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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cangaceiro idolatrado


Lampião, o “rei do cangaço”. Esse “rei” assaltou, seqüestrou, torturou, assassinou. E foi assim, como um sádico fora-da-lei, que ele se tornou um ídolo popular.
por Wanda Nestlehner

Olê mulher rendeira / Olê mulher rendá / Tu me ensina a fazer renda / Que eu te ensino a namorar.” Esses versos, quando soavam no sertão nordestino dos anos 20 e 30, podiam ser prenúncio de muito sangue – ou de muita festa. Lampião e seu bando entravam nas vilas cantando. Se a população negasse o que queriam – dinheiro, comida, apoio –, eles revidavam. Seqüestravam crianças, incendiavam fazendas, matavam rebanhos, estupravam, assassinavam e torturavam. Se fossem atendidos, organizavam bailes e davam esmolas. Por isso, quando ouvia Mulher Rendeira, que aliás é de autoria de Lampião, a gente sertaneja oscilava entre o pavor e a curiosidade. Ou fugia ou ia espiar pelas frestas, para ver aquele cuja fama já fascinava o país.
Mais mito que verdade
No interior do Pernambuco, o culto já exige monumentos. No dia 7 de julho, quando, segundo o Registro Civil, se comemoram 100 anos do nascimento de Lampião, o município de Triunfo lançará a pedra fundamental de uma estátua de 32 metros de altura para homenageá-lo. Com o apoio do povo. Triunfo segue o exemplo da vizinha Serra Talhada, ex-Vila Bela, terra natal do cangaceiro, que, em 1991, organizou um plebiscito para saber se ele merecia uma honraria dessas. O resultado foi sim e a estátua só não existe ainda por falta de verbas.
Bem antes de morrer, Lampião já inspirava poemas, músicas e livros. Uma propaganda de remédio chegou a comparar os males que ele causava à sociedade com os distúrbios provocados pela prisão de ventre. Mas a referência ao cangaceiro como figura nociva era exceção. Em geral, ele era tratado como herói, um nobre salteador, que tomava dos ricos para dar aos pobres. Em 1931, o mais importante jornal americano, The New York Times, divulgou essa versão caridosa do criminoso.
Com o tempo, o mito só cresceu. Este ano serão lançados mais três filmes (Corisco e Dadá, O Cangaceiro e O Baile Perfumado) e uma novela (Mandacaru, na Rede Manchete) sobre Lampião. Isso sem falar nos livros. E muitas dessas obras continuam mistificando o bandido, como se houvesse algum glamour em sua biografia.
Crueldades varrem o Sertão
Não dá para enumerar as atrocidades cometidas por Lampião. Sob o escudo da vingança, ele tornou-se um “expert” em “sangrar” pessoas, enfiando-lhes longos punhais corpo adentro entre a clavícula e o pescoço. E consentiu que marcassem rostos de mulheres com ferro quente. Arrancou olhos, cortou orelhas e línguas. Castrou um homem dizendo que ele precisava engordar.
Não há nada que justifique práticas assim. Mas muitos pesquisadores tentam explicá-las. “Lampião é um produto do seu meio”, arrisca Paulo Medeiros Gastão, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, com sede em Mossoró (RN). “Ele foi levado por fatores ligados à vida no sertão, como ignorância, secas, ausência de governo e de Justiça”, diz Gastão. Mas argumentos assim, alegados por muitos estudiosos, não são suficientes para entender Lampião. É o que garante o historiador americano Billy Jaynes Chandler, especialista do assunto: “Sua história, com todas as suas excentricidades, é toda dele”.
O ambiente em que o bandido cresceu, porém, tem seu peso. De acordo com Vera Lúcia F. C. Rocha, da Universidade Estadual do Ceará, “o código de honra do sertão não culpabiliza os homens que matam por vingança, mas enaltece sua coragem”. Vera, que acaba de lançar o livro Cangaço: Um Certo Modo de Ver, lembra que aquela sociedade repete para os meninos: “Seja homem”. Será que era a essa expectativa que Virgulino Ferreira tentava atender?
Nada a ver com Robin Hood
Não são poucos os que vêem em Lampião um Robin Hood nordestino. “Ele foi bandido, mas também teve atitudes de distribuir o que tomava”, diz o pesquisador Antônio Amaury C. de Araújo, de São Paulo, que escreveu seis livros sobre o cangaço. É, houve passagens assim. Em 1927, o bando entrou em Limoeiro do Norte (CE) jogando moedas para as crianças. Cena semelhante acontecera em Juazeiro, quando, num dos mais absurdos episódios da história brasileira, o bandido foi convocado para combater a Coluna Prestes (veja o infográfico).
“Mas Lampião nunca escolheu aliados em função da classe social”, diz o antropólogo Villela. “Pobres e ricos, oprimidos e opressores, todos eram bons desde que satisfizessem suas exigências. Todos eram inimigos desde que se opusessem a seus propósitos.”
O historiador inglês Eric Hobsbawn chegou a classificá-lo como um “bandido social” – não exatamente um Robin Hood, mas um tipo vingador. “Sua justiça social consiste na destruição”, disse Hobsbawn, que foi criticado pela avaliação. Billy Chandler, por exemplo, acha que Lampião só poderia ser considerado um bandido social por ter raízes em um ambiente injusto, nunca por se preocupar com a justiça social.
Villela concorda. Para ele, Lampião resistiu a um tipo de migração vergonhosa, a migração do medo, que empurrava para longe gente ameaçada por inimigos ou pela polícia. Para não passar por covarde, assumiu o nomadismo e a violência. As boas ações seriam um “escudo ético”, na opinião de Frederico Pernambucano de Mello, superintendente de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Lampião, apesar de perverso, queria ser visto como um homem bom.
Apoio logístico de primeira
A formação que Lampião teve em casa valeu muito para sua brilhante atuação no cangaço. Com uma tropa de burros, sua família fazia frete de mercadorias. Virgulino aprendeu bastante sobre caminhos e viagens longas no trabalho com o pai. Além disso, conheceu muita gente do sertão. E tantos contatos acabariam sendo preciosos mais tarde.
A rede de apoio que ele tinha era fantástica, embora não fosse formada só de amigos. O historiador cearense Abelardo Montenegro definiu três tipos de coiteiros, como eram chamados aqueles que davam proteção ao bandido: o involuntário, que tinha medo, o vingador, que queria usar seus serviços, e o comerciante, que visava lucro. De acordo com a também cearense Vera Rocha, para a polícia havia só dois tipos: os ricos, que queriam proteger suas propriedades, o que era considerado compreensível, e os pobres, que o admiravam, o que era inadmissível.
Na verdade, ninguém tinha coragem de negar ajuda ao cangaceiro. E todo mundo também morria de medo da polícia. Em 1932, quando a repressão acirrou, as volantes, tropas andarilhas, transformaram-se num terror. “Quem tivesse 16, 17 ou 18 anos tinha que se alistar no cangaço ou na volante, senão ficava à mercê dos dois”, costuma dizer Criança, ex-cangaceiro que mora hoje no litoral paulista.
Os coronéis não tinham esse problema. Lampião chegou a ser amigo do capitão Eronides Carvalho, médico do Exército que se tornaria governador de Sergipe em 1934. O próprio confessou, anos depois, ter arranjado, mais de uma vez, munição para o bando.
Em paz, somente com Deus
Em meio ao sangue, Lampião achava lugar para a religião. Nos acampamentos, rezava o ofício, espécie de missa. Carregava livros de orações e pregava fotos do Padre Cícero na roupa. Em várias das cidades que invadiu chegou a ir à igreja, onde deixava donativos fartos, exceto para São Benedito. “Onde já se viu negro ser santo?”, dizia, demonstrando seu racismo. Supersticioso, andava com amuletos espalhados pela roupa. Levou sete tiros e perdeu o olho direito, mas acreditava-se que tinha o corpo fechado.
Em tempos de calmaria, os cangaceiros dividiam o tempo entre a fé e o prazer. Jogavam cartas, bebiam, promoviam lutas de homens e de cachorros, faziam versos, cantavam, tocavam e organizavam bailes. Para essas ocasiões se perfumavam muito. Mello informa que Lampião tinha preferência pelo perfume francês Fleur d’Amour. Balão, que viveu os últimos anos do cangaço, contou antes de morrer que eles usavam mesmo era Madeira do Oriente, bem mais popular. Há relatos de que os bandoleiros perfumavam até os cavalos quando andavam montados.
Jeito estranho de constituir família
Muito se fala que Lampião respeitava as mulheres. Mas parece que não era bem assim. Consta que em 1923, num lugar chamado Bonito de Santa Fé (PB), ele deu início ao estupro coletivo da mulher de um delegado. Eram 25 homens. “Tirei muita mocinha das mãos de companheiros”, conta Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, 73 anos, a viúva do cangaceiro José Sereno, que vive em São Paulo.
O líder também mandava marcar a ferro moças que usassem cabelos ou vestidos curtos. É possível que Maria Déa, a Maria Bonita, não soubesse dessas histórias quando se apaixonou por ele. Ela o conheceu em 1929 e, em 1930, deixou o marido, o sapateiro José Neném, para segui-lo. Assim, abriu as portas para a entrada de mulheres no bando. Segundo Frederico de Mello, era uma época de “mais idade, menos guerra e mais limpeza”. Alguns estudiosos acreditam que as mulheres rivalizaram com as armas, desviando os homens da concentração militar. Teriam sido responsáveis pelo fim do cangaço.
De fato, alguns problemas surgiram, como o nascimento de crianças. A solução foi dá-las para padres ou fazendeiros. Quando morria um companheiro, a viúva tinha de arranjar novo par. Por duas vezes isso não deu certo e a saída foi executar as mulheres. Rosinha e Cristina foram assassinadas para não ameaçar o grupo. Outro drama era o adultério. Lídia e Lili morreram por trair seus companheiros.
É curioso notar como, apesar de atitudes extremamente conservadoras com as mulheres, Lampião chegava a ser moderno em outros aspectos. Mandava cartas com papéis que tinham seu nome datilografado, tremenda novidade na região. De acordo com Mello, preocupado com falsificação de correspondência – houve quem tentasse se passar por ele para levantar um dinheirinho – mandou fazer cartões de visita com sua foto. E tinha até garrafa térmica. De um certo ponto de vista, pode-se dizer que levava uma vida sofisticada.
Muita bala e cabeça de guerrilheiro
O bando de Lampião chegou a passar sede e fome, mas munição nunca faltou. Nem os “cabras” de maior confiança sabiam de onde vinha tanta bala. Direta ou indiretamente, a principal fonte foi a própria polícia. Pesam fortes suspeitas até sobre o capitão João Bezerra, o mesmo que acabou matando Lampião em Sergipe, em 1938.
Com suprimento suficiente e a cabeça de guerrilheiro de Lampião, o bando ganhava todas. Não se sabe quantos combates foram travados. O ex-comandante de volantes pernambucano Optato Gueiros contou 75. O cangaceiro, já em 1926, falava em 200. Também não há números sobre as baixas. “Alguns afirmam que morreram, em ambos os lados, cerca de 1 000 homens”, diz o historiador Jovenildo Pinheiro, da Universidade Federal de Pernambuco.
Para conseguir bons resultados, Lampião evitava ao máximo os confrontos e abusava de uma tática conhecida como dueto. Ao ataque da polícia, simulava uma fuga, esperando o inimigo em outro local, de surpresa. Havia quem dissesse que isso era covardia. Ele preferia chamar de esperteza.
Virgulino gostava das armas. Foi delas, aliás, que ganhou seu apelido. Diz-se que certa vez ele iluminou o ambiente com tiros, como um lampião, para que um colega encontrasse um cigarro caído no escuro. Outra versão conta que ele fez uma modificação num fuzil, tornando-o mais rápido, de modo que o cano estava sempre aceso. Como um lampião.
Encurralado no esconderijo
No ano passado, o fotógrafo mineiro José Geraldo Aguiar causou considerável estardalhaço quando anunciou que Lampião não morreu em 1938, aos 41 anos, como está escrito nos livros de História. Ele teria morrido apenas em 1993, em Minas, com o nome de Antônio Maria da Conceição. Aguiar pediu a exumação do corpo de Conceição mas a Justiça negou. Agora aguarda julgamento de um novo processo que apresentou. “Eu vou provar que estou falando a verdade”, garantiu ele à SUPER.
Enquanto isso, fica valendo a história antiga. Lampião foi traído por um coiteiro e surpreendido pelos “macacos”, como ele chamava os policiais, comandados por João Bezerra. O chefe do cangaço estava em um de seus coitos (esconderijos), na Fazenda Angico, em Porto da Folha, Sergipe. Isso aconteceu na madrugada de 28 de julho de 1938. Os trinta homens e cinco mulheres começavam a se levantar e os 48 policiais traziam uma metralhadora Hotchkiss, um dos sonhos de Lampião. Além dele e de Maria Bonita, foram mortos mais nove cangaceiros. A selvageria policial foi equivalente à dos bandidos. As cabeças dos mortos saíram em uma turnê macabra, e foram expostas em várias cidades. As de Lampião e de Maria, que foi degolada viva, seguiram para o Instituto Nina Rodrigues, em Salvador. Só foram enterradas em 1969.
Mas a história também pode não ter sido bem assim. Naquela época, Lampião negociava sua saída do cangaço com a polícia de três Estados. Por isso, há a suspeita de que o episódio de Angico foi uma farsa e de que a cabeça atribuída ao rei do cangaço era de um outro qualquer. Diz-se que ele carregava 1 000 contos de réis (um carro custava 8 contos) e uns 5 quilos de ouro. Isso sem falar no dinheiro que agiotava e que, claro, deixou de receber. Enfim, poderia ter subornado seus perseguidores e se mandado, como garante José Geraldo Aguiar.
Cinco dias depois do combate, Corisco, o diabo loiro, que não estava presente, matou um coiteiro, que imaginou ser responsável pela denúncia do amigo, e mais cinco pessoas de sua família. Cortou as cabeças e mandou para Bezerra. Em 1940, Corisco foi morto. Com ele, morreu o cangaço.
Eles também são idolatrados
Na década de 60, o historiador inglês Eric Hobsbawn incluiu Lampião entre um grupo de criminosos “sociais”. Para chegar a tal conclusão, Hobsbawn se baseou mais nas lendas do que nos fatos, como ele mesmo admitiu. A maioria dos estudiosos vê em Lampião apenas um bandido sanguinário, sem qualquer objetivo nobre. Estimulado, talvez, pelo ambiente, ele caiu num tipo de vida da qual não tinha muito jeito de sair. O fato de ter sido transformado em herói não é novidade. Outros criminosos sofreram o mesmo processo. É o caso do americano Jesse James, dos filmes de faroeste. No Brasil, nunca houve um que se comparasse ao cangaceiro, mas muitos foram bastante exaltados.

PARA SABER MAIS
Lampião – O Rei dos Cangaceiros, Billy Jaynes Chandler, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1986.
Lampião: As Mulheres e o Cangaço, Antonio Amaury Corrêa de Araújo, Traço Editora, São Paulo, 1984.
Quem Foi Lampião, Frederico Pernambucano de Mello, Stahli, Zurique, 1993.
O Espinho do Quipá, Vera Ferreira e Antonio Amaury, Oficina Cultural Mônica Buonfiglio, São Paulo, 1997.

NA INTERNET
Exame da Cabeça de Lampião http://bbs.elogica.com.br/users
Lampião e Maria Bonita http://www.bahamer.g12.br/turma
O domínio do medo
De 1922 a 1938, Lampião assaltou, saqueou e matou em sete Estados do Nordeste. Veja como ele se movimentou ao longo do tempo.

Invencibilidade nômade

1922 e 1923
Logo que assume pela primeira vez a chefia de um bando, Lampião já atua em vários Estados.
1923 e 1924
A conquista de apoio em Princesa (PE) e em Sousa (PB) leva o bando mais para o norte.
1924
Um ataque a Sousa resulta na perda da preciosa proteção do coronel José Pereira e de parte da área dominada.
1925 a 1928
O vandalismo se espalha de novo.
1927
Em Mossoró (RN), a quadrilha, com 120 homens, é rechaçada por moradores e não volta mais ao Estado.
A partir de 1928
O bando é pulverizado em vários grupos menores, que passam a atacar também na Bahia e em Sergipe.
O começo de uma carreira de horrores
Lampião inspirou muita literatura, mas não foi a origem da palavra cangaço. No século XIX, ela já designava bandoleiros nordestinos que carregavam o rifle deitado sobre os ombros, lembrando a canga, arreio de madeira que vai sobre o pescoço dos bois, e o nome pegou. Canga, cangaço, cangaceiro.
O pernambucano Cabeleira, nascido em 1751, foi o primeiro a virar mito. Acabou enforcado. Lucas da Feira, de 1807, também foi executado, mas antes viajou ao Rio para estar com D. Pedro II, que desejava conhecê-lo. Depois vieram Jesuíno Brilhante, Meia Noite, Antonio Silvino e Sinhô Pereira. Foi no bando deste último que Virgulino Ferreira da Silva ingressou, aos 24 anos.
Filho de um pequeno proprietário rural, o rapaz sabia ler e era hábil artesão em couro. Mas entortou sua biografia em 1915, quando acusou um empregado do vizinho José Saturnino de roubar uns bodes.
A rixa entre as famílias durou anos. Em 1919, Virgulino e dois irmãos, Livino e Antônio, caíram no crime. Matavam gado do inimigo e assaltavam.
No encalço dos três irmãos, a polícia prendeu um quarto, o inocente João. O pai, José Ferreira, fugiu. No caminho, hospedou-se na casa de um amigo, onde foi morto pela polícia. Virgulino, diz a lenda, jurou: “De hoje em diante vou matar até morrer.”

Como o país armou Lampião
Para combater a Coluna Prestes, marcha de militares revoltosos comandados pelo capitão Luís Carlos Prestes, que depois tornou-se líder comunista, o governo se aliou ao cangaceiro em 1926.
Janeiro: o bandido é convocado

Com a coluna se aproximando do Ceará, Floro Bartolomeu, deputado federal do Estado, recruta uma força de defesa, os Batalhões Patrióticos, e vai com ela para Campos Sales (CE). Prepara uma carta convocando Lampião e a manda para o Padre Cícero endossar. Um mensageiro vai atrás de Lampião. Enquanto isso, Bartolomeu, adoentado, segue para o Rio.

Fevereiro: confusão entre inimigos
Aparentemente sem ter recebido a carta de Bartolomeu, Lampião cuida de seus interesses pessoais em Pernambuco. Invade a fazenda de um antigo inimigo, mata dois, fere dois e incendeia a casa. Saindo desse ataque, no mesmo dia, tem um combate com a coluna, mas pensa que está lutando com a polícia.

Março: defensor público por pouco tempo
Lampião recebe a carta e segue para Juazeiro. Acampa com 49 homens perto da cidade e mais de 4 000 curiosos vão vê-lo. No dia 5, se encontra com o Padre Cícero e recebe uma patente de capitão dos Batalhões Patrióticos, assinada, acredite, por um funcionário do Ministério da Agricultura. Mais tarde esse homem diria que, naquelas circunstâncias, assinaria até a exoneração do presidente. Todos os cangaceiros recebem uniformes e fuzis automáticos. No dia 8, Floro morre. Lampião parte decidido a cumprir o combinado, mas é perseguido em Pernambuco, o que o desaponta. Volta para falar com o Padre Cícero. Como este não o recebe, interrompe sua carreira de defensor público e retoma a rotina de crimes.

Figurino eficiente e de estilo
Como se vestiam as mulheres e os homens do cangaço.
Em 1929, na cidade de Capela, Sergipe, Lampião pesou seu equipamento. Sem as armas e com os depósitos de água vazios, deu 29 quilos. E isso também não incluía a roupa, grossa o suficiente para protegê-lo dos espinhos da caatinga. O figurino inteiro era de grande valia. Ao lado, ele é mostrado por Corisco, um dos homens de confiança de Lampião, que tinha seu próprio bando, e sua mulher Dadá. Não é à toa que quando começaram a construir estradas no Sertão, Lampião ficou furioso, a ponto de matar muitos trabalhadores inocentes. Ele não precisava de estradas e sabia que elas seriam o seu fim.

Truques que davam certo
O conhecimento do ambiente e o uso de algumas táticas davam vantagem ao cangaceiro.

Rastros
Uma forma de escondê-los era andar em fila indiana, todos pisando na mesma pegada. O último ia de costas, apagando-a com plantas. Mandavam também fazer alpercatas com o salto na frente e não atrás, como é normal. A pegada parecia apontar para o outro lado.

Comunicações
Quando entrava numa cidade, o bando cortava o fio do telégrafo e tomava o posto telefônico, impedindo pedidos de socorro.

Estradas
Eram evitadas. Os bandoleiros iam por dentro da caatinga. Quando não tinham outra opção, seqüestravam todas as pessoas que encontravam e levavam os reféns ao menos por um tempo.

Psicologia
Não deixavam a polícia avaliar o resultado dos combates. Levavam os mortos e, quando não dava, cortavam-lhes as cabeças, dificultando a identificação.

Apelidos
Quando um integrante do grupo morria, seu apelido era adotado por um novato. Essa é uma das razões que faziam os cangaceiros parecer invencíveis, pois os nomes eram imortais.

Alarmes
Sempre havia cães acompanhando o bando. Eles funcionavam como sentinelas. Havia também um sistema banal de alarme. Consistia em cercar o acampamento com fios ligados a sinos.

Amleto Meneghetti (1878-1976)
“A propriedade é um roubo; portanto, não sou ladrão”, costumava dizer o assaltante italiano que chegou em 1913 a São Paulo e logo tornou-se conhecido. Em geral, andava desarmado. Sua agilidade, tanto para entrar em mansões como para escapar da cadeia, impressionava. É o mais famoso bandido urbano brasileiro.

Bandido da Luz Vermelha (1942- )
João Acácio Pereira da Costa foi roubar uma lanterna para usar nos assaltos em São Paulo e só encontrou uma de luz vermelha. Daí o apelido. Foi condenado a 351 anos de prisão por quatro assassinatos e outros crimes, mas deve ser solto este ano. Em O Bandido da Luz Vermelha, de 1968, um dos melhores filmes brasileiros, aparece como um sedutor carismático.

Lúcio Flávio Vilar Lírio (1944-1975)
Filho da classe média alta carioca, Lúcio Flavio dizia que era assaltante porque gostava. Ficou com fama de herói por dezoito fugas incríveis e pelas denúncias que ajudaram a desmascarar o Esquadrão da Morte, grupo de policiais que assassinava sumariamente aqueles considerados suspeitos. Em 1977, virou filme: Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia.

Leonardo Pareja (1974-1996)
A carreira de Pareja foi curta. Aos 15 anos, ele começou a roubar carros. Com 16, usava revólver. Ganhou fama em 1995, quando seqüestrou uma menina de 13 anos e depois passou quarenta dias brincando de esconde-esconde com a polícia. Na prisão, liderou um motim e foi aplaudido por cuidar bem dos reféns. Acabou assassinado numa penitenciária de Goiás aos 22 anos.

Revista Superinteressante

domingo, 22 de novembro de 2009

O sertão dilacerado: outras histórias de Deus e o Diabo na terra do sol


Pedro Paulo Gomes Pereira

Doutor em Antropologia, Universidade de Brasília, e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde/Unifesp



Cada sociedade elege um núcleo de preocupações ao qual confere centralidade. Em torno desse núcleo se elaboram perguntas e temas constantes, e sofisticados aparatos conceituais que se destinam tanto a amenizar os dilemas como a ampliar os questionamentos - as prioridades se estendendo, inclusive, às formas e aos meios pelos quais essas perguntas são enunciadas e reiteradas1.

Este ensaio buscará se aproximar de um desses núcleos; aproximação, evidentemente, parcial e com objetivos modestos e delimitados. Trata-se de uma geografia imaginativa que, no Brasil, desenhou uma categoria de espaço, o sertão, como uma das formas principais de falar e definir a nação, e que escolheu o cinema como um meio de expressão apropriado. A tentativa será a de compreender como uma narrativa de importância ímpar na filmografia nacional, Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, construiu o sertão, quais as imagens e as figuras utilizadas, ecomo esse sertão delineia e projeta o Brasil2. Nas páginas que se seguem - além de abordar, na parte inicial do ensaio, as relações entre tropo, espaço e sertão - argumentarei que Glauber Rocha constrói poderosas alegorias da nação. Em Deus e o Diabo, o sertão se constitui, simultaneamente, naquilo que identifica o Brasil diante de seus outros, e num outro da nação. As alegorias do filme, elaboradas no epicentro dessas relações de alteridade, se distanciam das alegorias pedagógicas e previsíveis, e nos apresentam um sertão dilacerado, inscrevendo na história da nação outros momentos, outras histórias em que personagens ambíguos, à margem, inseguros e em constante travessia assinalam a violência contida na idéia de um tempo no qual o sertão ora deveria ser vencido pela civilização, ora seria petrificado como arcaico idealizado.

Aproximações: espaço, tropo, sertão

Num de seus textos mais instigantes, Michel de Certeau (1996, p. 199) nos lembra que, na Atenas contemporânea, o transporte coletivo é denominado de metaphorai; os gregos utilizam metáforas para se locomover - ato de nomear, que denota a íntima vinculação entre narrativa e espaço. A locomoção, a transposição no espaço, é metafórica, já que a metáfora é justamente a manifestação das maneiras de se passar a outro, de se transfigurar. As narrativas possuem, assim, valor de sintaxes espaciais: são práticas de espaço.

Esse raciocínio nos indica que a geografia imaginativa que inventa o Brasil não está localizada nalgum lugar distante das narrativas, e que procurar entendê-la conduz ao inevitável encontro com as formas de narrar. Compreender a nação e suas configurações espaciais significa, se acompanharmos as idéias de Certeau, perscrutar as estratégias textuais utilizadas para contar suas histórias, e apreender os tropos que constituem essas narrativas.

Tropo significa volta, forma, maneira; o termo turn, mais especificamente, foi utilizado por muito tempo como sinônimo de tropo. Essa vinculação indica a proximidade entre as dimensões e variações espaciais e a construção das narrativas, relacionando diretamente estilo e espaço, maneira de contar e lugar. Nas línguas indo-européias o termo tropus remete a metáforas ou a figuras retóricas3. A análise tropológica, segundo Hayden White (1992 e 1994), nos permite aproximar das estratégias textuais características dos discursos, já que o conhecimento dos tropos possibilita ao pesquisador alçar as "formas estruturais profundas" da imaginação histórica. Os tropos não só refletem algo que existe antecipadamente, suas funções são, ao mesmo tempo, miméticas e performáticas: refletem e produzem no próprio ato enunciativo4. Assim, concentrar a análise no ato poético possibilita alcançar essas narrativas performáticas que, por meio de noções de espaço, do exercício de uma geografia imaginativa, inventaram um Brasil.

As obras de Erich Auerbach (1987) e de E. H. Gombrich (1988) indagam quais os componentes "históricos" da arte realista, já a de White questiona quais são os elementos "artísticos" da historiografia "realista". Seria interessante embaralhar ainda mais as percepções de "realidade" e "ficção", ou de arte, história e realidade, e perguntar quais os elementos poéticos de determinadas narrativas ficcionais que contam certas histórias da nação.

Como se sabe, a literatura e o cinema se constituíram nos principais meios de expressão na edificação dos alicerces simbólicos da formação nacional. A literatura se estabeleceu como um dos primeiros pilares, sob o qual foram criados símbolos que representavam a identidade nacional, e se transformou em instrumento de investigação e fenômeno central da vida intelectual do país. Assim como a literatura, o cinema também buscou interpretar o Brasil, pesquisando sobre a vida e sobre os problemas brasileiros. Enfim, a ficção, de uma forma geral, se preocupou em conhecer e transformar - construir, edificar - a nação. Por período considerável da história do país, as melhores expressões do pensamento nacional assumiram a forma ficcional. A investigação e a reflexão sobre o Brasil se iniciaram com a literatura e com o cinema, e só com a institucionalização das ciências sociais os papéis do romancista, do cineasta e do sociólogo começaram a se diferenciar, cedendo lugar à divisão de trabalho intelectual dos dias de hoje. Escritores e cineastas compreendiam o exercício de seus ofícios como missão, em que a arte só se realizava plenamente com presença da cor local e com atitude posicionada diante dos dilemas da nação. Na busca de um representante para o ideal brasileiro, a literatura e o cinema acionaram uma noção espacial específica - e que se tornou predominante na geografia imaginativa do país - para carregar sobre si o símbolo da identidade nacional: o sertão5.

Tanto na literatura como no cinema, a geografia imaginativa primou pela proeminência das narrações que destacavam as dimensões espaciais como aquelas que revelariam o mais genuinamente nacional. As narrativas edificaram poderosas imagens de um país construído pelo espaço; as dimensões de espaço e de territorialidade forjadas por essas imagens se constituíram num dos principais fundamentos do projeto da nação. Encantados com a imensidão territorial do país ou atormentados pela existência de gigantescos vazios, a imaginação social se voltou para o sertão que, ora como problema a ser resolvido, ora como índice da brasilidade, era conclamado a descrever a história da nação.

O sertão se transformou, então, na categoria central no processo de invenção do Brasil6. Em algumas dessas narrativas, o sertão se configurou no signo da nação inacabada. A busca de uma homogeneização territorial se deparou com a necessidade de preencher os vazios - compreendida como condição da unidade nacional. Essa necessidade de preenchimento ressalta o imperativo da representação horizontal do espaço - que deve ser entendida como devenir na direção da homogeneização e unificação do território nacional. O sertão se apresentava, nessa perspectiva, signo da cisão espacial e materializava a divisão da nação; sua existência pressupunha, portanto, um tempo disjuntivo, e justificava, na concepção desses inventores do Brasil, a própria empreitada pedagógica civilizatória das narrações. Ensejando imagens de vazio, de deserto, o sertão se colocava ora como obstáculo à homogeneização territorial e à eliminação das temporalidades disjuntivas, ora se creditava a ele a identidade nacional. De qualquer maneira, mesmo reconhecendo no sertão o cerne da brasilidade - aquilo que, nesse raciocínio, seria o mais genuíno, pois intocado pelos ares europeus ou norte-americanos -, a sua permanência se devia a uma imaginação civilizadora, preocupada com a alteridade dentro da nação.

É dessa busca de narrar a nação por meio da noção de espaço, tendo o sertão como modo de falar o Brasil, que surge um dos filmes mais importantes da cinematografia nacional, Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Essa película se destacou na considerável filmografia que aborda as relações entre sertão e nação, podendo ser considerada como uma das que mais bem explorou a geografia imaginativa da nação, por diversos fatores: pelo grau de influência no país, inspirando diversos cineastas; pela importância no quadro da ficção brasileira, já que o filme foi considerado por muitos o "ápice do cinema nacional", colocando - com outras películas, como Os fuzis, de Ruy Guerra, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos - o então denominado Cinema Novo no centro das polêmicas; e, para a análise que estou desenvolvendo, principalmente por sua singularidade de narrar - ou seja, por sua configuração tropológica. Singularidade que surge de uma configuração específica de relações entre espaço e narrativa, geografia imaginativa e tropo, "ficção" e "realidade". Daí a importância e a centralidade da alegoria em Deus e o Diabo, já que a alegoria, entendida como metáfora continuada, remete duplamente às dimensões de movimento e deslize, embaralhando movimento, espaço e tempo, configurando-se em noção privilegiada para compreender o filme de Glauber7.

Dentro deste contexto, podemos indagar: como se estrutura alegoricamente a obra de Glauber? Quais as imagens predominantes nas alegorias e de que maneira essas imagens inventam a nação? Tentarei argumentar a seguir - sem a intenção de exaurir o assunto e mais com o intuito de pontuar alguns dilemas enfrentados por Glauber - que essas questões podem indicar como uma noção de espaço nos fala sobre formas de lidar com a alteridade dentro da nação.

A nação e seus outros

A diferença do Brasil em relação aos outros foi reiteradamente colocada por diversos intelectuais, tornando-se mesmo um discurso recorrente entre os que, de várias formas e pelos mais variados meios, discutiam a nação. Seja se posicionando diante da tradição ocidental, seja lidando com a incômoda presença de outros na nação, as discrepâncias foram se acentuando nas formas de definir e delimitar o que era o Brasil, e na maneira de abordar as irredutíveis presenças de outros que destoavam dos ideais de homogeneidade da "comunidade imaginada" 8. A complicada relação entre a tradição denominada de ocidental e o dado local gerou, então, rica literatura e debates acalorados por toda história do país. A dúvida sobre as peculiaridades da brasilidade assombrou os intelectuais, sejam romancistas, poetas, ensaístas, cineastas.

A escolha de um modo de se falar a nação dependeu sempre da tomada de um ponto para discorrer. A opção de qual nação se deve representar invadiu os anseios dos inventores do Brasil, anseios que geraram profusão de temas que vão desde os índios, passando pelo cangaço, pampas, alcançando as favelas e as singulares formas de urbanização. Como já se argumentou, parte significativa das narrativas se concentrou em nossas categorias espaciais quando procurou definir a singularidade do Brasil. O sertão surgiu dessa vontade de falar a nação pelo espaço e se constituiu, vale repetir, numa das formas mais importantes por meio da qual o país foi inventado. Nesse quadro geral, Deus e o Diabo apresenta, simultaneamente, forma diferenciada de se relacionar com a herança ocidental e nova maneira de falar sobre o sertão.

O filme absorve e transforma o legado do cinema ocidental e da tradição cinematográfica em geral. A intenção é a de liberar a linguagem cinematográfica do mimetismo das formas clássicas do cinema internacional, sobretudo do cinema europeu e norte-americano. Glauber reinventa as tradições literárias ou cinematográficas, buscando transformá-las. Podem-se detectar as influências e a tentativa de superá-las observando as citações expressas neste filme. Cinematograficamente, identificam-se: Rosselini, Kurosawa, Eisenstein, Visconti; teatralmente: os trágicos gregos e Brecht; literariamente: James Joyce, Euclides da Cunha, José Lins do Rego e, fundamentalmente, Guimarães Rosa. Até Wagner - e sua teoria da ópera como "obra de arte total" (Gesamtkunstwerk) - poderia ser lembrado. O movimento de Glauber é duplo. As experiências devem ser traduzidas, num complexo processo de deslocamento e reconfiguração. E justamente por esse processo de tradução - que nunca é perfeito - o resultado é um cinema impuro - a hipótese aventada por André Bazin (1991) tomando forma nas películas de Glauber. Trata-se, pois, de um cinema híbrido.

Glauber utilizará as influências recebidas de Eisenstein, Renoir, Resnais, John Ford, Visconti, Godard, mas fazendo-lhes uma inversão. Da mesma forma que Guimarães Rosa procurou fazer uso da influência de James Joyce - entre numerosos outros autores - para evidenciar e reinventar a fala sertaneja, Glauber vale-se da herança internacional no intuito de edificar uma linguagem específica para o seu cinema. A narrativa absorve, mas transforma; mimetiza, mas trai. O movimento feito por Glauber, portanto, se assemelha à reinvenção da língua por Guimarães, fato que por si já sinaliza a íntima relação entre essas obras. Se, como argumenta Willi Bolle (2004), Grande sertão veredas reescreve Os sertões, de Euclides da Cunha, Deus e o Diabo perfaz uma releitura de uma releitura, camada sobre camada, construindo, numa teia intertextual, o sertão - teia que desestabiliza a linguagem, propiciando nova forma de narrar.

Tal questão pode ser visualizada numa passagem do filme bastante comentada pelos críticos. Trata-se da citação da famosa cena da "Escadaria de Odessa" de O Encouraçado Potenkim, de Sergei Eisenstein. Glauber realiza nova leitura, pois a montagem de Odessa é racional, equilibrada, evolutiva e matemática; em Deus e o Diabo a montagem é fora de ordem, fora da continuidade, anárquica. Na tradução efetuada ocorre um deslize que, ao mesmo tempo em que cita, se afasta daquilo que evoca. Nessa pequena passagem podemos observar como uma exposição evolutiva das imagens se choca com uma linguagem fragmentada, despedaçada.

O movimento de evitar uma linguagem demasiadamente colada à tradição do cinema ocidental se deve, em grande parte, à busca de Glauber de se distanciar de uma perspectiva que tematizava o outro sertanejo sempre sob o prisma da cidade, ou seja, sempre por um olhar civilizado e civilizador exercido sobre um outro ignoto. Esse movimento de trazer o outro sem domesticá-lo em moldes pré-concebidos por um olhar externo também proporciona desestabilização na linguagem, que mencionei acima, e permite se aproximar do sertão por dentro. O cotejamento de O cangaceiro, de Lima Barreto, e Deus e o Diabo, pode tornar mais claro o que significa essa desestabilização que possibilita falar o sertão por dentro.

As duas obras abordam o sertão e o cangaço. O cangaceiro tem intenção de conferir alto grau de verossimilhança, no objetivo de retratar o sertanejo "de verdade"; o filme se estrutura numa composição que se limita aos moldes da decupagem clássica; na película de Lima Barreto, os temas nacionais são, assim, exaltados por linguagem tributária aos moldes europeus e norte-americanos.

Existe em O cangaceiro uma distância que separa o narrador de seu objeto. O narrador "organiza tudo em função de um único olhar, centralizador, que dispõe as figuras com muito cuidado no momento de fazê-las posar diante da objetiva", nos diz Ismail Xavier (1983, p. 133). A distância ensejada no próprio ato de descrever coloca o sertanejo como um Outro, separando-o do Eu civilizado. O sertanejo é enquadrado como primitivo e localizado no passado, ao narrador civilizado cabendo a tarefa de tratá-lo como objeto a ser estudado e domesticado. O cangaceiro propõe, portanto, raízes para a nacionalidade, acentuando que essas raízes deveriam ser domesticadas, civilizadas. O sertão é o Brasil por enquanto e necessita ser domesticado pela civilização; nos "dois brasis" um deve ceder e deixar espaço ao civilizado9. Enfim, os procedimentos narrativos impõem uma inextinguível distância entre os brasis.

Deus e o Diabo busca suprimir essa distância que caracteriza O cangaceiro, por meio de diversos procedimentos narrativos: elimina-se o narrador centralizador, a utilização de músicas, do cordel, de vozes populares - do cego Júlio, por exemplo - conduz à polifonia, que descentraliza a narração. Há, enfim, a exploração intensiva da diversidade de vozes e da variedade de tipos de discurso. O filme de Lima Barreto olha o sertanejo e o sertão a partir de uma distância denunciada pela própria narrativa, apesar da tentativa de lhe prestar homenagem; o de Glauber procura eliminar essa distância, principalmente acentuando o caráter intertextual, emaranhando os desenredos e intertextos - procedimento que evita a redução etnocêntrica que vê no sertão e no sertanejo figuras de pensamento irracional10.

As características de Deus e o Diabo alinhavadas até aqui nos levam a concluir, então, que Glauber filmou no epicentro das contradições entre a afirmação do Brasil diante de um outro externo e a presença de outros na nação, a presença de uma pluralidade de vozes e sujeitos históricos diante da vontade unitária e de empreendimentos de um Estado Nacional que planifica a diversidade interior11. Se Deus e o Diabo deve ser compreendido dentro dessa tensa relação com os outros interiores e exteriores - no contexto de uma nação que produz no mesmo movimento o perfil da estrutura assimétrica de sua alteridade interior e a natureza das suas relações com os outros exteriores - e se Glauber busca, simultaneamente, falar o sertão por dentro e construir um cinema nacional, devemos, para continuar a desenvolver o raciocínio, insistir em compreender as outras histórias que as suas alegorias nos contam12.

Alegorias em Deus e o Diabo na terra do sol

Glauber evoca momentos importantes da história do Brasil, mas, por todo o filme, procede de maneira a se afastarde um realismo factual que esteve presente em certa filmografia nacional. Ele abstrai situações e personagens de sua concretude imediata; busca no cordel estrutura simultaneamente real e fantástica - ele, na verdade, elimina essa distinção entre o real e o fantástico; dramatiza as ações, retirando-lhes o caráter cotidiano.

As seqüências do filme expressam íntima conexão entre abstração e reflexão, elaborando, por meio dessa forma de narrar, uma síntese das dramatizações de eventos históricos importantes na história do país. Fatos e seres pertencentes à história são reinventados, as ações são encenadas, o comportamento das personagens extrapola as atitudes cotidianas, a música e as danças contribuem para sair do caráter convencional. A estrutura fílmica, portanto, prima pela busca, incessante e sempre inconclusa, de desconstruir qualquer vinculação direta e sem mediação a algum fato histórico específico.

A estrutura narrativa parece afirmar que o factual não importa em primeira instância. Utiliza-se, por exemplo, A canção do sertão e Chorus nº 10, de Villa-Lobos, para introduzir e finalizar a obra. A seqüência em que Antônio das Mortes aparece atirando e matando cangaceiros é acompanhada pela câmara na mão e pela música Mindinho (dança das Bachianas brasileiras nº 4). A canção de Sérgio Ricardo, com letra de Glauber, narra a história, assemelhando-se aos coros das tragédias gregas. A linguagem opera, dessa maneira, no sentido de acentuar a dramaticidade das cenas, produzindo o efeito de irrealidade.

Ocorrem alterações nas estruturas do espaço e do tempo. A história se desenrola acronologicamente, como demonstra a cena em que Antônio das Mortes mata os beatos e aparece em vários lugares ao mesmo tempo; noutra parte do filme, Corisco grita e salta para os lados, numa atitude inverossímil. A organização das imagens, portanto, procura sair do naturalismo e das atitudes convencionais, direcionando-se às ações dramatizadas, que se estendem por toda a película. Outra seqüência exemplar é a da penitência de Manuel que carrega, ajoelhado, uma pedra pelo caminho de Monte Santo. A câmara acompanha cada movimento e, ao mesmo tempo, oferece imagens da escadaria. O resultado é duplo: podemos acompanhar a dimensão do empenho de Manuel e, ao captar tal esforço, a câmera produz a intensidade da situação.

A câmera, em diversas partes da película, acentua cada passo da dramatização: fixa e imóvel, quando as situações que exprime requerem a lentidão dos movimentos; ágil, quando as circunstâncias são de mobilidade - como nas seqüências de Monte Santo nas quais Glauber utiliza a câmara na mão para as cenas em que Rosa vaga pela multidão, e a câmara fixa, para as cenas do interior da capela.

A montagem do filme se recusa à exibição de sucessão de gestos contínuos e racionalmente situados, como nos lembra Ismail Xavier (1983, p. 70). Glauber utiliza o processo de condensação. Parte de realidade múltipla, retirando o material para o seu texto, com o objetivo de estabelecer imagens simultaneamente precisas e gerais, abstratas e específicas. Quando, por exemplo, vemos as personagens Antônio das Mortes, Santo Sebastião, Corisco ou Manuel, o que surge na tela extrapola a singularidade das figuras históricas, já que condensam diversos personagens de vários movimentos socioculturais no Brasil. No filme, para exemplificar o procedimento de Glauber, Corisco é, ao mesmo tempo, um personagem histórico e representa todos os cangaceiros, além da referência imediata e significativa ao próprio Lampião. Trata-se, portanto, de metáforas históricas: alegorias do Brasil.

Deus e o Diabo evoca Canudos, Juazeiro e Padre Cícero, Virgulino Lampião, Corisco, Caldeirão, Sebastião e o sebastianismo, interpretando lugares, personagens e situações importantes da história do Brasil. A evocação dá-se por meio de metáforas. Quando Santo Sebastião aparece na tela, apresenta-se a relação de semelhança e diferença com Antônio Conselheiro, Beato Lourenço do Caldeirão e vários outros líderes messiânicos. As metáforas identificam as personagens e proporcionam o deslocar da realidade empírico-concreta. São metáforas continuadas, imagens alegóricas que perpassam e contam uma história do País. As metáforas ultrapassam significantes concretos, colocando-se num continuum. As alegorias do filme excedem a correlação entre sentido literal e sentido figurado, e apresentam complexa conexão entre designação concretizante e as outras figurações, abstrações e associações.

Antônio das Mortes é relacionado ao coronel José Rufino, matador de Lampião, e representa, ao mesmo tempo, todos os matadores de cangaceiros. Corisco, para continuar com o exemplo já citado, possuído por Lampião, em transe, fala, alternadamente, com as suas palavras e as de Lampião. A relação, que de início aparenta ser metonímica - Corisco, figura histórico-concreta -, na realidade é metafórica: ele representa as qualidades dos cangaceiros do sertão.

A morte de Corisco e de Lampião, os episódios de Pedra Bonita e de Canudos, a própria figura do matador de cangaceiros Antônio das Mortes, condensam situações e personagens. O massacre dos beatos na escadaria de Monte Santo metaforiza a chacina de Canudos; o sacrifício de uma criança, empreendido por Santo Sebastião e Manuel, vincula-se aos episódios de Pedra Bonita; Antônio das Mortes metaforiza Coronel José Rufino; e assim por diante.

No processo de dramatização de determinados momentos históricos do país, o filme reinventa a realidade, urdindo tempo, espaço, biografia e geografia, sempre em novas configurações imaginativas, e possibilitando visão alternativa dos personagens e dos episódios. Narrando uma história do Brasil, a película não se contenta em apresentar o real, ou identificar "personagens reais"; antes, prefere (re)criá-los alegoricamente. Glauber elabora - continuando a exemplificar as formas de construções alegóricas em Deus e o Diabo - imagem do cangaceiro que, ao mesmo tempo em que o apresenta como tipo, projeta-o para fora do tempo (cf. Xavier, 1983). A alegoria capta e produz a complexidade das relações entre figura histórico-concreta e personagem alegórica. Da mesma forma, Beato Sebastião está além da figura empírica de Antônio Conselheiro. Os personagens contam casos, propõem lições, e as alegorias contam-nos, assim, outras histórias. Podemos, aqui, nos fazer a seguinte pergunta: se alegoria significa dizer alguma coisa por meio de outras, quais imagens dessa(s) outra(s) história(s) que Glauber narra? O que significa, também, indagar: em Deus e o Diabo as alegorias seriam pedagógicas ou teriam o sentido de dilaceramento das alegorias modernas?

Dilaceramento

Algumas narrativas construíram o sertão como lugar distante, agreste, difícil, pobre, não civilizado, estabelecendo-o como aquilo que deveria ser vencido e domesticado para o êxito da nação. Outras edificaram o sertão como o arcaico idealizado, ressaltando características que sugerem as peculiaridades da identidade nacional - identidade esta intocada e petrificada, e sempre vista sob o prisma civilizador. O sertão seria contraponto ideal, aquele que revelaria a contrapelo o presente-civilizado. Nas duas alternativas, a idéia de nação se institui como algo teleológico, e previamente determinado, o sertão se constituindo, replicando aqui, de forma diferenciada, o argumento de Partha Chatterjee (2000), num eterno "consumidor da modernidade".

Não é difícil encontrar essa forma de configurar o sertão mesmo em comentadores da obra de Glauber. Trata-se, nesse caso, de se atribuir a Deus e o Diabo o que se estabelece como ideal da nação, expressão que deve ser compreendida tanto no sentido de imaginação da nação, como no sentido de busca, desejo e construção de um tipo nação. O ideal de nação é uma projeção que deve ser percebida dentro de um contexto determinado. A gestação dos Estados Nacionais modernos, os princípios de civilidade, a pacificação das relações dentro do Estado e as formas racionais de controlar as diferenças e as relações sociais formam um conjunto que se imprime como ideal de boa sociedade.

É o ideal de nação e a pressuposição da modernidade-civilidade como meta que conduz às imagens do sertão como algo a ser vencido, ou do sertão arcaico, idealizado, petrificado numa distância tranqüilizadora. Esse ideal de nação pode permitir, por exemplo, enquadrar Deus e o Diabo no universo das obras que construíam o processo civilizatório da nação, que dissertavam sobre a eliminação da violência e advogavam a necessidade de um controle centralizado. O cinema de Glauber seria, nessa perspectiva, uma manifestação ficcional da luta para transpor obstáculos na tentativa de conter e superar a violência, e Deus e o Diabo narraria a assimilação das regras de vida social e novos costumes políticos, com vistas à instituição no país de uma civilização; o sertão-Brasil seria construído alegoricamente como espaço em que predominavam as relações arcaicas, mas que experienciava as possibilidades de civilização.

Numa direção oposta, como se depreende dos argumentos até aqui expostos, na minha leitura as alegorias em Glauber nos apresentam imagens de uma nação dilacerada, tratando-se, sobretudo, de uma narrativa que nos conta outras histórias em que o sertão é evocado para, a partir da dissidência e das margens, falar à nação. Assim, se a identidade é perseguida, o efeito se dá pela diferença, por meio de alegorias que inventam um Brasil clamando as margens - cangaceiros, jagunços, sertanejos despossuídos - para contar uma outra história, a despeito do projeto hegemônico de nação.

O sertão de Glauber é o local de conflito de temporalidades diversas, superpostas, sítio do confronto de culturas13. Nesse espaço, a idéia de nação como temporalidade única, como parte de um processo unidirecional e civilizatório que vai abarcar o sertão, perde o sentido, e o sertão emerge como espaço alternativo a questionar a naturalização: a) do território, já que sertão e mar se confundem e que o sertão está em toda parte e em parte alguma; b) da língua, já que se reinventa a linguagem e se mesclam falas populares e eruditas, e que a tradição cinematográfica internacional é relida, traduzida, numa linguagem que se aproxima da dos mitos; c) do tempo, já que temporalidades diferenciadas são alocadas lado a lado. Deus e o Diabo questiona, assim, a própria naturalidade da nação.

Podemos, aqui, lembrar a releitura de Glauber sobre a visão de Euclides da Cunha (1985) da história de Canudos. Em Os sertões existe um duplo movimento no qual certo cientificismo - ou uma linguagem que se quer e se constrói como descritiva, objetiva e científica - que estabelece distância, inclusive com manifesto preconceito, entre Canudos e República, Canudos e a Civilização, ou ainda, entre sertão e litoral, se vê invadido por uma narrativa épica que estiliza os "jagunços" como heróis, idealizados e também cuidadosamente mantidos numa distância temporal que se almeja extinguir. É com esse raciocínio que Willi Bolle concluirá que "Euclides acaba legitimando - mais uma vez e definitivamente - o aniquilamento de Canudos" (2004, p. 38). Como vimos, o movimento de Glauber é justamente o de buscar eliminar essas distâncias e de falar o sertão por dentro. O cineasta retira Canudos de sua existência factual empírica, convertendo-o em alegoria, e como alegoria Canudos passa a representar as lutas das comunidades autônomas que desafiaram as relações de poder em diferentes momentos da história, abarcando e ressaltando, assim, todos os movimentos messiânicos do Brasil. A construção alegórica possibilita, dessa forma, dar maior complexidade às revoltas e às formas de resistências (ver Gatti, 1995; Xavier, 1983, p. 118; Tolentino, 2006). A reinvenção do Brasil ocorre, então, por meio de alegorias que dão maior complexidade à reflexão sobre o sentido das revoltas camponesas, sobre o messianismo, o cangaço, os jagunços e a religiosidade popular. As alegorias colocam os eventos numa era imaginária, fora de definições convencionais do espaço e do tempo, e é esse outro tempo que resiste e se coloca como diferença na construção da nação. Temos em Glauber, portanto, uma leitura que se opõe diretamente à de Euclides da Cunha.

Dar maior complexidade à construção alegórica, contudo, implica riscos, pois narrar outra história significa escolher, ressaltar, delimitar, num processo de edificação que nunca se controla completamente. E aquilo que resta, fruto de uma narrativa pressionada por todos os lados - pressionada por uma tradição cinematográfica que se necessita traduzir, por expressões eruditas e populares que resistem à tradução - faz com que o contar outra história seja sempre outra história e, assim, a idéia de um cineasta totalmente consciente dos processos de fabricação de sua arte, ora desenhando o sertão em cores marxistas, ora destilando uma ideologia desenvolvimentista, fazendo o mar coincidir com a revolução, e a revolução coincidir com a revolução socialista, olvida justamente os riscos e a imprevisibilidade das construções alegóricas.

Ao contrário de alegorias pedagógicas e previsíveis, essas outras histórias de uma narrativa pressionada, fruto de tensa relação com os outros interiores e exteriores, nos apresentam um sertão dilacerado, eivado de personagens inseguros, seres desolados, ambíguos, e em constante travessia. Daí, por exemplo, Ismail Xavier (1983, p. 119), que elaborou um dos trabalhos mais relevantes sobre Glauber, constatar, como conclusão da seção que analisa Deus e o Diabo, no livro Sertão Mar, como a alegoria pedagógica - ele utiliza a expressão "didática" - "se vê invadida pela alegoria no sentido moderno, figura do dilaceramento".

Na concepção de Walter Benjamin, alegoria é, simultaneamente, ruína e fragmento; e forma de contar algo sobre a degradação e opressão, o que permite o surgimento de uma história inconclusa e em permanente transformação. O ponto central da visão alegórica consiste na exposição barroca da história como história do sofrimento, valendo-se de imagens da ruína como fragmento significativo, cujos elementos não se unificam num todo integrado. O tempo surge como natureza em ruína. O sofrimento humano e a ruína são, pois, matéria e forma da experiência histórica14.

As alegorias em Glauber se centram na nação dilacerada; o sertão se constituindo no lugar de ruína e sofrimento. O dilaceramento se manifesta na linguagem cinematográfica, na maneira despedaçada de narrar; na própria violência das imagens, que as cenas na escadaria expressam tão bem; nas histórias despedaçadas de personagens despossuídos, como Manuel e Rosa, mas também como Corisco, de Antônio das Mortes, de Santo Sebastião; na violência e na ambigüidade dos personagens em travessia; nos desentendimentos e conflitos que perpassam toda a película. As alegorias expressam, então, as disjunções, e rompem com a idéia de uma temporalidade única, na medida em que inscrevem na história da nação outros momentos, alertando para a violência contida na própria idéia de um tempo sincrônico no qual o sertão ora deveria ser vencido pela civilização, ora seria petrificado como arcaico idealizado e superado. O procedimento alegorizante sugere, dessa forma, outros tempos, que deslizam e produzem uma identificação coletiva performativa que se distancia das tentativas de construção de uma identidade nacional transcendente e única. Os tropos assinalam e realçam as diferenças e as fraturas e, em denso diálogo com diversas tradições - sejam elas literárias ou cinematográficas, populares ou eruditas -, se distanciam de uma visão que essencializa e homogeneíza a nação.
1 Utilizo, aqui, termos de Rita Laura Segato (1995) e Eduardo Viveiros de Castro (2002a), que apontam tanto para a existência desse núcleo de preocupações e indagações, quanto indicam a necessidade de identificar as perguntas de nossos interlocutores, em vez de buscar respostas para as nossas próprias. Estou ciente das limitações teóricas do conceito de "sociedade" e só o utilizo aqui de forma bem geral, sem prejuízo para a análise desenvolvida. Sobre esse assunto, ver Strathern (1996) e Viveiros de Castro (2002b).
2 Utilizarei, alternada e aleatoriamente, tanto a forma abreviada (Deus e o Diabo) como a completa para identificar o filme de Glauber Rocha. Por questões de estilo e praticidade, irei me referir, daqui por diante, a Glauber Rocha simplesmente por Glauber.
3 Para Hayden White, a noção de tropo dever ser vinculada à de estilo. Trata-se de conceito particularmente apropriado para o exame do discurso que, por sua vez, é percebido como gênero em que "predomina o esforço para adquirir este direito de expressão, com crença na total probabilidade de que as coisas possam ser expressas de outro modo" (1994, p. 15). White estuda a estrutura poética que caracteriza a imaginação histórica. Ao contrário de outros intérpretes, ele não supõe que a subestrutura "meta-histórica" dos clássicos consista nos conceitos teóricos utilizados. Os conceitos encontram-se na "superfície" do texto e podem ser facilmente detectados. É necessário captar e compreender o estilo historiográfico de cada autor, verificando as estratégias utilizadas por cada historiador para dar uma "impressão explicativa". A combinação específica dessas estratégias denomina-se estilo. Para correlacionar diferentes estilos como elementos de uma única tradição histórica, White foi levado a conceber um "nível profundo de consciência histórica", no qual o pensador escolhe os meios para explicar ou representar seus dados. Segundo ele, existem quatro modos principais de consciência histórica: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. O historiador, para imaginar "o que realmente aconteceu", deve prefigurar como objeto de conhecimento um conjunto de eventos. Esse ato prefigurativo é essencialmente poético. No ato poético, que precede a análise formal, o historiador cria seu objeto de análise e predetermina a modalidade de estratégias explicativas.
4 Judith Butler (1997) desenvolve essa análise em sua obra sobre a vida psíquica do poder.
5 A importância da literatura no contexto brasileiro foi analisada por Antonio Candido (1976). Sobre a relação entre o cinema na descrição do Brasil, principalmente abordando a relação entre rural e a cidade, sertão e cidade, ver Jean Claude Bernardet (1980) e Célia Aparecida Ferreira Tolentino (2001). Sobre "missão", ver Nicolau Sevcenko (1983).
6 Diversos autores analisaram o sertão, entre eles se destacam Lúcia Lippi de Oliveira (1993; 2000, especialmente o capítulo III), Janaína Amado (1995a e 1995b), Marcos Schettino (1995), Candice Vidal (1997), Sidney Valadares Pimentel (1997), Mireya Suárez (1998), Albertina Vincentini (1998), Gilmar Arruda (2000).
7 Na definicão clássica de Lausberg (citada em Hansen, 1986), a "alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento". A alegoria, assim como o tropo, é uma transposição de sentidos, porém, diferentemente dos tropos, as alegorias devem apresentar movimento. É neste sentido que Hansen (1986, p. 14) dirá que a "alegoria é um tropo de salto contínuo". Sobre alegoria, ver ainda o texto de Ismail Xavier (2004).
8 O conceito de comunidade imaginada foi elaborado por Benedict Anderson (1989). Para acompanhar a rica discussão sobre a nação, ver, entre outros, Homi Bhabha (1990 e 1998), Stuart Hall (1997), Stuart Hall e Paul Du Gay (1997), Partha Chatterjee (2000), Rita Laura Segato (2007).
9 Paulo Emílio Sales Gomes(1986), ao analisar o mito da "obra prima perdida", de Lima Barreto, que teria o nome significativo de O sertanejo, diz parecer ser impossível que Lima Barreto declarasse qualquer manifestação de adesão afetiva aos valores arcaicos de um país agrário e pouco desenvolvido.
10 Para uma análise dos termos desenredo e intertexto, numa comparação de Grande Sertão: veredas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, ver Pereira (2007). Podemos lembrar aqui também, e somente para nuançar em Glauber a tentativa de evitar uma fala de fora do sertão, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, referência das mais importantes da literatura nacional. Livro utilizado nas escolas de primeiro e segundo graus e nos cursos pré-vestibulares e que nos surge à memória quando falamos em sertão. Na prosa direta de Graciliano surge a expressão da carência, da miséria, do mutismo, da exclusão. O sertão aparece como espaço distante, sendo expressão metonímica do isolamento e do silêncio, e sinédoque da exclusão. Em Graciliano existe a tentativa de se aproximar do pensamento do sertanejo. O narrador fala dos desejos de Fabiano - personagem central da narrativa - assinala-os, ressalta-os. Mas há também uma distância entre narrador e o sertanejo. Graciliano simpatiza com os "oprimidos", mas observa na sua voz a inconsciência, construindo e ressaltando a diferença entre o narrador e as personagens. Num determinado momento, por exemplo, Fabiano voltava de uma operação de cura, percorrendo a beira do rio, agitando os braços para direita e para esquerda. Graciliano interpreta os gestos do vaqueiro como "inúteis". A inutilidade foi proclamada por um narrador que, sabendo-se distante, pode compreender com segurança as idéias do vaqueiro. O saber coloca o autor como homem da cidade, que se percebe com idéias corretas que devem ser manifestas. Nada mais distante do narrador do que as curas realizadas por Fabiano; assim, os elementos simbólicos religiosos assinalam e nuançam o apartamento entre narrador e sertanejo.
11 Todo Estado nacional vale-se da instalação de seus outros para se entronizar, como adverte Rita Laura Segato (2007, p. 138), existindo um processo vertical de gestação da unidade, do conjunto e o isolamento de identidades - consideradas residuais ou periféricas da nação. Ao mesmo tempo em que se comporta como "positividade histórica" a nação produz os seus outros (Segato, 2007, p. 184). Cada história nacional particular produz uma matriz, e essa configuração histórica afetando as próprias narrativas. Na composição do subtítulo A nação e seus outros, valho-me diretamente do livro de Segato (2007).
12 Fredrich Jameson (1982) vem afirmando que a alegoria nacional é a forma principal - ou exclusiva - de narratividade do terceiro mundo. Críticas recentes, como as de Aijaz Ahmad (2002), têm apontado o caráter homogeneizante da formulação de Jameson, já que ele acaba por construir um "terceiro mundo" como alteridade total, e a enorme heterogeneidade se subsume numa experiência singular. A discussão das alegorias em Deus e o Diabo apresentam outras dimensões deste debate. O cinema de Glauber se expressa por alegorias; mas, são alegorias que desenham fissuras, diferenças, contradições, alegorias do dilaceramento da nação. Dessa forma, perceber as alegorias somente como construções imagéticas (por exemplo) que unificam um todo nacional, sempre pensado em contraposição às nações centrais, tal como propõe Jameson, se constitui num movimento que - para além das críticas de Ahmad e mesmo considerando a existência e os dilemas das narrativas alegóricas e a nação - se olvida da formação dos outros na nação.
13 Nesse aspecto, Glauber se aproxima de Guimarães Rosa, como pode ser observado na interpretação de Marli Fantini (2003, p. 83). A obra de referência para Deus e o Diabo é, sem dúvida, Grande sertão: veredas. A construção alegórica nos indica as relações de proximidade existentes entre o romancista e o cineasta. Guimarães nos apresenta figuras e eventos históricos, geografia e datas, alegoricamente. O romance espalha fragmentos da história nacional, conforme nos alerta Bolle (2004), inserindo expressões como: "missionário esperto engambelando os índios", "pretos que bateavam em faisqueiras", "capitão da Guarda Nacional", "no tempo do Bom Imperador". Também em Guimarães, o sistema jagunço, o coronelismo, a plebe rural, Canudos, Antônio Conselheiro, se distanciam de suas manifestações sócio-históricas imediatas e se tornam alegorias que falam e interpretam as estruturas do país. Na verdade, Deus o Diabo se configura numa reescrita de Grande sertão: veredas, a forma alegórica de narrar a nação sendo, portanto, comum aos dois autores.
14 Ver Susan Buck-Morss (2002, p. 203). Para uma densa discussão de alegoria e história em Walter Benjamin, ver Olgária Matos (1989) e Willi Bolle (2004).

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452008000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Lua Nova

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

SERTÃO DESDOBRADO


SERTÃO DESDOBRADO

Wagner Martins Madeira


Doutor em Letras pela FFLCH-USP, é professor-adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde leciona disciplinas ligadas à literatura, na graduação e pós-graduação (lato sensu). Pertence a grupo de pesquisa sobre o Duplo, liderado pela professora doutora Lílian Lopondo.

Ronaldo Correia de Brito é um escritor brasileiro atípico: contemporâneo, suas narrativas desprezam índices de modernidade. Em lugar de aviões, executivos, computadores, depara-se nelas com aves de mau agouro, vaqueiros, tradição oral. Vislumbra-se num percurso de leitura um sertão primevo, recalcitrante às mudanças de tempo. Não obstante, descortina-se uma ambiência que transcende as fronteiras regionais, pois veículo para os mais universais sentimentos humanos, como o amor, o ódio, o ciúme, a cobiça, a vingança, a ânsia de libertar-se de uma situação opressiva, etc. A propósito, esclareça-se que o autor se defende e não aceita a pecha de regionalista: “Se você elabora uma personagem complexamente neurótica, feminista, com todos os anseios urbanos, e se você senta esta mulher uma cadeira de couro, olhando uma paisagem desolada do sertão, há quem enxergue apenas o cenário, e três ou quatro substantivos locais. Embora essa mulher fale da mesma dor e da mesma solidão de uma negra americana do Harlem”. Brito se alinha com Capistrano de Abreu, no entendimento de que “nunca se escreveu a história do desbravamento dos sertões. Os historiadores ficaram pelo litoral”. As narrativas do autor são marcadamente visuais e não é à toa que usa o cinema como ponto de inflexão para discutir a realidade que lhe interessa: “cadê nossos John Ford e Sérgio Leone? Glauber fez uma leitura social, mas os acontecimentos foram bem mais transcendentes. O romance regionalista de 30 foi apenas um ensaio deste período”. O escritor quer ir além e é categórico quanto ao seu posicionamento: “O meu sertão é a paisagem da qual eu interpreto o mundo, o de hoje, o globalizado, o que rompeu com as tradições. Interessa-me a decadência, a dissolução”. A obra de Brito, portanto, embora ainda pequena e recentíssima, se mostra auspiciosa, evocando o melhor da ficção sertaneja brasileira. Nela emergem narradores prototípicos a defender valores de uma cultura defrontada com a degradação, mas que se nega em esmorecer.

Dois contos servem de norte para o presente trabalho, “Faca” e “O que veio de longe”. Ambos publicados pela Cosac & Naify, respectivamente nas antologias Faca, de 2003, e Livro dos Homens, de 2005. O corpus escolhido se revela sedutor no que se refere ao tema do duplo, em razão do segundo conto ser uma retomada do primeiro, a indicar que a obra se encontra em gestação e em contínuo diálogo com o processo de criação ficcional. Para comprovar tal assertiva, convém informar que o personagem Domisio, presente nos dois contos referidos, reaparece também no enredo do romance de Brito, Galiléia, publicado pela Alfaguara em 2008 e recém ganhador na categoria romance do Prêmio São Paulo de literatura. Nas variantes encetadas pelo autor, emergem narrativas de resistência, como que cultoras de valores de um outro tempo que não o da modernidade. Nelas o fantástico se faz presente, não na categoria dos jogos de linguagem da comicidade e da paródia, que conferiram notoriedade a escritores latino-americanos como Gabriel Garcia Marques e Julio Cortazar, nem tampouco no uso de maneirismos estilísticos à maneira de Guimarães Rosa, mas, sobretudo, numa prosa tradicional, que lembra e muito Graciliano Ramos, em que a forma está afinada com o meio que descreve, numa linguagem seca e lacerante, a manifestar o mais arraigado e trágico misticismo, que confere ao sertão brasileiro uma identidade imemorial. A esse respeito o testemunho de Brito é cabal: “acredito na supremacia da narrativa, nos velhos narradores, nos aedos gregos”.

“Faca” é o conto que dá título ao livro de que faz parte, o que por si só já denota a sua importância. Pode ser interpretado na linha da transcendência, através da faca misteriosa, com seu desenho de duas serpentes enroladas, que viaja no tempo por cem anos. É preciso atentar para o primoroso trabalho de combinação temporal, em que se manifestam os diversos tempos do passado, em torno do assassinato cometido por Domísio, e o presente dos ciganos. A narrativa é ziguezagueante, tão sinuosa como uma serpente, repleta de marchas e contramarchas temporais, a manter o interesse do leitor. A construção narrativa lembra a complexidade de uma partida de xadrez em que cada lance entrecortado do enredo desafia ao deciframento. Há toda uma simbologia subjacente no texto: o número 13 dos filhos do assassino Domísio, a faca, os ciganos, as serpentes, o escuro, etc. É um conto sobre o desejo, de um homem por uma mulher distante e dos ciganos por um objeto valioso. A faca é a encarnação metonímica desse desejo, atemporal, transcendente, no centenário de histórias que desafiam a coragem humana e revelam um sertão da tradição oral. À faca se presta o simbolismo da serpente: “Coisa primordial indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer” (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 815).

“Faca” contém quinze instâncias narrativas, a seguir comentadas uma a uma, que entrecortam o presente e os momentos do passado: 1) Ciganos acham “a faca” e cogitam de seu valor material. Uma cigana sonha com “um trancelim dourado”; outro cigano pensa em vendê-la numa cidade próxima. O objeto que “o tempo cercara de mistério, assombrava”. Um cigano comenta: “Tenho medo. É amaldiçoada”. É o tempo presente; 2) Francisca Justino, filha de Domísio Justino, arrancou a faca das mãos do seu tio materno, defendendo o pai que acabara de matar a mãe Donana. Apresenta-se uma marca narrativa importante que situa vagamente no tempo o conto: seu gesto foi acompanhado por “negros escravos”, o que permite inferir que a narrativa se passou na época do Império. Outro detalhe de monta: seguindo a ética sertaneja, Anacleto Justino pede para não matarem seu irmão Domísio em casa, o que se depreende que o âmbito familiar é um espaço sagrado na cultura sertaneja, a não ser profanado em seu interior. Chama a atenção também a metáfora utilizada para simbolizar o mistério da faca, ao ser atirada para longe por Francisca, “ave prateada, reluzindo e voando no espaço”. Os anos se passaram e a faca não foi achada. Ela tem como que um encantamento, no caso de Domísio Justino, alude-se ao “tinir” dela se chocando a uma pedra, o que lhe teria feito guardar “este barulho até a morte”. É o tempo passado, após a morte de Donana; 3) Os ciganos e o medo de pernoitar no lugar em que encontraram a faca. Um deles profere: “acho bom jogar esta faca por aí mesmo, onde sempre esteve. Muitas águas já correram”. A última oração remete, de forma cifrada e desdobrada, ao conto “O que veio de longe”, com que “Faca” dialoga, pois o corpo de Domísio foi arrastado pela enchente do Jaguaribe, antes de ser encontrado pela comunidade de Monte Alverne. É o tempo presente, dos ciganos; 4) Domísio vai levar o gado para a capital. Há uma frase significativa, a revelar a ausência de sentimento dele em relação a Donana: “ – Não sei dizer quando volto – Domísio falou, de costas para a mulher, não se dando ao trabalho de virar a cabeça”. Ela, por sua vez, o interpela: “ – E vai demorar muito?”. O narrador esclarece, em elipse assombrosa, a reação do marido: “A fala grossa de Domísio nada respondeu”. Trechos como esses são significativos do estilo de Brito, dilacerante como o punhal do entrecho, e de forma parcimoniosa desnudam as práticas sertanejas. Lembre-se que a elipse é uma marca da tradição oral e seu uso revela uma adequação formal ao universo retratado. Domísio, quando voltava para casa, ficava triste, com saudades da capital. Enquanto isso, Donana, deprimida, “chupava a safra de umbu. O fruto azedo de sua vingança”. O único deleite dela era o banho do riacho. Domísio e Donana estão, portanto, em campos opostos, separados pelo fosso da cultura patricarcal: ele se mostra expansivo, aberto para o mundo, exercendo sua condição masculina em liberdade; ela, por seu turno, sem voz, circula em espaço estreito, circunscrito às imediações da casa, e se revela afeita às interdições da sua condição feminina. O olhar confinado de Donana faz lembrar a “visão míope”, conceito encetado por Simone de Beauvoir, que Gilda Mello e Souza atribui às personagens femininas de Clarice Lispector (1980, p. 79). Os irmãos de Donana, Pedro e Luiz Miranda, perguntavam pelo marido ausente. Expressiva é a informação do narrador: “os treze filhos esqueciam o pai. Francisca, a mais velha, não conseguia esquecer”, o que remete ao valor simbólico da primogenitura para o sertanejo. A ação é do tempo passado, antes do assassinato; 5) Um cigano e uma cigana cogitam ficar com a faca. O simbolismo volta à cena: “O ouro do cabo formava duas serpentes enroscadas”. Desvela-se o passado degradado da casa: “O que guardariam dos gritos de ódio e medo as paredes esburacadas, os telhados em ruína? Onde estavam as vozes da família infeliz?”. É o tempo presente, dos ciganos; 6) Momentos depois do crime, Francisca tenta arrancar a faca das mãos do tio. Um detalhe se mostra inquietante, o narrador esclarece que a faca é a mesma da morte, da que está na mão do tio e a que se encontra com o cigano, três tempos narrativos enumerados de forma simultânea, interligados num só enunciado. É o tempo passado, pouco antes do corte narrativo dois, em que Francisca joga a faca para longe; 7) Mãe e filha choram de alegria, pela volta, após um ano, de Domísio, triste. Anacleto repreende o irmão. Eles são diferentes: Anacleto representa os valores da terra e da família. Domísio é inquieto, “preferia correr o mundo”, “ver outros rostos e apaixonar-se”. É o tempo do passado, antes do crime, depois da viagem com o gado; 8) Instante seguinte ao crime praticado por Domisio e sua fala: “O que foi que eu fiz?”. Um detalhe simbólico a ser considerado: “A mesma casa no terreiro da qual os ciganos encontraram a faca, cem anos depois”. A informação permite reforçar a idéia do tempo narrativo se passar na época do Império, bem como ser alusiva, pelo número cem, a algo que “individualiza, a parte de um todo, que, por sua vez, é apenas parte de um conjunto maior” (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 218-219). Ou seja, a tragédia que a faca simboliza perdurará indefinidamente. É o tempo do passado, em seguida ao crime, antes do segundo corte narrativo, em que os irmãos queriam vingança; 9) Ciganos no quarto escuro em que se escondeu Domísio. É o tempo presente; 10) Anacleto com Domísio, e os irmãos Pedro e Luís que rondam a casa. Apresenta-se mais um detalhe importante para se inferir a ética sertaneja, na fala de Anacleto: “Se me perguntam por você, digo tudo. Não sei mentir”. É o tempo passado, antes do segundo corte narrativo; 11) Domísio procura um álibi para se separar da mulher, ao conversar com os irmãos dela: Donana o teria traído no riacho, como comprovariam as marcas no chão de “chinelos grandes e pequenos”. Eles não acreditam. Os vaqueiros que acompanharam Domísio à capital falam que ele “acertara casamento, passando-se por solteiro”. É o tempo passado, depois do oitavo corte narrativo; 12) Diálogo entre Anacleto e Domísio e a intenção deste último: “Inventar qualquer história que me livre de Donana”. É o tempo passado, antes do décimo primeiro corte narrativo; 13) Domísio inventa a traição para os irmãos. Resposta de Pedro Miranda, o mais velho, que é indicativa mais uma vez da ética sertaneja: “ – Se for verdade, pode punir os culpados, do jeito que é devido. Mas, se tudo isto não passar de testemunho falso, prepare-se para a vingança”. É o tempo passado, imediatamente ao último corte narrativo; 14) O terço, a oração desesperada de Donana, a prenunciar a sua tragédia pessoal, que efetivamente acontece. “Os filhos de Eva alcançaram a mãe quando ela caiu morta”. Francisca, por sua vez, procura o pai no mato e o manda se esconder na casa do irmão. É o tempo passado, depois do décimo primeiro e antes do segundo corte narrativo; 15) Fim da narrativa, os ciganos diante da faca: tremiam de medo. Anacleto e a ética sertaneja, em apelo renovado: “as leis da hospitalidade”, para que os irmãos Miranda não matem Domísio em sua casa: “Em qualquer lugar, nas estradas, no meio do mato, onde vocês o encontrarem, quando ele for embora”. O final alude ao destino trágico de Domísio: “Morto, certamente. Ou esquecido, como o punhal que os ciganos largaram no terreiro”. Há uma fusão de tempos: o presente dos ciganos se imbrica com o passado, na iminência de vingança dos irmãos de Donana.

Ao se fazer um balanço do curso narrativo, percebe-se igualmente um desdobramento, a existência de dois tempos, o do presente dos ciganos e o do passado, com o predomínio deste último, em duas variantes, antes e depois do crime impetrado por Domísio. Entre um tempo e outro há um lapso de cem anos. Uma hipótese interpretativa para o alongamento do tempo cronológico no conto é a de que o ajuste do andamento narrativo se faz junto às instâncias da cultura sertaneja, em que as transformações são mais lentas, onde impera o comportamento arraigado e tradicional, se comparado com as urgências materialistas da sociedade industrializada. Ao abordar a ficção de Brito, Davi Arrigucci Jr. afirma que “a espera é um fator estrutural de suas histórias” (2003, p. 173). É, por conseguinte, a condição das personagens: de Domísio, na expectativa de ir para a capital, onde se apaixonou por uma outra mulher; de Donana e de Francisca, deprimidas, respectivamente, pela demora do marido e do pai, que foi levar o gado à capital; dos irmãos Miranda, em tocaia para vingar a morte de Donana. As narrativas estão dispostas de forma chanfrada, com o propósito de criar suspense, que é como se sabe uma das características precípuas de um bom conto. É como se o narrador estivesse munido de uma faca simbólica que cortasse a narrativa, distribuindo-a em fatias para que o leitor as pudesse saboriar uma a uma no jogo interpretativo. Ou então, dizendo de maneira mais apropriada ao entrecho, para que o leitor penetrasse nas veredas do universo sertanejo através dos afiados cortes narrativos, assim se inteirando de uma ética tributária de uma tradição milenar, que se renova ciclicamente desde tempos imemoriais, banhando-se em sangue das tragédias pessoal e familiar. Para o leitor, o resultado não poderia ser mais catártico. Assim como era soez acontecer ao se assistir à tragédia clássica, o choque resultante do descortinar do mundo sertanejo instila no leitor hodierno o afloramento dos mais recônditos instintos humanos, no sentido de se deparar com situações ancestrais semelhantes, a expressar que sentimentos como o amor, o ódio e a vingança são eternos e não precisam de maquiagem pós-moderna para mostrar sua verdadeira face transcendental. É, portanto, o repositório do ethos sertanejo, de que o narrador de Brito expõe como manifesto, em atitude de franca defesa de uma cultura que se encontra em avançado estado de aviltamento, tal qual um aedo o faria pela veracidade e beleza de sua poesia. Segundo Davi Arrigucci Jr., “o drama concentrado ganha força simbólica geral, de modo que o sertão tende a virar mundo, como palco de contradições e conflitos humanos em sua dimensão mais ampla: o tempo da natureza é realmente uma extensão do sentimento problemático do tempo travado da existência que pressupõe o mundo moderno. Na realidade é o vasto mundo que vai até o mais fundo do sertão” (2003, p. 177).

“O que veio de longe” é o conto que abre o volume Livro dos Homens. A enchente do rio Jaguaribe traz um corpo (adiante-se que é de Domísio) com três buracos no peito feito por balas: “No lugar dos olhos que antes avistavam o céu, apenas um vazio escuro”, o que remete a um dos simbolismos do conto “Faca”, em que Domísio se escondia no “escuro”. O corpo foi “arrastado mundo abaixo, à procura do mar”, o que também representa um desdobramento e um diálogo com “Faca”, por ocasião do entrecho em que Domísio matou Donana: “o corpo lavado em sangue, tingindo um riacho, e depois um rio e depois um mar”. A gradação sugere um paradoxo, a idéia da água ao mesmo tempo trágica e libertadora. O corpo foi enterrado junto a uma oiticica: “Seu tronco guardava os desenhos dos ferros de ferrar gado”. No jogo de desdobramento entre os dois textos, o trecho revela-se irônico, pois Domísio era um vaqueiro inquieto, que ganha o repouso definitivo justamente no lugar de viajantes de gado, o “Pau dos Ferros”. Enterrado “anônimo e sem história”, uma nova identidade para ele vai ser criada pelos moradores do lugar, que precisam de uma referência para adorar – alguém que seja diferente, rico, nobre, santo, etc, em tudo destoante da própria identidade do lugar. O narrador lança uma pista que em novo desdobramento remete ao conto “Faca”: “O passado muitas vezes retorna, cobrando o que é seu” (adiante-se que é Pedro Miranda que virá para fazer essa cobrança). O morto encontrado ficou sendo o “Sebastião dos Ferros”, em razão do “santo do dia”, “e o sobrenome da árvore que abrigou suas carnes”. A construção mística de uma identidade deixa vestígios do espaço e do tempo: “- Aposto que veio do reino. Ou de mais longe, da Arábia”, o que se afigura mais uma alusão ao Brasil da época do Império. “Os exilados do Monte Alverne aguardavam o chamado do morto, a hora em que iriam escutá-lo falar. Pressentiam um acontecimento, uma experiência nova”. O narrador não informa, mas Monte Alverne é distrito do Crato, cidade localizada no sertão do Ceará. O topônimo original, séculos atrás, era Missão do Miranda, o que faz lembrar da personagem Pedro Miranda, que virá para contestar a identidade construída do santo. Ou seja, há uma tradição que se revela nos contos de Brito. Recorde-se também de outro detalhe, do conto “Faca”: a filha de Domísio, que protege o pai, se chama Francisca, o que remete por homonímia a Francisco, o santo católico do Monte Alverne, que na região da Toscana aprofundou sua solidão com o objetivo de atingir a contemplação mística de Deus. A similitude com o Monte Alverne do conto se estabelece na medida em que a comunidade, apoiada no seu fervoroso misticismo, cultua Domísio como santo.

Os pormenores anteriores preparam a manifestação do fantástico. De fato ele irrompe no entrecho quando uma mulher mordida por uma cascavel “rogou ao bondoso desconhecido que lhe valesse. Um clarão atravessou o céu, parecendo o anjo da morte. Assim ela relatou o fato para o marido e os filhos, no aconchego da casa”. Observe-se a simbologia que retorna, representada por uma serpente, a dialogar mais uma vez com “Faca”. Avulta no trecho citado uma elipse irreprimível, através da não nomeação direta da cura e do milagre, bastando ao narrador para se fazer entender a menção singela “no aconchego da casa”. A passagem precedente se mostra uma espécie de “causo”, um entre outros inúmeros, que ajuda a construir aos poucos a identidade do santo milagroso: cura, nome, histórias, etc. A comunidade se vale da crença no morto para a resolução dos seus problemas, das suas adversidades. Segundo o narrador, as pessoas “construíam” uma identidade para “tudo o que faltava nas suas existências comuns”, criando um homem virtuoso, um santo, um rei arquetípico luso-brasileiro. Sebastião dos Ferros, o morto nordestino, é o sucessor “brasileiro” de D. Sebastião, o messias português. Note-se que há todo um diálogo com a tradição literária e cultural em frases como “construíram capela”, “a verdade é uma só e atravessa os tempos”, o que denota um messianismo atemporal. Uma outra ironia se faz presente no texto, o morto seria leitor das “Escrituras Sagradas, quando se aborreceu da luxúria”, logo quem, Domísio, o luxurioso. Percebe-se, então, no entroncamento de informações dos dois contos, que o humor acaba se manifestando. “Os incrédulos não se atreviam a contestar aquela gente. Sentiam medo de tamanha fé. – Não se remexe nos mistérios consagrados - afirmavam”, o que acaba sendo uma cifra para o surgimento de algum herege. Um certo Pedro Miranda chegou ao lugar. Pegou informações sobre o morto e, em consequência, “foi possuído pela ira”. “A emoção do estranho não passou despercebida à gente que o examinava. Habituados à espera, deixaram ao seu arbítrio o momento de falar”, o que pode ser traduzido para o dito comum como o peixe morre pela boca. En passant, observe-se que em termos de foco narrativo o procedimento se mostra muito rico. Pedro Miranda “perguntou se desejavam ouvir sua história verdadeira” e é interpelado: “ – O que é a verdade? – inquiriu uma voz transtornada, vinda de um corpo escondido pelo escuro”. Mais um detalhe estilístico que dialoga com “Faca”, pois Domísio havia se escondido no quarto escuro. Agora, do escuro, vem em sua defesa a voz indiferenciada e ignorante da turba, pois não existe a verdade: tudo é construído, de acordo com o imaginário crente do lugar. “Pense no que vai dizer, meu nobre! – advertiu outro, num tom mais elevado”, a afigurar o perigo em que se incorre ao ser desconstruída uma identidade forjada pela comunidade. Pedro Miranda faz a revelação aos crédulos: o homem era Domísio Justino, morto por ele com três tiros numa emboscada, quando tentara fugir, após ter matado Donana, “esfaqueada pelas costas”. Pedro fez justiça a sua irmã inocente e não satisfeito, com sua fala, conspurcou o corpo transformado em santo. Ele se mostra como um estrangeiro descrente, um Outro que vem profanar a identidade sagrada construída pela população. A reação dos ouvintes: “Estreitavam o círculo em volta do narrador, projetando os corpos silenciosos”. É uma imagem vigorosa, cinematográfica, que revela a morte sendo virtualmente construída. Pedro diz: “O santo de vocês está ardendo no inferno. Não merece uma única reza”. A reação da turba, em resposta a ele, se mostra um despiste e um reforço para a importância da espera como visão de mundo do lugar: “agora, era melhor descansar. Viera de longe, precisava dormir”. Para sempre, pode-se assim dizer, pois a frase anterior é um eufemismo para a morte iminente: “Um relâmpago cortou o céu. Choveu a noite inteira e o Jaguaribe botou enchente. Pareceu o dia em que encontraram o corpo do santo. Águas barrentas e profundas. Na medida certa para arrastarem outro corpo. Em relação às frases precedentes do entrecho caberia fazer uma “etnografia da fala”, ou seja, “o estudo das normas de comunicação que prevalecem numa comunidade de fala, incluindo fatores verbais, não-verbais e sociais”. Entre outras variáveis poder-se-ia atentar para o “volume e altura da voz, a distância entre os interlocutores, a expressão e a postura física, o contato pelo olhar, as formas de tratamento e as regras para iniciar a conversação” (Trask, 2004, p.102-103). Revelaria-se o ethos sertanejo, no embate entre a identidade dos habitantes do Monte Alverne em confronto com a alteridade do forasteiro, que com sua “verdade” não faz frente à crença messiânica em “Sebastião dos Ferros”. A fé do vulgo sobrepuja o discurso prosaico e profano. Tal qual o corpo do morto, a mística, a crença, também vem de longe, é ancestral. O que veio de longe tanto pode ser o santo a ser adorado quanto o blasfemo que conspurcou o morto. Repare-se na elipse: não é o homem que veio de longe, é o sobrenatural, para o bem e para o mal. O conto termina com a “natural” morte do forasteiro, que se atreveu a desmistificar o Messias. A última frase é assaz reveladora: “Na medida certa para arrastarem outro corpo”, leva à idéia do ciclo das águas, o eterno retorno da natureza que equivale à fúria da natureza humana conspurcada em sua crença. Quanto à ficção de Brito, a narrativa se desdobra, não satisfez sua fúria ficcional com o conto “Faca” e faz o eterno retorno com “O que veio de longe”, que tem um andamento narrativo tradicional. Em ambos os contos o narrador faz o casamento perfeito entre forma e matéria, no uso das elipses e redundâncias, que se mostram recursos próprios da tradição oral. Entretanto, ao contrário de “Faca”, com quem dialoga, “O que veio de longe” não apresenta vários tempos narrativos, nele se impõe a cronologia convencional. Uma possível resposta para essa opção narrativa reside no fato de que uma identidade, como a da cultura sertaneja, se construir com o passar do tempo, uma tradição que vai se forjando continuamente, sem interrupções. Daí a isomorfia: uma narrativa conservadora para uma comunidade igualmente conservadora. Outro detalhe que chama a atenção é que em “O que veio de longe” há a espera do momento para matar o desafeto do santo forjado pela comunidade, através do eterno retorno purificador das águas, que trouxeram o santo a ser reverenciado e que levam embora o demônio que o profanou. Para Davi Arrigucci Jr., na narrativa de Brito “o resultado, referido ao tempo da natureza, é uma espécie de condenação à recorrência, uma volta ao mesmo, que rege os destinos narrados e funciona como um princípio de composição”. A estratégia permite, segundo o ensaísta, “o corte abrupto do fim da história”, sem desmanchar o “segredo do destino” da narrativa (2003, p. 174-175).

Mostra-se cabível aplicar às narrativas de Brito, em linhas gerais, a seguinte classificação de foco narrativo: presença de “autor implícito”, conceito formulado por Booth, combinado com “narrador onisciente neutro”, conceito de Friedman, em 3ª pessoa, tendendo ao “sumário” da narrativa tradicional. Explique-se que o conceito “autor implícito” pode ser entendido como “imagem do autor real criada pela escrita”, de quem “comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na História” (Leite, 1994, p.19). No caso de Brito, autor implícito é sinônimo de autor engajado, pois o narrador de seus contos está deliberadamente a serviço de valores que lhe são caros, quais sejam de defender uma cultura anterior à industrialização. Desse modo, “Faca” e “O que veio de longe” são contos que têm em comum a marcante presença do passado. Segundo Wolfang Kayser, é o tempo usual da narrativa épica, que “referenda a sua objetividade, fixando o acontecido” (Apud Leite, 1994, p.11). O passado é um outro tempo para um mundo de outros costumes. Trata-se do tempo forte das narrativas de Brito, através do qual o escritor expõe seu ponto de vista sobre o mundo que o cerca, no sentido de referendar as experiências e os valores de uma cultura sertaneja gestada há séculos, de caráter oral, um ethos que permanece, teimando em não sucumbir à sua degradação na época contemporânea. O narrador, assim, atinge o universal ao tratar do regional, vislumbra as essências em torno das aparências, se posicionando solenemente como o mediador do choque entre o tradicional e o moderno, não se eximindo de assumir sua predileção pelo primeiro. O narrador, em narrativas desdobradas, se nega a cantar “excelências”, pois na obra o ethos sertanejo se mostra vivo e pulsante, a afirmar sua resistência cultural.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITO, Ronaldo Correia de. Faca. Pósfácio de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

__________________. Livro dos Homens. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera Costa e Silva et. al., 8 ed., rev. aum., Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

KAYSER, Wolfang. Análise e Interpretação da Obra Literária (Introdução à Ciência da Literatura) 2 Vol. Trad. Paulo Quintela. 5 ed., Coimbra: Arménio Amado, 1970.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 7 ed., São Paulo: Ática, 1994.

SOUZA, Gilda de Mello e. O vertiginoso relance. In Exercício de Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980.

TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Lingüística. Trad. Adapt. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004.

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