sábado, 30 de janeiro de 2010

No país do Papa

Com poderes ilimitados e polpuda indenização em caixa,
Pio XI molda a estrutura do recém-criado estado do Vaticano. E já
incomoda seu vizinho, o ditador fascista Benito Mussolini

Autonomia e compensação financeira: a assinatura do tratado, em fevereiro último, com representantes do papa e o Duce

Em setembro de 1870, quando as tropas de Vittorio Emanuelle II, proclamado rei da recém-unificada Itália, subjugaram e anexaram a cidade de Roma, o papa Pio IX enclausurou-se nos muros do Vaticano. A essa altura, o Risorgimento italiano já havia tomado a maioria dos estados papais, e o pontífice, para não se submeter à nova ordem política na Velha Bota, rompeu relações com a monarquia e declarou-se um prisioneiro do poder laico. O mal-estar entre o estado e a Igreja finalmente chegou ao fim em fevereiro deste ano, quando o papa Pio XI e o ditador fascista Benito Mussolini, o "Duce", assinaram o Tratado e o Concordato de Latrão, que determinaram a criação do estado soberano do Vaticano, reconheceram o catolicismo como religião oficial da Itália e ainda garantiram à Santa Sé uma polpuda compensação financeira pelas anexações dos rincões papais. Livre depois de quase seis décadas, é o Santo Padre que agora se esbalda com seus poderes de chefe-de-estado, literalmente mandando prender e mandando soltar dentro do Vaticano.


O Santo Padre: rádio e jornal próprios

Com a garantia da indenização da administração italiana, de 750 milhões de liras, à vista, e de um bilhão de liras em títulos do governo, o chefe da Santa Sé começa a estruturar uma respeitável aparelhagem estatal – boa parte dela, a seu serviço imediato. Já existe um diário oficial, o L’Osservatore Romano, e Pio XI, de acordo com seus assessores próximos, planeja estruturar no futuro próximo uma rádio oficial para alardear o cristianismo e, claro, a palavra papal. O maior candidato para tocar a empreitada é Guglielmo Marconi. Está em circulação a moeda corrente do Vaticano, a lira vaticana, com a efígie do sumo pontífice, também aceita na Itália e que tem valor parelho ao da lira italiana. O serviço postal do Vaticano foi inaugurado em fevereiro. Já o Corpo da Gendarmaria Pontifícia e o Corpo da Guarda do Papa, com suas coloridas fardas desenhadas por Michelangelo, ganham ainda mais liberdade dentro do Vaticano para assegurar a proteção do agora chefe de estado Pio XI.

Para completar, em junho último, foi promulgada a Lei Fundamental do Estado do Vaticano, que dá ao sucessor de São Pedro a plenitude dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no enclave de 0,44 quilômetro quadrado ao norte de Roma e em mais doze edifícios espalhados pela cidade, incluindo o Palácio de Castelgandolfo. Os bens da Santa Sé, sua administração, a biblioteca, o arquivo, a livraria e a tipografia do Vaticano também estão diretamente subordinados à vontade do pontífice. Tal lei criou a figura do governador, que pode criar regras para a ordem pública na cidade-estado, com a anuência do Conselho. Porém, a escolha do governador é exclusiva do papa, e pode por ele ser revogada a qualquer momento, sumariamente. Qualquer semelhança com os plenos poderes de Mussolini não é mera coincidência – ao menos para os cartunistas locais, que não se cansam de produzir caricaturas retratando Pio XI envergando a camisa negra do fascismo e o Duce com a tiara papal em sua careca.


O rei Vittorio: encontro simbólico

Os dois manda-chuvas, aliás, trocaram algumas farpas há alguns meses – Mussolini dizendo à Câmara dos Deputados que "a Igreja é soberana apenas no reino da Itália, e não no estado italiano", com a resposta de Pio XI lamentando as declarações hereges do fascista. As arestas ainda não foram completamente aparadas. Para acabar de vez com a animosidade, no fim do ano, de acordo com informações extra-oficiais, o Santo Padre deve receber pela primeira vez no Vaticano o rei Vittorio Emanuele III, em um encontro simbólico para selar a paz entre a monarquia e a Igreja. Mas também aí se descortina um problema diplomático. Pelas rígidas regras cerimoniais do Vaticano, todo soberano católico deve ajoelhar-se ao pé do papa e beijar seu dedão. Benito Mussolini, porém, é radicalmente contra o ósculo, preferindo o tradicional aperto de mão entre dois chefes de estado. Fontes ligadas ao príncipe Umberto garantem que este prefere o cumprimento da formalidade. Este beijo ainda dará muito o que falar.
VEJA, outubro de 1929

Revista Veja História

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