quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

As raízes do nacionalismo argentino

As raízes do nacionalismo argentino
Conheça as principais diferenças entre os governos do Brasil e da Argentina e entenda o sentimento que dominou o povo argentino durante o polêmico governo de Juan Perón

Por Paulo Renato da Silva


Os brasileiros costumam dizer que os argentinos são nacionalistas. No futebol, muitos admiram os jogadores argentinos, os quais seriam mais "raçudos" do que os brasileiros por "amarem mais a camisa". Outros mencionam a presença constante da bandeira nacional nos lares argentinos e nas greves, protestos e eventos que realizam.

Porém, essa ideia que temos sobre os nossos vizinhos apresenta problemas. Como toda generalização, desconsidera a complexidade da sociedade argentina. No país, não são poucos os que relacionam o nacionalismo ao autoritarismo. Além disso, entre os argentinos, não há consenso sobre qual é a essência da nacionalidade e, consequentemente, sobre o que significa ser nacionalista.

O governo do presidente Juan Domingo Perón (1946-1955) é considerado um dos mais nacionalistas que o país já teve. Portanto, é um período ideal para se discutir essa característica atribuída aos argentinos. Perón apelava ao nacionalismo para enfraquecer o movimento operário do país, pois a nacionalidade era vista como um ponto em comum, o que aproximaria os trabalhadores dos patrões e diminuiria, assim, os desentendimentos entre ambos. Na primeira metade do século XX, o movimento operário argentino era um dos mais combativos da América Latina.

Segundo Perón e a primeira-dama Evita (1919-1952), o hispanismo era a principal característica da nacionalidade argentina. O hispanismo é constituído por elementos herdados da colonização espanhola, dentre eles o castelhano, o catolicismo e a vida rural. O gaúcho, o homem do campo, era considerado o representante mais expressivo da identidade nacional.


Os membros do seu exército clamaram por vingança e juraram fidelidade eterna à causa que Viriato acalentara desde que decidira carregar, nos seus ombros, os destinos de um povo.

Um exemplo dessa defesa do hispanismo durante o governo de Perón pode ser encontrado no número 3 da revista Argentina, correspondente a março de 1949. Nesse número, Clodomiro del Campo escreveu um artigo criticando a forte presença de palavras estrangeiras no vocabulário dos argentinos. Dizia coisas como: "Quer algo mais nosso, mais popular do que o futebol?" Mas os nossos maiores times se chamam 'River Plate', 'Racing' e 'Boca Juniors'.

Publicação
A revista Argentina foi uma publicação do Ministério da Educação argentino e circulou nacionalmente nos anos de 1949 e 1950. No número seguinte, o leitor Jacinto Quilmes parabenizou Clodomiro del Campo:

"Já estou cansado de ouvir que o río de la Plata. É chamado de River Plate e isto não é uma questão de futebol, porque também não gosto que se diga Boca Juniors. Nesse caso não seria mais bonito dizer 'Los Muchachos de la Boca'?"


Jorge Luís Borges foi antiperonista além de um dos maiores escritores argentinos. Tinha ascendência portuguesa e foi considerado símbolo da oposição ao governo populista.
Evidentemente, o artigo de Clodomiro del Campo e a carta do leitor demonstram que o nacionalismo do governo de Perón foi apoiado por setores da sociedade argentina. No entanto, nem sempre foi isso o que ocorreu.

Os nacionalistas se preocupavam em preservar o castelhano, pois a Argentina foi o país das Américas que, proporcionalmente, mais recebeu imigrantes e a língua destes, sobretudo dos italianos, interferiu bastante no castelhano falado na foz do Rio da Prata.

Além disso, o francês era considerado a língua mais importante para quem pretendia se aperfeiçoar culturalmente. Até mesmo intelectuais peronistas reconheciam a importância dessa língua em sua formação. A escritora Delfina Bunge de Gálvez (1881-1952), esposa do escritor nacionalista e peronista Manuel Gálvez (1882-1962), defendia a "argentinização" da literatura nacional, muito marcada pela cultura francesa, mas reconhecia que seus primeiros trabalhos tinham sido escritos e publicados em francês. Os antiperonistas, que consideravam o governo de Perón uma ditadura, acrescentaram uma importância política ao francês e o associavam aos princípios liberal-democráticos deixados pela Revolução Francesa.

Além da imigração e da importância dada ao francês, ocorreu uma popularização internacional do inglês após a Segunda Guerra Mundial. No número 3 da revista Argentina foi publicado o desenho de uma rua na qual todos os letreiros comerciais estão escritos em inglês ou francês, o que demonstra o descontentamento dos nacionalistas com o que consideravam uma desvalorização do castelhano pelos argentinos.

O descontentamento não se restringia ao uso de palavras estrangeiras. No número 4 da Argentina, publicado em maio de 1949, a carta de um leitor assinada "um provinciano de Jujuy" criticou a preferência dos argentinos por produtos importados:

"O que me revolta não são os letreiros estrangeiros em geral, mas aqueles que são colocados por argentinos, que ainda acreditam equivocadamente que, para ganhar dinheiro, precisam se apresentar como estrangeiros".

Quando estive em Buenos Aires pela última vez perdi a paciência com alguns vendedores que me recomendavam certos produtos dizendo que eram importados. Haviam aprendido que o importado é o melhor do mundo".

França e Argentina
Por falar em línguas estrangeiras, a Aliança Francesa e a Associação Argentina de Cultura Inglesa, além de ensinarem o francês e o inglês, promoviam eventos culturais no país. A existência de diversas entidades culturais e de ensino não-governamentais representou um empecilho para o governo de Perón impor a sua concepção de nacionalismo no pensamento e na produção artística e intelectual do país, pois os artistas, escritores e intelectuais argentinos não eram tão dependentes de empregos públicos e do apoio financeiro do Estado, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, durante as presidências de Getúlio Vargas (1930-1945/1951-1954) no Brasil. Outra entidade importante foi o Colégio Livre de Estudos Superiores, o qual absorveu muitos professores universitários que foram demitidos e que haviam sido dispensados depois que Perón se tornou presidente. Para mencionar apenas mais um exemplo, a editora e a revista Sur de Victoria Ocampo (1890-1979) também reuniram um número expressivo de escritores e intelectuais antiperonistas.

Na Argentina, Borges talvez seja um dos melhores exemplos de como a nacionalidade pode ser vista e sentida de diferentes maneiras.


Conheça a presidente
A primeira mulher eleita pelo voto popular em 2007, Cristina Fernández de Kirchner é a 55a pessoa a ocupar o cargo na Argentina. Fez uma campanha onde despontou como favorita em todas as pesquisas de popularidade a ponto de vencer no primeiro turno com 47% dos votos válidos, que garantiram a continuidade dos governos populistas.
A alfabetização em massa, iniciada ainda no século XIX, também colaborou para que os escritores e intelectuais argentinos tivessem mais autonomia. Ao aumentar o número de leitores, a alfabetização ajudou a desenvolver o mercado editorial argentino, até hoje um dos maiores da América Latina. Durante o governo de Perón já não eram raras exceções os escritores que viviam da produção literária e de atividades relacionadas.

Podemos perceber a dificuldade do governo de Perón em impor sua concepção de nacionalismo quando analisamos alguns eventos realizados pelas já mencionadas Aliança Francesa e Associação Argentina de Cultura Inglesa. Em 1948, na Província de Entre Ríos, a Aliança Francesa promoveu uma exposição do pintor José Planas Casas (1900-1960), considerado um representante do surrealismo na Argentina. No mesmo ano, ainda em Entre Ríos, patrocinou um concerto do pianista francês Charlie Lilamand. A Associação Argentina de Cultura Inglesa, por sua vez, se destacou na promoção de conferências. Por exemplo, em julho de 1954, na unidade de Buenos Aires, sediou uma conferência do escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre filosofia inglesa, na qual foram priorizados Locke e Berkeley.

A propósito, escritores antiperonistas como Borges criticavam o nacionalismo proposto pelo governo e o associavam ao autoritarismo nazi-fascista. Quando Perón assumiu a presidência em 1946, o escritor trabalhava em uma biblioteca municipal em Buenos Aires. Por ser antiperonista, foi transferido para o cargo de fiscal das feiras da cidade. O escritor pediu demissão. Em 1948, a mãe e a irmã de Borges foram presas em um protesto contra o governo de Perón. Para o escritor, a literatura argentina deveria retratar o homem universal, ou seja, não se limitar às fronteiras nacionais e ao contexto histórico de sua produção:

"Creio que Shakespeare se teria assombrado se tivessem pretendido limitá-lo a temas ingleses, e se lhe tivessem dito que, como inglês, não tinha o direito de escrever Hamlet, de tema escandinavo, ou Macbeth, de tema escocês".

Entretanto, não era uma posição existente apenas entre os que se opunham ao governo. Entre os próprios peronistas encontramos posições semelhantes à de Borges. Um exemplo interessante dessa inexistência de consenso sobre o que seria uma autêntica literatura argentina ocorreu em 1951. Nesse ano, morreu Homero Manzi, poeta e compositor peronista. Durante uma homenagem no Congresso Nacional, o deputado peronista John William Cooke (1920-1968) igualou Manzi ao antiperonista Borges. Para ele, ambos sabiam captar o que havia de universal no argentino. Vale ressaltar que o antiperonismo de Borges já era bastante conhecido em 1951. O deputado ainda encerrou a homenagem ao poeta falecido usando versos de Borges:

"Nós, com palavras de Borges a outro poeta, também prematuramente falecido, expressa- mos nossa tristeza e nossa impotência diante da sua morte:

O que nossa voz poderá contestar Ao confirmado pela dissolução, pela lágrima, pelo mármore".

Borges, um crítico do nacionalismo de Pe- rón, tornou-se o principal representante da Li- teratura argentina. Muitos o veem como o mais argentino dos escritores. É recorrente as livra- rias argentinas terem uma seção destinada ex- clusivamente ao escritor. Na Argentina, Borges talvez seja um dos melhores exemplos de como a nacionalidade pode ser vista e sentida de di- ferentes maneiras.


Braden ou Perón!
Perón começou a se destacar politicamente no Grupo de Oficiais Unidos (GOU), fundado em 1943. O GOU era formado por militares nacionalistas e autoritários, simpatizantes do Eixo, do nazi-fascismo, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Perón esteve na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler cumprindo programas de cooperação militar.

Em 1943, o GOU liderou um golpe de Estado na Argentina. No governo de Edelmiro Farrell (1944-1946), segundo presidente a assumir após o golpe, Perón tornou-se Vice-Presidente, Ministro da Guerra e Secretário do Trabalho, cargo no qual implantou várias medidas sociais e trabalhistas graças a uma confortável situação econômica vivida pelo país. Em 1945, com a derrota dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial, a ditadura se enfraqueceu e convocou eleições para fevereiro de 1946. Os candidatos foram Perón e José Tamborini (1886-1955), apoiado pela oposição à ditadura de 1943. Na campanha, Tamborini associava Perón ao nazi-fascismo. Spruille Braden (1894-1978), embaixador dos Estados Unidos na Argentina, declarou apoio a Tamborini. A campanha de Perón passou, então, a relacionar Tamborini ao imperialismo. Os peronistas espalharam cartazes com o lema "Braden ou Perón" para mudar o foco da campanha, trocando a Segunda Guerra Mundial pela questão da soberania econômica e política. Contudo, é complicado saber até que ponto o lema "Braden ou Perón" foi decisivo para a vitória do peronismo. Se considerarmos o impacto positivo das medidas sociais e trabalhistas e o grande crescimento econômico vivido pelo país naquele momento, podemos dizer que a vitória de Perón não foi esmagadora. Dos 2.839.507 votos emitidos, Perón teve 1.487.886 (52,4%) e Tamborini alcançou 1.207.080 (42,51%).


A modernização vivida pelos argentinos na primeira metade do século XX também dificul- tou a proposta que o governo de Perón tinha para a literatura nacional. No primeiro núme- ro da revista Argentina, publicado em janeiro de 1949, Eleonora Pachecho defendeu que as crianças deveriam ler escritores argentinos e, entre os estrangeiros, preferencialmente os hispânicos. No número 3, um leitor criticou ve- ementemente a proposta de Pacheco:

"Você acredita que em pleno século XX uma criança lerá 'Las Aventuras del Cid', ou 'Las Aventuras del Quijote'. Não me faça rir senho- rita. Com duas guerras vistas se pode dizer da sacada de nossas casas e guerrilhas sem fim em outros lugares, invasões, entre outros, com os vôos dos aviões a jato, corridas de automóveis, construções monumentais e toda a atividade e dinamismo da vida moderna, você pretende tratar as crianças como se estivéssemos na Es- panha de Torquemada".

Perón tornou-se Vice-Presidente, Ministro da Guerra e Secretário do Trabalho, cargo no qual implantou várias medidas sociais e trabalhistas graças a uma confortável situação econômica vivida pelo país.

Essa modernização não esteve restrita a Buenos Aires e aos maiores centros urbanos do país. Em agosto de 1948, no número 7 da revista Tellus, publicada na cidade de Paraná, capital da Província de Entre Ríos, Maria Susana Rubio de Antelo publicou a poesia 'A Tradição'. Nela, observa-se como a modernização mudava a vida no campo e colocava em xeque a própria existência dos gaúchos, elementos centrais do hispanismo defendido pelo governo:

O nacionalismo econômico
Na economia, o governo de Perón também teve um discurso nacionalista. O governo contou com a ajuda de uma favorável conjuntura externa. A Argentina foi a grande fornecedora de carne e trigo para os europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Perón assumiu a presidência em 1946, a Argentina estava com "dinheiro em caixa". Apenas a Grã-Bretanha devia quase 2 bilhões de dólares aos argentinos! Além disso, nos primeiros anos depois da guerra, o capital internacional priorizou a reconstrução da Europa. Produtores agrícolas, industriais e comerciantes argentinos desenvolveram suas atividades sem sofrerem tanta concorrência de investidores estrangeiros. Com os recursos, o governo de Perón apoiou várias atividades econômicas, construiu obras de infra-estrutura, criou a companhia aérea "Aerolíneas Argentinas" e nacionalizou as estradas de ferro e os serviços de fornecimento de energia elétrica, telefonia e gás. A Constituição de 1949 nacionalizou o petróleo e todas as outras fontes naturais de energia. O historiador argentino Félix Luna resumiu a euforia que marcou o início do governo de Perón dizendo que "a Argentina era uma festa". Mas a festa acabou cedo demais! As inúmeras nacionalizações e o apoio a diversas atividades econômicas consumiram rapidamente as reservas. Além disso, em meados da década de 1950, a Europa já estava praticamente reconstruída e o capital externo voltou a avançar com força sobre a Argentina e a América Latina de um modo geral. Sem recursos, as empresas estatais não conseguiam se modernizar no ritmo necessário. No segundo mandato, o governo de Perón, contrariando o discurso antiimperialista e a nacionalização do petróleo determinada pela Constituição de 1949, estabeleceu um acordo com a empresa norte-americana "Standard Oil" para explorar o produto na Argentina.


"Não, não podem morrer as tradições ainda se povoam os ares de canções que evocam o passado. Há quem diga que tudo está perdido, porque já não é o pampa como antes, que por desengano, castigado e ferido, irá o gaúcho cair no esquecimento sem que ninguém alimente sua memória, borrada no presente, e que o progresso transformando o mundo desterrará o nativo".

Identidade
A forte identidade provincial foi outro obstáculo enfrentado pelo peronismo para impor um nacionalismo unificado. No século XIX, o país foi marcado pela guerra civil entre os unitários, que defendiam um governo centralizado em Buenos Aires, e os federalistas, que lutavam pela autonomia provincial. No final do século XIX, os unitários saíram vitoriosos. Porém, durante o governo de Perón, nota-se como, muitas vezes, a identidade provincial ainda predomina sobre a nacional. Os artistas e intelectuais do interior reclamavam que as oportunidades estavam concentradas em Buenos Aires e se organizaram em associações e órgãos públicos em defesa dos seus interesses. Governos provinciais realizavam eventos e concursos restritos a artistas e intelectuais que tivessem nascido ou morassem na província. Houve pressão para que governadores financiassem editoras voltadas apenas para autores locais e regionais.


Reprodução de artigo histórico, de autoria de Clodomiro Del Campo, que retrata as "raízes da nacionalidade" argentinas
Ainda havia entre as províncias inclusive questões territoriais pendentes desde o século XIX. Em 1948, o governo de Entre Ríos pressionou o Congresso Nacional para garantir a supremacia da província sobre "Las Lechiguanas", arquipélago então administrado pela Província de Buenos Aires, apesar das duas províncias serem governadas por aliados de Perón. Em tempo, as pressões de Entre Ríos somente foram atendidas na década de 1960.

É claro que a sociedade argentina mudou muito desde o governo de Perón. Também é claro que somente a História da Argentina não basta para se compreender um continente tão complexo e heterogêneo como a América Latina. Porém, neste continente onde tantas vezes o nacionalismo foi e é usado para mascarar práticas autoritárias, os exemplos que comentamos sobre o governo de Perón nos levam a repensar até que ponto um discurso nacionalista homogêneo e unificador está realmente enraizado entre os argentinos e latino-americanos.

PAULO RENATO DA SILVA é Professor Adjunto de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Porto Nacional, e Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Para saber +
Capelato, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. 2ª ed. Editora UNESP, 2009.

Neiburg, Federico. Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo. EDUSP, 1997.

Romero, Luis Alberto. História Contemporânea da Argentina. Jorge Zahar, 2006.

SARLO, Beatriz. A Paixão e a Exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros. Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

Shumway, Nicolas. A Invenção da Argentina: história da uma idéia. EDUSP; Brasília: Editora UnB, 2008.

Leituras da Historia

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