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domingo, 1 de agosto de 2010

AI-5



Caricatura 40 anos do Ato Institucional nº5 (2008)

Cedida por Baptistão Caricaturas
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AI-5

O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.

O ano de 1968, "o ano que não acabou", ficou marcado na história mundial e na do Brasil como um momento de grande contestação da política e dos costumes. O movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas principalmente como demanda por novas liberdades. O radicalismo jovem pode ser bem expresso no lema "é proibido proibir". Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a "linha dura" providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição.

Também no decorrer de 1968 a Igreja começava a ter uma ação mais expressiva na defesa dos direitos humanos, e lideranças políticas cassadas continuavam a se associar visando a um retorno à política nacional e ao combate à ditadura. A marginalização política que o golpe impusera a antigos rivais - Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart - tivera o efeito de associá-los, ainda em 1967, na Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. Pouco depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, reintroduziu o atestado de ideologia como requisito para a escolha dos dirigentes sindicais. Uma greve dos metalúrgicos em Osasco, em meados do ano, a primeira greve operária desde o início do regime militar, também sinalizava para a "linha dura" que medidas mais enérgicas deveriam ser tomadas para controlar as manifestações de descontentamento de qualquer ordem. Nas palavras do ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, o governo precisava ser mais enérgico no combate a "idéias subversivas". O diagnóstico militar era o de que havia "um processo bem adiantado de guerra revolucionária" liderado pelos comunistas.

A gota d'água para a promulgação do AI-5 foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara, nos dias 2 e 3 de setembro, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças, "ardentes de liberdade", se recusassem a sair com oficiais. Na mesma ocasião outro deputado do MDB, Hermano Alves, escreveu uma série de artigos no Correio da Manhã considerados provocações. O ministro do Exército, Costa e Silva, atendendo ao apelo de seus colegas militares e do Conselho de Segurança Nacional, declarou que esses pronunciamentos eram "ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis". O governo solicitou então ao Congresso a cassação dos dois deputados. Seguiram-se dias tensos no cenário político, entrecortados pela visita da rainha da Inglaterra ao Brasil, e no dia 12 de dezembro a Câmara recusou, por uma diferença de 75 votos (e com a colaboração da própria Arena), o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. No dia seguinte foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. No preâmbulo do ato, dizia-se ser essa uma necessidade para atingir os objetivos da revolução, "com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país". No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado - só em outubro de 1969 o Congresso seria reaberto, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.

Ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com "sangue, suor e lágrimas".

Maria Celina D'Araujo

CPDOC FGV • Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

sábado, 31 de julho de 2010

Chico Xavier

Caricatura do Chico Xavier, cujo centenário é comemorado neste ano, feita para o Estadão.
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As sínteses do mito Chico Xavier
Bernardo Lewgoy
Professor do Departamento de Antropologia UFRGS

A biografia e obra de Chico Xavier são paradigmáticas dos caminhos e dilemas que o espiritismo percorre em sua relação com a sociedade brasileira no século XX. Religião letrada e racionalista, ela principia por ser adotada pelos segmentos de elite do Brasil pré-republicano. Ainda que alguns de seus pioneiros tenham participado de causas progressistas como o abolicionismo, o espiritismo se populariza não pelo heroísmo ou pelo profetismo de seus pioneiros, mas sim através da oferta de serviços de cura (o chamado "receitismo mediúnico", cf. Damazio, 1994 e Giumbelli, 1997) passando, após, por movimentos de fragmentação interna e concorrência com outras religiões mediúnicas, especialmente a partir dos anos 20, como aconteceu em sua relação com a umbanda38.
Leigo e anticlerical, o espiritismo kardecista sofre transformações no século XX, absorvendo tendências que pareciam correr em leitos ideológicos, culturais e políticos distintos: uma cultura letrada erudita de um pequeno e nunca inteiramente autônomo campo intelectual, cultivada na crítica literária dos jornais, na Academia Brasileira de Letras e nos colégios da República Velha39; um certo modernismo cientificista, meritocrático e nacionalista, que absorvia com um pesado viés militarista o humanismo racionalista do kardecismo e que extravasava suas conseqüências para uma composição com outros segmentos sociais, através da extensão desse modelo pelo corporativismo profissional, que incluía profissões ligadas a um projeto de nação, como a educação e a medicina.
A composição entre determinismo e livre-arbítrio, base da noção de pessoa espírita (Cavalcanti, 1983), pouco espaço ensejou para a autonomia individual como princípio ético e valor religioso, restringida que estava pelos dispositivos doutrinários e rituais no espiritismo brasileiro de boa parte do século XX. Tratava-se, ali, de uma concepção minimalista de indivíduo, não apenas vinculado sincronicamente a espíritos e homens mas também a leis, regulamentos, estatutos e graus de evolução e, é claro, a uma noção cármica de justiça, no interior do que denominei de "sistema da dívida". Havia certamente uma exacerbação da racionalidade no espiritismo, mas não a racionalidade individualista, liberal e psicologizante mas outra, ligada a uma vertente organizada da sociedade brasileira, mais conservadora, cujas bases sociais eram as camadas médias urbanas da população, de onde saíam os funcionários públicos, professores de escola, advogados, militares e médicos, profissões de tradicional expressão no espiritismo. Diferente de certas tendências psicologizantes e new age de parte das camadas médias urbanas da atualidade, uma das fontes do espiritismo de Chico Xavier, dos anos 40 aos anos 70, enraiza-se numa estrutura religiosa formalmente federativa e doutrinariamente ligada a uma visão corporativista de mundo social, próxima, portanto, do pensamento conservador que circulava na sociedade brasileira da primeira metade do século XX.
Ora, se essa concepção religiosa podia ser muito sedutora para setores organizados das camadas médias brasileiras ou mesmo da elite letrada, durante a primeira metade do século XX, ela ainda pouco ecoava entre pessoas que vivenciavam uma religiosidade popular, tão forte junto às faixas sociais subalternas da população, em boa parte marcada pelo catolicismo, pela benzeção e pelos cultos afro-brasileiros e que não dispunha de recursos culturais e simbólicos que lhe permitissem criar uma identidade espírita, mesmo que dela fizessem uso como recurso de cura. É justamente nesses setores sociais que o modelo de espiritismo de Chico Xavier alcançará um sucesso sem precedentes, não obstante a inegável liderança dos segmentos intelectualizados.
Essa dureza racionalista na concepção espírita de Chico Xavier ¾ de resto vinculada à concepção cármica de justiça ¾ é compensada pela força de sua composição com as crenças e práticas oriundas de um catolicismo familiar, de culto aos santos e à figura de Maria, transformadas através da moeda comum do circuito da intercessão e da graça, da relação personalizada com Jesus e com benfeitores espirituais, tudo isto numa construção eminentemente sincrética, ainda que nunca reflexivamente enunciada.
A relação do espiritismo de Chico Xavier com projetos de organização social e de identidade nacional é basicamente datada, circunscrita a conjunturas históricas específicas do Brasil antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando ocorre uma série de transformações sociais sem precedentes em termos de urbanização, industrialização e padrões da sociabilidade, incluindo-se o degelo da autoridade religiosa, fundada no antigo primado da Igreja Católica sobre a identificação da nacionalidade. Se o caminho pavimenta-se no sentido da pluralização das modalidades de crer e participar das religiões, o modelo de Chico Xavier ofereceu uma alternativa religiosa de pertencimento à sociedade brasileira com uma plena identificação com símbolos laicos de ordem, como a nação, bem como com estratégias de prestígio e distinção ligadas à posse de um capital cultural que valorizava a leitura, o estudo, a erudição e a ciência, de indiscutível valor no mundo contemporâneo. Ele viabilizou ao participante viver a integridade de uma relação com um ethos religioso tradicional pleno de hierarquias, mediações e súplicas a santos, mas também de se sentir participando do mundo da "alta cultura", dos saberes escolares, da erudição e dos conhecimentos científicos, ou seja, de tudo aquilo que goza da reputação social conferida pela cultura letrada.
Ora, é a dimensão de Chico Xavier como santo, letrado e informal, mas também caracterizado como "homem coração", que promete realizar uma série de sínteses que foram fundamentais para a implementação do espiritismo no Brasil do século XX. Em DaMatta (1979) a dimensão simbólica do coração é associada ao improviso do malandro, própria à vertente carnavalesca da sociedade brasileira. Em Chico Xavier o coração tem a conotação homóloga de um englobamento hierárquico da razão, mas sob a influência de um código religioso, indicando uma irrestrita abertura para o Outro, encarado basicamente como um "irmão". Ou seja, trata-se de uma alternativa religiosa à carnavalização, por meio de um estilo communitas ou fraternal de ultrapassar diferenças sociais e individuais sem inversão de ordem. Recusando a vertente carnavalesca na cultura brasileira e não havendo espaço para a criação de uma nova alternativa mediadora, o modelo de Chico Xavier sofrerá uma permanente oscilação entre os paradigmas culturais do "santo renunciante" e do "caxias", assim como o espiritismo oscila entre religião e ciência, entre o religioso e o secular e entre fato e ficção em sua literatura. O ethos hierárquico, fundado na face "religiosa" da doutrina ¾ pois a parte "filosófica" e "científica" nunca aboliu a verve deslegitimadora da razão crítica ¾, transita em Chico Xavier entre uma hierarquia relacional ligada à dádiva e outra, do mérito, ancorada na noção de justiça cármica. Trata-se, assim, de tentativas de composição religiosa e ética que expressem dilemas que não são apenas do espiritismo kardecista, mas da ordem da sociedade e da cultura brasileira no século XX.
Como racionalizar o mundo, como pregar a igualdade de todos, como ser moderno sem afrontar as hierarquias estabelecidas, de tão largas raízes no Brasil? Através da combinação de um ideal cívico de religião, combinando a ordem secular com a ordem transcendente, que não implicasse numa exacerbação da verve crítica ou atomizadora do individualismo moderno. Da mesma maneira que criou modelos de pessoa e de cidadão, a literatura de Chico Xavier formatou aos leitores o convívio interpessoal e institucional no chamado mundo espiritual. Ou seja, ao mesmo tempo em que reintegrou o secular num modelo religioso, contribuiu para dessacralizar o além.
Como ser moderno, letrado, científico e laico sem ser ateu, indiferente à caridade, "subversivo" e desprovido de valores? Como ser cristão sem ser católico num país sem uma massiva tradição protestante? Não apenas pregando as concepções de carma e de reencarnação como indistinção da ordem natural e da ordem sagrada, mas também conciliando alguns dos modelos modernos de autoridade e poder, como a encarnada pela burocracia, com a tradicional devoção aos mediadores, que trilham atalhos e personalizam a rigidez dos formalismos do mundo legal brasileiro, este transposto à condição de ordem transcendente no espiritismo, como se vê em Nosso lar. Conciliar o sistema relacional da dádiva com o sistema cármico da dívida, o país tradicional com o moderno, a hierarquia com a igualdade (ainda que sem o individualismo liberal), a tradição familiar e o corporativismo, a linguagem dos espíritos com o culto aos santos, o letramento com a humildade, o coração e a razão, eis as promessas de síntese embutidas no modelo mítico de santidade de Chico Xavier. Ler a matéria em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77012001000100003&script=sci_arttext

terça-feira, 30 de março de 2010

Corpos ultrajados: quando a medicina e a caricatura se encontram

Myriam Bahia Lopes

Doutora em História pela Universidade Paris 7
Pesquisadora e professora do Departamento de História(ICHS) da Universidade
Federal de Ouro Preto (MG)
e-mail: myriamb@npd.ufes.br
m.lopes@mailexcite.com
Rua Getúlio Vargas, 3
35400-000 Ouro Preto — MG Brasil


Breve introdução à caricatura

A caricatura ganha esse nome, no prefácio de Mosini (1646), preparado para a edição dos desenhos do italiano Carrache, sobre o tema dos ambulantes e dos refrões publicitários.
Na Inglaterra, as primeiras caricaturas são editadas em um álbum de gravuras italianas, publicado em 1737, por Arthur Pond (1705-56), caricaturista, retratista, tipógrafo e gravurista, e, em 1739, têm nova edição por Knapton. No entanto, somente com a revogação das leis de censura à imprensa a partir de 1780, o gênero da caricatura veio a obter sucesso.
O século XIX marca uma inflexão sobre o desenvolvimento das artes gráficas.1 Da Inglaterra, propagam-se as inovações na arte da impressão. As ilustrações passam a ser gravadas segundo diversas técnicas novas: litografia, madeira de topo, gravura sobre aço e galvanotipia. Essas invenções barateiam as edições, inaugurando uma nova era — a da reprodutibilidade técnica — e impulsionando a arte da caricatura. A introdução da técnica de impressão com papel de rolo, por exemplo, acarreta a queda no preço dos impressos, e as ilustrações em série multiplicam-se: a base da representação estética da cidade e de seus habitantes está lançada. Já em meados do século XX, são lançadas por Charles Knight duas publicações educativas — a revista Penny e a enciclopédia do mesmo nome —, que, naquele momento, obtêm grande sucesso.
O ano de 1840 marca a comemoração do terceiro centenário da invenção da imprensa. Nesse momento, a palavra ‘ilustração’, antes utilizada tão-somente para designar uma celebridade, adquire um novo significado, a partir do lançamento, em Londres, do periódico London Illustrated News (1842). John Locke, em 1693, já preconizara a utilização das imagens para facilitar a compreensão dos leitores. Os ingleses, ainda ao longo do século XIX, aprimoram-se na arte de facilitar e enriquecer a mensagem através da imagem, propiciando o surgimento da tipologia que retrata a diversidade diluída na multidão das grandes cidades da época.
Antes de examinarmos a elaboração da ‘fórmula tipo’, enfocaremos a linguagem da caricatura e descreveremos seu processo de afirmação, acompanhando seu diálogo com a pintura histórica e a escultura.

A hierarquia das artes plásticas

A temática da caricatura, para ilustrarmos com um exemplo, aproxima-se da pintura holandesa (Alpers, 1990), ou dos quadros que Frans van Mieris pinta das cenas do cotidiano (Figura 1).
No século XIX, a pintura foi hierarquicamente subdividida nos seguintes tipos: pintura histórica, retratos, pinturas de gênero e natureza-morta. Nessa classificação, a caricatura — penúltimo lugar na hierarquia — ironiza, no humor do seu traço, a elevada posição da pintura histórica, criando, ao tecer uma visão invertida do mundo, uma rede de significados que provoca o riso. Quanto maior e mais forte a posição social do retratado, maior o prazer que experimentamos ao ver as linhas que delimitam a norma serem transformadas pela instigante criação da caricatura. A caricatura tirou partido desse sentimento, atingindo grande produtividade na época dos regimes de exceção.

Fig. 1 — The doctor’s visit, de Frans van Mieris, dito o Velho (1657). Acervo do Kunsthistorisches Museum, Viena.

Os caricaturistas, por volta de 1840 (Riout, s. d.), satirizam as regras do mundo artístico, criando os salões de caricatura. O grande porte da pintura histórica e o tamanho dos monumentos históricos tornam-se fontes de humor. Os caricaturistas exploram a polarização do grande e do pequeno e elaboram uma reflexão sobre os materiais empregados e a morfologia da ‘grande arte’, que tem, por suporte, telas enormes, ricamente enquadradas, de difícil transporte, conservadas por colecionadores ou reunidas em museus, de preferência ao abrigo dos efeitos destruidores do tempo.
Em contrapartida, a arte do caricaturista transporta-se de várias formas, sob diversas tessituras. No início do século XIX, os retratos de celebridades circulam impressos em papel de embrulhar balas. Alguns anos mais tarde, as caricaturas retratam os seus personagens nos jornais, como os trabalhos de Honoré Daumier,2 litógrafo, pintor, escultor e caricaturista, que esculpe caricaturas em gesso e argila ou grava-as na pedra litográfica para imprimi-las posteriormente, e J. Carlos,3 que esculpe e desenha portrait-charges.
Quando o caricaturista representa um monumento, sua postura sarcástica em relação à grande arte assume a forma de um diálogo de imagens. Nos jornais ilustrados, o texto e a imagem, em formato portátil, podem ser lidos em qualquer lugar. Diferentemente, a pintura de grande formato e a escultura com seu tamanho e pedestal provocam um afastamento físico do público. A multiplicação do número de reproduções reduz o custo das ilustrações, tornando-as mais acessíveis ao grande público. Os portrait-charges estão ao alcance das mãos e dos olhos dos habitantes dos grandes centros. A caricatura, em seu diálogo com a grande arte, destitui as representações históricas do seu solene pedestal. O jogo de contraste entre o pequeno e o grande inspira o caricaturista, professor de direito, escultor, poeta e autor teatral Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953), autor do lindo álbum Cenas da vida carioca (1904), a criar o monumento mostrado na Figura 2.

Fig. 2 — ‘A vacinação’, de Raul (O Correio, 1.10.1904), em Falcão (1972, p. cxii).

Nesse período, os críticos de arte identificam a renovação do estilo gótico como responsável pela produção de uma poluição visual na arquitetura.4
No Brasil, encontramos muitos artistas que se consagram igualmente à pintura histórica e à caricatura. Entre eles, podemos citar dois exemplos significativos: Manuel José Araújo Porto Alegre (1806-79) e Pedro Américo de Figueiredo e Mello.5 Esses artistas dominam com perfeição as diferentes técnicas plásticas e suas respectivas linguagens, o que lhes permite introduzir um interessante debate sobre as diversas formas de expressão artística.

A atualidade e a história

Ao longo dos anos, a medicina vem fornecendo temas que integram a tradição cômica. Rabelais6 e Molière são dois de seus grandes exemplos. A rica produção de caricaturas sobre a medicina forma um ramo da produção de desenhos humorísticos (Desprez, 1994).
Desde o século XIX, essa linguagem plástica vem interessando aos médicos ingleses e brasileiros. O dr. Oswaldo Cruz colecionou em álbum7 as caricaturas publicadas na imprensa sobre a campanha sanitária por ele dirigida.
O tipo de temática e de personagem sobre os quais se detêm os caricaturistas sugere uma proposta clara de estudar situações da atualidade para atingir imediatamente o grande público. A caricatura cria, com freqüência, um jogo em que os elementos polarizados no desenho produzem humor.
Em 1908, quatro anos passados da revolta provocada pela vacinação, uma epidemia de varíola assola o Rio de Janeiro. O caricaturista desenha um dr. Oswaldo Cruz pequeno, enfrentando um personagem enorme, que representa a grande morte: a varíola (Figura 3).

Fig. 3 — A varíola e a vacina.
Oswaldo Cruz: Retira-te, em nome da ciência!
Varíola: Que ciência! A de Jenner? Conheço-a há 85 anos e ainda anda de carro de boi no Brasil, ao passo que eu, já ando de automóvel! ... Cresça e apareça!
O Malho, 1.2.1908 (em Falcão, 1972, p. ccvi).

No comentário sobre a epidemia, contido na legenda, a morte anda de automóvel, enquanto o Brasil anda de carro de boi: na corrida técnica, a ciência de Jenner é vencida pela velocidade da morte.
A caricatura, freqüentemente, representa oposições entre a história e a mitologia — domínios que aspiram a uma figuração imortal — e entre o instante e o transitório, assimilando em seu estilo o ritmo peculiar da imprensa — ‘o império da novidade’ —, na tentativa de expressar a maneira como a imprensa se relaciona com o imediato.
Em 1912, a capa do periódico ilustrado O Gato (Falcão, 1972, p. ccxxix) apresenta uma caricatura do dr. Oswaldo Cruz. O contorno irregular da legenda dá a impressão de que o canto do retrato está rasgado. Abaixo e à direita do desenho, lemos: "O novo imersível.
Deve-se a S. Exa. por ocasião da vacina obrigatória a exibição de muitas letras da parte do pessoal da lira."


O autor poderia ter composto a palavra da seguinte forma: ‘in’, prefixo de negação mais o radical ‘mort’ e o sufixo ‘vel’, mas optou pela sonoridade da palavra ‘imorrível’. A legenda da caricatura faz uma alusão crítica à entrada do dr. Oswaldo Cruz na Academia Brasileira de Letras (ABL). Às críticas lançadas contra o ‘homem das letras’, dr. Oswaldo Cruz, segue-se um jogo de palavras. Se alterarmos a ordem de composição da frase da legenda, reforçaremos a ironia do caricaturista, que sugere termos um débito para com o dr. Oswaldo Cruz.
Por ocasião do debate sobre a vacina antivariólica obrigatória, várias letras foram apresentadas pelo ‘pessoal da lira’.8 Assim, torna-se evidente que o dr. Oswaldo Cruz trouxe grande inspiração ao povo, pela qual este lhe deveria ser extremamente agradecido. O humor nasce da exploração da palavra ‘letra’. Sob a pena do caricaturista, a letra imortal dos academicistas adquire outro sentido. E aqui, mais uma vez, a ironia surge do contraste que o caricaturista estabelece entre a arte imortal dos acadêmicos e a linguagem popular.
A caricatura soma pontos de vista e pode ser lida a partir dos diversos ângulos, que oferecem vários pontos-chave que traduzem a condensação das idéias que o caricaturista quer comunicar ao leitor. O que nos parece extremamente interessante é que a caricatura pode ser percebida em vários níveis de compreensão. A proliferação do duplo sentido não impede que ela seja devidamente decifrada, mesmo quando sua elaboração requer conhecimento prévio de certos contextos situacionais, como, por exemplo, a maneira de vestir do representado, como veremos na Figura 4. Uma vez que o caricaturista trabalha com a riqueza de acepções das palavras, dos símbolos e dos emblemas, forçosamente, produz um texto de fundo duplo. A partir da aparente clareza e simplicidade do traço quase esquemático que se apresenta ao leitor, em uma primeira leitura, desdobra-se uma variedade de possibilidades através do recurso de associação de idéias, até que se chegue ao encontro da mensagem do artista. Entretanto, essa mensagem só poderá ser percebida quando retratar um dos temas que mobilizam a opinião pública. Dessa forma, consideramos que a caricatura domina a arte da comunicação, transmitindo sua mensagem a todos os seus contemporâneos, com a vantagem de poder, inclusive, atingir os leitores iletrados.
Mesmo no início, quando a caricatura vem acompanhada de muitos balões e legendas, a mensagem do desenhista é compreendida pela imagem, e o caricaturista não requer do leitor a competência nas letras para se comunicar com ele.

As caricaturas de Oswaldo Cruz

As caricaturas sobre o dr. Oswaldo Cruz são abundantes na imprensa da época. Freqüentemente, para retratar um homem público, os desenhistas fazem alusão a algum figurante da galeria dos grandes personagens da história. Se, à primeira vista, a alusão conserva a autoridade da eminência, observamos, em seguida, que ela desvaloriza o homem público ao colocá-lo numa situação ridícula.
A caricatura estabelece um diálogo com as artes cênicas e, em particular, com o qüiproquó, que, segundo Bergson (1989, p. 75), pertence a uma categoria de fenômeno que provoca o riso, explorando a comicidade da coincidência de duas séries diferentes. O autor de teatro precisa empenhar-se para chamar atenção do público para a duplicidade integrante do fato: a independência e a coincidência; já o caricaturista, freqüentemente, nos remete à identificação e à alteridade dos representados.
A elaboração do portrait-charge se faz por uma série de etapas distintas. O personagem histórico é justaposto a um personagem da atualidade. À caracterização do primeiro, soma-se o rosto caricaturizado do segundo. A justaposição produz uma mistura, confundindo os traços de vestuário que poderiam ajudar a identificar o personagem. O portrait-charge inverte uma regra de produção do tipo, em que o traje é indissociável do personagem que o veste. Para o tipo, o traje é como a ‘segunda pele’ e representa um signo de reconhecimento de sua posição social (Le Men, 1992, p. 15). Em nosso exemplo, o dr. Oswaldo Cruz, pelo envio a séries distintas — Nero/dr. Oswaldo Cruz e Luís XIV/dr. Oswaldo Cruz — é diferentemente representado pelo caricaturista, que nos assinala que o traje não passa de uma convenção. Nas caricaturas, o traje segue algumas regras de moda, por sua liberdade de fazer referência a épocas distintas ou de misturar vários estilos. No entanto, a intenção do caricaturista vai além da criação de um desenho de moda: ele persegue a criação de uma composição metafórica.
Os elementos do desenho são integrados de maneira a provocar uma leitura equívoca do portrait-charge. O dr. Oswaldo Cruz, por exemplo, torna-se uma cópia de Nero. Assim, por analogia, o caricaturista ressalta e faz coincidir alguns aspectos do caráter dos dois personagens.
Para explicar melhor esse procedimento, permitimo-nos utilizar a metáfora do estereoscópio. Trata-se de um instrumento óptico que dispõe de duas lentes objetivas paralelas, sobre as quais colocamos os nossos olhos, e a visão que ele proporciona nos dá a impressão de relevo ou de uma imagem em duas dimensões. O estereoscópio opera com uma imagem duplicada. A caricatura, trabalhando o traço do desenho e o conteúdo das legendas, mistura identidades que não coincidem e cria ‘uma nova perspectiva’, que proporciona ao leitor, desde que este capte simultaneamente as identidades originais, a visão de um novo personagem.
A caricatura não obedece às regras da simetria — a nudez ideal do corpo e a noção de perspectiva a partir de um único ponto de fuga —, cânones da arte italiana. A caricatura libera-se das exigências da perspectiva italiana, em que a representação de um objeto está contida na sua relação espacial com o observador: "Não é verdade que o perspectivismo afasta-nos do objeto?" (Dagognet, 1982, p. 160).
A caricatura, por sua temática e linguagem, aproxima-se da arte holandesa do século XVII. A arte flamenga oferece uma abordagem fragmentada, de justaposição: uma abordagem aditiva do espaço arquitetural. Podemos citar, como exemplo, Pieter Saenredam (1597-1665), pintor de interiores de igrejas e aluno, em Haarlem, de Frans Pietersz, o pintor da história. Essa cultura visual exige do observador um olhar capaz de varrer a obra, deslizando seu olhar sobre o agregado de pontos de vista oferecidos à percepção.

Fig. 4 — O Nero da Higiene
"- Ah! Não querem o meu regulamento alemão para a vacina obrigatória? Pois fico em armas e sou capaz de mandar incendiar esta Roma dos meus pecados!" Dudu, que assina a caricatura, é o nome de Cícero Valadares, irmão do médico e professor da Faculdade de Medicina de Salvador, Prado Valadares. Seu sucesso proveio das estórias em quadrinhos e das ilustrações que criou para os periódicos de literatura infantil, como o Tico-Tico. Foi diretor artístico da Exposição Nacional de 1922.
O Malho, 19.11.1904 (em Falcão, 1972, p. cxliv).
A astúcia do caricaturista se faz presente, ainda, quando desdobra os pontos de visibilidade. No desenho reproduzido a seguir, Oswaldo Cruz torna-se o Nero da Higiene. Do personagem histórico, o caricaturista expõe um ponto de identidade com o dr. Oswaldo Cruz: a crueldade. A cena histórica aludida no desenho é o incêndio provocado por Nero em Roma. O desenhista Cícero Valadares transpõe o personagem conhecido da história, Nero, para um contexto familiar ao leitor, provocando a sensação de estranheza e o riso.
O caricaturista ridiculariza a feição do dr. Oswaldo Cruz. O ponto-chave metamorfoseado, marca deste personagem, é o bigode. A idéia de estender o traço dos fios do bigode do retratado9 não mais pertence ao artista. É uma idéia que integra o imaginário popular, e todos os desenhistas põem-se a trabalhá-la, aperfeiçoando-a.10 As repetidas versões oferecem ao público leitor a impressão de que se trata de uma série narrativa, em que cada desenho representa um episódio, cujo encadeamento dá consistência ao personagem. A cada aparição de uma caricatura do representado, o leitor evoca os demais desenhos da série correspondente, como se estivesse assistindo ao desenvolvimento de várias cenas de um mesmo drama.
Este estudo dá ênfase à ironia dos caricaturistas, que elegem o poder do dr. Oswaldo Cruz seu alvo preferido. Na caricatura, reproduzida na Figura 4, o humor nasce do contraste entre o grande e poderoso e o pequeno. Cícero Valadares mostra o dr. Oswaldo Cruz com uma expressão desolada, que mais parece o rosto de uma criança contrariada, prestes a cair em prantos.
As sobrancelhas levantadas e convergentes, a boca em curvatura ascendente e os braços cruzados são os traços que expressam seu sofrimento. Para a representação da expressão facial, a caricatura inaugura a seguinte estratégia: o desenhista pode riscar os diferentes traços, para cima ou para baixo, sem ter de se preocupar com a existência de coerência entre eles. O que realmente importa é o resultado final. Os braços do dr. Oswaldo Cruz estão cruzados sobre os elementos que representam sua crueldade: a arma de fogo e a pluma de vacina, banhada do sangue que ainda escorre. A fraqueza expressa pelo rosto contrasta com os emblemas do poder que ele abraça. A forma da coroa exprime igualmente as séries divergentes que o traço do desenhista consegue reunir: o alto e o baixo, a força e a fraqueza. A coroa, insígnia do poder, é composta pela coroa do cavaleiro, que representa a posição mais baixa na hierarquia heráldica, de onde brotam pequenas cruzes latinas.
Este trabalho é do caricaturista Bambino, alcunha, cujo significado em italiano é criança, o que remete, de imediato, à analogia que os críticos de arte estabelecem entre a simplicidade dos traços na caricatura e a dos traços nos desenhos infantis.
J. Carlos criou o personagem ‘Guilherme Tela de Arame’, cujo nome nos envia a três referências distintas: a palavra ‘Tela’, aos mosquiteiros; ‘de Arame’, a uma gíria do português que significa dinheiro; e à maleabilidade do arame em analogia ao bigode bem penteado do dr. Oswaldo Cruz.
A justaposição desses dois personagens faz-se perceptível em três níveis. O primeiro nível diz respeito à sonoridade do nome do personagem histórico, ‘Guilherme Tell’. J. Carlos constrói um trocadilho batizando o dr. Oswaldo Cruz de Guilherme Tela, relacionando o nome ‘Tela’ à escolha de um aspecto constitutivo do personagem a ser trabalhado — uma especialidade dos caricaturistas —, que, no caso do dr. Oswaldo Cruz, é um elemento do seu rosto, o bigode, denominado de arame. Dessa forma, chegamos à composição da alcunha ‘Guilherme Tela de Arame’.
O segundo nível concerne à característica de caçador, atribuída ao representado. O caçador é o homem que dissimula sua presença até o momento em que esteja pronto para abater a caça. Ele deve confundir-se com a paisagem a sua volta. As caricaturas da época exploravam as cenas em que o dr. Oswaldo Cruz e sua brigada iam à caça dos ratos e dos mosquitos, os causadores da peste e da febre amarela, respectivamente.11 Os desenhistas provocam o riso dos leitores com a encenação do pânico face aos pequenos animais. Os caricaturistas exploram o contraste. De um lado, a pequenez dos agentes causadores das doenças e, de outro, a grande quantidade de dinheiro dispensada e o dispositivo logístico erguido para combatê-los. Um fuzil de caça traçado no desenho, mais um ponto de suspensão (sinal de pontuação indicado por três pontos) após a palavra caçador, induz o leitor à ironia intencional da mensagem.
O terceiro nível situa-se no elemento cruz, símbolo que, por sua vez, nos envia a outras três referências. De imediato, o associamos ao país de origem de Guilherme Tell: a cruz figura nas armas suíças e simboliza a Cruz Vermelha Internacional, instituição que se origina em Genebra, em 1864. Em segundo plano, traçando uma referência mais abrangente, a cruz é o emblema da saúde, que aparece também nos capacetes da brigada sanitária do dr. Oswaldo Cruz. Na caricatura (Figura 5), a cruz surge por todos os lados: no traje, no boné, no colete, no tórax e na cintura de Guilherme Tela de Arame.

Fig. 5 — Guilherme Tela de Arame
O mais extraordinário caçador de... Mosquitos. J. Carlos, Tagarela, 12.3.1904
(em Falcão, 1972, p. lxviii).

O próximo exemplo (Figura 6) é uma demonstração da ironia provocada pela justaposição dos personagens. A caricatura de Kalixto intitula-se ‘O Luís XIV da seringação’. Relendo o nome de Luís XIV, identificamos uma mot-valise produzida pela adição das palavras ‘sering(a)’ e ‘ação’.

A legenda da caricatura exprime um trocadilho de frases homônimas, em francês: ‘L’état c’est moi’ — ‘O Estado sou eu’ — e "Le tas c’est" — "Essa bagunça sou eu". "Le tas" faz alusão ao conjunto de peças de vestimentas provenientes de diferentes épocas, que compõem o traje do representado: a gola pregueada, o colarinho plissado e engomado, típico das roupas de homens e mulheres no século XVI e início do século XVII, o traje à Henrique III e, nos pés, sapatos medievais. Para completar, o Luís XIV da seringação apresenta-se sem calças.
Kalixto opera um ajustamento dos atributos do rei aos do dr. Oswaldo Cruz: no lugar do cetro, a vassoura; no da espada, a seringa. As armas da casa do dr. Oswaldo, ‘o cru’, são compostas de uma cruz latina, que tem um dos braços mais longo que o outro, relembrando as cruzes colocadas sobre as sepulturas e os avisos funerários. A cruz latina distingue-se da cruz grega, que tem os braços iguais e representa o símbolo da saúde. Em torno dos quatro braços da cruz, dois mosquitos e dois ratos estão simetricamente dispostos. Um pouco abaixo da palavra cru, vê-se a letra z, e, se lermos a palavra e a letra juntas, obteremos a palavra cruz. No Brasil, a palavra cruz é também utilizada como interjeição, expressando surpresa e aversão.

Fig 6 — Luís XIV da seringação
"Le tas c’est moi" (Essa bagunça sou eu).
Kalixto, 1904 (em Falcão, p. xii).

No exemplo da Figura 7, Raul explora o humor negro, representando o dr. Oswaldo Cruz no papel de Herodes. O desenho está assinado por Bambino, pseudônimo do caricaturista Artur Lucas, criador de tipos populares que, mais tarde, viriam a ser adaptados para o teatro, como Sô Lotero e Nhá Ofrásia. Artur Lucas chegou a ilustrar uma edição brasileira do conhecido romance policial Sherlock Holmes, surgido em 1911 e escrito por Conan Doyle, com o pseudônimo de W. Taylor.




Fig. 7 — Cena antiga
"Herodes Cruz: — É de são João Batista,
esta cabeça ?
Herodiades Higiene: — Não, é de um fedelho.
Herodes Cruz: — É pena; se fosse de João Batista
seria mais histórica."
Raul, s. d. (em Falcão, p. lx).

O caricaturista produz forte tensão a partir da identidade dos representados. Nesse desenho, a identificação do dr. Oswaldo Cruz com Herodes é feita por meio dos elementos do vestuário de ambos os personagens. A coroa de Herodes Cruz possui uma forma que nos lembra as coroas dos condes, porém, no desenho, o acabamento da coroa é composto por pequenas seringas que, nesse contexto, representam o emblema do poder. À direita, seu assistente segura uma vassoura e um boné da brigada sanitária. Vale ressaltar que a identidade dos personagens apresenta-se de forma equívoca na composição dos seus nomes: Herodes Cruz e Herodiades Higiene, que representa a morte. A tensão referente à questão da identidade é resolvida pela frase final que nos remete ao contexto intencional da caricatura; vemos, então, a crueldade do dr. Oswaldo Cruz: "Se fosse a cabeça de João Batista, seria mais histórica." O desejo de se tornar um personagem histórico exprime claramente a vaidade de Herodes Cruz. O tom apologético do discurso do dr. Oswaldo Cruz, concebido como o guia de uma missão histórica, confirma a expressão do personagem. E o leitor descobre que a cena antiga é a representação de um instante da atualidade.
A caricatura segue a linha das fisiologias, oferecendo ao público um verdadeiro catálogo político ilustrado (Preiss-Basset, 1993, p. 67). A correspondência estabelecida entre Nero e o dr. Oswaldo Cruz inspira uma série de desenhos.

A lanceta

Na Inglaterra, Lancet é o título de um periódico médico de grande reputação. Lanceta é o instrumento técnico utilizado para a imunização contra a varíola. O estudo etimológico dessa palavra nos fornece pistas dos possíveis caminhos de acesso à metáfora da vacinação. Lanceta é uma palavra de origem latina, tradução precisa de lanceola e diminutivo de lancea. Conseqüentemente, as palavras lance ou pique, em francês, designam a palavra lancea. Ora, tanto a lança quanto o pique são armas utilizadas para as lutas. Ao manipular a lanceta, perfura-se o tecido, varando a epiderme, como as armas o fazem.
O termo lanceta foi criado no século XII para denominar um pequeno instrumento de cirurgia, de lâmina lisa e afiada, utilizado para as sangrias e pequenas incisões. A lanceta tem a forma de um canivete12 e sua lâmina pontiaguda serve tanto para perfurar a vesícula e recolher a linfa (líquido extraído da pústula vacinal) quanto para introduzi-la no tecido segundo as técnicas da variolização ou de vacinação.13 A partir do século XVIII, a lanceta consagra-se como o instrumento de imunização contra a varíola, vindo a ser, posteriormente, substituída pela pluma de vacina.
Pesquisando o repertório infantil de canções brasileiras do século XIX, encontramos um exemplo, ainda hoje cantado por nossas crianças, dessa força simbólica da lanceta na sua relação com a varíola: "Onde mora a condessa, língua de França, dor de lanceta?"
Em 1904, a palavra lanceta aparece nas legendas dos desenhos humorísticos dos cariocas, designando a imagem da pluma de vacina. Os caricaturistas aproveitam-se de um dos principais preceitos da caricatura — o de prolongamento do traço — para metamorfosear a pluma em lança. Segundo Melot (1975), o prazer da caricatura — técnica de degradação — ganha força pela liberação de uma agressão.
Um bom exemplo é a caricatura Vacina obrigatória, publicada no jornal O Malho em 13 de abril de 1904 e reproduzida em Falcão (op. cit., p. lxxiii).

Fig. 8 — Votada a lei, teremos vacina a muque. As lancetas ofensivas ganharão um cabo, para servirem de armas defensivas. A bolacha e a linfa andarão a três por dois. Quem resistir, verá estrelas ao meio-dia, excelentes astrônomos os cafajestes de esmeralda..

Retomando o contexto deste artigo, perguntamo-nos: de que maneira a historiografia pode fossilizar a caricatura? Nossa hipótese é que a historiografia, ao reproduzir o sentido do acontecimento da vacinação antivariólica, tal como é apresentado por seus defensores, perde a tensão que engendra o humor. Se o caricaturista, de um lado, multiplica os pontos de vista do leitor, por outro, ele assume um olhar relativista. Diferentemente, os médicos preocupam-se tão-somente em edificar o monumento da medicina científica; fixam a imagem de uma origem que desemboca na medicina atual.
Vejamos como a classe médica, que procura legitimar uma concepção geral de saúde e doença, comenta o julgamento que subjaz ao fenômeno cômico.

A caricatura sem humor

No relatório inglês sobre a vacinação antivariólica, o dr. John Simon — médico inglês que foi um dos fundadores da Sociedade Epidemiológica e primeiro oficial da Saúde da cidade de Londres, participante também da Comissão Real de Vacinação em 1889-90 — faz alguns comentários sobre o pano de fundo da caricatura de James Gillray.14 Cinqüenta e quatro anos depois da edição de A vacina ou os maravilhosos efeitos da nova inoculação esta caricatura inspira o seguinte relato:

E, para aqueles que ignoram a experiência de Gloucestershire, nada de bom poderia surgir de tal fonte a não ser uma estranha suposição. O medo era maior do que a esperança. O que se poderia esperar de um ‘humor bestial’, a não ser o risco de novas e terríveis doenças? Quem poderia supor os limites de suas ‘conseqüências’, físicas ou morais? Que segurança temos contra chifres nascendo nos vacinados? (Comitê Geral de Saúde, 1857, p. xvii)

E John Simon sentencia: "os que não se remetem à origem, quer dizer, ao espetacular lançamento da vacinação antivariólica feito por Jenner, não têm direito à palavra. Aqueles que não escutam a história são pessoas degradadas, cegas pelas superstições."


Fig. 9 — Caricatura de James Gillray.


Alguns efeitos da caricatura

Em nossa tese (Lopes, 1997, cap. IV), interpretamos o trabalho desenvolvido pelos antivacinadores como um movimento importante de formação da opinião pública para a qual a ilustração exerce um papel fundamental.
Os médicos expressam desconforto quando abordam as caricaturas sobre a vacinação. O Royal College of Physicians (Colégio Real de Medicina) identifica na circulação das caricaturas a causa da dificuldade para a universalização da prática da vacina:

Uma outra causa é a caricatura contra a vacinação, na qual esta é apresentada como fonte causadora de uma variedade de novas e terríveis doenças, de aparência monstruosa e aterrorizante.

Algumas dessas representações foram impressas de forma a alarmar os pais e desencadear a apreensão das pessoas desinformadas. As publicações com estas representações tiveram grande circulação e, embora tenham surgido da total ignorância ou de concepções deliberadamente inexatas, contribuíram para aumentar a desconfiança de muitas pessoas em relação ao processo de vacinação, especialmente entre as classes menos favorecidas. Entretanto, não se pode atribuir a isso nenhum efeito permanente em relação ao retardamento do progresso da vacinação, pois, à medida que o público analisá-la friamente e sem surpresa, o medo cairá no esquecimento (Câmara dos Comuns, 8.7.1807, op. cit., pp. 6-9)

Os médicos ocupam-se em desmentir o conteúdo da caricatura ao mesmo tempo que desqualificam seus leitores. Como aceitar que essa linguagem seja mais eficiente junto ao público do que a dos próprios médicos?

Notas e Bibliografia

Revista FIOCRUZ

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O maior desenhista do mundo

Esta foi a definição de Jaguar para o caricaturista Belmonte (1896-1947)
Jaguar


Meus tempos de menino, em Santos. Meu pai era do Banco do Brasil, fomos morar lá quando eu tinha seis, sete anos.

Black-out para os submarinos do Eixo não torpedearem minha rua. O vizinho era rico e tinha um carro americano (acho que era um Lincoln Continental) movido a gasogênio. Estudava no colégio dos maristas e no dia 7 de setembro desfilávamos com nossas fardas vistosas, quepes, bandeiras e medalhas, soldadinhos com os peitos varonis estufados de lealdade ao governo.

Meus tesouros: uma coleção de estampas das balas Pan (que perdi num jogo de bafo- bafo), uma caneta-tinteiro Esterbrook, os livros de Viriato Corrêa (História do Brasil para crianças) e todo o Sítio do Pica-Pau Amarelo ilustrado por Belmonte. Era para mim o maior desenhista do mundo. Varava noites copiando os desenhos dele, sem poder dormir por causa da asma.


Benedito Bastos Barreto, o Belmonte, morreu de asma em 1947, aos cinqüenta anos. Agora aqui estou eu, escrevendo sobre ele. Virei também o que Herman Lima chamava de artista do lápis (lápis por quê? A gente desenha é com tinta nanquim e caneta ou pincel).

A ótica mágica da infância se desfez: não o considero mais o maior desenhista do mundo, só um cara do ramo avaliando o que ficou do seu trabalho e da criação que foi a coqueluche de São Paulo, o Juca Pato, que virou nome de cigarro, cavalo de corrida, caramelo, caderno escolar, água sanitária e principalmente o bar Juca Pato, no centro da capital paulistana, ponto de encontro de artistas de rádio, de teatro e de jogadores de futebol. Hoje é troféu. Ainda não tinham inventado o merchandising e Belmonte não lucrou com a exploração comercial de seu personagem; muito pelo contrário, morreu pobre.

Meus olhos astigmáticos informam, sessenta anos depois: não é o maior desenhista do mundo. Vidrado em J. Carlos (“o pai de nós todos”), a influência do grande medalhão nunca deixou que seu talento, com o perdão da palavra, desabrochasse com força total. A favor dele, diga-se que as melindrosas que desenhava eram muito mais tesudas e gostosas que as magrelas desidratadas do corifeu.

Encaro a sua foto: olho meditativo, testa vincada, boca contraída, cara de índio mexicano, um homem sério, triste, que escrevia cartas indignadas ao jornal Estadão condenando o estado de abandono dos monumentos históricos: “Tudo isso precisa ter um fim, porque um povo que não sabe zelar por suas tradições é um povo indigno de viver.” Cáspite!

E, como ele, Juca Pato não ria; vociferava, dedo em riste, paladino da classe média, de polaina e gravatinha borboleta, investindo contra as bandalheiras, a corrupção, o custo de vida, buracos nas ruas e – primeirão! – contra a especulação imobiliária e a derrubada de árvores na cidade, ecologia avant la lettre.

Desde que Paulo Duarte, outro admirável irascível, levou-o, em 1921, para fazer charges diárias na Folha de S. Paulo, reinava sozinho nas folhas. Voltolino saiu de cena, vítima da sua insaciável busca do prazer. Outros caricaturistas da época foram tratar da vida, procurando ocupações que davam menos fama e mais segurança. Forrignac virou delegado e Pupo Nogueira, industrial. Os grandes da caricatura brasileira estavam concentrados no Rio, J. Carlos, Calixto, Nássara, Álvarus, Theo. Belmonte era o único expoente do primeiro time da caricatura fora da corte. (O Rio, coitado, ainda não tinha sido desativado pelo Poder Central. Era lá que as coisas aconteciam, agora é tudo em São Paulo).

Amava São Paulo com patriotismo acendrado, foi sua grande paixão; por causa dela, recusou um convite da Metro para fazer desenhos animados nos Estados Unidos. Vale a pena contar a primeira (e última) vez que “emigrou” de São Paulo. Quando seu ídolo J. Carlos saiu da Careta (o mestre resolveu se encastelar na torre de marfim de seu ateliê), tomou coragem e o trem para o Rio, convidado para substituí-lo. A aventura só durou dois dias. Deve ter se sentido um penetra na festa que era o Rio. Como um gato, fugiu de volta para o aconchego do seu habitat e o sossego da província. Bem Belmonte.

No dia da instauração do Estado Novo, 10 de novembro de 1937, publicou uma charge mostrando ao fundo a Estátua da Liberdade e em primeiro plano Juca Pato lendo um trecho da Constituição americana. Outras se seguiram, cutucando a ditadura com vara curta até que o DIP deu um chega pra lá e Belmonte foi obrigado a só fazer charges sobre política internacional. A velha história: um desenho vale por mil palavras. Quantos livros teriam que ser escritos abrangendo a trajetória do nazismo que Belmonte nos transmite através do seu traço em algumas dezenas de charges?

A glória: suas farpas incomodaram também outra ditadura. O poderoso chefão da propaganda hitlerista, Goebbels, brandindo um maço de desenhos de Belmonte, berrava pelo rádio que ele tinha sido comprado pelos americanos e ingleses. Melhor que qualquer prêmio.

Trinta anos de batente. Caricaturista, desenhista (frisava sempre que eram coisas diferentes. Acho que tinha mais pretensões como desenhista, mas vai ficar na história como grande caricaturista), historiador (No tempo dos Bandeirantes), escritor, pintor, jornalista. Boêmio até onde deu. Uma voz que nunca se calou contra a prepotência e o fascismo, sina de humorista.

Criou Juca Pato, tão paulistano quanto o Viaduto do Chá. Deu corpo ao Jeca Tatu, feliz parceria com Monteiro Lobato. Juca e Jeca, indispensáveis e fundamentais para a compreensão do homem brasileiro.

Valeu.

Jaguar é escritor e cartunista e é autor da introdução do livro BELMONTE, Caricatura dos Tempo. Melhoramentos/Círculo do Livro, 1982.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional