quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Descobrimento - A diplomacia do canhão

Gentil no trato, o capitão Cabral também usa a força e traz saldo positivo da viagem às Índias

O brasão dos Cabral: família de guerreiros


Aos 32 anos, fidalgo de maneiras elegantes, alto como seu pai, o famoso "gigante da Beira", o capitão-mor Pedro Álvares Cabral trouxe da longa missão diplomático-comercial (um ano e três meses no mar) resultado positivo, apesar de consideráveis percalços. Ele refez a rota desbravada por Vasco da Gama para as Índias, de passagem descobriu a formidável terra desconhecida nos confins do Mar Oceano e instalou o primeiro entreposto comercial nas bandas do Oriente. Não conseguiu, porém, estabelecer a feitoria que inaugura o intercâmbio comercial entre a Europa e as Índias por via marítima no riquíssimo reino de Malabar, como era o objetivo principal. Ao contrário, as relações com Calicute, capital de Malabar, parecem arruinadas por graves incidentes que deixaram pilhas de cadáveres dos dois lados. O saldo da missão reflete a própria personalidade do capitão. Fidalgo de fino trato, ele se desdobrou para cumprir as instruções do rei dom Manuel no sentido de sempre dar "boas mostras de si e da armada", procurando soluções diplomáticas em situações complicadas. Numa demonstração de delicadeza d'alma rara entre navegadores de todas as estirpes, chegou a mandar cobrir os nativos de Santa Cruz que, durante a escala na terra recém-descoberta, pegaram no sono a bordo de sua nau, protegendo-os da brisa noturna. Homem de armas por formação, recorreu à diplomacia dos canhões quando julgou necessário.

O uso da força, mesmo em missões de caráter diplomático ou comercial, é de praxe. Nos treze navios da esquadra que comandou, Cabral levou um verdadeiro exército. Eram 1.200 homens, a maior parte gente de guerra. Mesmo com a armada consideravelmente reduzida (uma embarcação desapareceu, outra foi mandada de volta a Portugal com a notícia do descobrimento de Santa Cruz e quatro naufragaram a caminho do Cabo da Boa Esperança), Cabral fez uso dos canhões a partir das escalas na costa oriental da África. Os primeiros alvos foram duas naus supostamente mouras e logo aprisionadas – os muçulmanos do norte da África são inimigos tratados a bala por Portugal. Uma gafe. As naus eram, na verdade, de Melinde, cidade africana onde Vasco da Gama havia sido muito bem recebido na viagem anterior. Restou a Cabral pedir desculpas. O capitão e sua frota chegaram ao destino principal da viagem, Calicute, em 13 de setembro do ano passado, disparando salvas de tiros de canhão. A idéia era intimidar o samorim, como é chamado o rei desse rico pedaço das Índias. Inicialmente, funcionou. O soberano de Calicute aceitou enviar reféns à frota portuguesa como garantia de que uma delegação encabeçada por Cabral poderia desembarcar para tratar de negócios, sem risco de vida. Vestindo seus melhores trajes e até com jóias emprestadas, para impressionar a nobreza da terra, os emissários recém-chegados realizaram o primeiro contato oficial. Depois de muita insistência, o soberano acabou concordando com a instalação de uma feitoria na cidade. A aparente cordialidade, no entanto, não evitou um boicote. Durante os três meses em que os seis navios portugueses permaneceram parados no Porto de Calicute, apenas dois foram carregados com especiarias. Espertamente, o samorim alegou que a culpa era dos mercadores mouros havia muito instalados nas Índias, aborrecidos com a concorrência. Para lhes dar uma lição, Cabral resolveu apreender, saquear e bombardear uma nau mourisca que estava parada no porto. A represália não tardou. A feitoria portuguesa foi invadida, com saldo de cinqüenta mortos, incluindo seu chefe, Aires da Cunha (o filho dele, Antonio, de 12 anos, escapou por pouco), e o escrivão Pero Vaz Caminha. A reação de Cabral ao trágico massacre veio com força total. A frota portuguesa recebeu ordens de atacar dez naus mouras, fundeadas no porto, deixando cerca de 600 mortos. De quebra, bombardeou Calicute, destruindo parcialmente a cidade, com seus belos e frágeis palácios. Até o samorim, com sua corte, precisou fugir do canhonaço. Cabral mostrou força, sem dúvida, mas fechou uma porta para o comércio.

Para salvar a empreitada, Cabral seguiu rumo aos reinos vizinhos de Cochim e Cananor, inimigos de Calicute. A tática de explorar as rivalidades locais deu certo. Foi nesses reinos que a missão portuguesa estabeleceu relações comerciais, abrindo finalmente as portas do comércio com as Índias e suas perspectivas tão promissoras. Mesmo desfalcada, a frota de Cabral está voltando dessa primeira viagem abarrotada de especiarias – canela, gengibre e, principalmente, pimenta. Financeiramente, o capitão conseguiu com isso o saldo mais positivo da missão. O valor da quantidade de especiarias transportadas é suficiente para pagar três vezes o custo da viagem. E isso, afinal, é o que interessa.


Revista Veja

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