quinta-feira, 28 de junho de 2012

Os enigmáticos etruscos

Pouco se sabe sobre esses antigos toscanos, que deixaram um rico legado cultural. Descobertas recentes trouxeram novas informações, mas não a ponto de identificar sua origem ou de decifrar totalmente sua escrita
 
Museu Hermitage, São Peterburgo/erich lessing/album/latinstock
Cabeças votivas em terracota, autor desconhecido século VI ou V a.C.
Os etruscos têm muitos atributos: dominavam a arte de decorar tumbas e tinham escrita.Durante séculos, a civilização que criaram foi comparada à egípcia. Depois, um manto de fantasia recaiu sobre ela: teria sido anterior e, definitivamente, precursora da grega. Hoje, apesar de indicações relacionadas a uma parte da mitologia e do alfabeto aparentemente comum entre os povos; a tal primazia etrusca sobre a esplendorosa Grécia antiga já não é mais tão aceita, mas há muitos mistérios para a ciência resolver antes de um veredicto final.

Numerosas descobertas recentes, em especial na Etrúria, região central da península Itálica, mas também fora dela, fizeram avançar os conhecimentos sobre esses antigos toscanos. A Etrúria nunca formou uma só nação, com um poder centralizado.

Não se deve compará-la ao Império Romano nem ao Estado moderno. Aqui começa a identidade com os gregos: tratava-se de um conglomerado de cidades autônomas, com territórios e capitais definidos.

Os autores antigos – gregos e romanos – diziam unanimemente que os etruscos formavam uma liga de 12 cidades, a dodecápolis, mas jamais mencionaram a lista inteira de localidades. A arqueologia e as fontes literárias indicaram que, no apogeu dessa civilização (século VI a.C.), havia as cidades de Tarquínia e Veio, consideradas as mais brilhantes e opulentas.

Alguns séculos depois, há registros das capitais de Arezzo, Cortona, Perugia e Volsini (atual Orvieto). Características das necrópoles e riquezas de mobiliário funerários, além do número e das dimensões de templos, levaram a incluir na dodecápolis cidades como Cere (hoje Cerveteri), Vulci, Vetulonia, Volterra e Chiusi. Por essa conta, ainda falta uma.

As escavações realizadas há alguns anos em Pisa trouxeram à luz o rico passado etrusco desse porto fluvial, e a localidade passou a ser candidata séria ao posto. Mas um grande porto como Populonia, capital do ferro etrusco, podia facilmente entrar na liga, sem esquecer uma cidade como Rosella e outras. Como se pode notar, o problema é o excesso, e não a falta de candidatas.
Tumba dos demônios azuis, Necrópole dos Monterozzi, Tarquínia
Afresco, autor desconhecido, 330-320 a.C.


Essa liga de 12 cidades não foi nada eficaz nos planos político e militar. Isso fica evidente no fracasso dos pedidos de socorro de Veio, quando atacada por Roma no século V a.C.: a desunião facilitou enormemente a conquista romana da Etrúria. A fragilidade na união militar não impediu um forte elo religioso entre os etruscos de todas as regiões, simbolizado por um sacerdos, um grande sacerdote que presidia as cerimônias anuais no principal templo do deus supremo desse povo, Voltumna (ou Veltha). Seu santuário ainda não foi localizado, mas pode se encontrar perto do rochedo de Orvieto. Escavações atuais podem trazer à luz esse sítio, às vezes comparado em importância ao de Delfos na Antiguidade.

Um dos traços desse povo é a beleza artística e o grande número de afrescos funerários. Ao contrário dos gregos, cujas obras das épocas arcaica e clássica desapareceram, os etruscos tiveram a feliz ideia de decorar seus hipogeus, que são tumbas subterrâneas. Essa condição protegeu a arte, hoje exposta em condições especiais na Tarquínia, por exemplo, no museu ou no próprio sítio arqueológico da antiga necrópole de Monterozzi.

Em 1985, também na Tarquínia, foi descoberta uma nova sepultura decorada, chamada “tumba dos demônios azuis” em razão da presença, em suas paredes, dedivindades infernais com a pele pintada de azul. Uma parte dos motivos mostra o barqueiro grego, que atravessa os infernos, e o equivalente a Caronte, em seu barco; ou uma morta, que vai partir em uma viagem marítima, acolhida por seus parentes falecidos.

Por falta de textos etruscos, as interpretações devem parar por aqui. Note-se, contudo, que essa tumba é do fim do século V a.C., e os demônios que acompanhavam os mortos não apareciam na iconografia antes da época helenística. A presença deles parece ser mais antiga do que se imaginava.

No território de Chiusi, uma das cidades da dodecápolis, a oeste do lago Trasimeno, há uma necrópole na bela cidade toscana de Sarteano. Ali se encontrou, em 2003, a tumba da quadriga infernal – carro conduzido por quatro animais. Penetrando no túmulo, é possível ver o desenho da carruagem atrelada a dois leões e dois hipogrifos (animal mitológico representado com corpo de leão, asas, garras e cabeça de águia). Os animais são conduzidos por um cocheiro de cabelos ruivos e olhos que saem das órbitas, cujo rosto foi recortado sobre uma nuvem negra evocando o mundo dos infernos. A arqueóloga Alessandra Minetti, descobridora da tumba, estima que se trate de um novo avatar de Caronte.

Tumba da Quadriga Infernal, Sarteano
O carro conduzido por dois leões e dois hipogrifos é chamado de "quadriga infernal". O cocheiro seria um novo avatar de Caronte, o barqueiro
[continuação]

Em 2006, a cidade mais próxima de Roma, Veio, revelou a tumba pintada que é a mais antiga até hoje conhecida na Etrúria.

Batizada de “tumba dos leões rugidores”, em razão da presença de quatro leões com bocas impressionantes, remonta ao começo do século VII a.C. Há uma série de pássaros pintados em vermelho e preto, com a mesma técnica usada na cerâmica geométrica grega tardia. Segundo Francesca Boitani, diretora do museu de Villa Giulia, em Roma, os aterradores leões evocam a morte, e as aves, a viagem aos infernos.

Também não se podem desprezar os resultados das escavações realizadas em Verucchio, perto de Rimini. No sítio, ligado à Rota do Âmbar, tumbas principescas revelaram um rico e conservado mobiliário de madeira, com alguns tronos. Em Casale Marittimo, perto de Volterra, estátuas de pedra do começo do século VII a.C. foram desenterradas, uma produção artística pouco comum na Etrúria até aquela época.

As escavações nas casas dos vivos se tornou hoje prioritária nas grandes cidades como Marsiliana d'Albegna e, principalmente, na Tarquínia, cidade cujas origens remontam ao século IX a.C. Além disso, um novo templo dedicado a Tin, outro importante deus etrusco, foi descoberto em Marzabotto, nas imediações de Bolonha. Lá se decifrou a inscrição Kainua, que deve ser o nome etrusco da cidade, algo até então ignorado.

A arqueologia submarina também trouxe seu quinhão de revelações, pois a exploração de navios naufragados é fundamental para a história econômica e o conhecimento das trocas comerciais. Em 1999, pesquisadores identificaram um navio afundado ao largo da cidade de Hyères, no sul da França. A embarcação era um grande cargueiro e transportava, perto do ano 500 a.C., mil ânforas cheias de vinho produzido na região de Cere-Cerveteri. Sem dúvida, a carga seria entregue no porto de Lattes, próximo da atual Montpellier, já que a Gália meridional consumia vinho etrusco havia mais de um século.

Talvez fosse um navio etrusco implicado em uma forma de comércio direto entre a Etrúria e a Gália meridional, mas tratava-se de modo pouco habitual para o período, pois mais comum era o sistema de cabotagem – de porto em porto, com cargas e descargas frequentes, ao longo da costa do Mediterrâneo.

ORIGENS
Quanto às raízes dos etruscos, o mistério é enorme. Teriam eles vindo da Ásia Menor, como afirmou o historiador grego Heródoto (século V a.C.) ou seriam nativos do lugar, um povo autóctone, segundo a tese defendida pelo também historiador grego Dionísio (ou Denis) de Halicarnasso, posteriormente, no século I a.C.?

Heródoto afirmou que os etruscos eram originários da Lídia, na atual Turquia. Teriam chegado à Itália no século XIII a.C. A hipótese é compatível com a que associa os etruscos aos povos do mar. Os egípcios mencio navam os etruscos com o nome de turshu. Os latinos, os chamavam de tusci. Os gregos, de tyrrhenioi.

O mais provável é que tenham se instalado na região, que já possuía uma população local, entre os séculos VIII e VII a.C., atraídos pelas jazidas metálicas da Toscana. Eles fundaram ou controlaram Bolonha, Mântua, Pesaro, Rimini, Cápua, Pompeia e até mesmo Roma, cujos três últimos reis antes da República, entre 616 e 509 a.C.,
foram etruscos.

Talvez a análise do DNA das populações da Toscana traga luzes sobre essa eterna questão. Os primeiros resultados pendem para uma origem oriental. Mas não é de desprezar o comentário do historiador francês Jules Martha, em 1889: “Podemos nos perguntar se o termo 'etruscos' corresponde a uma entidade etnográfica bem definida ou se, por acaso, não seria uma expressão política que designaria um povo misto, resultado da mistura de várias raças, como, por exemplo, os franceses, austríacos, ingleses, americanos”.

Nem grego nem latim
Museu Dell´Accademia Etrusca, Cortona
Tabuleta de Cortona revela a escrita etrusca. A inscrição de autor desconhecido, foi feita sobre bronze por volta de 200 a.C.
Em relação à língua etrusca, há muito a ser descoberto, embora os poucos textos sejam hoje decifrados com mais facilidade – ao menos quando colocados em seu contexto. Geralmente as palavras são grafadas da direita para a esquerda, com um alfabeto assemelhado ao grego. Mas o etrusco definitivamente não pertence ao grupo de línguas indo-europeias, mesmo que tome de empréstimo elementos do grego e das línguas itálicas.

Simplesmente não se pode aproximar o etrusco de outra língua. Por isso, uma escritura descoberta em 1992, em Cortona, na Itália, tem grande interesse. Surgida em condições rocambolescas e certamente depois de escavações clandestinas, a tabuleta de Cortona é uma placa de bronze de aproximadamente 45 cm por 30 cm, com inscrições que cobrem totalmente uma face e a parte superior do verso. Deve datar de cerca de 200 a.C.

Com 206 palavras, mais da metade nomes próprios e sinais de pontuação, a tabuleta contém o terceiro texto etrusco conhecido em número de linhas. Como faltam escritos longos, com um vocabulário rico que permita avanços no conhecimento do etrusco, a descoberta é das mais celebradas.

Tudo indica tratar-se de um documento jurídico, um contrato sobre a venda de terras, onde existiam uma vinha e um olival situado perto do lago Trasimeno. Daí as listas de nomes próprios que provavelmente representam os vendedores, os compradores, as testemunhas e os fiadores daquela transação.

Aparece ainda na inscrição a expressão cen zic zichuche, que se traduz por “este texto foi escrito”, uma fórmula esperada em atas de tipo notarial. Há a qualidade de um magistrado que é zilath mechl rasnal, que significa “pretor da liga etrusca”, ou como alguns hoje acreditam, pretor da cidade de Cortona – talvez o prefeito da cidade. Constata-se que, como na Roma dos cônsules, a datação é indicada pelo nome de dois magistrados que estavam no cargo naquele ano.

A tradução hoje aceita dessas e de outras passagens está longe de indicar que o problema da língua esteja resolvido. Alguns especialistas de peso contestam a interpretação e veem na tabuleta de Cortona um texto religioso, que descreveria os ritos praticados por uma confraria. Uma hipótese errada para a maioria dos pesquisadores, mas...

Revista História Viva

sexta-feira, 22 de junho de 2012

As charges e a influência do Humor durante a Segunda Guerra Mundial


Vinícius Liebel[1]

            A charge, enquanto parte da mídia jornalística, pode ser considerada um elemento formador de opinião pública. Sua força enquanto tal pode ser comprovada pela simples análise destas fontes, na qual verificamos a crítica ou a apologia a determinada ideologia ou governo.
            Sua força é comprovada quando buscamos na teoria psicanalítica freudiana indícios que corroboram a eficiência do desenho humorístico enquanto meio propagandístico e influenciador de opiniões. Freud, em sua obra O Chiste e sua relação com o Inconsciente, traz-nos um tratado psicanalítico sobre a natureza do humor, suas ações e influências no inconsciente. Considerando as charges como uma das manifestações contemporâneas mais correntes de humor, buscamos nos apropriar deste discurso clássico e analisar como a charge pode repercutir na consciência de um indivíduo, pela produção do chiste e pelo riso.
            O riso, para Freud, seria um liberador das emoções reprimidas. Desta forma, por trazer o prazer da liberação do stress emocional, a risada seria uma manifestação individual e egoísta. “O riso compensa, em seus efeitos, o dispêndio contínuo de energia, exigido para manter as proibições que a sociedade impõe e os indivíduos internalizaram.”[2] O prazer que a ato de rir traz ao indivíduo é, como toda espécie de prazer, de alguma forma, embriagante. A embriaguez então causada no indivíduo fortalece a idéia transmitida pelo fato desta idéia estar acompanhada do prazer proporcionado pela risada. O próprio ato de rir já é um indício da aceitação, por parte do indivíduo, da idéia passada. Assim,

Ele (o chiste) ademais subornará o ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma investigação mal detida, exatamente como em outras freqüentes ocasiões fomos subornados por um chiste inocente que nos levou a superestimar a substância de uma afirmação expressa chistosamente. Tal fato é revelado à perfeição na expressão “die Lacher auf seine Seite ziehen” (trazer os que riem para nosso lado).[3]
Conforme observamos, o humor seria uma das formas de protesto ou propaganda mais eficientes que podemos utilizar. As charges, por serem veiculadas em jornais e na grande mídia, têm um alcance maior que um gracejo contado numa roda de amigos. Por seu caráter mordaz, têm também a natureza da crítica e da revolta, e é dessa característica que resulta, em grande parte, a simpatia natural que sentimos por estes desenhos, pois “rimos delas, mesmo se mal-sucedidas, simplesmente porque consideramos um mérito a rebelião contra a autoridade”[4], o que nos passa a idéia de poder satirizar, por alguns instantes, um poder central. O chargista poderá tratar, através de seus desenhos, de características e críticas que não poderia tratar abertamente, seja por conta da censura ou de convenções morais. Ao passá-las para o desenho, está promovendo uma pequena “rebelião” contra o objeto da crítica, e, muito provavelmente sem saber, arrebanhando adeptos de suas opiniões pelo poder do riso.
            Observaremos melhor essas colocações analisando uma de nossas fontes e verificando tais características nesse desenho.
           
THE THREE GANGSTERS. Londres: [s.n.], 1941. 1 cartão postal: pb.
O desenho acima reflete claramente antipatia ante os três principais membros do Terceiro Reich: Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, Goering, considerado, até 1945, o segundo homem do governo alemão, e Hitler, o Führer nazista. Veiculado em cartões postais ingleses a partir de 1941, o desenho sobrepõe as caricaturas de Goebbels e Goering a corpos de macacos, sugerindo que ambos pensariam e agiriam como tal, bem como teriam semelhanças físicas. Outro aspecto satirizante, este referido à figura de Goering, é a ostensiva coleção de medalhas em seu peito, característica marcante que foi utilizada por vários dos caricaturistas do Comandante em Chefe da Luftwaffe.
            A caricatura de Hitler, por sua vez, revela um julgamento quanto ao seu instinto belicoso. A caracterização do Führer na figura universalmente reconhecida da morte traz um aspecto muito mais crítico que a simples ridicularização de seus comparsas no mesmo desenho, contando também com o caráter cômico.
Os psicanalistas defendem que o riso causado pela figura facilitaria a apropriação destas caracterizações no julgamento pessoal do indivíduo que a observa. Desta forma, a idéia do autor da gravura, de que Hitler é a personificação da morte e do mal e de que seus comandados não passam de animais seria apropriada pelo observador.
            O humor aqui utilizado tem, portanto, um propósito: o de desmobilizar a crença pública quanto ao personagem histórico Adolf Hitler e o sistema político que ele representa. Por sua vez, Pierre Ansart nos coloca uma diferenciação dual na relação do humor com a esfera política: em um sistema pluralista como a Democracia, no qual as paixões políticas são constantemente reprimidas e cortadas a fim de manter o equilíbrio do sistema, o humor tem como função promover a multiplicidade de opiniões e a descrença quanto aos elementos nocivos, mas, principalmente, evitar as demonstrações apaixonadas das massas para com esses mesmos elementos. Sua ridicularização estabelece uma situação de inferioridade, um julgamento de valores no qual o ser político torna-se bizarro e ridículo, afastando os indivíduos pela descrença causada. Inserindo Henri Bergson na discussão, o humor trata de promover uma homogeneização da sociedade.
            Nossas fontes primárias são charges e caricaturas produzidas em dois sistemas e conjunturas distintas, porém, próximas se levarmos em conta a relação entre humor e política atentada por Ansart: o regime autoritário no Brasil de Getúlio Vargas e o regime totalitário alemão de Adolf Hitler. A natureza dessas fontes, entretanto, apesar de pertencerem a conjunturas semelhantes, são diferentes. Enquanto os desenhos brasileiros são produzidos por indivíduos e veículos desligados do Estado, a saber, por Belmonte e Chichorro, respectivamente da Folha da Manhã, de São Paulo, e do jornal O Dia, de Curitiba, onde a crítica velada, característica própria das charges, poderia encontrar espaço, as charges alemãs têm seu lugar em um jornal controlado pelo Estado nazista, o Der Stürmer. Pautando nossa pesquisa na caracterização do regime nazista, sua ideologia e seus líderes, buscamos analisar de que forma as charges destes diferentes autores cumpriam o papel propagandístico de que falamos anteriormente.
            O primeiro caso analisado é o de Belmonte, criador do personagem Juca Pato e considerado por muitos o maior chargista brasileiro. O título é justificado, pois poucos como Belmonte conseguiram sintetizar, em um único desenho, tantas considerações e análises de um determinado fato ou situação. Utilizando-se do semblante do personagem retratado ou do ambiente em que se encontra, dos objetos que o rodeiam ou das manchetes de jornais que evocam o assunto, o autor condensa sua opinião e sua visão em um quadro de alguns centímetros quadrados e a apresenta ao leitor, como podemos observar a seguir:

            Fonte: BELMONTE. Música Maestro. São Paulo: Folha da Noite, 1940.

            Aqui, Belmonte faz referência ao caráter belicoso de Hitler, numa charge que podemos considerar uma pioneira entre muitas outras que fariam críticas diretas e agudas em relação ao líder alemão e sua ideologia. Neste desenho, datado de 09 de agosto de 1940 e publicado na Folha da Noite, o Führer é retratado como maior fomentador do conflito, acusado de alimentar a morte através de uma grande carnificina, mantida através dos vários bombardeios aéreos que atingiram o território britânico. O título do desenho, “No Restaurante ‘Ao Relâmpago’”, é uma referência direta à Blitzkrieg promovida pelos alemães principalmente no início do conflito mundial. Hitler como chef do restaurante, atende aos pedidos da Morte, que exige que seu pedido seja atendido rapidamente: “Então, como é? Essa comida vem ou não vem?!”. No menu do dia, escrito no quadro abaixo da janela da cozinha, encontramos pratos não usuais, como “consome de Bombas, Filet de Granadas, Salada de dinamite à Krupp Stukas e Paraquédas, RAF em churrasco, Gazes e micróbios, Whisky fervendo, Guarda-chuva torrado, etc, etc etc, surprezas.”
            Os pratos servidos no restaurante “Ao Relâmpago” trazem nomes de armamentos utilizados durante a guerra, como bombas e granadas, e de divisões das forças armadas alemãs, como os pára-quedistas e os Krupp Stukas. Há ainda a referência ao guarda-chuva de Chamberlain, que no restaurante é servido torrado. Desta forma, Belmonte coloca a impossibilidade de paz naquele momento e a guerra como o fracasso definitivo das negociações diplomáticas que visavam o fim das agressões, promovidas pelo ex-primeiro-ministro inglês. De forma semelhante ao que acabamos de expor, Belmonte se utiliza de diferentes técnicas para manipular seus desenhos, como o cinismo, o nonsense e a alusão. Na crítica ao contra-senso das decisões tomadas pelos líderes nazistas e das posições que sustentavam referentes aos mais variados assuntos, encontramos a chave para o pensamento de Belmonte, para a linha editorial de seu jornal e para a opinião formada por seus leitores.
            O segundo caso é o desenho humorístico de Alceu Chichorro, jornalista paranaense e figura constante nas reuniões intelectuais curitibanas. Assim como Belmonte, Chichorro criou um personagem, Chico Fumaça, que ilustrava as aspirações da classe média e que expressava as idéias do autor. A presença de Fumaça orienta as ações nos desenhos. Seu olhar direciona as atenções do público leitor e suas colocações passam as opiniões de seu criador e de seu jornal.
            Ao atentarmos para as charges produzidas por Chichorro que fazem referências ao regime nacional-socialista, podemos observar dois momentos distintos: no primeiro, que compreende o período entre os anos de 1933, data de ascensão de Hitler ao cargo de chanceler, e 1942, ano da entrada do Brasil no conflito, a visão daqueles elementos é bastante branda. A origem de tal amenidade no trato do assunto tem várias possibilidades, que vão desde uma orientação editorial voltada ao público curitibano, que tinha visões otimistas acerca do regime alemão, até uma possível simpatia velada do autor para com a ideologia nazista. As razões para este comportamento de seus desenhos, entretanto, não passam de conjecturas.
            O segundo momento que podemos visualizar é iniciado no ano de 1942, quando o Brasil ingressa no conflito junto aos Aliados. A partir de então, como era de se esperar, os desenhos passam a criticar e satirizar o regime de Adolf Hitler e suas ações. Interessante nesta fase de Chichorro é a sutileza das críticas, não lançando mão do horrendo em suas charges, mas se utilizando sim de um humor sadio, que beira à inocência.

            ELOY. O Dia. 15 jan. 1943.

Na charge aqui exposta, produzida no ano de 1943, já situada, portanto, na segunda fase de Chichorro, podemos visualizar o humor brando do autor. Baseada em notícia de diários estrangeiros, no caso, de Estocolmo, que noticiavam que “o estado de saúde de Hitler era precário e a conselho médico, o füehrer (sic.) estaria usando óculos pretos”, a charge mostra um Hitler de postura autoritária, demonstrando deter (ou com a ilusão de deter) o poder sobre a África. A situação é denunciada, além pela pose do líder alemão, pela placa que no plano superior do desenho aponta para o continente africano. A ilusão do domínio do continente negro é causada pelo uso dos óculos escuros, que, como o título da charge proclama, causa uma “ilusão ensombrada” à vista do Führer.
            O complemento do desenho é feito pelo diálogo travado entre Chico Fumaça e dona Marcolina, que observam Hitler: “ –  Mas porque (sic.) os óculos pretos, Fumaça? – É para ter uma ilusão da conquista da.... África!...”. Aqui, Fumaça cumpre seu papel de observador e de humorista, ao satirizar a atitude do ditador e, de forma indireta, sua ambição de conquistar aquela região.
            O terceiro caso analisado nesta apresentação é o do chargista Philippe Ruprecht, alemão que desenhava para o semanário Der Stürmer, editado em Nuremberg. A característica principal das charges publicadas neste jornal é que buscavam fixar nas mentes dos alemães os principais preceitos nacional-socialistas, dentre os quais se destaca o anti-semitismo. Novamente recorremos a Henri Bergson ao destacar uma “função social” para estas charges, qual seja, a de preparar a sociedade para o extermínio dos judeus em território alemão. O exemplo a seguir poderá ilustrar melhor esta questão.

            FIPS. Der Stürmer, ago 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Julius Streicher – Nazi Editor of the notorious anti-semitic newspaper Der Stürmer. New York, Cooper, 2001. p. 84.

Visualizamos então a técnica da associação sendo utilizada na difamação do povo judeu. Aqui, um morcego que carrega a estrela de Davi no peito e que tem as feições características do indivíduo judeu representado nas charges de Rupprecht, surge nos céus espalhando terror e morte no seu caminho. O título, Der Vampyr[5], já demonstra a conotação que a charge pretende imprimir: a do judeu sugador e aproveitador. A legenda ratifica esta idéia ao dizer Vom Teufel in die Welt gesegt er stets die Völker quält und hekt[6]. Em linhas gerais, o significado da frase evoca uma qualificação dos judeus como povo do inferno, cuja principal ação no mundo abençoado, ou seja, o mundo germanizado, seria a de atormentar e sugar os cidadãos arianos. As charges do Der Stürmer se prestavam, portanto, para a degeneração do alvo (principalmente os judeus, mas também comunistas, católicos e maçons) através da utilização de um humor grosseiro, com alusões diretas, valendo-se de títulos e legendas para melhor transparecer sua intenção. Trata-se de um produto destinado a um público muito definido, qual seja, o ariano adepto ou simpatizante das idéias nazistas, em especial do anti-semitismo, e predisposto a acatar as opiniões expostas.
A partir destes três casos aqui analisados, podemos tirar algumas conclusões. Com o Der Stürmer a população alemã passou a “ver” a quebra da harmonia social que os judeus promoveriam e, como não havia a possibilidade deste “erro” se corrigir sozinho, passou-se a aceitar a idéia da extirpação deste “corpo estranho” da sociedade. Em outros termos, o humor de Rupprecht serviu como uma alavanca para o ódio dos arianos para com os judeus, não se dirigindo à “inteligência pura”[7], como pregava Bergson, mas a um dos sentimentos mais recônditos do ser humano, qual seja, o ódio. A busca era por uma uniformização das idéias raciais e da moral do povo alemão, negando nesse processo a moral cristã, judaica ou qualquer outra e impondo a moral do Partido Nazista, processo acelerado e intensificado pelo Terror empreendido pela polícia secreta e pelas outras formas de propaganda empregadas, como panfletos e discursos radiofônicos.
De forma semelhante, através do riso, Belmonte e Chichorro buscaram transmitir a visão da ruptura que os nazistas e suas idéias impunham à harmonia européia e mundial. Em seus casos, entretanto, as palavras e as imagens não eram direcionadas aos instintos ou às emoções dos ouvintes, mas sim à percepção racional destes diante das denúncias feitas pelos autores. Em outras palavras, eram direcionadas à inteligência pura. Porém, da mesma forma, visavam minar aqueles que tinham simpatias pelo Nazismo ou simplesmente arrebanhar a opinião dos indiferentes. Buscavam também, portanto, uma homogeneização da sociedade através da uniformização de sua mentalidade.
Neste sentido, as charges têm seu lugar no espaço público, na arena de discussões. Sua função de expositora e de formadora de opiniões permanece marcante, seja como crítica a um governo ou como apoio ao mesmo, seja em Democracias ou Ditaduras. Da mesma forma que os chargistas atuaram nas décadas de 30, combatendo ou alicerçando políticas governamentais, hoje ainda se destacam na formação da opinião popular, aliando-se ao poder vigente ou a ele se opondo; as charges continuam tendo grande atração para os leitores e ainda possuem a capacidade de influenciar, de alguma forma, a sociedade.


[1] Mestrando no curso de Pós-graduação em História pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso – A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo. Cia das Letras, 2002. P. 23.
[3] FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro. Imago, 1977. p. 123.
[4] Ibid. p. 125.
[5] Trad. O Vampiro.
[6] Trad. Do demônio no mundo abençoado ele sempre agita e atormenta o povo.
[7] BERGSON, Henri. O Riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 4.
http://www.pr.anpuh.org