimulações. Cerca de 90% da perda de população deveram-se a mortes ocorridas na própria África. Isso se explica pela situação de grave insegurança no conjunto do território, que persistiu por quatro séculos, resultado dos efeitos destrutivos, diretos e indiretos, de dois tráficos simultâneos, cada vez mais intensos.
Uma Guerra dos Cem Anos que durou três séculos, com as armas da Guerra dos Trinta Anos, e depois as dos séculos seguintes. A conquista e a ocupaç
Louise Marie Diop-Maes é doutora em geografia humana, autora de Afrique noire, démographie, sol et histoire (Dakar-Paris, Présence Africaine/Khepera, 1996).

[1] Jean-Léon l?Africaine, Description de l?Afrique, Paris, Adrien-Maisonneuve, 1956.
[2] Pierre Kalck, Histoire de la République centrafricaine, Paris, Berger Levrault, 1995.
[3] Charles Becker, "Les effets démographiques de la traite des esclaves en Senegambie", em De la traite de l?esclavage, actes du Colloque de Nantes, t. 2, Nantes-Paris, CRHMA e SFHOM, 1988.
[4] Título dado aos soberanos animistas do reino de Cayor (Senegal).
[5] William G. Randles, De la traite à la colonisation: les Portugais en Angola, em Annales ESC, 1969.
[6] Idem.
[7] Localizado na fronteira entre o que são hoje a Libéria e a Costa do Marfim, margem Norte do Golfo da Guiné (Nota da edição brasileira)
[8] Raymond Mauny, Les siècles obscurs de l?Afrique, Paris, Fayard, 1970
[9] Charles Becker, op. cit.
[10] Colonizadores holandeses (e franceses).
[11] Wiliam Randles, op. cit.
[12] Idem.
[13] Daniel Noin, La population de l?Afrique subsaharienne, Éditions Unesco, 1999.
F?
Le Monde Diplomatique Brasil

sábado, 25 de agosto de 2012

Ato Colonial (1930)



Artigo 2.º
É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.
Artigo 22.º
Nas colônias atender-se-á ao estado de evolução dos povos nativos, havendo estatutos especiais dos indígenas, que estabeleçam para estes, sob a influência do direito público e privado português, regimes jurídicos de contemporização com os seus usos e costumes individuais, domésticos e sociais, que não sejam incompatíveis com a moral e com os ditames de humanidade.
Artigo 35.º
Os regimes econômicos das colônias são estabelecidos em harmonia com as necessidades do seu desenvolvimento, com a justa reciprocidade entre elas e os países vizinhos e com os direitos e legítimas conveniências da metrópole e do Império Colonial Português.
Fonte: PORTUGAL EXAME NACIONAL DO ENSINO SECUNDÁRIO

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Portugueses do sol nascente


Portugueses do sol nascente
No Japão do século 16, a presença lusitana deixou marcas profundas

No auge de seu império, Portugal teve colônias na costa da África, em ilhas do Atlântico, no Oriente Médio, na Índia, na China, no Sudeste Asiático e no Brasil. Mas um outro país também foi ocupado: o Japão. Ainda que essa história seja pouco conhecida, a presença portuguesa na terra do sol nascente deixou marcas permanentes na cultura local.

Segundo o tratado Teppo-ki ("Crônica da espingarda"), de 1606, os lusos chegaram ao Japão em 1543. Não por acaso, esse registro está contido em uma obra histórica sobre a introdução da arma de fogo no país. A colonização europeia foi apoiada em armamentos, no comércio e na divulgação do cristianismo.

A princípio, cada navio ocidental chegava carregado com pólvora, seda e porcelana, trazidos da China, e especiarias da Índia. Rapidamente, o objetivo comercial somou-se à intenção de propagar a fé cristã. "O binômio missionário-comerciante é constante na história da presença portuguesa no Japão", afirma Madalena Ribeiro, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa.

Em 1582, já havia 150 mil cristãos no Japão e 200 igrejas, além de 20 padres. No auge, o número chegou a 200 mil, distribuídos principalmente no sul do país, em Kagoshima e Nagasaki. Mas a intromissão estrangeira em um país em fase de unificação incomodou as autoridades locais. A partir de 1587, os cristãos começaram a ser reprimidos. Os que não recuaram se tornaram kakure kirishitan, ou "cristãos ocultos". Com o tempo, a falta de contato com sacerdotes católicos fez com que alguns rituais fossem adaptados. Nas missas, a hóstia e o vinho passaram a ser substituídos por sashimi, arroz e saquê. Em 1859, quando chegaram ao Japão, missionários franceses descobriram que cerca de 60 mil japoneses praticavam o cristianismo na clandestinidade. As comunidades kirishitan existem até hoje. Muitas ainda têm orações como pai-nosso e ave-maria, recitadas (sem serem compreendidas) em uma mistura de japonês, latim e português do século 16.
Além da religião, a influência portuguesa marcou a medicina, as ciências náuticas e a astronomia. Os arquitetos japoneses aprenderam técnicas para fortificação de castelos. Outros campos do pensamento ocidental também influenciaram os orientais. "A chegada dos portugueses permitiu uma alteração na maneira de pensar dos japoneses, por influência de ideias como o racionalismo e o liberalismo", diz Ikunori Sumida, diretor do Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Estudos Estrangeiros de Kioto. "Foi uma mudança invisível, ao contrário da introdução das espingardas e da religião."

Fé de berço
Alguns imigrantes que vieram ao Brasil já eram católicos

A maior parte dos japoneses que se mudaram para o Brasil a partir do fim do século 19 conheceu o catolicismo no nosso país. Mas uma pequena parcela descendia dos cristãos escondidos, os kakure kirishitan. "Esse grupo foi importantíssimo para a conversão dos japoneses e nikkei brasileiros ao cristianismo. Eles ofereceram um tipo de catolicismo com o qual os japoneses puderam se identificar", diz Rafael Shoji, do Instituto para Religião e Cultura da Universidade Nanzan, em Nagoia, Japão.
Entre os cristãos que chegavam por aqui estava um missionário católico, o monsenhor Domingos Nakamura. Nascido no arquipélago de Goto, ele conhecia as famílias que atendia, no Paraná e em São Paulo, por causa de seu trabalho anterior, na paróquia de Kagoshima. Madalena Hashimoto Cordaro, 51, professora de Literatura Japonesa na USP, também descende de "cristãos ocultos". "Meu pai contava histórias sobre perseguições ocorridas no passado e crucificações na praia."

Glossário luso-nipônico
Palavras japonesas de origem portuguesa

Padre - bateren

Bênção - bensan

Vidro - bïdoro

Botão - botan

Jesus - Esu

Carta de jogar - karuta

Pão - pan

Tabaco - tabako
Revista Aventuras na História

quinta-feira, 8 de julho de 2010

MUITOS AFRICANOS AINDA SONHAM COM A CIDADE COLONIAL

Jean-Pierre Elong-Mbassi
22/01/2010

Geógrafo e urbanista, nascido na República dos Camarões. Secretário Geral da CGLUA – Cités et Gouvernements Locaux Unis d'Afrique – e Consultor Especial da UVA – Union des Villes Africaines. Ex-Secretário Executivo da PDM – Partenariat pour le Développement Municipal –, agência africana de assistência técnica e institucional a governos locais, fundada pelo Banco Mundial e com sede em Cotonou, Benin. Ex-Secretário Geral da CAMVAL – Coordination des Associations de Villes et Autorités Locales –, sediada em Genebra.

Publicado originalmente em Le Monde, edição de 21 de setembro de 2009, sob o título "Trop d'africains ont comme ideal la ville coloniale". Acessível em www.lemonde.fr e reproduzido online em www.habitants.org/news/local_autorithies.

Tradução: Letícia Ligneul Cotrim

Revisão técnica: Mauro Almada

* * *

O processo de urbanização mais violento do mundo se desenrola, hoje, na África. Sob os efeitos do êxodo rural, e de uma taxa de natalidade muito elevada, suas cidades saltarão de 350 milhões de habitantes em 2005, para 1,2 bilhões em 2050: uma explosão urbana que se propaga sem planejamento, sem recursos e sem regras. Apenas na África Subsaariana, 165 milhões de cidadãos já vivem em favelas.

África: entre a vida tribal e a cidade informal.
Crédito: webcarta.net.

Alinhar ao centro
Como explicar que o desenvolvimento urbano na África se realize de modo tão anárquico ?

O fato é que ninguém sabe como gerir cidades que dobram sua população a cada dez anos. Sobretudo, quando tal desafio foi agravado por um pensamento antiurbano, segundo o qual as pessoas deveriam retornar a seu torrão natal, isto é, à vida rural [a leurs campagnes d'origine]. E esta corrente de pensamento foi encorajada, na África, pelo Banco Mundial – mas também pela França –, com duas consequências:

De um lado, não nos demos conta da dimensão [on n'a pas pris la mesure] desse crescimento das cidades, que os Estados nacionais tendem hoje a minorar, entre outras razões, para agradar seus financiadores [bailleurs de fonds] que insistem em dizer-lhes que os africanos não podem assumir e sustentar [assumer de] tais metrópoles.

Em seguida, impusemos limites [frontières] muito estritos às cidades, na esperança vã de impedir seu crescimento, ainda que daí resultassem [et donc créé de] ilegalidades e assentamentos informais. Ressalte-se que, na África, menos de um quinto da população urbana vive na cidade 'formal [officielle]' !

Kibera, em Nairobi, Quênia, é a maior favela da África, com cerca de um milhão de pessoas.
Crédito:
http://formaementis.wordpress.com.

Alinhar ao centro
Será que essas cidades dispõem de competências e recursos para administrar [gérer] seu próprio desenvolvimento ?

Nelas, as comunidades [collectivités] locais se constituiriam [se sont mises em place] nos anos 90, em plena crise econômica e política, num momento em que os Estados nacionais ainda não haviam cumprido as promessas de modernidade oriundas do processo de descolonização, senão em uma ou duas cidades apenas. Os políticos eleitos a nível local foram então desafiados a encontrar soluções, mas sem dispor dos meios para o fornecimento de [les moyens de mettre de] luz, água corrente, e estradas asfaltadas para todos.

Não existe descentralização efetiva no continente africano. Tanto os administradores eleitos quanto o pessoal local carecem de capacitação [formation]. E ainda há um problema de repartição dos recursos públicos, sobretudo os fiscais, já que os governos nacionais capturam a maior parte dessas verbas. Na Europa, 40% da despesa pública são controlados pelas municipalidades [collectivités]; na África, apenas 5%. E isto estimula as relações clientelistas com os Chefes de Estado.

Alguns observadores temem [craignent] que a descentralização multiplique a corrupção...

Ao contrário, a experiência prova que o controle da corrupção é bem mais fácil no nível local do que no plano nacional. A descentralização, sobretudo, permite aos cidadãos ter opiniões próprias [leur mot à dire] sobre os assuntos locais, o que lhes motiva, inclusive, a pagar os impostos. Afinal, por que razão os africanos pagariam hoje esses tributos, se quando uma escola é construída lhes informam tratar-se de um 'presente' [cadeau] do Presidente...

Favela em Angola.
Crédito: macharla in
http://picasaweb.google.com.

E por que as cidades africanas não conseguem captar seus próprios recursos ?

O principal desafio, para elas, é conseguir criar um mercado fundiário, produtor de mais-valia, de onde se possa extrair renda fundiária, a única capaz de [seuls à même] financiar o desenvolvimento urbano. Apenas 5% do território das cidades são medianamente bem servidos de infraestrutura urbana. E para melhorar tais serviços e acompanhar o ritmo do crescimento urbano, seria necessário investir 10.000 francos CFA¹/ano por habitante, não mais que míseros € 15. O problema é que estes 15 euros não existem.

O único país do continente onde as cidades se autofinanciam é o Marrocos. Em todas as demais nações, as municipalidades não possuem qualquer autoridade sobre o uso do solo nem dele auferem qualquer rendimento. Ou o Estado nacional mantém todo o controle ou, como ocorre com frequência, são os próprios governantes que detêm o poder [ont la maîtrise] sobre as terras, impedindo a criação de um mercado fundiário e precipitando a formação de assentamentos informais.

Agadir, no Marrocos.
Crédito:
http://www.morocco-trekking.com/morocco.htm.

Será que ainda poderemos ver emergir um modelo de cidade africana que não seja um assentamento informal [bidonville] ?

A grande questão é saber que tipo de cidade desejam [veulent] os africanos, conscientizando-se previamente que são eles mesmos que deverão custeá-la. E com que qualidade de serviços urbanos, em que prazos, e com que formas de financiamento ? Geralmente, só começamos a pensar de maneira realista quando nos damos conta que somos nós mesmos que devemos pagar a conta. Infelizmente, na África, este importante debate democrático nunca encontrou espaço e os cidadãos ainda não estão preparados para as verdades deste discurso. É mais fácil, para os políticos, prometer a todos um pedaço de Paris. Por isso, muitos africanos ainda têm como ideal a cidade colonial, a cidade herdada.

Favela em Cotonou, Benin.
Crédito:
http://fellowsblog.kiva.org.

NOTAS ADICIONAIS SOBRE O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NA ÁFRICA
1. Crescimento: Em 2050, metade dos africanos viverá em cidades, contra 38% hoje. Uma única cidade africana, o Cairo, ultrapassou os 10 milhões de habitantes em 2007. Em 2025, Kinshasa e Lagos se reunirão ao clube das megalópoles com, respectivamente, 17 e 16 milhões de habitantes.

2. Favelas: 62% dos cidadãos da África Subsaariana vivem em favelas, contra 15% na África do Norte e 36%, em média, nos países em desenvolvimento. A população urbana que vive em barracos [taudis], na Etiópia e no Chade, ultrapassa os 99%. A favela de Kibera, em Nairobi, abriga 1 milhão de habitantes.

3. Clima: As cidades africanas estão entre as mais expostas ao aquecimento global. Em Alexandria, uma elevação de 50 cm no nível do mar desalojará mais de 2 milhões de pessoas. Em Lagos, 10 milhões de habitantes vivem a menos de 2 m acima do nível do mar; e em Abdijan, os centros de atividade econômica estão menos de 1 m acima d'água.

Revista Vivercidades

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Colonialismo ficção e drama: duas vertentes da “civilização” do séc. XIX

Paulo J. Campos, Érica Velez, e Ana Crispin

I
Não raro, a literatura ficcional é fértil vestígio para o trabalho histórico. Até hoje em dia bastante publicada, a famosa saga de Tarzan se mostra como bom indicador dessa tendência. Um ponto-chave é a relação de resistência do homem criado na selva ao “receber a civilização” do Ocidente. Mas tal herói foi concebido num contexto bem específico. A própria origem do nome dado pelos macacos, Tarzan, que significa “pele branca”, o denuncia.
É clara a relação do colonialismo com esta ficção. O branco perdido na selva é um Lorde inglês. O relacionamento de Tarzan é com uma aristocrata, dando possibilidade da manutenção de uma linhagem branca e “pura”. O personagem, mesmo após estar perdido na selva, torna-se o “rei da selva”. Por fim, os próprios vínculos que este homem tece é com macacos. Nas continuações do romance, a invisibilidade dos africanos é notável.

II
Dois pontos são fundamentais na ilustração colocada: hierarquia racial e colonialismo.
No início do século XIX ainda há a predominância da perspectiva una da humanidade, moldada seguindo o otimismo dos iluministas. Até aí, consideravam-se vários grupos diferentes como “povos”, não como raças distintas em origem ou formação (1993:47).
Em contrapartida a essa tendência, o mesmo século XIX começa a testemunhar novos padrões apontando para diferenças raciais. Passa-se a classificar aspectos morais, psicológicos e intelectuais, buscando suas causalidades nas características físicas. A identidade racial ocupará papel de destaque (2000b:1061).
Cabe ressaltar o papel da biologia para essas propostas. Mesmo que o próprio C. Darwin tenha mantido suas idéias voltadas para os animais, as várias interpretações de sua obra fugiam desse padrão. Conceitos como “evolução” e “seleção do mais forte” passaram a ser utilizados para compreender o comportamento humano – sendo uma excelente justificativa para a “supremacia” dos povos da Europa (1993:56).

Tal aspecto abre margem para uma outra vertente deste período: o colonialismo.

Quando se pensa em colonialismo, deve-se entender que este foi adotado em vários contextos históricos. Contudo, o termo se faz útil para os fins do séc. XIX, dado que aí o colonialismo passa a se valer de conteúdos mais complexos do que em qualquer época (2000a:182).

É nessa conjuntura que se delineia mais claramente o conflito das potências européias por áreas de influência. A busca do lucro se volta para a política nacional, apoiada por investimentos e aparelhos administrativos.

A prática tem objetivos definidos, posto o contexto da 2ª Revolução Industrial: comércio de excedentes, fomento da produção de matérias-primas agrícolas e exploração de recursos minerais (2000a:183). Um importante político da época, em sua argumentação em prol da colonização, afirma:

“ A política colonial é filha da política industrial. Para os Estados ricos, onde os capitais abundam e se acumulam rapidamente, a exportação é um fator essencial da prosperidade” (1985:276).

Não obstante, convêm apontar não somente a vertente econômica do fenômeno. A prática do colonialismo apostava, por vezes, em aspectos político-estratégicos e militares para sua sustentação. Da mesma forma, o colonialismo se entranhava nas idéias dos povos europeus. Não distinguindo classes sociais, a mentalidade do “levar a civilização ao inferior”, por vezes não tem o mero valor da retórica.

Contudo, não se observa por parte das nações promotoras do colonialismo a extensão de suas instituições e leis aos territórios anexados. Uma das explicações para tal fenômeno é que, com exceções ao Canadá e Austrália, os povos dominados eram considerados inferiores racialmente (2003:158). Nesse sentido, um famoso historiador propõe o “darwinismo social” e a biologia racista como pertencentes não só à ciência do séc. XIX, mas também à política (1996:372). Como se percebe, há uma contribuição mútua entre as teorias raciais e o colonialismo. Um justifica o outro.

III
Uma outra história, esta não ficcional, se faz elucidativa ao contexto abordado.

Em 1904, um explorador procurava pigmeus para exibir numa exposição localizada em St. Louis, EUA. A procura o levou ao Congo Belga, onde conheceu um pigmeu de nome Ota Benga. Ota não só aceitou ir para tal exposição, como convenceu outros conterrâneos a representar os “autênticos nativos africanos”.

Após breve retorno à África, Ota Benga volta aos Estados Unidos, desta vez a Nova Iorque. Lá chegando, foi por conta própria ao Zoológico do Bronx em busca de trabalho. A partir daí, a sorte do pigmeu está lamentavelmente traçada. Em 1906, este fará parte das atrações do local. Situado entre “macaco mais evoluído” e “ancestral de homem”, Ota Benga passa a ser exibido como um animal. Para provar a veracidade do, já visto, “darwinismo social”, divide jaula com um orangotango. O diretor do zoológico, Dr. W. T. Hornaday, considerava que Ota Benga era uma “espécie primitiva que evidenciava a teoria da evolução”. Acreditando na proximidade das características humanas e animais, Hornaday declara:

“Ele aparentemente não tem diferença entre uma besta selvagem e uma criancinha negra”.

Após grande polêmica e resistências por parte de religiosos e grupos negros, o pigmeu foi retirado de “exposição”. O homem de 32 anos estaria agora encaminhado a um orfanato para crianças negras. A profunda depressão foi conseqüência inevitável. Em 1916, é encontrado morto. Uma bala no peito e o revolver em sua mão evidenciaram o suicídio (BRADFORD 1992).

IV
À guisa de conclusão, tem-se uma realidade completamente às avessas da ficção. Se Tarzan tem problemas para incorporar o “processo civilizatório”, a crueza da realidade impõe para Ota Benga o grotesco em nome da ciência e “civilização”.

As temáticas aqui expostas procuram conduzir para outras considerações reflexivas, dado que: na maioria das sociedades ocidentais, o racismo é problema latente; grande parte do nosso imaginário tende a “racializar”, bem ou mal, várias etnias e, por fim, as análises de alguns contextos históricos, como este, não têm o alcance crítico que deveriam. Tal trabalho teve como fronte atacar um dos determinismos mais evidentes no período proposto: o biológico-racial. Se fomos bem sucedidos na proposta, cabe ao leitor selar.

Bibliografia:

BRADFORD, Phillips V. e BLUME, Harvey. 1992. Ota Benga: The Pygmy in the Zoo. St. Martin's Press.
BURROUGHS, Edgar Rice. 1956. Tarzan: O Rei das Selvas. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional. (há várias outras edições e continuações).
CHATELET, F.(Org).1985. História das Idéias Políticas. Rio de Janeiro: JZE.
DE DECCA, Edgar. 2003a. Colonialismo como a Glória do Império IN: REIS FILHO, D. A., FERREIRA, J. e ZENHA, C (org). O século XX: O tempo das certezas Da formação do Capitalismo a Primeira Grande Guerra. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira. 2ºed. v.1.
FERRO, Marc. 2004. O Livro Negro do Colonialismo. Rio de janeiro: Ediouro.
GENTILI, Anna Maria. 2000a. Colonialismo IN: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: EdUNB, São Paulo: Imprensa Oficial. 5ºed. (pp.181-6)
HOBSBAWM, Eric. 1996. Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MATTEUCCI, Nicola. 2000b. Racismo IN: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. op. cit. (p.1060-1062)
SCHWARCZ, Lilia M. 1993. Espetáculo das Raças: Cientistas Instituições e questão racial no Brasil.1870-1930. São Paulo: Cia das Letras.

Sítios na Internet:
http://www.rae.org/otabenga.html
http://emporium.turnpike.net/C/cs/hsota.htm

Filmografia:
Breaker Morant. Direção de Bruce Beresford, 1979, OST, 107min.
Mogli o menino lobo (Jungle Book) 1967, EUA, 78 min.
O homem que queria ser rei (The man who would be king). Direção de Jonh Huston, 1975, EUA, 129 min.
Queimada! (Queimada!). Direção de Gillo Pontecorvo. 1970, Itália/França, 115 min.
Tarzan. Direção de Chris Buck e Kevin Lima, 1999, EUA, 80 min.

Cronologia:
1796 - Inglaterra conquista o Ceilão.
1953 - O conde Gobineau publica “Essai sur l´inegalité dês races humaines“– crítica racial à miscigenação.
1854-69 - Abertura do Canal de Suez.
1859 - Charles Darwin publica A origem das Espécies.
1863 - Taine passa a se valer da idéia de raça para apontar causalidades na história. Primeiros passos do “darwinismo social”.
1870-1914 - Era do capitalismo “Imperialista”.
1883 - Francis Galton introduz o termo “eugenia”.
1885 - Conferência de Berlim. Partilha da África entre as potências européias.
1906 - Um pigmeu Ota Benga é exposto como animal no Zoológico do Bronx.
1914 - Edgar Rice Burroughs publica “Tarzan”.
1916 - Ota Benga se suicida num abrigo para crianças negras.

Núcleo de Estudos Contemporâneos - UFF