1° de julho de 1501
Nesta era das navegações, velhos dogmas desabam e as fronteiras do conhecido são empurradas
Que tempos extraordinários estamos vivendo, nesta metade do segundo milênio da era cristã. O mundo que conhecemos muda à chegada de cada nau que sobrevive aos perigos das expedições marítimas. Carregadas de ouro da Guiné ou de pimenta das Índias, as embarcações trazem uma mercadoria mais preciosa ainda: a informação. É com base nela que sabemos como as fronteiras do planeta se alteram, abarcando confins nunca dantes imaginados. Dogmas antigos desabam, o que parecia sólido se desmancha no ar. Com um misto de espanto diante das velhas certezas desmentidas e orgulho com os feitos desta era dos descobrimentos, o novo se instala, em nossos mapas e em nossa mente. O retorno da nau do capitão-mor Pedro Álvares Cabral, enviado em missão às Índias, marcou na semana passada um desses momentos históricos, cujo alcance mal começamos a imaginar. Na viagem de ida ao Oriente, a esquadra de Cabral aportou numa terra desconhecida, na misteriosa banda ocidental do mar Oceano. Suas dimensões ainda são ignoradas, mas o rei de Portugal já pode acrescentar a seu patrimônio, em bens e títulos, mais um troféu.
A nova terra empurra mais para adiante ainda os limites do mundo desbravado nas últimas décadas pelos navegadores. Inéditas na história humana, por suas proporções, as conquistas da navegação nasceram da necessidade: conseguir acesso alternativo às riquezas do Oriente, bloqueadas por terra pelos países onde reina a bandeira do Islã. Para forjá-las, combinaram-se à expectativa de lucro – esse elemento tão incentivador – a audácia de desafiar o desconhecido, um sincero desejo de propagar a fé cristã e os avanços tecnológicos que nos permitem navegar em mar aberto. Foi assim que rompemos as barreiras da geografia e da própria mente. Basta olhar como pensávamos ser o mundo até pouco tempo atrás: os mares não se comunicavam, a maior parte do planeta era coberta por terra, ninguém jamais sairia com vida da zona tórrida que inflamava a linha do Equador. A idéia de existir gente habitando o outro lado da Terra, os chamados antípodas, desafiava a própria Bíblia (pois não podiam ser descendentes de Adão). Quem a defendesse, mais do que ao ridículo intelectual, se arriscava à fogueira da Inquisição.
Todas essas certezas foram demolidas. Há treze anos o navegador Bartolomeu Dias contornou a ponta da África; Vasco da Gama levou a viagem até as Índias a bom termo uma década depois. Entre os dois, o genovês Cristóvão Colombo, embora imaginasse erroneamente estar chegando às Índias, aportou numa nova terra, muito parecida com a encontrada ao sul do Equador por Pedro Álvares Cabral. O novo mapa-múndi, que já começa a ser traçado pelos cosmógrafos, saiu da experiência desses homens, não de suposições baseadas em ensinamentos nunca comprovados ou interpretações teológicas.
Temos hoje a inebriante sensação de que podemos dominar esse admirável mundo novo e devassar os mistérios da natureza. Ao lado das expedições marítimas, acontecem outras viagens em direção ao conhecimento e à ruptura com o que parecia intocável. Ancorado na Itália, um movimento de renascimento cultural, de caráter humanista, irradia-se pela Europa. Lideranças da Igreja são alvo de críticas sem precedentes à sua corrupção, licenciosidade e afastamento das bases da doutrina cristã. A estrutura do corpo humano é dissecada nos estudos de anatomia, em benefício dos médicos e dos artistas. Pintores geniais, como o florentino Leonardo da Vinci, avançam na ciência da perspectiva, abrindo com suas obras janelas para um mundo em mutação. Com os progressos da imprensa, a divulgação do conhecimento é cada vez mais rápida.
Espremido no canto ocidental da Europa, pequeno, sem grandes riquezas, Portugal está plantado no centro dessas revoluções. Foi aqui que brotou o ímpeto de nos lançarmos aos mares desconhecidos e aqui se desenvolveu a ciência náutica que por eles nos conduz. Homens humildes, analfabetos, transformam-se em gigantes da navegação. Fidalgos habituados às doçuras da vida na corte enfrentam os perigos, as doenças e as misérias do cotidiano de bordo. Navegadores consagrados, que poderiam deitar-se sobre os louros das conquistas já alcançadas e das generosas pensões reais, fazem-se ao mar novamente. Querem ir além, sempre mais adiante. Se mais mares houver, nunca antes navegados, lá chegarão.
Revista Veja
Nesta era das navegações, velhos dogmas desabam e as fronteiras do conhecido são empurradas
Que tempos extraordinários estamos vivendo, nesta metade do segundo milênio da era cristã. O mundo que conhecemos muda à chegada de cada nau que sobrevive aos perigos das expedições marítimas. Carregadas de ouro da Guiné ou de pimenta das Índias, as embarcações trazem uma mercadoria mais preciosa ainda: a informação. É com base nela que sabemos como as fronteiras do planeta se alteram, abarcando confins nunca dantes imaginados. Dogmas antigos desabam, o que parecia sólido se desmancha no ar. Com um misto de espanto diante das velhas certezas desmentidas e orgulho com os feitos desta era dos descobrimentos, o novo se instala, em nossos mapas e em nossa mente. O retorno da nau do capitão-mor Pedro Álvares Cabral, enviado em missão às Índias, marcou na semana passada um desses momentos históricos, cujo alcance mal começamos a imaginar. Na viagem de ida ao Oriente, a esquadra de Cabral aportou numa terra desconhecida, na misteriosa banda ocidental do mar Oceano. Suas dimensões ainda são ignoradas, mas o rei de Portugal já pode acrescentar a seu patrimônio, em bens e títulos, mais um troféu.
A nova terra empurra mais para adiante ainda os limites do mundo desbravado nas últimas décadas pelos navegadores. Inéditas na história humana, por suas proporções, as conquistas da navegação nasceram da necessidade: conseguir acesso alternativo às riquezas do Oriente, bloqueadas por terra pelos países onde reina a bandeira do Islã. Para forjá-las, combinaram-se à expectativa de lucro – esse elemento tão incentivador – a audácia de desafiar o desconhecido, um sincero desejo de propagar a fé cristã e os avanços tecnológicos que nos permitem navegar em mar aberto. Foi assim que rompemos as barreiras da geografia e da própria mente. Basta olhar como pensávamos ser o mundo até pouco tempo atrás: os mares não se comunicavam, a maior parte do planeta era coberta por terra, ninguém jamais sairia com vida da zona tórrida que inflamava a linha do Equador. A idéia de existir gente habitando o outro lado da Terra, os chamados antípodas, desafiava a própria Bíblia (pois não podiam ser descendentes de Adão). Quem a defendesse, mais do que ao ridículo intelectual, se arriscava à fogueira da Inquisição.
Todas essas certezas foram demolidas. Há treze anos o navegador Bartolomeu Dias contornou a ponta da África; Vasco da Gama levou a viagem até as Índias a bom termo uma década depois. Entre os dois, o genovês Cristóvão Colombo, embora imaginasse erroneamente estar chegando às Índias, aportou numa nova terra, muito parecida com a encontrada ao sul do Equador por Pedro Álvares Cabral. O novo mapa-múndi, que já começa a ser traçado pelos cosmógrafos, saiu da experiência desses homens, não de suposições baseadas em ensinamentos nunca comprovados ou interpretações teológicas.
Temos hoje a inebriante sensação de que podemos dominar esse admirável mundo novo e devassar os mistérios da natureza. Ao lado das expedições marítimas, acontecem outras viagens em direção ao conhecimento e à ruptura com o que parecia intocável. Ancorado na Itália, um movimento de renascimento cultural, de caráter humanista, irradia-se pela Europa. Lideranças da Igreja são alvo de críticas sem precedentes à sua corrupção, licenciosidade e afastamento das bases da doutrina cristã. A estrutura do corpo humano é dissecada nos estudos de anatomia, em benefício dos médicos e dos artistas. Pintores geniais, como o florentino Leonardo da Vinci, avançam na ciência da perspectiva, abrindo com suas obras janelas para um mundo em mutação. Com os progressos da imprensa, a divulgação do conhecimento é cada vez mais rápida.
Espremido no canto ocidental da Europa, pequeno, sem grandes riquezas, Portugal está plantado no centro dessas revoluções. Foi aqui que brotou o ímpeto de nos lançarmos aos mares desconhecidos e aqui se desenvolveu a ciência náutica que por eles nos conduz. Homens humildes, analfabetos, transformam-se em gigantes da navegação. Fidalgos habituados às doçuras da vida na corte enfrentam os perigos, as doenças e as misérias do cotidiano de bordo. Navegadores consagrados, que poderiam deitar-se sobre os louros das conquistas já alcançadas e das generosas pensões reais, fazem-se ao mar novamente. Querem ir além, sempre mais adiante. Se mais mares houver, nunca antes navegados, lá chegarão.
Revista Veja
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