domingo, 17 de janeiro de 2010

Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem (parte 4)


Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem

Luiz Lima Vailati*
Doutorando/USP


O CORTEJO FÚNEBRE

Como foi dito, outro momento dos funerais infantis freqüentemente registrados nos relatos de viagem é o cortejo fúnebre. É a ocasião em que o corpo deixa o local onde era visitado (geralmente a residência) e se dirige à igreja, na qual, até a metade do século XIX, era enterrado. De todas as etapas que compunham o cerimonial fúnebre infantil, esta foi a que mais chamou a atenção dos viajantes, resultando na maior parte dos registros que eles fizeram deste assunto. Não era para menos. Era a procissão fúnebre o ponto alto da participação coletiva que compunha os rituais de morte tradicionais, ocasião em que o caráter público dos funerais se manifestava com maior intensidade — a cidade toda era chamada a participar deles. A morte infantil, com a permissividade ritual que a caracterizava, não deixou de potencializar em alto grau essa caraterística. Por esse motivo, esse conjunto constituído pela procissão e transporte do cadáver revela a forte tendência que a morte da criança tinha, ora de exacerbamento das atitudes que a morte como um todo engendrava, ora de inversão destas mesmas — no sentido de deslocar a gravidade comum aos funerais dos adultos para um outro tipo de postura. Vejamos.

Durante grande parte do século XIX brasileiro, rezava o costume de realizar o translado do corpo à igreja para ali ser enterrado (hábito que, por dois séculos, será debaldadamente combatido pelas autoridades eclesiásticas e médicas, até que fosse definitivamente abandonado) à noite47. Ora, segundo experiência também compartilhada por outros viajantes, o francês Arago, vagando pelas ruas da Corte, foi surpreendido, ao dobrar uma esquina, com um cortejo fúnebre "en plein jour": tratava-se de um pequeno defunto com destino ao cemitério48. Com efeito, esse diferença não passou despercebida a Kidder que, ao enumerá-las, lhe ocorreu mencionar, em primeiro lugar, a questão do período do dia em que essas cerimônias aconteciam. Estamos novamente diante de uma prática que relaciona a morte da criança a um acontecimento cujo sucesso já se conhece de antemão. As cerimônias de um adulto eram noturnas, com tudo aquilo que a noite encerra de mistérios e perigos, em bastante conformidade com o que se acreditava serem os primeiros momentos que presidiam a passagem para o além. O dia, por sua vez, é o lugar do cotidiano, daquilo que é familiar. Se o defunto adulto realizava sua última viagem nas trevas, como referência ao seu decisivo e desafiador trajeto para o outro mundo, onde até os mais pios poderiam se perder, para a criança morta esse transportar-se não comportava risco ou surpresa. As procissões diurnas eram índice de que se dava por garantido sua salvação.

Mas a luminosidade que o dia proporciona parece ter também uma outra função aqui. Uma delas é dar condições para que o cadáver seja visto por maior número de gente possível. Os tanato-historiadores estão de acordo com o fato de que, nos funerais ocidentais barrocos, o morto presidia o espetáculo (eles eram, em parte, isso), visto que esse acontecimento era por ele planejado em testamento nos seus mínimos detalhes. Nos enterros de criança o morto era, ele próprio, o espetáculo. Aos participantes, desincumbidos de prestar auxílio tanto ao defunto, em momento em que se faz necessário reunir forças para o bom encaminhamento do translado espiritual, como aos familiares, estes em processo de reordenamento tendo em vista a superação do vácuo social que a morte de um adulto geralmente produz, cabe uma única atitude, a de louvar o pequeno falecido. Sendo assim, é a ele que todos os olhares se dirigem, o que explica em grande parte o esmero com que é preparado. É em virtude disso que a principal característica do funeral infantil nessa fase do cerimonial era a superexposição do morto, elemento que também chamou a atenção dos viajantes. De fato, a primeira coisa de que recorda acerca dos funerais infantis o marinheiro norte-americano Charles Stewart, que deles participou na década de 1820, é que os corpos das crianças "are exposed in procession through the streets"49.

Tal era o esforço para conseguir o máximo nesse sentido, que em 1845 Thomas Ewbank fora informado por brasileiros que vinte e cinco anos antes era muito comum a criança morta seguir o cortejo de pé (do estranhamento com que esse hábito se apresenta a nós, hoje, é possível vislumbrar o teor das transformações que tiveram lugar nas práticas e representações da morte da criança ao longo desses dois séculos). Segundo ele, para que isso fosse possível, a criança tinha os tornozelos, joelhos, braços e pescoço amarrados com fitas a um suporte de madeira em forma de cruz, fixado numa plataforma. Devidamente maquiada, em roupa de gala, sapatos de seda, uma profusão de pedras preciosas, portando numa mão uma palma, e a outra apoiada com naturalidade sobre um arrimo vertical: tudo isso resultava num efeito conjunto que tornava difícil acreditar que ali se tratasse de um cadáver, não fosse pelos olhos cerrados. Segundo esses informantes, tal prática teria sido abandonada na Corte, mas era ainda muito comum no interior50.

De todo modo, para grande parte do período enfocado, são nulas as referências a esta prática, o que aponta para a sua inexistência, principalmente nas grandes cidades. É apropriado pensar que o caráter "pitoresco" com que esse costume por certo assumiria aos olhos dos viajantes estrangeiros teria feito com que, caso fossem efetivamente presenciados, resultassem em registro. Entretanto, ainda que não tenha presenciado essa prática nos funerais dos quais participou, Luccock nota que nestes a criança era colocada num estrado de forma a também estar inteiramente à vista51. Como se vê, a disposição horizontal com a qual se tornaria regra dispor o cadáver não implicou necessariamente que a exibição exarcebada deste deixasse de ser um traço marcante dos funerais infantis. Por um bom tempo ainda permaneceria válida, por conseguinte, a constatação de que, se era comum no conjunto dos gestos que acompanhavam o cerimonial fúnebre que o defunto, como que de fato presidindo a festa, ficasse devidamente à vista de todos os que tomavam parte nesse acontecimento — considerando o uso de caixões abertos durante o cortejo -, para a criança essa tendência era bem mais acentuada.

De resto, o cortejo, na forma como era organizado, parece, à primeira vista, que em pouco ou nada se distinguia dos funerais de adulto. Como nestes últimos, ele era realizado a pé. Com efeito, segundo Ernest Ebel, que escreve nas primeiras décadas do século, as procissões fúnebres de criança, tal como as demais nesse período, eram formadas por fileiras de homens que seguiam andando52. O mesmo é dito por James Wetherell em 1856, que lembrava que quinze anos atrás, antes que fossem proibidos os enterros dentro das igrejas, a procissão que ia a ela era feita a pé, formada por uma longa fila de parentes e conhecidos, encabeçada pelos padres que carregavam velas cobertas por lanternas de papel53.

Uma identidade entre os dois cerimoniais se estende à questão relativa à origem das pessoas que acompanham o cortejo, nas suas relações com o defunto. Nos cortejos de "anjinho" mulheres e parentes próximos do falecido eram proibidos de participar. É o que alguns viajantes — John Candler em 1852, Christopher Andrews em 1887- recordam acerca dos enterros no Brasil54. Estando de acordo com essa observação, nas descrições que estes deixaram dessas cerimônias não há qualquer alusão à presença dos pais ou de mulheres. Não se pode deixar de assinalar a considerável participação de estranhos, outro traço que compôs o caráter público dessas manifestações. É evidente que se nesse ponto os enterros de crianças eram diferentes dos demais, isso se dava tão-somente porque, como em tantos outros aspectos, esta característica se apresentava de forma mais radical. Os viajantes não só se vêem eles próprios participando de procissões fúnebres de estranhos, como ainda o fazem sem que houvesse outra escolha — em todos esses casos se tratava de enterro de "anjinho". Já se mencionou uma ocasião em que, vagando pelas ruas do Rio de Janeiro, Luccock foi convidado a participar de um cortejo fúnebre que vinha a ser de uma criança. Este evento aconteceu no início do século, tendo Ernest Ebel experiência semelhante na década de 182055. Vinte anos mais tarde, o mesmo teria ocorrido com o francês M. J. Arago, interpelado na rua por um estranho que lhe pedira "se podia lhe fazer a gentileza de acompanhar um pequeno Jesus ao céu", ao que consentiu o viajante, acompanhando com um círio aceso que para isso lhe deram, como também havia sido feito com Ebel56.

Em todo caso, se nos funerais tanto de adulto como de criança o público que acompanha o cortejo é, nas suas relações com o cadáver, da mesma natureza (familiares, confrades, amigos, conhecidos e desconhecidos) conforme nos informam os testemunhos, isso nem sempre pode ser dito no que respeita ao comportamento por eles adotado. Chamou a atenção a Arago um outro costume, deveras destoante dos funerais de adulto e que, como tantos outros também fizeram, ele interpretou como uma manifestação de felicidade pelo ocorrido: nos enterros de criança ele notou a ausência de luto entre os participantes, que se apresentavam em "vêtements mondains"57. Esse aspecto, de fato, nos faz voltar à hipótese de uma concepção de morte infantil que se expressava não pela gravidade dos gestos, mas por uma proximidade com que é cotidiano e familiar. Por tudo aquilo que até agora foi dito, é essa concepção, mais do que um certo desprezo ou desapego à criança, que parece ter sido determinante na forma como esse cerimonial se caracterizou.

O cortejo infantil prima por sua informalidade e pela presença de elementos, por assim dizer, "festivos". Voltamos aqui ao caráter de inversão com que os cerimoniais fúnebres de criança se afiguram quando tomamos por referência os comportamentos que são comuns à morte adulta. Um exemplo mais saliente deste tipo de conduta nos oferece a experiência do oficial de reserva alemão Carl Siedler, que em 1835 seguiu o funeral de "uma criança de distinta família". Ele nos conta que a comitiva que iria acompanhar o "anjo" constou da presença de uma banda militar a qual executava uma marcha fúnebre até que, a partir de um determinado momento, por ordem do vigário, passou a tocar o chamado "miudinho" — uma espécie de música dançante de caráter jocoso e, muitas vezes, de forte conotação sexual. Nesse caso, a canção fazia alusão "aos secretos encantos da madona"58. Desnecessário acrescentar que tal feito não deixou de ter causado violenta revolta ao luterano alemão, que sofrendo forte indignação, decidiu de imediato afastar-se do cortejo.

De fato, alguns aspectos do aparato material que compõem essas procissões estavam mais de acordo com uma concepção diferenciada da morte infantil. No uso das cores, por exemplo, Daniel Kidder, em 1930, nos informa sobre a existência de tocheiros vestidos de branco com rendas prateadas nesses enterros, em franco contraste com o uso do preto nos funerais de adultos59. Novamente vemos as cores encarregadas de promover essa distinção. Sobre a decoração desses funerais temos notícia da longevidade da preferência do uso do vermelho para crianças em lugar do preto para adultos e azul para jovens, "not children", como precisou o comerciante americano Robert Minturn, que aqui esteve no final da década de 185060. Wetherell, na mesma época, notara o uso nesses funerais de criança da combinação entre o branco e o vermelho, de cujos significados já tivemos oportunidade de falar61. Já no final do XIX, Marguerite Dickins constatou o mesmo comportamento 62.

Graças a alguns viajantes, sabemos algo a respeito dos enterros de crianças negras, no que se refere à procissão fúnebre. O que fica evidente é que, também entre os escravos, era bastante apreciado o costume de exibir a criança morta, ainda que isso fosse feito de forma ligeiramente diferente. Debret faz alusão a dois tipos de cortejo de "anjinho" entre os escravos. Um deles, mais luxuoso, consistia em uma cadeirinha forrada de damasco. Verifica-se também nas procissões fúnebres da criança escrava o costume de superexpor o cadáver e o fato de, para os escravos, ser também importante que o pequeno defunto seja arrumado de modo a dar a impressão de que a criança vive. O outro tipo de funeral de criança escrava, relatado por Debret, é exatamente igual ao que havia assistido Daniel Kidder, fazendo parte de um daqueles cerimoniais africanos restritos à propriedade do imperador no Engenho Velho. Segundo o artista, sabemos que o cadáver era estendido sobre uma bandeja que, por sua vez, era carregada na cabeça de um escravo adulto que, sob o cântico cadenciado dos acompanhantes, de hora em hora girava nas pontas dos pés, como se dançasse. Kidder acrescenta que, seguindo o cadáver, vinha uma multidão formada por cerca de vinte mulheres (inclusive a mãe da criança) e numerosas crianças, a maioria enfeitada com tiras de panos vermelho, branco e amarelo. Não se pode deixar de observar como o cerimonial africano se afirmava na participação das mulheres, como distinto da tradição de origem portuguesa conforme era praticada aqui. São essas pessoas, das quais a mãe da falecida se sobressaía pela gesticulação exarcebada, que se encarregavam da música que, ao que parece, se tratava de um canto em língua africana (que ele inferiu ser etíope), executada num compasso e lento e bem marcado. Outra figura que tinha papel importante nesses cortejos de criança escrava era a madrinha da criança, que geralmente se punha ao lado da falecida. Essa situação permanecia sem maiores interrupções até que se chegasse na igreja. Tendo deixado ali o corpo para ser enterrado, o cortejo voltava dançando e cantando com maior ímpeto63.

Já na primeira metade do século XIX, havia entre os mais abastados o costume de levar o caixão em carros puxados por cavalos, nos quais iam também os padres, seguindo a pé o resto do cortejo, conforme nos informa o aventureiro francês J. B. Douville, que aqui esteve em 182864. Interessa notar que seu uso não teria implicado um imediato abandono da tendência — tão cara aos enterros de crianças, como se viu — de expor os cadáveres. Nas padiolas desses carros sem cobertura, o corpo em toda a sua produção estava inteiramente à vista em seu caixão aberto65. Não obstante, essa novidade fornece elementos que permitem vislumbrar o sentido em que se desdobraram algumas mudanças às quais estiveram sujeitos os comportamentos diante da morte como um todo. Em especial, nos dá indícios sobre a transformação desta prática que, anteriormente caracterizada pela sua publicidade, se transformou numa manifestação cada vez mais restrita ao âmbito privado. Para o período estudado, essa tendência em limitar o acesso ao cadáver e às cerimônias fúnebres a um círculo mais fechado vai se manifestar parcialmente, visto que a pompa utilizada nesses funerais não faz senão aumentar. Mas essa mudança operou-se de forma incisiva: o corpo será cada vez mais resguardado da exposição pública e do contato com estranhos.

Com efeito, a leitura dos viajantes nos permite vislumbrar mudanças importantes nesse âmbito. Acompanhando o que vinha acontecendo com os funerais de adultos, temos notícia de que já nas primeiras décadas do século algumas crianças também faziam sua última viagem em carros. Não é outra coisa que Daniel Kidder presenciou, ao final da década de 1830, numa procissão fúnebre de "anjinho", em que o pequeno féretro descoberto ia num coche também aberto no colo do pároco, este devidamente paramentado. O carro mortuário já lhe causou forte sensação: "cavalos brancos, festivamente ornamentados, com níveas plumas na cabeça"66. Num outro funeral de criança, vinte anos depois, o inglês John Candler testemunha um mesmo tipo de cortejo, em caixão levado em carro aberto, com o resto dos participantes a pé, mas encontrou um elemento novo: a escolta de cavaleiros vestidos de vermelho, fato que, signitivamente, pareceu a ele nada menos que uma "hunting party"67.

Com a secularização dos cemitérios em meados do XIX, o uso de carros para o transporte do cadáver se tornaria obrigatório, ainda que inicialmente ficasse praticamente restrito às pessoas de posses. Tal é o que nos informa o comerciante francês Victor-Athanase-Gendrin, que visitou o País na década de 1850, imediatamente após a secularização dos cemitérios no Rio de Janeiro. Ele observou também enterros de escravos, nos quais ainda se fazia uso do costume de transportá-los numa rede sustentada por um bastão horizontal, cujas pontas eram apoiadas sobre os ombros de um carregador, estes também escravos. Não obstante, em pouco tempo esse uso parece ter-se disseminado, e não só o morto, como também todo o cortejo passou a ser feito sobre rodas. Wetherell aponta que nas procissões fúnebres por ele presenciadas em 1860, o corpo e os enlutados faziam a viagem em carruagens. O mesmo verificou o engenheiro-agrônomo membro da Comissão Imperial de Agrimensura, Oscar Canstat, em 1868, assombrado com o luxo de um carro fúnebre "fantasticamente pintado e dourado, enfeitado de penachos nos quatro cantos, ao qual estavam atrelados quatro cavalos adornados também com penachos e longas e vistosas galdrapas. Na boléia ia um negro com um tricórnio lhe cobrindo a carapinha, gravata branca, e envergando uma libré fantástica"68. Cristopher Andrews teve, já em 1887, ocasião de presenciar esses cortejos que, segundo ele, consistiam em quarenta carruagens abertas de dois cavalos, conduzidas em marcha acelerada69.

Os pequeninos defuntos começaram também, a partir de então, a fazer sua última viagem em carruagens cobertas, distanciando-se muito, desta forma, dos antigos funerais realizados a pé. A criança, antes superexposta aos olhares de todos, fazia agora a sua última viagem escondida. O contraste não pode ser maior. Deve-se, além disso, notar que este novo costume acentuava muito o distanciamento físico do cortejo em relação ao cadáver, uma vez que não se fazia mais necessário (ou possível) que até um estranho participasse do carregamento do corpo, conforme se observou ser comum nos cerimoniais infantis. Em todo caso, o uso de carruagens no caso dos funerais infantis não implicou imediatamente o fim da participação coletiva nesses acontecimentos, é o que nos informam as narrativas. Minturn, por exemplo, descreveu aquilo que ele chamou de "a very pretty custom": a presença das flores, seja na decoração do coche, oferecida pelos amigos da família do defunto criança, ou ainda no costume dos moradores das casas situadas nas ruas onde o cortejo faz seu trajeto de jogar pétalas quando o carro faz sua passagem70.

Como de costume, todavia, os funerais de criança continuam a impressionar, pelo seu aspecto alegre e ostentatório, os estrangeiros que tiveram a oportunidade de os presenciar. Wetherell, por exemplo, lembrava de carruagens e cavalos "alegremente decorados com plumas brancas e vermelhas"71. A decoração desses carros deu continuidade à preferência do uso do vermelho para crianças em lugar do preto para adultos e azul para jovens, "not children", como precisou o comerciante americano Robert Minturn, que aqui esteve no final da década de 1850.72 Esse hábito, ao que parece, teve bastante fôlego. Já no final do século, a norte-americana Marguerite Dickins descreveu uma carruagem, indo a um enterro de criança, que lhe chamara a atenção. Segundo ela, o carro estava pintado de branco até nas rodas, sendo o cocheiro e as cortinas (carro fechado, portanto) paramentados de vermelho (a que ela opõe às carruagens negras dos de adultos), conjunto que ela definiu como "gorgeous"73.

Em todo caso, a exposição característica dos funerais infantis diminui ainda mais quando se toma em consideração um outro fator: o encurtamento dos percursos envolvidos. Em conjunto com outros fatores que levaram a uma certa "secularização" das práticas fúnebres, principalmente entre os setores mais abastados da população urbana, o trajeto passou cada vez mais a prescindir da passagem pela igreja. Esse fenômeno mereceria um estudo, visto que indignou mesmo europeus (que deveriam, em tese, estar mais "aclimatados" com esse processo de secularização dos costumes) como o francês Mac-Érin, segundo o qual "une telle sépulture, si elle n'était suivi de la messe du septième jour, resemblerait tout à fait un enfouisement civil"74.

Já final do século Marguerite Dickins lembra do fato de não mais se fazerem funerais a pé. Mais ainda, ela assinala uma mudança nos costumes funerários que nos é bastante significativa. Como já fora observado por outros viajantes várias décadas antes, Dickins confirma o fato de que as mulheres não costumam acompanhar os cortejos, mas acrescenta que, neste aspecto, os funerais de criança constituem uma exceção75. Excelente testemunho de que a criança foi efetivamente o alvo privilegiado de uma valorização, até então desconhecida, dos sentimentos familiares, em que a participação nos funerais, e certamente a manifestação de um pesar que não precisa mais ser escondido, deixou de ser interditada para se tornar uma expressão legítima e, antes de tudo, digna de louvor.

Revista Brasileira de Historia

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