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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Salazar - Um ditador fascista?


Político sem brilho, destituído de carisma, Salazar comandou Portugal por mais de 35 anos. A sua condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por abalos, é motivo para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa

por Boris Fausto
Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.

Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito Mussolini se tornou Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.

Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de Salazar: A Political Biographye não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.

É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.

António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.

Salazar nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e finanças.

Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.

Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã.”

No plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade intelectual da grande massa.

A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.

A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.

Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não só política, como também econômica e financeira.

Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente, déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês – portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.

Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua morte.

Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.

Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.

Bem longe da retórica ribombante dos ditadores de fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.

Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor definição. O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”

O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o status quo nas “províncias de além-mar”.

O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.

À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.

Como nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar, sabidamente, não reunia.

Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.

Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”

Salazar se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.

O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora, configurada no populismo.

No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma inspiração.

O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de “promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.

Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de la politique d’abord – a política antes de tudo.

Uma expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.

Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado.

A consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma oposição eficaz.

Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a Salazar.

Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que acabou se retirando do pleito.

Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.

Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.

A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas Nações Unidas.

Espetacular foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o Santa Maria. Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.

No plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.

Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.

Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco retrocesso.”

Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a Inglaterra. Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios europeus. E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.

No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre, particularmente no livro O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias vezes, a convite do governo português.

As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.

Salazar não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.

Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.

Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito escassos, e não de homens providenciais.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Fascismo à portuguesa


Reproduzido da Folha de S.Paulo, 20/03/2011

João Pereira Coutinho

Salazar – Biografia definitiva, de Filipe Ribeiro de Meneses, traz novos parâmetros para compreender a atuação do ditador português, que forjou seu poder com base na austeridade fiscal, na retidão moral e na mitologia colonialista do país. Enraizado na sociedade, seu ideal de “paz e sossego” engendrou um Estado “tão forte que não precisava ser violento”.

Quem foi Salazar? A pergunta é mais difícil do que parece e, quatro décadas depois da morte, é raro encontrar uma resposta racional entre os lusos. Para uns, Salazar foi o supremo responsável pela “longa noite fascista” em Portugal – uma ditadura iniciada em 1928, reconfirmada e reconfigurada em 1933, e a que só o 25 de abril de 1974 conseguiu pôr cobro. Para outros, Salazar encontra-se no extremo oposto: o homem que resgatou Portugal da falência económica e política da Primeira República (1910-26), relançando o país entre as nações respeitáveis da Europa. Salazar, nessa bondosa visão, era o homem austero, celibatário (um “monge voluntariamente castrado”, como diriam os seus detractores), que viveu modestamente e, mais importante ainda, morreu modestamente. Eis a visão hagiográfica que Franco Nogueira, diplomata português do Estado Novo, deixou para a posteridade na biografia em seis volumes que dedicou ao ditador.

Ambas as visões explicam pouco, ou nada: a recusa em olhar para Salazar com distanciamento e equilíbrio inscreve o ditador português na categoria da maldade absoluta – ou da bondade absoluta. Em qualquer dos casos, eleva-o acima do seu tempo e da particular história de Portugal no século 20.

A fé e as coisas da carne

Felizmente, essas expressões de irracionalismo têm mudado nos últimos anos, graças ao trabalho de uma nova geração de historiadores que, sem complexos ideológicos de esquerda ou direita, trabalham sobre Salazar e o Estado Novo de cabeça limpa. Mas, apesar de tudo, faltava ainda uma obra maior capaz de responder, muito prosaicamente, a duas ou três questões: de onde veio Salazar? Como se manteve no poder? Que herança deixou? Filipe Ribeiro de Meneses, sintomaticamente um “estrangeirado” que construiu a sua carreira na Irlanda, onde as polêmicas ideológicas sobre Salazar não chegam, escreveu uma monumental biografia de Salazar que ficará como um marco nos estudos sobre o homem e o seu regime: Salazar – Biografia Definitva [Leya Brasil, 816 págs., R$ 59,90]. Originalmente escrita e publicada em inglês, chega agora traduzida ao mercado brasileiro.

António de Oliveira Salazar (1889-1970) é um produto tipicamente português. O historiador Paul Johnson, no seu Modern Times, já notara com espanto que Salazar (e Marcelo Caetano, seu sucessor em 1968) constitui caso singular no código genético dos ditadores europeus, para não falar dos latino-americanos. Salazar não era um homem do Exército, nem aí fizera carreira, lealdades e glória. Também não emergira, como Hitler ou Mussolini, do bas-fond da agitação retórica e revolucionária das ruas, pronto para liquidar o liberalismo decadente. Salazar era um académico coimbrão, professor de Finanças Públicas, e até o fim cultivou essa imagem de rigor científico e distanciamento mundano, próprio de um scholar que contempla o mundo sub specie aeternitatis. Ribeiro de Meneses retoma igual observação e ela é mais do que uma simples referência à forma provinciana e reverente como os portugueses olham para os seus “doutores”.

Mas, antes da universidade, é importante esclarecer como esse destino esteve para não o ser. Nascido em 1889, na povoação do Vimieiro, no interior centro de Portugal, Salazar cresceu em família modesta, que cedo percebeu no filho um brilho intelectual distinto. Para o jovem António estava assim reservado o mecanismo tradicional de ascensão social das famílias pobres: o seminário e, logicamente, o sacerdócio. Salazar acabaria por abandonar essa vocação por razões nunca inteiramente explicadas. Para Ribeiro de Meneses, o jovem seminarista teria perdido a fé nas coisas do espírito; ou, em alternativa, teria sucumbido às coisas da carne. A verdade é que a paragem última da sua formação intelectual seria a Universidade de Coimbra, e não o seminário em Viseu.

Ambição crescente

E foi a partir da mais antiga universidade portuguesa que, em 1910, Salazar iniciou um caminho meteórico. O ano era especialmente significativo: a 5 de outubro era implantada a República e, com ela, o seu longo cortejo de instabilidade e violência. A experiência republicana foi marcante para Salazar: influenciado pelas encíclicas de Leão 13 e militando nas organizações académicas cristãs, ele não poderia assistir ao anticlericalismo republicano de forma neutra. Para o estudante, a defesa da Igreja católica não significava defender um retorno à monarquia, como se ambas estivessem umbilicalmente ligadas (eis a “armadilha”, explica Ribeiro de Meneses, em que Salazar nunca caiu). Defender a igreja era defender a sua integridade em face dos ataques da República.

Entender Salazar começa por ser, assim, entender a sua formação católica na construção de uma mundividência política. Mas Salazar é também o resultado do fracasso – político, económico e financeiro – da Primeira República, fracasso que o catapultou para o poder.

Faz parte da hagiografia salazarista pintar o ditador com as cores da relutância. Segundo a lenda, Salazar teria abandonado a contragosto a sua pacata vida universitária e as férias de verão na província para descer até Lisboa, aceitar a pasta das Finanças (duas vezes: em 1926 e 1928) e, finalmente, a condução do governo. O mito não sobrevive à realidade, escreve Ribeiro de Meneses: depois da insurreição do 28 de maio de 1926, que pôs termo à Primeira República pela instauração de uma ditadura militar, a ambição de Salazar foi crescente. A expressão tangível dessa ambição encontra-se no esforço pensado e sistemático para mostrar a incompetência técnica das lideranças militares, incapazes de devolver ao país um mínimo de sanidade financeira.

Mais que um mantra

Com uma mistura de falsa modéstia e pesado sarcasmo, Salazar propunha em artigos de jornal “rectidão fiscal, autonegação e sacrifício”, escreve Ribeiro de Meneses, uma terapêutica austera que era também austeramente cristã: contra o materialismo desenfreado, que apenas corrompia as bolsas e as vidas, seria necessário pregar a “simplicidade na vida pública”. Assim era na teoria, assim seria na prática: ao aceitar a pasta das Finanças em 1928, depois de uma experiência frustrada em 1926 que durara apenas cinco dias, Salazar sabia que o seu momento chegara. E que lhe cabia agora, perante uma casta militar que o olhava como um intruso, mostrar ao regime – e, sobretudo, ao país – a sua imprescindibilidade. Como escreve Ribeiro de Meneses, “a batalha do orçamento” seria o primeiro passo, e o mais importante passo, para construir o Estado Novo.

Nas discussões sobre o Estado Novo, tornou-se questão recorrente saber qual a natureza do regime. Seria o Estado Novo uma forma de “fascismo”? Ou seria uma forma de autoritarismo que não permite uma filiação plena ao fascismo italiano? Filipe Ribeiro de Meneses revisita a questão mas, felizmente, não perde tempo com ela. O Estado Novo não teria sido possível se a “ditadura das finanças”, entre 1928 e 1932, não tivesse apresentado vitórias claras no controlo do défice fiscal e na garantia da solvência do país, dois problemas crónicos da República e que a I Guerra Mundial (1914-18) apenas agravou. A partir de 1930, esse passou a ser o problema premente para o “ditador das finanças”, explica Ribeiro de Meneses: deveria a ditadura militar regredir para a situação anterior a 1926, o que significaria sacrificar os ganhos económicos e financeiros entretanto obtidos? Ou implicava avançar para uma nova ordem onde o Estado e a nação se reconciliassem?

A resposta de Salazar enfrenta os dilemas teóricos sobre a natureza do seu regime. “Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento?” Eis um mantra que é mais do que um mantra. É a autobiografia do Estado no Estado Novo.

Foto de Mussolini

Salazar era um leitor atento, desde a juventude, de Charles Maurras, a figura cimeira da Action Française, movimento contrarrevolucionário que, através de uma publicação com o mesmo nome, defendia em Paris a restauração monárquica. Mas, se partilhava com o teórico francês a mesma disposição iliberal, não poderia subscrever, na teoria ou na prática, a noção de la politique d´abord, a política em primeiro lugar. Como sustenta Ribeiro de Meneses, ao recusar o carácter revolucionário, perfectibilista e violento dos “fascismos” europeus, Salazar relembrava ainda, numa posição marcada pela formação cristã, que existiam limites morais e até espirituais para a acção do Estado. O antissemitismo da Action Française, para não falar das teorias rácicas e genocidas do Terceiro Reich, eram-lhe estranhas.

O regime nunca hesitou em prender e punir severamente os seus opositores, é certo; mas a ideia, tão cara aos totalitarismos nazifascistas, de que a política deveria dominar absolutamente todos os aspectos da existência, afigurava-se para Salazar como uma repetição extremada (e à direita) da desastrosa experiência republicana (de esquerda). Não repetir os erros de 1910-26 passava, assim, por retirar a política das ruas, dos jornais e das preocupações diárias dos indivíduos. O salazarismo, mais do que uma forma ativa de política, era uma forma de negar a política no que ela tinha de potencialmente conflituoso. “Viver habitualmente” era uma garantia de paz no país e de sobrevivência para o regime.

Sobrevivência: o Estado ditatorial que a Constituição de 1933 consagrou e em que Salazar era, finalmente, o primeiro-ministro de um “monarca” absoluto (o “monarca” era uma alusão metafórica ao presidente da República, que em teoria o poderia sempre demitir) passou a considerar a sobrevivência do regime como prioridade indistinguível da sobrevivência da nação. E não deixa de ser irónico que a principal ameaça interna, nos primeiros anos do regime, tenha vindo da direita. O Movimento Nacional-Sindicalista, apesar das suas iniciais juras de fidelidade a Salazar, esperava, no entanto, ver no ditador o tipo de carisma “radical” (leia-se “fascista”) que era possível admirar em Mussolini. Salazar tinha uma fotografia do duce sobre a mesa de trabalho; por que motivo não poderia imitar-lhe o programa e o modo de acção?

“Duplicidade jesuítica”

Ao repto respondia Salazar: “Mussolini, digo eu, é um grande homem, mas não se é impunemente da terra de César e de Maquiavel!” A frase transporta um elogio, mas também uma justificação: Salazar não era um César nem um Maquiavel. E o seu comportamento público denuncia-o: as aparições públicas não abundavam; as grandes multidões não condiziam com o seu temperamento reservado; e, sobre as qualidade oratórias, dizia o sucessor, Marcelo Caetano: tinha “uma voz de velha”.

Aos apelos de radicalização do regime rumo a um verdadeiro fascismo, Salazar respondeu com uma mistura de sedução e violência que liquidou o nacional-sindicalismo dos Camisas Azuis. O ditador soube cooptar os mais moderados para o regime, ao mesmo tempo em que reprimia os recalcitrantes. As ameaças, porém, não eram apenas internas – ameaças que a censura e a polícia política tratavam com os respectivos métodos. Na década de 1930, com uma Europa que caminhava para a guerra total, as ameaças eram também externas e exigiam um esforço diplomático ímpar para garantir a sobrevivência física do país – e do regime.

O primeiro teste viria com a Guerra Civil espanhola (1936-39): seria possível a Portugal evitar a contaminação republicana que provocara em Espanha a sublevação dos nacionalistas? Salazar entendeu que sim, mas apenas se Franco estivesse disponível para ver em Portugal um aliado à altura. Não apenas um aliado diplomático, capaz de serenar o Reino Unido e de convencê-la da importância do caudilho como barreira necessária contra o avanço da “ameaça vermelha” na Europa.

Como escreve Ribeiro de Meneses, “é o tratamento dos refugiados republicanos espanhóis que mais ensombra a reputação de Salazar neste período”. Ou porque eram presos ao cruzar a fronteira portuguesa; ou porque eram devolvidos à procedência, onde um funesto destino os esperava. A Guerra Civil espanhola foi a antecâmara do enfrentamento mundial de 1939-45; e também nesse contexto os objectivos de Salazar permaneceram inalterados: garantir a integridade do país, só possível por uma frágil e engenhosa neutralidade. As páginas de Ribeiro de Meneses sobre a estratégia de Salazar – na qual era imperioso “esconder intenções”, “ocultar ressentimentos”, “a todos parecer amigo”, fosse pela venda de tungstênio às fábricas de armamento alemãs, fosse pela cedência das bases militares dos Açores aos aliados – são bem o exemplo da “duplicidade jesuítica” que, não raras vezes, levava ambas as partes do conflito ao pasmo e à exasperação.

Irremediável declínio

Como teria sido a biografia de Salazar e a avaliação do seu legado se, finda a II Guerra Mundial, o ditador tivesse promovido a abertura política do regime e, quem sabe, o seu voluntário afastamento? A pergunta tornou-se um cliché nos debates sobre o Estado Novo; um cliché que se multiplica em novos clichés: ao afastar-se, em 1945, Salazar talvez seria visto como o homem providencial que endireitou as finanças de Portugal e depois garantiu a sua paz durante o conflito. Acontece que a pergunta tem pouca relevância histórica, excepto para quem alimenta um gosto particular pela “história alternativa”: a neutralidade portuguesa na Guerra e a vitória dos aliados transportava consigo novos desafios para Salazar.

Com a emergência de dois blocos ideológicos na Guerra Fria, Salazar entendia que era sua missão evitar as nefastas influências desses polos antagónicos. Cabia-lhe a ele suster em Portugal a ameaça soviética que descia sobre metade da Europa; mas também garantir que o país não seguiria os apelos das “democracias parlamentares” para que seguisse o ideário de Washington.

Essa relutância antidemocrática de Salazar não sinaliza apenas a incapacidade do ditador para entender as profundas mudanças por que passava o Ocidente. Ela marca o princípio do seu fim e, como o próprio diria, nada resume tão bem essa fatalidade como uma única palavra: África. Como foi possível a um pequeno país travar uma guerra em três cenários longínquos e distintos (Angola, Guiné-Bissau, Moçambique), estando “orgulhosamente só” no concerto das nações? A resposta mais breve seria: não foi e não era. Mas as guerras africanas, que tiveram início em Angola em 1961, respondiam a uma visão idealizada de Salazar sobre o papel de Portugal no mundo: as colónias eram a expressão material da missão civilizadora da pátria; sem colónias, Portugal (e a Europa) estaria condenado a um irremediável declínio.

“Um certo cansaço”

O fracasso de Salazar foi duplo: incapaz de entender que a manutenção das colónias seria inviável – e que caberia, portanto, uma transição possível e ordeira para uma autonomia negociada –, sua obstinação não se traduziu numa defesa eficaz das colónias quando as populações brancas se viam rodeadas pela violência e a agressão dos rebeldes.

São notáveis as páginas que Ribeiro de Meneses dedica a esse trágico paradoxo: o de um velho ditador condenado a defender as colónias, mas incapaz, ou indisponível para as defender efectivamente. “A guerra não se sobrepôs a uma regra básica da vida portuguesa desde 1928”, escreve o historiador: “um orçamento equilibrado era a pedra angular da política pública”. É difícil ler essa frase de estômago intacto e pensar nos milhares de mortos e feridos que a guerra provocou entre 1961 e 1974.

Salazar morreu em 1970. Mas, politicamente falando, a morte veio dois anos antes, quando sofreu um acidente vascular cerebral do qual nunca se recuperou. Ou talvez tenha vindo em 1961, com a perda de Goa, Damão e Diu para a União Indiana; com o início das guerras coloniais africanas; e com episódios mais domésticos, como a frustrada tentativa de golpe perpetrada pelo seu próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz.

O ano de 1961 não foi apenas um annus horribilis para Salazar, a que nem sequer faltou o mediático assalto ao transatlântico Santa Maria por Henrique Galvão, um velho inimigo do regime. Naquele ano, conta Ribeiro de Meneses que o ditador teria recebido uma lista, provavelmente elaborada pela polícia política, onde se arrolavam os principais queixumes dos portugueses face ao regime. Um deles consistia no seguinte: “Um certo cansaço da paz e do sossego gozados há tantos anos.”

Paz e sossego. Como nos cemitérios. As virtudes que Salazar perseguira com ditatorial intransigência eram as mesmas que o acabariam por enterrar.

João Pereira Coutinho é jornalista, escritor e doutor em História pela Universidade de Coimbra