CASTOS ESPOSOS
Além desse conformismo voluntarista em que se transformou, havia uma afinidade mais autêntica entre o estoicismo e a nova moral conjugal. Esta já não prescrevia executar com doçura certo número de tarefas conjugais, mas viver como casal ideal, por meio de um sentimento de amizade constantemente posto à prova que bastaria para ditar deveres. Ora, o estoicismo era uma doutrina da autonomia moral, do controle do indivíduo racional sobre si mesmo, do interior; só é preciso que esse indivíduo preste incessante atenção em todos os detalhes da rota da vida.
Disso decorrem duas consequências: o conformismo estoico vai retomar em todo o seu rigor a instituição matrimonial e agravá-la, exigindo dos esposos que controlem o menor gesto e que antes de ceder ao menor desejo possam demonstrar que tal desejo se fundamenta na razão.
Base da instituição: é preciso casar, ensina Antipater de Tarso, para dar cidadãos à pátria e porque a propagação da espécie humana está em conformidade com o plano divino do universo. O fundamento do matrimônio, ensina Musônio, é a procriação e a ajuda mútua entre os esposos. O adultério constitui um roubo, ensina Epicteto; roubar a mulher do próximo é tão indelicado quanto tirar a porção de porco servida ao vizinho de mesa. "Quanto às mulheres, é a mesma coisa: as porções foram distribuídas entre os homens." O casamento, diz Sêneca, consiste em uma troca de obrigações, desiguais, talvez, mas diferentes, sendo a da mulher obedecer. Marco Aurélio, imperador estoico, congratula-se por haver encontrado na imperatriz "uma esposa tão obediente". Sendo os dois cônjuges agentes morais e havendo um contrato mútuo, o adultério do marido será considerado tão grave quanto o da mulher (ao contrário da velha moral, que julgava as falhas não segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se inscrevia o privilégio dos machos).
Agravamento da instituição, como vemos. Pois, sendo o casamento uma amizade, os esposos devem fazer amor apenas [pág. 54]
para ter filhos e sem se acariciarem demais; não se deve tratar a esposa como amante, assevera Sêneca, depois citado e aprovado por são Jerônimo. E seu sobrinho Lucano era da mesma opinião. Escreveu uma epopeia, espécie de romance histórico realista, em que relata, a sua maneira, a guerra civil entre César e Pompeu. Mostra Catão, modelo de estoico, despedindo-se da esposa (a mesma que fora emprestada temporariamente a um amigo), pois parte para a guerra: na véspera de tal separação, não fazem amor — Lucano tem o cuidado de registrar e explicar o significado doutrinal. E o próprio Pompeu, quase grande homem, também não se deita com a esposa no momento da despedida, embora não fosse estoico. Por que tal abstinência? Porque um homem de bem não vive de maneira inconsequente e vigia seus menores gestos; ora, ceder ao desejo é um gesto imoral; só há um motivo razoável para se deitarem juntos: a concepção. Trata-se menos de ascetismo que de racionalismo. A razão se pergunta: "Por que fazer isso?". Contraria sua natureza planificadora dizer: "Afinal, por que não fazer?". O planismo estoico tem, portanto, enganosa semelhança com a ascese cristã. No entanto o cristianismo não é um monólito; em seus primeiros séculos evoluiu muito mais que o estoicismo. Além disso, é muito diverso. O cristão Clemente de Alexandria foi influenciado pelo estoicismo a ponto de recopiar prescrições conjugais do estoico Musônio, sem mencionar o verdadeiro autor. São Jerônimo teria achado essa doutrina demasiadamente sensual. Quanto a santo Agostinho, um dos mais prodigiosos inventores de ideias que o mundo já conheceu, achou mais simples inventar sua própria doutrina do casamento.
Como vemos, não é preciso raciocinar por imagens e opor a moral do paganismo à moral cristã; as verdadeiras cisões estão alhures: entre uma moral de deveres matrimoniais e uma moral interiorizada do casal; esta última, nascida não se sabe onde no interior do paganismo, é comum ao paganismo a partir do século II de nossa era e à parte do cristianismo que se acha sob influência estoica; o estoicismo julgou que essa moral, sendo a moral por excelência, era necessariamente a sua. Afirmar, [pág. 55]
com razão, a identidade da moral pagã tardia e de quase toda a moral cristã não significa confundir paganismo e cristianismo, mas volatilizá-los a um e outro; não se deve refletir sobre essas grandes máquinas de imagens, e sim abri-las para ver funcionar no seu interior os mecanismos mais ardilosos, que não concordam com os cortes tradicionais.
Há mais: uma moral não se reduz ao que manda fazer; mesmo que as regras conjugais de uma parte do paganismo e de uma parte do cristianismo sejam textualmente as mesmas, o jogo não se realizou. Em certa época, pagãos e cristãos igualmente dizem: "Não façais amor a não ser para ter filhos". Tal proclamação no entanto não tem as mesmas consequências se é feita por uma doutrina de sabedoria que dá a indivíduos livres, para sua autonomia neste mundo, conselhos que seguirão como pessoas autônomas, caso os achem convincentes; e se a mesma proclamação é feita por uma Igreja todo-poderosa que entende governar as consciências para sua salvação no além e deseja legislar sobre todos os homens, sem exceção, estejam eles convencidos ou não. [pág. 56]
Disso decorrem duas consequências: o conformismo estoico vai retomar em todo o seu rigor a instituição matrimonial e agravá-la, exigindo dos esposos que controlem o menor gesto e que antes de ceder ao menor desejo possam demonstrar que tal desejo se fundamenta na razão.
Base da instituição: é preciso casar, ensina Antipater de Tarso, para dar cidadãos à pátria e porque a propagação da espécie humana está em conformidade com o plano divino do universo. O fundamento do matrimônio, ensina Musônio, é a procriação e a ajuda mútua entre os esposos. O adultério constitui um roubo, ensina Epicteto; roubar a mulher do próximo é tão indelicado quanto tirar a porção de porco servida ao vizinho de mesa. "Quanto às mulheres, é a mesma coisa: as porções foram distribuídas entre os homens." O casamento, diz Sêneca, consiste em uma troca de obrigações, desiguais, talvez, mas diferentes, sendo a da mulher obedecer. Marco Aurélio, imperador estoico, congratula-se por haver encontrado na imperatriz "uma esposa tão obediente". Sendo os dois cônjuges agentes morais e havendo um contrato mútuo, o adultério do marido será considerado tão grave quanto o da mulher (ao contrário da velha moral, que julgava as falhas não segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se inscrevia o privilégio dos machos).
Agravamento da instituição, como vemos. Pois, sendo o casamento uma amizade, os esposos devem fazer amor apenas [pág. 54]
para ter filhos e sem se acariciarem demais; não se deve tratar a esposa como amante, assevera Sêneca, depois citado e aprovado por são Jerônimo. E seu sobrinho Lucano era da mesma opinião. Escreveu uma epopeia, espécie de romance histórico realista, em que relata, a sua maneira, a guerra civil entre César e Pompeu. Mostra Catão, modelo de estoico, despedindo-se da esposa (a mesma que fora emprestada temporariamente a um amigo), pois parte para a guerra: na véspera de tal separação, não fazem amor — Lucano tem o cuidado de registrar e explicar o significado doutrinal. E o próprio Pompeu, quase grande homem, também não se deita com a esposa no momento da despedida, embora não fosse estoico. Por que tal abstinência? Porque um homem de bem não vive de maneira inconsequente e vigia seus menores gestos; ora, ceder ao desejo é um gesto imoral; só há um motivo razoável para se deitarem juntos: a concepção. Trata-se menos de ascetismo que de racionalismo. A razão se pergunta: "Por que fazer isso?". Contraria sua natureza planificadora dizer: "Afinal, por que não fazer?". O planismo estoico tem, portanto, enganosa semelhança com a ascese cristã. No entanto o cristianismo não é um monólito; em seus primeiros séculos evoluiu muito mais que o estoicismo. Além disso, é muito diverso. O cristão Clemente de Alexandria foi influenciado pelo estoicismo a ponto de recopiar prescrições conjugais do estoico Musônio, sem mencionar o verdadeiro autor. São Jerônimo teria achado essa doutrina demasiadamente sensual. Quanto a santo Agostinho, um dos mais prodigiosos inventores de ideias que o mundo já conheceu, achou mais simples inventar sua própria doutrina do casamento.
Como vemos, não é preciso raciocinar por imagens e opor a moral do paganismo à moral cristã; as verdadeiras cisões estão alhures: entre uma moral de deveres matrimoniais e uma moral interiorizada do casal; esta última, nascida não se sabe onde no interior do paganismo, é comum ao paganismo a partir do século II de nossa era e à parte do cristianismo que se acha sob influência estoica; o estoicismo julgou que essa moral, sendo a moral por excelência, era necessariamente a sua. Afirmar, [pág. 55]
com razão, a identidade da moral pagã tardia e de quase toda a moral cristã não significa confundir paganismo e cristianismo, mas volatilizá-los a um e outro; não se deve refletir sobre essas grandes máquinas de imagens, e sim abri-las para ver funcionar no seu interior os mecanismos mais ardilosos, que não concordam com os cortes tradicionais.
Há mais: uma moral não se reduz ao que manda fazer; mesmo que as regras conjugais de uma parte do paganismo e de uma parte do cristianismo sejam textualmente as mesmas, o jogo não se realizou. Em certa época, pagãos e cristãos igualmente dizem: "Não façais amor a não ser para ter filhos". Tal proclamação no entanto não tem as mesmas consequências se é feita por uma doutrina de sabedoria que dá a indivíduos livres, para sua autonomia neste mundo, conselhos que seguirão como pessoas autônomas, caso os achem convincentes; e se a mesma proclamação é feita por uma Igreja todo-poderosa que entende governar as consciências para sua salvação no além e deseja legislar sobre todos os homens, sem exceção, estejam eles convencidos ou não. [pág. 56]
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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