quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Descobrimento - A Crônica do achamento

1° de julho de 1501
Escrivão renomado, Pero Vaz de Caminha põe beleza, admiração e confiança no relato de uma viagem sem par

O brasão da família Caminha: morte cruel em Calicute

Muitos caminhos e muitas terras estão sendo visitados pela primeira vez nestes tempos. Nenhum contou com descrição mais primorosa e admiração mais explícita do que Santa Cruz, a terra que o capitão Pedro Álvares Cabral descobriu e à qual seu escrivão, Pero Vaz de Caminha, deu vida em sete folhas de papel cobertas de escrita miúda. A visão do Monte Pascoal e, depois, dia a dia, o contato dos portugueses com a terra desconhecida são descritos com tal riqueza e profusão de detalhes que, ao fim, Caminha pede ao rei perdão "se a algum pouco alonguei". Não precisava – nada é demais sobre esse lugar tão estranho, com sua gente nua e pintada.

Natural do Porto, Pero Vaz vem de família burguesa de boa cepa. Escrivão, filho de escrivão, cuidava no Porto de anotar as taxas e os impostos devidos ao Tesouro do reino, como mestre da Balança da Moeda. Fiel servidor e cavaleiro dos últimos três reis, aos 50 anos, já avô, viu-se convocado pelo atual soberano para escrivão da nau de Cabral (cada navio tinha o seu, para anotar receita, despesa e falecimentos). Quando a expedição chegasse a termo na Índia, deveria ocupar o mesmo posto na feitoria portuguesa em Calecute. A missão acabou em tragédia. Ao cabo de três mesec, a feitoria foi atacada e seus 50 ocupantes, entre eles Pero Vaz de Caminha, massacrados diante dos olhos do capitão Cabral, ancorado a pouca distância dali. Caminha morreu sem saber que, em reconhecimento a seu valor, dom Manuel decidiu acatar o pedido anotado nas últimas linhas – perdoar e dar por encerrado o exílio de seu genro Jorge de Osório. Leia a seguir os trechos mais importantes da carta sobre o descobrimento da nova terra, avistada pela primeira vez na quarta-feira, 22 de abril de 1500:

"À quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em direito da boca dum rio. E dali houvemos vista de homens, que andavam pela praia, obra de sete ou oito. E o capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho, para ver aquele rio. E tanto que ele começou para lá ir, acudiram pela praia homens, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos; e eles os puseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves compridas com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu continhas brancas, miúdas.



A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços debaixo furados e metidos por eles ossos de osso branco. Os cabelos seus são corredios, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela, mui basta e mui cerrada. O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço. E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão por essa alcatifa. Entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs olho no colar do capitão e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata.

Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, mel e figos; não quiseram comer daquilo quase nada. E alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Troxeram-lhes vinho por uma taça, mal lhe puseram assim a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água, tomaram dela bocados e não beberam. Somente lavaram as bocas e lançaram fora. E então estiraram-se assim de costas na alcatifa, a dormir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr às cabeças coxins e o da cabeleira procurava assaz por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto em cima e eles consentiram e dormiram.

Ao sábado pela manhã, mandou o capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar camisas novas e carapuças vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso, que eles levavam nos braços. E mandou com eles para ficar lá mancebo degredado, a que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneira; e a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim direitos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pusessem os arcos e eles os puseram e não se afastavam muito. E, mal puseram seus arcos, então saíram os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.

Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu, a qual disse o padre frei Henrique. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os de ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaram-se. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Foram alguns, em nós aí estando, buscar marisco e não o acharam. E acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho.

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diego Dias, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita.

À segunda-feira, depois de comer saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos e estiveram assim um pouco afastados de nós. E depois, poucos e poucos, misturaram-se conosco e abraçavam-nos e folgavam e alguns deles se esquivavam logo. Neste dia, os vimos de mais perto e mais à nossa vontade, por andarmos todos quase misturados. E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem andar lá entre eles. Foram a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que era tão comprida cada uma como esta nau capitânia. E eram de madeira, e das ilhargas, de tábuas, e cobertas de palha. Tinham dentro muitos esteios e de esteio a esteio uma rede, em que dormiam, e, debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma em um cabo e outra no outro. E diziam que, em cada casa, se acolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda que eles tinham, a saber: muito inhame e outras sementes, que na terra há, que eles comem. E, como foi tarde, fizeram-nos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nenhum.

À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram-se logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz dum pau que se ontem para isso cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros e creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro, com que a faziam, que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja.

À quarta-feira não fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo quase pela manhã e fomos em terra por mais lenha e água. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles e daí a pouco começaram de vir; e parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam alguns deles vinho e outros o não podiam beber, mas parece-me que se lho avezarem, que o beberão de boa vontade. E andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.

Quando saímos do batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos, para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim o fizemos. E esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhes que fizessem assim e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece. Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz para ser melhor vista. Chantada a cruz com as armas e divisa de Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos, assim como nós.

Esta terra, Senhor, me parece que será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa; traz ao longo do mar grandes barreiras, e a terra muito cheia de grandes arvoredos; é toda praia muito formosa. Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro. Porém, a terra, em si, é de muito bons ares. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta vossa terra vi. E, se a algum pouco alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo. E, pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé Jorge de Os&oacete;rio, meu genro, o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, de vossa ilha da Vera Cruz, hoje sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."

Revista Veja

Um comentário:

CARLA FABIANE... disse...

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Aspiração

Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição humano e alma.