terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A vida em Auschwitz


Sem poupar detalhes, o horror do campo de extermínio nazista


Cerca de 1,5 milhão de pessoas morreram em Auschwitz, a maioria em câmaras de gás | Crédito: Domínio Público

“Arbeit machr frei” – ou “o trabalho liberta”. Era essa a inscrição na entrada do maior campo de concentração nazista. Erguido em 1940 nos subúrbios da cidade de Oswiecim, na Polônia, ele tinha três partes: Auschwitz I, a mais antiga; Auschwitz II-Birkenau, que reunia o aparato de extermínio; e Auschwitz III-Buna, com cerca de 40 subcampos de trabalho forçado. 

As primeiras vítimas do nazismo foram poloneses, seguidos de soviéticos, ciganos e prisioneiros de guerra. Em 1942, o campo voltou-se para a destruição em massa dos judeus. Lá, cerca de 1,5 milhão de pessoas morreram, a maioria em câmaras de gás. Em Auschwitz, os presos eram obrigados a usar insígnias nos uniformes conforme a categoria – “motivo político” era um triângulo vermelho; “homossexual”, um rosa. Muitos foram usados em experimentos médicos. 

No final da guerra, prevendo a vitória dos aliados, os alemães começaram a destruir crematórios e documentos enquanto evacuavam os prisioneiros. Os que não conseguiam andar foram deixados lá e liberados pelo Exército Vermelho em 27 de janeiro de 1945. Hoje, Auschwitz é um museu que preserva a memória do maior genocídio da História

Seleção dos "capazes"


Os prisioneiros chegam em trens de gado e são selecionados por médicos. Os aptos ao trabalho entram numa fila e são tatuados com um número de registro. Velhos, doentes, grávidas, crianças e a maioria dos judeus vão para outra fila, direto para a câmara de gás. Os “capazes” tomam banho de desinfecção (contra tifo), raspam o cabelo e deixam seus pertences.

Trabalho escravo



Os presos trabalham pelo menos 11 horas por dia para impulsionar a máquina de guerra alemã. Constroem prédios do campo de concentração e estradas e produzem carvão, borracha sintética, produtos químicos, armas e combustíveis em indústrias como a Krupp e a IG Farben. Embora não haja números oficiais, vários morrem de cansaço durante as obras.

Pão e sopa no almoço


A cozinha do campo prepara rações de comida três vezes ao dia, que em geral incluem um pedaço de pão, café e sopa de batata. Quem faz pouco esforço físico recebe cerca de 1300 calorias diárias. Os que trabalham pesado ingerem 1700. Após algumas semanas, essa dieta de fome leva à exaustão, deterioração do corpo e até morte.

Entre ratos

Em Auschwitz I, cerca de 20 mil presos dormem em pavilhões de tijolo. Os treliches são em número insuficiente, e um preso dorme sobre o outro. Não há banheiro nem calefação – mesmo com temperaturas abaixo de zero. Em Birkenau, os alojamentos são blocos de madeira e tijolos feitos sobre o solo úmido. Cerca de 700 pessoas ocupam cada um.

Espera congelante


Durante as assembleias de contagem, os presos ficam horas no frio, muitas vezes sem seus uniformes (calça comprida, camisa listrada e boina), esperando os nazistas decidirem quem será mandado à câmara de gás. Intelectuais, políticos e outras pessoas consideradas perigosas são fuzilados no Muro da Morte, nos fundos do bloco 11, ou enforcadas.

Matemática sinistra



Em geral, o destino de 70% dos prisioneiros é a câmara de gás. A maior parte das vítimas é trancada nua em locais fechados – os nazistas diziam que elas iam tomar banho. Dentro deles, uma tubulação expele ácido cianídrico. A morte chega, no máximo, em 10 minutos. Os corpos são depois queimados num dos cinco crematórios – juntos, podem queimar 4765 corpos por dia.
Revista Aventuras na História

Vila alemã decide manter em igreja sino presenteado por Adolf Hitler


Ele contém uma suástica e um slogan dedicado pelo Führer. Ano passado, o prefeito da cidade teve que renunciar sob suspeitas de neonazismo

Paula Lepinski e Thiago Lincolins





O polêmico sino | Crédito: Reprodução AFP / Uwe Anspach







A vila de Herxheim am Berg, Alemanha, abriga uma grande relíquia: a Igreja de São Jacó (Jakobskirche) que tem 1004 anos.


Uma parte dela, porém, é bem mais recente: desde 1934, os fieis são convocados por um sino dedicado por Adolf Hitler, com a frase Alles Fuer's Vaterland, "Tudo pela pátria". Decorado com uma suástica. 

O conselho da cidade acaba de votar por manter o sino para servir como um "lembrete do passado sombrio" do país. Segundo representantes, o sino que está na Jakobskirche seria “um ímpeto para a reconciliação e um memorial contra a violência e a injustiça”. Um memorial contando a história por trás do sino será colocado na igreja.

Em 2017, Roland Becker, o antigo prefeito da cidade, renunciou diante comentários que pareciam defender não apenas o sino, mas também a Era Nazista. Em setembro do mesmo ano, o sino foi retido e um segundo foi colocado no lugar. "A comunidade precisa de clareza sobre qual caminho iremos seguir", diz Georg Welker, atual prefeito do povoado a imprensa local. Welker apresentou a opinião de um especialista que considerou que o sino possui um valor patrimonial, devendo assim ser mantido na Igreja ou levado para um museu.
Revista Aventuras na História

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A força perene de 'Macunaíma'


Noventa anos após sua publicação, o romance segue provocador e atual em relação à forma como lida com questões brasileiras



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Narrativa foi adaptada para o cinema pelo diretor Joaquim Pedro de Andrade em 1969
PUBLICADO EM 18/02/18 - 03h00
No segundo prefácio de “Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter”, Mário de Andrade (1893-1945) destaca que o romance, considerado uma de suas obras-primas, é fruto de “pura brincadeira”. O escritor, poeta, crítico de arte e literatura, musicólogo e folclorista também revela no texto que concebeu a ficção durante suas férias, “em seis dias ininterruptos de rede”. Dessa forma, o título soa como um trabalho, sobretudo, despretensioso.

Inclusive, em outro trecho, Andrade enfatiza: “Não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão de cultura nacional brasileira. Deus me livre. É agora, depois dele feito, que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa”.

Publicado em 1928, “Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter”, que completa 90 anos, ganhou, portanto, vida própria, e, desde então, segue desenhando uma trajetória peculiar, talvez até maior do que a imaginada pelo paulistano reverenciado como um dos principais nomes do Modernismo brasileiro.

A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe observa que a amplitude da obra – constantemente ressaltada como uma das que mais reflete as nuances das bases constitutivas do Brasil –, era inevitável, tendo em vista o imenso repertório de Andrade. “Com toda a erudição, a inteligência e a criatividade que ele tinha na cabeça, não tinha como sair algo que fosse menos significativo. E, quando se escreve um texto de caráter lendário, é natural que acabe saindo nesse processo outras coisas que estão no inconsciente mesmo. Talvez, só depois, Mário de Andrade tenha descoberto que havia mais elementos no livro do que ele tinha pensado em escrever”, diz Noemi.

“O ‘Macunaíma’, pela sua força e pela figura do personagem, acabou se tornando um símbolo da índole e do destino fracassado do brasileiro”, acrescenta ela, que comenta a atualidade da obra. “O romance é perfeito para a época atual, ele nunca se desatualizou. Eu acabo concordando com a análise de Gilda de Mello e Souza, que diz que o Macunaíma é uma figura que resulta da mistura de três etnias: o branco, o negro e o índio. Ele quer sair do lugar, quer se desenraizar, quer ir para a cidade, quer ser mais esperto que as pessoas que já estão instaladas na cidade, os burgueses e os capitalistas, mas a esperteza dele, que vem da floresta, acaba sendo vencida por aquela dos donos do capital”, frisa Noemi.

Para ela, mesmo quando Macunaíma mostra-se vitorioso, o destino final dele é trágico. “Ele quer dar uma volta por cima, mas a volta por cima dele é morrer. Então, acho que isso representa a derrota do povo brasileiro, o que está acontecendo agora. A sociedade está sendo derrotada pelos acumuladores, e nós podemos até achar que somos espertos, como vimos o desfile da (escola de samba) Paraíso do Tuiuti, que é lindo e maravilhoso, mas duvido que isso vá raspar as estruturas de poder. Vai ser uma grande surpresa se o povo conseguir fazer algum protesto, algo que realmente mude o que já está instalado. Não acredito nisso, porque assim tem sido no Brasil há 500 anos”, afirma Noemi.

Eduardo Jardim, que é filósofo e autor da biografia de Mário de Andrade, “Eu Sou Trezentos”, também considera perene a relevância de “Macunaíma” para refletir outras questões, a exemplo da identidade nacional. “Toda vez que nos perguntarmos sobre a identidade do país, precisaremos voltar a ‘Macunaíma’. E toda vez que pretendermos pôr em questão essa busca de uma identidade, precisaremos também nos referir a ‘Macunaíma’. Digo isso porque se trata de um livro muito rico e complexo. Ele expressa o desejo de definir uma identidade, mas é também a confissão do fracasso dessa busca. ‘Macunaíma’ é um livro engraçado, poderoso e muito triste também. Afinal, nunca se alcança o que se buscava”, observa Jardim.

E o autor também chama atenção para o esforço de Andrade em contemplar a visão de uma unidade territorial no romance. “Ele recorre a dois procedimentos para defini-la: a desgeografização e a tradicionalização. Por meio da primeira, ele podia ir além da consideração das partes e das diferenças regionais e ver o todo. Tradicionalizando, ele podia dar conta de um tempo próprio da vida brasileira. O personagem Macunaíma viaja pelo país, desconsiderando todas as fronteiras, e viaja no tempo, desde a colônia até a atualidade de São Paulo. Mário de Andrade não busca conflitos, mas unidade, mesmo que se trate de uma unidade complexa e até díspar muitas vezes”, acrescenta ele.

Contexto. Mário de Andrade escreveu “Macunaíma” após uma viagem pela Amazônia em 1927. Ele encontra o nome do personagem, que batiza o romance, em um dos relatos do etnólogo alemão Theodor Koch-Grunberg (1872-1924), que registrou os mitos dos povos residentes na região do Alto Amazonas, desde Roraima até a Venezuela, no volume “De Roraima ao Orinoco”. Jardim localiza que o livro de Andrade faz parte de um segundo momento da trajetória do intelectual.

“Sua preocupação, desde o tempo inicial do modernismo, como na Semana de 22, foi com a modernização da produção cultural brasileira. Isso significava, para ele, incorporar nossa produção no concerto das nações cultas. O significado dessa incorporação foi revisto em 1924, não só por Mário de Andrade, mas pelos modernistas em geral. Todos passaram a defender que só era possível assegurar nossa participação no cenário moderno com uma produção com traços específicos nacionais, refletindo a vida e a cultura brasileira”, situa o especialista.

Noemi também identifica no gesto de Andrade, ao declarar uma ausência de rigor envolvida na criação de “Macunaíma”, o interesse de ele colocar em prática o projeto modernista. “‘Deseruditizar’, ‘desacademizar’, enfim, ‘desparsianizar’ a linguagem, apesar de Mário ser considerado muito erudito, era seu objetivo. ‘Macunaíma’ é uma sátira, e a linguagem do narrador é toda lúdica. A intenção dele era colocar a linguagem no nível que todos pudessem entender. Ele também insere alguns erros gramaticais propositalmente. Por exemplo, começar uma frase com pronome indireto: ‘me contaram’. Isso foi Mário que introduziu”, detalha a crítica literária.


Nova tradução para o inglês deve sair em 2019

FOTO: ACERVO PESSOAL
Katrina Dodson
Katrina Dodson afirma ter cuidado para manter os hibridismos da linguagem
Em breve, o romance de Mário de Andrade vai ganhar uma nova versão em inglês, por meio do trabalho da tradutora norte-americana Katrina Dodson, que deverá ser concluído neste ano e tem previsão de lançamento para 2019. Ela também já verteu para a língua inglesa contos de Clarice Lispector, o que lhe rendeu, em 2015, o PEN Translate Prize, um dos prêmios de tradução mais importantes dos Estados Unidos. Até o momento, “Macunaíma” havia sido traduzido apenas pelo norte-americano E.A. Goodland, há mais de três décadas. Porém, a qualidade dessa edição é questionada, principalmente, em razão da ruptura com o ritmo e o humor presentes na escrita de Andrade.

“Essa tradução também apagou inteiramente a natureza híbrida da linguagem, traduzindo toda a flora e a fauna para uma linguagem que impõe um sistema de classificação europeu em vez de indígena, e cobrindo os traços das palavras de origem bantu. Claro que muitas dessas palavras já são incorporadas no português do Brasil, o que Mário chamava de ‘brasileiro’. Porém, no livro, ele exagera a proporção das palavras de raízes não-portuguesas até que a linguagem em certos momentos fique quase incompreensível para muitos dos brasileiros. A minha tradução vai ser bem mais experimental do que a anterior, mas isso reflete o espírito vanguardista do original”, comenta Katrina.

Admiradora do romance, ela relata que “Macunaíma” é um de seus livros preferidos, e o processo de tradução a tem levado a novas descobertas. “Eu pensava que o tupi era a única língua indígena no livro, mas agora descobri que ali existem palavras de tribos como Caxinauá, Taurepang, Arekuna e Nhambiquara”, relata Katrina, que enveredou nesse projeto por iniciativa própria. A fim de compreender melhor o universo retratado por Mário de Andrade, ela, inclusive, realizou viagens pelo Brasil, após ser contemplada num programa de residência para tradutores estrangeiros viabilizado pela Biblioteca Nacional.

Um de seus maiores desafios é lidar com a complexidade linguística da obra, o que lhe exige estudos aprofundados. “E depois de toda a pesquisa, ainda tenho que fazer tudo funcionar como obra literária em inglês, que pede uma atenção cuidadosa à música e ao humor do romance, e também ao estilo e ao registro. Há tantas coisas para fazer que, cada vez que penso em tudo, fico paralisada e suspiro ‘ai, que preguiça…’”, brinca Katrina, citando uma das frases mais conhecidas do protagonista Macunaíma.

Ao comentar a possibilidade de a narrativa dialogar com leitores de outros países, ela ressalta que o contexto atual pode facilitar a compreensão da história, a seu ver, afinada com o mundo contemporâneo. “Embora ‘Macunaíma’ seja uma obra bem brasileira, ela retrata o hibridismo e as identidades contraditórias que caracterizam a condição pós-colonial de muitos países, isto é, de ter uma população que derive dos colonizadores, em termos da etnia, da linguagem e da cultura, mas que ao mesmo tempo abrange uma mistura de elementos indígenas e vindos de outros países, seja por causa da imigração ou da escravidão. Hoje estamos vivendo cada vez mais num mundo influenciado pela globalização, pela migração e pelo multiculturalismo. Acredito que os leitores atuais de ‘Macunaíma’ no exterior poderiam compreender seus temas muito melhor do que aqueles em décadas passadas, sobretudo nos Estados Unidos”, finaliza Katrina.


Obra no cinema, no teatro, nos quadrinhos e até na música

FOTO: PATRICIA BLACK/DIVULGAÇÃO
Iara Rennó
Iara Rennó lançou um disco em 2008 e estreou espetáculo dois anos depois
São diversas as criações baseadas em “Macunaíma”. Entre as adaptações mais celebradas figuram o filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade (1932- 1988), de 1969; e a montagem para o teatro de Antunes Filho, realizada em 1978. Mais recentemente, o romance de Mário de Andrade também passou a reverberar em outras linguagens, como os quadrinhos e até mesmo na música, com destaque para o disco “Macunaíma Ópera Tupi”, lançado pela cantora e compositora paulistana Iara Rennó, em 2008.

Ela frisa que esse foi um trabalho pioneiro ao explorar principalmente os recursos musicais encontrados no livro. “Ainda não havia uma proposta dedicada inteiramente à musicalidade dessa narrativa, o que para mim é algo que grita ali”, diz Iara. Ela conta que ficou quase dez anos envolvida na produção do CD e relata ter encontrado um documento no Instituto de Estudos Brasileiros, assinado por Mário de Andrade, que mostra o interesse dele em conceber uma montagem musical a partir de “Macunaíma”. “São duas páginas de um rascunho de um projeto que, de certa forma, eu me senti na incumbência de fazer, como se tivesse recebido um chamado dele”, diz a cantora, filha dos compositores Carlos Rennó e Alzira Espíndola.

Sua aproximação com a ficção se deu durante a faculdade de letras, em que aprofundou os estudos e compreendeu a importância do ritmo, das assonâncias, entre outros recursos, da prosa de Andrade. “Além disso, em vários momentos do romance, os personagens cantam, e vale lembrar que, quando o livro foi lançado, houve uma dificuldade de ele ser categorizado. Não se sabia se ele era um romance ou uma rapsódia, que segue o modelo das histórias cantadas, assim como a ‘Odisseia’ (atribuída a Homero)”, observa Iara.

Processo. Para gravar o álbum, Iara selecionou fragmentos de “Macunaíma” que foram musicados. Depois, em 2010, ela criou o espetáculo multimídia “Macunaíma no Oficina: Ópera Baile”, que estreou no Teatro Oficina Uzina Uzona. Atualmente, ela dedica-se a projetos que pretendem celebrar os dez anos do CD e os 90 do livro de Andrade e espera também vir a Belo Horizonte, apresentado-se numa versão solo ou com banda.

“Eu vou fazer o lançamento desse disco nas plataformas digitais e quero também lançar uma versão especial em vinil. Essa trabalho pode acontecer em vários formatos, desde uma aula-show à parcerias com trio ou banda e bailarinos, o que tem uma dimensão mais operística”, completa a paulistana, que ressalta a importância de “Macunaíma”.

“O livro aborda questões que nunca vão deixar de ser atuais, como aquelas ligadas a nossa cultura, que está sempre em transformação”.
Jornal O Tempo

Lampião, rei do cangaço. Exemplo de Nordestern


Guido Bilharinho

Sob o influxo da repercussão e do êxito de O Cangaceiro (1953), de Vítor Lima Barreto, gesta no decorrer da década de 1950 e surge no princípio dos anos 60 o então denominado nordestern, um dos subgêneros do drama, cuja produção fílmica se estende até o final dessa década para ressurgir, com um ou outro exemplar, nos anos 90. Configura espécie de faroeste nordestino, que, no entanto, mais se diferencia do que se identifica com o western, estadunidense ou não.

Se se descartar, por isolado, O Primo do Cangaceiro (1955), de Mário Brasine, sátira a O Cangaceiro, o nordestern tem início com A Morte Comanda o Cangaço (1960), de Carlos Coimbra (Campinas/SP, 1928-), que ainda realiza mais três filmes no gênero, Lampião, Rei do Cangaço (1962), Cangaceiros de Lampião (1966) e Corisco, o Diabo Louro (1969), cuja qualidade, registrada pela crítica da época, decresce de filme para filme ou, dito de outro modo, cujos defeitos crescem a cada filme.

Além deles, nessa mesma década, ainda são produzidos nada menos de outros onze nordesterns, a exemplo de Os Três Cangaceiros (1961, também sátira), de Vítor Lima, e de O Cabeleira (1963), de Milton Amaral, baseado no romance bomônimo de Franklin Távora, de 1876, até Quelé do Pajeú (1969), de Anselmo Duarte, e Meu Nome é Lampião (1969), de Mosael Silveira. Nesse mesmo ano surge nova sátira com Deu a Louca no Cangaço (1969), de Nélson Teixeira Mendes e Fauzi Mansur, título diretamente inspirado em Deu a Louca no Mundo (It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World, EE.UU., 1963), de Stanley Kramer.

Lampião, Rei do Cangaço ainda apresenta atributos ou menos precariedades que os congêneres que se lhe seguem.

Com base nos livros Lampião, o Rei do Cangaço, de Eduardo Barbosa, e Lampião – Capitão Virgulino Ferreira (título da 5ª edição), de Nertan Macedo, o filme de Coimbra focaliza alguns dos enfrentamentos entre o bando de Lampião e as forças policiais nordestinas, antes, porém, em poucas cenas, informa o motivo principal do surgimento dessa saga mais sanguinária que aventurosa.

O cangaço é desencadeado de maneira impetuosa a partir da grande seca de 1877/1879 que assolou o Nordeste, conforme lembra Rui Facó (Cangaceiros e Fanáticos, p. 132), agravando e exacerbando condições patrimonialistas altamente concentracionárias e excludentes da estrutura econômico-social da região, preexistindo, pois, de muito, a Lampião (Virgulino Ferreira da Silva, Serra Talhada/PE, 1898 – 1938). Foi justamente seus contatos fortuitos com um cangaceiro antes do assassínio de seu pai, que lhe teria indicado o caminho que depois seguiria, de 1917 a 1938, transformando-se no mais famoso e ousado dos cangaceiros que infestaram o Nordeste nas primeiras décadas do século XX, período em que essa prática sobremaneira se intensificou paralelamente ao fenômeno do messianismo, ambos expostos e sintetizados, já com toques de genialidade, por Gláuber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), que, todavia, por sua amplitude, abrangência, enfoque e significado não se enquadra na categoria, extrapolando-a de muito.

Já o nordestem propriamente dito não teve preocupação outra que não fosse comercial, cingindo-se nos estreitos limites da narrativa e do espetáculo cinematográfico.

Lampião, Rei do Cangaço, por isso, não ultrapassa esse nível, não portando nenhuma qualidade cultural e artística.

Contudo, expõe, com seriedade, a temática elegida, convocando para esse feito os principais atores que se destacaram no gênero, a exemplo de Leonardo Vilar (Lampião), Vanja Orico (Maria Bonita), Milton Ribeiro (um dos imediatos de Lampião, celebrizado anteriormente como ator principal de O Cangaceiro, de Lima Barreto), Glória Meneses (muito travada nesse filme de Coimbra, não repetindo a excelente interpretação de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte), Antônio Pitanga (desenvolto como sempre), Dionísio Azevedo (de destacado papel como padre no filme de Anselmo Duarte), e Geraldo del Rei.

O filme caracteriza-se, pois, dada sua finalidade congênita, pela ênfase na estória e pela narrativa linear e convencional, destituída de preocupação e elaboração artística e recriação autoral da realidade enfocada e de qualquer tentativa interpretativa do contexto, por mais tênue e longínqua que seja.

Alguns dos principais lances da saga de Lampião são nele expostos, inclusive seu comissionamento, em 1926, como capitão da Reserva do Exército para combater a Coluna Prestes, contra a qual, no entanto, não lutou, segundo Nertan Macedo porque “informado de que os oficiais pernambucanos não reconheceriam a sua patente, deixou a Coluna Prestes movimentar-se livremente” (op.cit., 5ª ed., p.144).

Já a respeito da atuação, posição e papel de Lampião, afirma Neil Macaulay: 

“Lampião não era um jagunço comum – um pistoleiro de aluguel, com vida organizada e pacífica, exceto quando chamado às armas por seu patrão – mas um cangaceiro fora de série, um bandido errante, de tempo integral. Frio e cruel, Lampião, em 1926, tinha admiradores declarados; bravo, brilhante, sempre bem vestido, era também um perfeito sanfoneiro cuja toada Mulher Rendeira transformou-se num sucesso permanente no Brasil, figurando até nas paradas de sucesso nos Estados Unidos sob o título de The Bandit. Lampião tinha todos os requisitos de um herói popular e como tal seria festejado após a sua morte. Na década de 1920, no entanto, parecia ser a verdadeira encarnação da maldade”. (A Coluna Prestes. 2ª ed. Rio de Janeiro−São Paulo, Difel-Difusão Editorial, s.d., tradução de Flora Machman, p. 186/187).

A propósito da Coluna Prestes, esse mesmo atilado brasilianist revela sua natureza e finalidade, responsáveis maiores de seu êxito, além da “coragem e a habilidade de alguns oficiais dedicados – Luís Carlos Prestes acima de todos”:

“Assim como a caminhada de Siqueira Campos ao longo da praia de Copacabana, a marcha da Coluna Prestes foi empreendida com o propósito de inspirar. A operação não era militar; não fora estabelecida para apreender ou tomar terreno, para destruir o inimigo ou sua vontade de lutar [...] só tinha por objetivo a própria sobrevivência” (op.cit., p. 229).

(do livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2009 www.institutotriangulino.wordpress.com)

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.
Revista Malabia

Prostituta não é vagabunda

O jornal Beijo da rua é um marco do movimento de conscientização sobre os direitos e a organização das profissionais do sexo

Pedro Lapera


Com o retorno dos movimentos sociais à cena política em meados dos anos 1980, um grupo socialmente invisível entra firme na luta por seu reconhecimento. Com o jornal Beijo da rua como bandeira, as prostitutas reivindicam sua legitimação na esfera pública. Os exemplares produzidos até 1993 do periódico lançado em dezembro de 1988 estão guardados na Coordenadoria de Publicações Seriadas da Fundação Biblioteca Nacional.

Fundado por Gabriela Silva Leite, a Gabi, responsável pela ONG Davida, que mais tarde lançaria a grife Daspu, e editado pelo Iser (Instituto Superior de Estudos da Religião), que tinha como coordenador Rubem César Fernandes, ativista político bastante conhecido que acolheu esta iniciativa. O objetivo do jornal era “mostrar que a prostituta não é uma vagabunda ou então o resultado do capitalismo selvagem, mas sim a linha direta de uma sociedade que morre de medo de encarar sua sexualidade e, consequentemente, se sente profundamente ameaçada quando a prostituta mostra seu rosto”.

O layout do Beijo da rua tem identificação fácil para seus leitores: na primeira página, a coluna da Gabi apresenta o novo número ao lado da seção de poesia, com vários trechos de autores célebres, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, e seus poemas sobre mulheres, prostituição e o universo do prazer. Em seguida, artigos e reportagens sobre temas relacionados à prostituição e à sexualidade: regiões das metrópoles brasileiras ocupadas por prostitutas, michês e travestis; entrevistas com profissionais falando de suas experiências na rua. Encerrando cada edição, uma seção de cartas, que evidencia a formação de uma comunidade em torno do jornal, composta de políticos, prostitutas do Rio de Janeiro e de outros estados, pesquisadores e ativistas dos direitos humanos.

Gabriela Leite qualifica a si própria e seus colaboradores como integrantes do “Exército de Brancaleone”, aludindo ao grupo de maltrapilhos criado pelo italiano Mario Monicelli no cinema. Com este espírito, o periódico questiona, desde seu primeiro número, as estruturas do poder vigente e tenta conscientizar as prostitutas da importância de participarem do jogo político, como comprovam reportagens sobre eleição de representantes, mudanças nas leis penais, civis e trabalhistas que incidem na prática da prostituição. Aliás, uma imagem que expõe a força da ideia dos “maltrapilhos” apropriando-se da cena pública é a do carro abre-alas do desfile da escola de samba Beija-Flor com centenas de figurantes vestidos de mendigos, bêbados e prostitutas, publicada no jornal e descrita na coluna da Gabi na edição de abril-maio de 1989.

Inspiração no Pasquim


Dois pontos costuram as narrativas: a violência policial e a relação entre a prática da prostituição e a ocupação de determinados espaços nas regiões urbanas. Além disso, a Aids – o grande temor dos anos 1980 – também encontra espaço nas páginas de Beijo da rua, ora como assunto de palestras destinadas ao público feminino e LGBT, ora como referência a atitudes preconceituosas, como a frase “Ih, Cazuza!”, proferida com sarcasmo contra travestis, pelo fato de o cantor ter sido a primeira personalidade a assumir publicamente ser portador do vírus.

Entretanto, o tom predominante no jornal está bem longe do pessimismo ou, ainda, da seriedade cara à militância política dos anos 1960. Inspirado em tabloides da imprensa nanica como O Pasquim, Planeta Diário e Lampião da Esquina, Beijo da rua denuncia, comemora e comunica com irreverência que marcou politicamente os anos 1980, como arma contra a cultura do autoritarismo e da sobriedade dos costumes legitimada pelo regime político que acabara de cair. Digna de registro, a reportagem “Travesti: a insustentável leveza de ser”, na qual o antropólogo Jared Jorge Braiterman, ao parodiar o título do consagrado livro de Milan Kundera, afirma que “marginalizados por aqueles que estão no poder, os travestis, apesar disso, criam identidades verdadeiramente pós-modernas no seu desafio aos limites tradicionais do masculino e do feminino, das fronteiras nacionais, da verdade e da fantasia”.

Essa afirmativa vale também para as prostitutas, uma vez que, ao questionarem a rigidez da concepção de sexualidade propagada pela moral dominante, apropriam-se do espaço urbano e passam a integrar uma cartografia afetiva que desafia os tradicionais ocupantes da cena pública. Investindo na história desta cartografia, o jornal publicou uma série de artigos assinados por Jesus Lemos sobre as zonas de prostituição no Rio de Janeiro. Dentre outras, a zona do Mangue, a Cidade Nova, a Vila Mimosa e as praças da República e Tiradentes no período compreendido entre o final do século XIX e a década de 1980.

A força retórica das páginas de Beijo da rua conseguiu superar os impasses e as crises dos anos 1990: a publicação sobreviveu e ganhou, inclusive, uma versão virtual, produzida desde 2004 pela ONG Davida. A necessidade sempre renovada de reafirmar a sexualidade como área do prazer e não das regras morais animou esta sobrevida do jornal.
Revista de História da Biblioteca Nacional

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Os sons da história


Como conhecer nosso passado através dos sons

Renato Venâncio
  • Quase todo mundo sabe que na internet é possível ter acesso a uma quantidade incrível de músicas. Poucos, porém, se dão conta de que esses acervos também podem ser úteis à pesquisa e ao ensino de História. Em parte, isso é possível graças aos sites especializados na transcrição de letras de música ou mesmo em etnomusicologia.
    WebLetras representa o primeiro caso. Esse site reúne um milhão de letras de canções e disponibiliza uma ferramenta de busca que permite a procura por palavra ou trecho das composições. Imaginem um professor enfrentando as dificuldades de ensinar aos alunos a história das camadas populares brasileiras. Uma alternativa é discutir, em sala de aula, músicas que trataram do cotidiano e das agruras dos trabalhadores. No referido site, a busca pela palavra “operário” revela centenas de letras musicais. O mesmo é constatado no site Letras.Terra, com a vantagem de o texto vir quase sempre acompanhado por vídeos.
    A discussão dos conteúdos das letras, somados ao prazer em ouvi-las é algo estimulante, tanto na pesquisa quanto no ensino de História. A exploração desses acervos pode ser feita de outras maneiras. O pesquisador pode constituir seu próprio banco de dados, reunindo letras de músicas por autor, que abordaram temas relativos às camadas populares. O site Letras.Com, por exemplo, disponibiliza 108 letras de Adoniram Barbosa e 485 de Chico Buarque.
    Nesse caso, a pesquisa pode se dedicar às condições de vida dos trabalhadores, como é o caso da moradia. Em relação a esse tema, o portal do Instituto Moreira Salles possui acervos preciosos, como os dos pesquisadores José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi, facultando a audição de milhares de músicas, muitas delas com o título “favela”.
    No campo da etnomusicologia, a principal preocupação diz respeito à contextualização do registro sonoro. Para os professores, esse tipo de enfoque é muito útil. Todos aqueles que enfrentaram o desafio de discutir “História da África” com os alunos conhecem a dificuldades em se encontrar bons exemplos sobre a diversidade cultural desse continente. Ora, um meio de superar isso é recorrendo aos arquivos sonoros e visuais do site World Music Collection, da Wesleyan University. Através dessa coleção, é possível conhecer tradições musicais de várias regiões africanas.
    A consulta aos verbetes de alguns dos instrumentos, como é o caso do Axatse ou do Jembe, também permite que se compreenda a origem de certas tradições musicais brasileiras, 
    Ainda no campo da etnomusicologia, é importante saudar a iniciativa da Fundação Nacional do Índio (Funai), que, em seu portal, na página intitulada “Índios do Brasil”, disponibiliza “Sons Indígenas” de povos tupi e macro-jê. Enfim, os arquivos musicais são poderosos aliados dos professores de História.

    Renato Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto
  • Revista de História da Biblioteca Nacional

Ovo que vem de longe

A troca de guloseimas durante a Páscoa é muito comum, alem de ser uma tradição muito antiga, que nos remete à Europa do século XIII

Equipe RHBN

Coelhinho da Páscoa, o que trazes pra mim?
Um ovo, dois ovos, três ovos assim
Coelhinho da Páscoa, que cor eles têm?
Azul, amarelo e vermelho também.


A quadrinha popular que se ouve na voz da criançada com a proximidade da Páscoa anuncia a troca de guloseimas no domingo que encerra a Semana Santa. A tradição é antiga na Europa, remonta ao século XIII, quando os estudantes da Universidade de Paris, após entoarem salmos e cânticos de louvor a Deus em frente à catedral, saíam, organizados em procissão, recolhendo presentes. As ofertas, especialmente ovos, eram distribuídas para parentes, amigos e vizinhos. Os ovos, tingidos de azul ou vermelho, simbolizavam o renascimento, a ressurreição e a imortalidade.

Confeccionados em madeira ou argila, com o tempo eles passaram a ser pintados e decorados com requinte. No Brasil, o costume de receber e distribuir ovos de Páscoa data apenas dos anos 1920, introduzido pela colonização alemã nas cidades do Sul. Aos poucos, a prática se espalhou em massa de chocolate pelas confeitarias do resto do país, para o pecado de todos.
Revista  de História da Biblioteca Nacional