1° de julho de 1501
Em meio ao justificável regozijo provocado pelas conquistas marítimas portuguesas, às quais acaba de se somar a confirmação do descobrimento de uma grande e desconhecida terra, cabe um momento de reflexão. Algumas perguntas devem ser levantadas, ainda que poucos se disponham a responder a elas nestes tempos em que sonhos de grandeza tomam de assalto até os mais cautos. Que lugar é esse que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral vem de acrescentar às propriedades da coroa? Que gentes são essas, de costumes jamais vistos antes pelos portugueses? O que vai lá fazer Portugal? E como?
As descrições que nos chegam, em especial por intermédio da carta do falecido escrivão Pero Vaz de Caminha, dão pistas importantes. A gente é boa e amável, aparenta saúde excelente, revelando nos primeiros contatos grande inocência e timidez. O entusiasmo do escrivão por esses nativos "galantes, dispostos e bem-feitos" ficou patente, mas o mesmo escrivão anotou que eles "não lavram nem criam" animais domésticos. Vivem nus, do que a terra dá; encantam-se com quaisquer ninharias. Esse povo "bestial e de pouco saber", segundo as palavras de Caminha, não parece ter religião nem rei. Até o sentido da propriedade se lhes escapa. Ou seja, em tudo diferente de nós ou mesmo de outros povos não cristãos com os quais entramos em contato através das navegações. O que irá acontecer quando, como é inevitável, o rei de Portugal resolver tomar posse efetiva e colonizar esse estranho lugar? Como se dará o encontro entre dois mundos tão diferentes?
Na verdade, uma experiência desse tipo já está acontecendo. Quando chegou às ilhas ao norte do Mar Oceano, o almirante Cristóvão Colombo encontrou um povo muito parecido com o da nova Terra de Santa Cruz. Suas primeiras descrições foram tão elogiosas quanto as de Caminha – os locais eram "bem-feitos, com bons corpos e rostos", igualmente gentis, enfim, "a melhor gente do mundo". Em nove anos, o paraíso descrito por Colombo já foi transformado num inferno. Os índios, como ele insiste em chamá-los, estão sendo dizimados, pela doença e pela mão pesada dos espanhóis. O novo mundo parece ensandecer os colonizadores. Ao voltar à primeira colônia fincada numa das ilhas, Colombo encontrou apenas os corpos putrefatos dos 41 homens que havia deixado na guarnição. O aragonês Guillermo Coma relata que eles acabaram atacados pelos pacíficos nativos "por causa da conduta licenciosa de nossos homens com as mulheres das Índias, pois cada espanhol tinha cinco mulheres para ministrar o seu prazer".
Foi uma exceção. O que tem acontecido é o contrário: os espanhóis trucidam os "índios" com uma ferocidade inédita até mesmo para seus padrões. Sem mão-de-obra para arrancar da terra as prometidas riquezas, tentam escravizá-los, com parcos resultados. A própria coroa espanhola ainda não decidiu como se conduzir nessa questão. Há seis anos, Colombo chegou a ser autorizado a vender nativos como escravos em território espanhol, mas quatro dias depois os reis católicos voltaram atrás. "Queremos consultar o assunto com advogados, teólogos e especialistas em lei canônica, para ver se eles podem ser vendidos em boa consciência", escreveu o rei Fernando. Agora, os reis se preparam para permitir o envio de africanos como escravos às colônias d'além-mar. O encontro entre os mundos ainda reserva muitas perguntas.
Revista Veja
Em meio ao justificável regozijo provocado pelas conquistas marítimas portuguesas, às quais acaba de se somar a confirmação do descobrimento de uma grande e desconhecida terra, cabe um momento de reflexão. Algumas perguntas devem ser levantadas, ainda que poucos se disponham a responder a elas nestes tempos em que sonhos de grandeza tomam de assalto até os mais cautos. Que lugar é esse que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral vem de acrescentar às propriedades da coroa? Que gentes são essas, de costumes jamais vistos antes pelos portugueses? O que vai lá fazer Portugal? E como?
As descrições que nos chegam, em especial por intermédio da carta do falecido escrivão Pero Vaz de Caminha, dão pistas importantes. A gente é boa e amável, aparenta saúde excelente, revelando nos primeiros contatos grande inocência e timidez. O entusiasmo do escrivão por esses nativos "galantes, dispostos e bem-feitos" ficou patente, mas o mesmo escrivão anotou que eles "não lavram nem criam" animais domésticos. Vivem nus, do que a terra dá; encantam-se com quaisquer ninharias. Esse povo "bestial e de pouco saber", segundo as palavras de Caminha, não parece ter religião nem rei. Até o sentido da propriedade se lhes escapa. Ou seja, em tudo diferente de nós ou mesmo de outros povos não cristãos com os quais entramos em contato através das navegações. O que irá acontecer quando, como é inevitável, o rei de Portugal resolver tomar posse efetiva e colonizar esse estranho lugar? Como se dará o encontro entre dois mundos tão diferentes?
Na verdade, uma experiência desse tipo já está acontecendo. Quando chegou às ilhas ao norte do Mar Oceano, o almirante Cristóvão Colombo encontrou um povo muito parecido com o da nova Terra de Santa Cruz. Suas primeiras descrições foram tão elogiosas quanto as de Caminha – os locais eram "bem-feitos, com bons corpos e rostos", igualmente gentis, enfim, "a melhor gente do mundo". Em nove anos, o paraíso descrito por Colombo já foi transformado num inferno. Os índios, como ele insiste em chamá-los, estão sendo dizimados, pela doença e pela mão pesada dos espanhóis. O novo mundo parece ensandecer os colonizadores. Ao voltar à primeira colônia fincada numa das ilhas, Colombo encontrou apenas os corpos putrefatos dos 41 homens que havia deixado na guarnição. O aragonês Guillermo Coma relata que eles acabaram atacados pelos pacíficos nativos "por causa da conduta licenciosa de nossos homens com as mulheres das Índias, pois cada espanhol tinha cinco mulheres para ministrar o seu prazer".
Foi uma exceção. O que tem acontecido é o contrário: os espanhóis trucidam os "índios" com uma ferocidade inédita até mesmo para seus padrões. Sem mão-de-obra para arrancar da terra as prometidas riquezas, tentam escravizá-los, com parcos resultados. A própria coroa espanhola ainda não decidiu como se conduzir nessa questão. Há seis anos, Colombo chegou a ser autorizado a vender nativos como escravos em território espanhol, mas quatro dias depois os reis católicos voltaram atrás. "Queremos consultar o assunto com advogados, teólogos e especialistas em lei canônica, para ver se eles podem ser vendidos em boa consciência", escreveu o rei Fernando. Agora, os reis se preparam para permitir o envio de africanos como escravos às colônias d'além-mar. O encontro entre os mundos ainda reserva muitas perguntas.
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