sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

EUCLIDES DA CUNHA E OS SERTÕES


EUCLIDES DA CUNHA E OS SERTÕES

Alberto Lins Caldas
Professor de Teoria da História
caldas@unir.br

Quando li Os Sertões de Euclydes da Cunha, aos quinze anos, envolto na deliciosa atmosfera de naftalina, livros velhos e claro-escuros de um conto de Stevenson, numa deliciosa 14ª edição corrigida da livraria Francisco Alves, de 1938, com assinaturas do meu avô e do meu pai, no conforto da poltrona à voltaire no centro da biblioteca, o fiz com horror, com tédio mortal, com um nojo sem limites, com juvenil arrogância. Mas a obrigação intelectual me obrigava. Era impossível viver sem ter lido essa coisa, eu me dizia - querendo me convencer sem conseguir. Parece com este mundo ridículo onde vivo, mas ainda assim deve ser lido, eu completava, seguindo aquela exposição cientificóide, árdua, envelhecida, imprestável. O homem, o autor, o tal do Euclydes da Cunha - Um imbecil, incapaz e reacionário, dizia eu ao meu pai entristecido e calado por tanta incompreensão. Uma besta! Completava eu saindo para andar longe daquela cidadezinha ridícula, minúscula e eternamente tacanha, dizia eu entre dentes, Igual ao Cunha, aquele Euclydes do tal Ser Tão Besta, e ria, como se fosse coisa de se rir.

E, estranhamente, estava certo!

Todas as idéias de Euclides da Cunha eram, e ainda são, um legítimo horror sem medidas. Avaliadas individualmente ou em rede são terríveis, racistas, cientificistas, monstruosamente ridículas, ingênuas e primárias: rascunhos de um provinciano. Ridículas, principalmente! Sequer se salvam numa bondosa “visão histórica”, essa ficçãozinha de Estado, esquecida que é tudo menos “o real”. Somente intelectuais periféricos, integrados e rasos poderiam se abismar, se interessar ou difundir palhaçadas-como-coisa-séria; somente facistóides de terceira categoria podem ainda levar a bandeira de um Euclides “herói da pátria” ou “gênio da raça”; somente uma busca cega pelo “Brasil”, pela “Nacionalidade”, pela “Raça”, pela “Identidade”, poderia começar a dimensionar, coisa que aqui não nos importa, a “produção, manutenção e difusão” de tais sandices patrióticas em forma de conhecimento-sério, como se isso existisse; somente uma horda ingênua poderia ter como “chefe”, como “ídolo”, como “totem”, uma coisa como Euclides da Cunha e sua obra (excluindo Os Sertões, é coisa que não se discute por sua condição de “documento”). Euclides, por qualquer perspectiva, faz parte de uma teratologia das idéias e, especificamente, de uma teratologia da “história dos intelectuais”, uma específica teratologia do ridículo “pensamento brasileiro”, uma teratologia dos pesadelos, das ninharias daquilo que se luta para estabelecer como Brasil, e que alguns querem esquecer.

Euclides faz parte, e é impossível dissociá-lo, das “Vidas dos Grandes Brasileiros”, junto com Tiradentes, Pedro I/Pedro II, José Bonifácio, Deodoro da Fonseca, Osório, Duque de Caxias, Rondon, Vargas, Médice ou Fernando Henrique. É e lutou para ser uma “vaca de presépio”, um símbolo, um “legítimo representante de um novo Brasil”. Euclides é isso que se entende como Brasil e que tanto limita, amortece, amortalha, avilta e destrói.

E todos os “sites euclidianos” (praticamente todos os artigos ou livros) são mais ou menos uma patriotada sem medida e sem senso de ridículo. Suas associações com o facista-projeto-nacionalista-militar-provinciano; a visão de uma “história brasileira”, de uma “raça brasileira”, do “grande livro nacional”; a geografia, a grandeza da “nossa natureza”, do “nosso homem” é de dar náuseas. E tudo o que cerca Euclides é assim! Não vale a pena! E isso é realmente uma pena! Euclides estranhamente merece mais do que aquilo que lhe fazem passar e ser, apesar dele mesmo ter sido isso mesmo: um idiota de família! um idiota nacional!

Mas uma coisa justifica minha paixão, este livro on line reunindo textos sobre o livro, o autor e seu único livro: o estilo, a musicalidade, as vozes, a poiesis, a ficção, a literatura viva d'Os Sertões. E um mistério: como alguém investido e revestido antes durante e depois de um “projeto” e uma vida tão grotescas conseguiu escrever com tamanha língua? (mesmo tentando escrever a partir da palavra foi da língua que nasceu Os Sertões). E a ficção inesperada e não querida d'Os Sertões fura esta barreira insignificante de patriotadas, aparecendo como literatura, integralmente como literatura e literalmente como ficção, jamais como História-Filosofia-Geografia-Geologia-Climatologia-Biologia-Sociologia-Antropologia, ou o que tenha amalgamado com essa ficção fundante, que por sua própria existência separa-se do resto ou o inclui em sua substância, virtualizando tudo com uma força inesquecível.

Mas Euclides não é autor, não é senhor dessa perspectiva do livro (essa específica dimensão lingüística, ficcional, devires de um fantasma absolutamente sem pátria), chegou a ela como um substrato, uma maneira secundária de dizer; para ele e aos tolos iguais a ele, o principal é a “História de Canudos”, uma “página da nossa História Militar”, fazendo antes de tudo Ciência, entendendo a maneira de dizer como algo que, no fundo deveria ser perdoado, pois o centro era a verdade científica, o real, a verdadeira “História de uma Guerra”, um cientista, um grande jornalista, que utilizava uma “linguagem literária” somente para ser agradável, pois era dessa maneira que se devia escrever (o literário como adorno, moldura, inflexão de voz em leitura secundarista de poesia). E nada mais estranho e desinteressante do que essa “História de Canudos”, essa “Página Militar”: o horror! o horror! Todo imbecil adora História! E lê dessa maneira destruidora, chã, terrível e nadificante. E Euclides escreveu dessa maneira. Para ele a ficção, a literatura, o estilo, a língua eram coisas que deviam ser desculpadas n'Os Sertões: estavam ali para dizer o principal. Ali naquelas instâncias não estava a razão do seu livro: uma besta babando na gravata! A única coisa que ali dentro se salvava e sempre foi visto como “uma das perspectivas do livro”.

Retirado o cascalho, a história-como-algo-fora-do-livro, acontecida daquela-maneira-fora-do-livro, o real-jornalístico, aparece a escritura; o ritmo, as palavras-sem-história; nuas, grávidas, ásperas; dizendo nada sobre nada; fluindo como água sobre extensões de argila; deslizando e explodindo como lava dentro d'água; como camadas de rocha em terremoto; como tubos invisíveis de vento materializadas pelo flanar dos urubus: para nada! dizendo nada! sendo nada! nada apontando! criando corpo! sensação! prazer! toque e gozo em si mesmo e por si mesmo! pronta para o deleite da mais incompleta completude (música): a literatura, sem razão, sem pátria, sem história, sem natureza, sem heróis, sem nomes, sem projeto nacional-socialista. Literatura, ficção e nada mais: eis Os Sertões, o livro: sem autor, sem história que o explique, sem Nação que o suporte, sem Língua Nacional que lhe peça nada, sem Território, sem Governo, sem Exército, sem Família, sem Natureza, sem Ciência.

Por isso e para isso precisamos ler novamente Os Sertões, retomando a língua dos “Sermões” de Vieira (fora do seu tempo, fora da sua crença, fora das suas esperanças); a língua das “Memórias” de Pedro Nava (fora da sua crença na memória e da sua crença na história): imperadores de uma literatura que ainda não se fez completamente, escondida por projetos historiográficos, abafadas por provincianos de meia pataca, por uma literatura nacional, sempre de terceira categoria por ser nacional, de classe média, escrita por adolescentes criados em apartamentos como ratos de laboratório.

Vieira/Euclides/Nava: e se desenha outra literatura, outra perspectiva ficcional, longe, bem longe das águas com açúcar, dos existencialismos, dos pequenos realismos, dos minúsculos lirismos, dos jornalismos, divertimentos e auto-ajuda travestidos em arte.

Primeira Versão - UFRO

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