sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL


A terra das coisas trocadas
STUART SCHWARTZ
a ''privatização'' não é novidade na história do Brasil. Na verdade, a privatização dos poderes políticos e econômicos foi apontada por vários observadores como a causa dos problemas brasileiros ao longo de quase 500 anos. A curiosa e quase sempre tensa relação entre vida privada e vida pública preocupou, por muito tempo, os historiadores no Brasil.
Os brasileiros têm uma longa experiência de vários governos tentando, sem sucesso, ser absolutistas ou autoritários, ao limitar e restringir a participação de seus súditos e cidadãos na vida pública, mas a experiência estende-se também a uma sociedade na qual poder e autoridade foram frequentemente uma extensão da vontade privada e do interesse das famílias de elite. Esse conflito foi especialmente verdadeiro nos tempos coloniais e os historiadores brasileiros, em vários e diferentes momentos, viam nas deficiências desta sociedade uma explicação para o rotineiro mal-estar da mesma. Capistrano de Abreu, o grande historiador do final do século, encerra seus ''Capítulos de História Colonial'' com uma triste conclusão: ''Entre o Estado e a família não se interpunham coordenadores de energia, formadores de tradição, e não havia progressos definitivos; (...) a vida social não existia, porque não havia sociedade''.
Uma tal avaliação já estava ultrapassada quando Capistrano escreveu essas palavras. Ela fora feita no ocaso da vida colonial. Em sua introdução para o primeiro volume do que promete ser um basilar trabalho de recriação histórica e um resumo da mais recente pesquisa de ponta, Fernando Novais, com seu habitual conhecimento das fontes coloniais, cita Frei Vicente do Salvador, primeiro historiador do Brasil que dizia: ''Nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa''.
''História da Vida Privada'' inspirou-se, como bem diz Novais, na ''História da Vida Privada no Mundo Ocidental'', organizada na França por Philippe Ariès e Georges Duby. Os quatro já projetados volumes sob sua direção cobrirão o cotidiano e a vida privada dos brasileiros do período colonial aos nossos dias. Se os brasileiros seguiram assiduamente os modelos europeus, poder-se-ia dizer que, quanto a esses temas, os papéis foram trocados. Muitos dos melhores historiadores _Capistrano, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda_ deram séria atenção a assuntos como a família, a vida material, os pensamentos e gestos privados, quando em outros lugares esses ainda não mereciam as devidas atenções. O presente volume mantém tal tradição. Editado por Laura de Mello e Souza, apresentado com linda capa dura, profusamente ilustrado com gravuras coloridas e muitas fotografias, o livro é não apenas o anúncio de um novo direcionamento na história do Brasil, mas também um resumo de alguns dos melhores trabalhos produzidos por uma nova geração de historiadores da sociedade e da cultura brasileiras, muitos dos quais estão aqui incluídos como autores.
O enfoque sobre a vida privada trouxe vantagens. A mudança de uma história limitada aos ''grandes homens'', à diplomacia, às batalhas e eleições foi positiva e abriu novos domínios para a história. Por exemplo, o estudo da vida privada fez muito por trazer a mulher para o cenário histórico, uma vez que a esfera doméstica sempre foi o seu território. Mas o estudo da vida privada não se fez, também, sem dificuldades teóricas e práticas. Frequentemente ele tendeu a tornar-se um estudo sobre o banal e o curioso, uma história de detalhes dispersos e efêmeros, sem qualquer relação com as estruturas políticas e econômicas da vida pública. Para encontrar um padrão coerente e a maneira pela qual estas duas esferas estariam relacionadas, a nova geração de historiadores centrou suas atenções na questão do cotidiano.
O ensaio introdutório de Novais enfrenta diretamente o problema, ao focalizar a vida privada nas suas relações com os padrões mais amplos do passado colonial: mercantilismo, exportação e escravidão. Laura de Mello e Souza seguiu uma antiga vereda aberta por Capistrano de Abreu e Alcântara Machado no seu capítulo sobre as ''Formas Provisórias de Existência'' nos pousos e arraiais do sertão. Aqui, percebem-se as cobras, as onças, o desconforto e a luta para recriar a sociedade nas fronteiras.
Leila Algranti colaborou com um artigo supostamente sobre a família e a vida doméstica, mas especialmente dedicado à morada, aos móveis e à indumentária da casa. Percebe-se, aqui, o quanto o trabalho e o dia-a-dia organizavam espaços e atividades para os diferentes gêneros; algumas áreas da casa e da vida doméstica pertenciam às mulheres, outras, aos homens. Luiz Mott escreveu um artigo excelente sobre a vida espiritual, sensível não apenas à natureza profundamente católica da sociedade colonial, mas também às vozes alternativas e práticas vindas da África ou aquelas práticas populares normalmente condenadas pela hierarquia eclesiástica. Aqui vemos os ex-votos, os feiticeiros, as donzelas recolhidas e os santos de casa (aqueles que não fazem milagres) sempre onipresentes.
Ronaldo Vainfas descreveu os vários pecados da carne e a vida erótica da colônia, na qual os padrões e práticas européias eram transformados pela miscigenação do mundo colonial. Como constata Vainfas: ''Misoginia e racismo, eis o tempero das relações pluriétnicas da colonização lusitana no Brasil''. Mary Del Priore discute os vários aspectos da vida privada, no que chama de ''ritos da vida privada'', utilizando-se do diário ainda inédito de um senhor de engenho baiano, escrito nos meados do século 18. Tais diários são muito raros e seu capítulo está cheio de informações fascinantes que vão fazer da publicação deste documento um importante evento histórico.
Os dois últimos capítulos tornam claro que a linha entre vida pública e privada não é tão clara. Luiz Carlos Vilalta examina a educação, a língua e os livros na colônia. Nesta área, o privado tende a tornar-se uma parte da esfera pública. Enquanto a educação em casa era comum, a Igreja e o Estado acabaram, várias vezes, por envolver-se com o assunto. Padre Antonil alertava os senhores de engenho que deixar crianças nos engenhos era para ''crioulos tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais que cão, cavalo e boi''. Enquanto o padre sugeria que elas fossem enviadas para morar com parentes e estudar nas cidades, a educação, ainda que nas mãos dos jesuítas ou do Estado, não era considerada exclusivamente um assunto privado. Assim, livros e leituras eram temas que abarcavam o interesse de autoridades civis e eclesiásticas. O mesmo pode ser dito do capítulo de István Jancsó sobre movimentos políticos no final do século 18, o qual busca encontrar padrões de vida privada entre aqueles que aderiram às conspirações e movimentos em prol da independência ou de mudanças radicais. Aqui também é difícil divisar onde termina a vida privada e começa a vida pública.
Ainda há muito para ser feito. Pode-se pensar em temas que teriam inspirado outros capítulos: a comida, os jardins, os animais... Os leitores também podem imaginar o quanto se deve aos viajantes (Debret, Rugendas, Bate, Martius) pelas imagens e descrições da vida privada e quão pobre é o registro iconográfico do Brasil colonial propriamente dito. São francesas quase todas as imagens sobre a atividade sexual que ilustram o capítulo de Vainfas. Mais pesquisas precisam ser feitas nas fontes locais, inventários, testamentos e registros paroquiais. Acima de tudo, precisamos ter sempre em mente as considerações teóricas e explorar a validade da divisão entre vida pública e privada, testando as idéias de Foucault e de outros, para quem a modernidade é a história da invasão da primeira pela última.
Mas a verdade é que o Brasil _e muito do mundo luso-brasileiro_ é particularmente pobre quanto às representações gráficas sobre a vida privada. A gente fica atônito com a predominância de imagens européias, sobretudo francesas, utilizadas para ilustrar aspectos da vida diária, de infrações sexuais a estilos de roupa, pois há tão pouco sobre isto no Brasil. Em Portugal, bem como no Brasil, não existiu uma tradição profana como na pintura holandesa (exceto quando os holandeses ocuparam o Nordeste), e mesmo os espanhóis, com sua tradição artística fundamentalmente religiosa, não produziram suficientes ''bodegones'' e cenas de interior para dar-nos uma idéia visual de como era a vida. O Brasil teve que esperar a abertura dos portos em 1808 e a chegada de estrangeiros _Debret, Rugendas, Chamberlain, Bate_, cujas ilustrações são tão corriqueiramente reproduzidas em livros sobre o Brasil colonial.

Stuart Schwartz é professor na Universidade de Yale (EUA).

Folha de Sao Paulo

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