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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Dom João VI, o AI-5 e a Resistência


Dom João VI, o AI-5 e a Resistência
Na luta pela independência e na superação da ditadura militar, repetem-se velhos padrões brasileiros: a tendência aos acordos conciliatórios, a recusa a mudanças radicais, uma "democracia" que esconde os conflitos. Mas há sinais de que este quadro pode estar mudando
Cláudio César Dutra de Souza, Sílvia Ferabolli


(12/02/2008)

O ano de 2008 é particularmente significativo para o Brasil. Comemoramos 200 anos da fuga da família real portuguesa à colônia, na companhia de 10 mil cidadãos influentes na corte. Também faz aniversário o AI-5 — Ato Institucional nº 5 —, que instituiu, em 1968, o que Elio Gaspari chama de "A Ditadura Escancarada".

Ao transferir a corte portuguesa para o Brasil, Dom João VI efetivamente inventou um país. Até 1808, o Brasil não passava de uma colônia extrativista, que sustentava uma monarquia atrasada e absolutista, com os dias contados na esteira das grandes modificações iniciadas com a Revolução Francesa de 1789 e as guerras napoleônicas, que reescreveram o mapa de poder na Europa. Quando retornou a Portugal, em 1821, deixando o seu primogênito, D. Pedro I, como príncipe regente, o panorama do país havia mudado radicalmente. Era o nascimento efetivo de uma proto-nação, cujo desenvolvimento posterior já nos é bem conhecido.

O AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi o mais famoso do conjunto de 17 atos institucionais e 104 atos complementares baixados a partir de 1964. Em vigor até dezembro de 1978, produziu um conjunto de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais radical do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados, a partir de meras suspeitas ou posse de materiais considerados“subversivos”.

Recordar esses dois eventos que se cruzam nesse ano é fundamental para o entendimento de estruturas fundantes de nossa história, a fim de que elas cessem de se repetir. Essas estruturas têm invariavelmente cunho autoritário e instauram novos paradigmas, que rompem antigos arranjos de forma vertical e absoluta, eclipsando, muitas vezes com violência, os movimentos sociais que se originam fora da esfera institucional do poder.

Rebeliões com escasso apoio popular: o poder colonial as sufoca, enquanto trama uma independência sem rupturas
No período colonial tivemos um série de revoltas, divididas em revoltas nativistas [1], no final do século 17 e início do século 18 (Revolta de Beckman, em 1684; Guerra dos Emboabas, 1708-09; Guerra dos Mascates, 1710-11 e Revolta de Filipe dos Santos em 1720) e revoltas emancipacionistas [2] no final do século 18 e início do 19 (Inconfidência Mineira, em 1789; Conjuração dos Alfaiates ou Inconfidência Baiana, em 1798, e a Revolução ou Insurreição Pernambucana, de 1817).

Essas insurreições foram abafadas e vencidas pela corte portuguesa. Seus líderes e principais artífices foram mortos, por vezes com crueldade, a fim de dar o exemplo à população sobre o destino daqueles que ousavam pensar de forma diferente. Na verdade, esses movimentos tiveram muito pouco daquilo que se chama “apoio popular”. O cidadão comum tocava a sua vida e esperava a resolução dos conflitos para que, por fim, organizasse as suas ações de acordo com a nova ordem estabelecida — ou, na maioria dos casos, mantida. Mais sucesso tiveram aqueles que sabiam compor com os grupos dominantes. No período regencial, não foram poucos os que, através de apoio financeiro e logístico, ganharam seus títulos de nobreza, fartamente distribuídos por Dom João VI, aproveitando-se, assim, para enriquecer às custas de bons negócios para com a corte. Nossa independência em relação a Portugal se deu por intermédio do próprio establishment português: desde a abertura dos portos na chegada da corte real em Salvador, essa já era uma seqüência histórica previsível.

Em 1964, a corte brasileira mudava de nome e adquiria quepes e fuzis. A segunda ditadura brasileira do século 20, após o Estado Novo [3], teve como mote igualmente a “ameaça comunista”.

Novamente observamos, no decorrer dos assim chamados “Anos de Chumbo”, um fato incômodo à memória daqueles que pagaram caro para o restabelecimento da normalidade democrática no país. A maioria da população manteve-se distante da luta contra a ditadura, durante a maior parte do tempo. Houve um série de negociações com os artífices do regime para que esse terminasse — não em uma implosão como sonhavam os militantes da luta armada, mas em um suspiro lacônico. A lógica da ditadura a acompanhou até o seu derradeiro momento. Parida nos anos 60, a reboque de todo um processo de blidagem da América Latina contra a "ameaça comunista", patrocinada pelos EUA, terminou nos anos 1980, quando a União Soviética já agonizava e os ventos da globalização indicavam novas estruturações econômicas e de poder pelo mundo.

Certamente, nunca foram aconselháveis, no Brasil, os enfrentamentos diretos com o poder. A oportunidade de beijar a mão do soberano gerava filas imensas no paço imperial no século 19. O monarca, representando uma figura paterna dócil e solícita, a todos recebia acompanhado de seus príncipes e nobres. Existe a tendência um tanto jocosa de entender D. João VI como um rei covarde, que fugiu de Portugal deixando seus súditos à mercê das tropas de Napoleão. Mas ele foi, igualmente, o governante que costurou o nosso estado-nação e cujos descendentes governaram o país até novembro de 1889, quando um golpe militar instituiu a República. É esse, também, o perído de formação de uma elite dirigente cujos sobrenomes permanecem até hoje dando as cartas na nossa política.

Uma "representação" que inibe autonomias, pois é quase um cheque em branco aos governantes
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Paulo Fagundez Vizentini nos informa que os militares deixaram o Brasil na posição de único país ao sul do Equador dotado de um completo e diversificado parque industrial, ao contrário de seus vizinhos do Cone Sul. A verve nacional-estatista dos militares até hoje provoca algumas nostalgias por parte de certos setores da nossa esquerda, que não podiam imaginar as metamorfoses que o capital sofreria no período democrático e que atigiriam o país em cheio a partir do governo de Fernando Collor de Mello.

É muito difícil imaginar a queda de Collor sem o apoio da mídia que o elegeu. No período em que se discutia o impeachment presidencial, a Rede Globo apresentou a minissérie “Anos Rebeldes”, que serviu de dispositivo para que pudéssemos repetir, farsescamente, o período das grandes passseatas que exigiam a queda de um governo julgado ilegítimo. Tais atos foram extremamente compensatórios para uma geração abafada e violentada pouco mais de uma década antes. Mas havia diferenças: dessa vez, o real poder e a mídia estavam ao lado e não contra os manifestantes. E estes já não precisavam se preocupar com prisões, torturas e desaparecimentos, tal qual seus companheiros da década anterior. Eram herdeiros do processo de abertura “ampla gradual e segura” iniciada pelo presidente Geisel e pelo general Golbery do Couto e Silva em 1975.

A ditadura militar planejava a sua própria retirada de cena em face das mudanças liberais que se desenvolviam rapidamente nos EUA e na Europa, tornando o nacional-estatismo militar um anacronismo impensável na nova era globalizada. Da mesma forma, ao voltar para Portugal e deixar seu primogênito, Dom Pedro I, como príncipe regente, Dom João VI já sabia que a independência do Brasil era inevitável e que o monopólio extrativista português, que já fora golpeado com a abertura dos portos, em 1808 [4], se tornaria insustentável do ponto de vista político e econômico daquele momento em diante.

Lenta, gradual e segura, esse foi o lema de nossa abertura política, até o fim do AI-5. Embora não perdoasse os praticantes de “atos terroristas”, a lei da anistia aprovada a 29 de agosto de 1979 eximia os militares de toda e qualquer culpa. Os próprios artífices da ditadura e dos abusos cometidos durante os anos de chumbo, educadamente entregaram a casa “limpa e arrumada” à democracia florescente. Foi mais uma mostra de como se faz política nesse país. Pela negociação, pelo consenso, pelas redes de cordialidade que sempre se estabeleceram entre o poder e sua resistência. Pela paciência e pela ausência de atos radicais de qualquer natureza. E também pelo dispositivo de uma democracia representativa, que em nossa realidade, significa quase um cheque em branco aos nossos reperesentantes institucionais.

Mas existe resistência, e essa se configura na forma do MST, dos movimentos negros, dos Fóruns Sociais Mundiais, dos direitos humanos, da questão indígena, entre outros, que freqüentemente sofrem a repressão e a violência policial, além da desconfiança de uma parcela significativa da população, capturada pelo discurso que criminaliza ações justas, legítimas e democráticas de fiscalização do poder e reivindicação de direitos. Que possamos depender menos dos favores da corte, de coroa, quepe ou gravata, sendo menos cúmplices de seus desmandos e da tentação de satisfazer nossas aspirações mesquinhas. Só assim evoluiremos de figurantes a atores políticos principais no teatro político de nosso país.


[1] Primeiras revoltas que aconteceram no Brasil, combatiam o domínio português. Tinham um caráter nacionalista mas não pensavam em independência, tendo como objetivo a defesa dos interesses específicos de uma determinada região da colônia contra as opressões da metrópole.

[2] As revoltas emancipacionistas reivindicavam a independência, questionando o pacto colonial, a dependência e a sujeição da colônia à metrópole.

[3] Em 1937, preparavam-se as eleições presidenciais para janeiro de 1938, quando foi denunciado pelo governo a existência de um suposto plano comunista para tomada do poder, conhecido como Plano Cohen. Esta situação criou um clima favorável para a instauração do Estado Novo, que ocorreria em novembro deste ano, durando até 1945. Foram criados nesse período o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Fábrica Nacional de Motores (FNM), entre outros. (Fonte; FGV – CPDOC)

[4] Naquele período em que a Europa estava sob o bloqueio continental, a medida efetivamente beneficiou a Inglaterra.

Le Monde Diplomatique

sábado, 11 de abril de 2009

O mal e suas raízes


Na Colônia, a busca por privilégios e distinção social criou uma nova “nobreza”. Era a origem da nossa desigualdade
Ronald Raminelli

No final de 2001, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram uma emenda para alterar a redação do artigo 53 da Constituição Federal. Depois de intermináveis debates, ficava garantido ao Supremo Tribunal Federal o poder de processar os parlamentares por crime comum, sem necessidade de licença concedida pelo Congresso.

Na época, a emenda foi considerada uma grande vitória contra a impunidade. Com o passar do tempo, porém, o entusiasmo acabou. Basta abrir os jornais para se ver que essa mudança na lei pouco coibiu os desvios perpetrados por parlamentares. Recorrendo a artimanhas legais, eles conseguem prolongar a tramitação dos processos em que são acusados ou neutralizar as sentenças que os condenam.

E a impunidade não é privilégio dos políticos. A sociedade já se acostumou a ver como os ricos e famosos conseguem viver imunes aos “rigores” da Justiça. Será que nossa História ajuda a entender como se construiu e consolidou esta situação?

Em um rápido mergulho no passado, fica evidente a instável hierarquia da sociedade luso-brasileira, numa acirrada busca por privilégios individuais que emperrava a luta em favor do coletivo. O “jeitinho brasileiro” e o hábito de “levar vantagem” não são invenções recentes – provêm da sociedade colonial.

Nada mais estranho ao Brasil Colônia, por exemplo, do que a idéia de democracia. Por mais de três séculos vivemos em uma sociedade comandada por militares e religiosos, acrescidos posteriormente de mineiros e mercadores.

Em princípio, os privilégios e as imunidades eram graças concedidas pelo rei aos seus principais aliados. Essa honra era destinada a poucos. Basicamente, aos nobres e fidalgos. Em Portugal, os fidalgos descendiam de homens leais ao rei – guerreiros que lutaram contra os mouros, ao sul, e contra os castelhanos, a leste, para expandir as fronteiras e consolidar o poder da monarquia. Esse grupo seleto recebia títulos honoríficos de duque, marquês, conde ou barão, e desfrutava dos principais cargos, além de foro jurídico privilegiado, isenção fiscal e polpudas rendas concedidas pelo monarca.

Ao contrário dos fidalgos, os nobres não contavam com antepassados ilustres para garantir seus privilégios. Para alcançar a nobreza, os súditos recorriam basicamente a duas estratégias. A primeira era tornar-se um valente guerreiro, reconhecido como tal pelo rei, para receber o foro de fidalgo ou o título de cavaleiro de uma Ordem Militar. A segunda era ingressar na Universidade de Coimbra e receber o título de bacharel em leis ou em cânones, como fizeram, por exemplo, José Bonifácio e Hipólito da Costa. Com essa formação, eles pleiteavam um posto na magistratura e tornavam-se parte da nobreza política do reino, condecorados com as benesses da monarquia.

Tanto fidalgos quanto nobres recebiam pensões e o direito a foro privilegiado caso se envolvessem em causas criminais e cíveis. Se cometessem um assassinato, por exemplo, não seriam julgados pela justiça comum, mas por seus pares.

Em terras tupiniquins, os estratos sociais tornaram-se menos rígidos, viabilizando a ascensão de indivíduos que no reino jamais alcançariam altos patamares. Portugueses conviviam com índios e negros, escravos ou forros. Mais tarde, sobretudo no século XVIII, essa composição social ficou ainda mais complexa com o surgimento dos mestiços, filhos da união entre índios, negros e portugueses.

Nem sempre os primeiros colonizadores dispunham de prestígio para receber um título de cavaleiro ou foro de fidalgo e suas respectivas imunidades e seus privilégios. Eles estavam impedidos pelo defeito de sangue ou defeito mecânico. Em Portugal e em suas possessões ultramarinas, o rei não podia conceder privilégios aos súditos de origem judaica, moura ou gentílica (negros, ameríndios e asiáticos). Mesmo demonstrando lealdade ao monarca, as “raças infectas” eram impedidas de receber as mesmas honras dos brancos católicos. Desde o século XVI, era comum o casamento entre portugueses e índias, ou entre portugueses e negras. Além da mestiçagem racial, para a Colônia vieram muitos cristãos-novos (indivíduos de origem judaica convertidos ao catolicismo), que se misturaram aos cristãos-velhos. Em princípio, todos eles estavam impossibilitados de receber benesses da monarquia devido ao sangue impuro.

Além dos impedimentos de sangue, os súditos deveriam comprovar que seus pais e avós não trabalhavam com as mãos nem exerciam ofícios mecânicos (sapateiro, latoeiro, marceneiro, etc.). Para tanto, realizavam-se investigações (as chamadas provanças) na terra natal do indivíduo que concorria a privilégios e imunidades.

No Brasil, somente uma parte minoritária dos colonos não tinha “defeito” de sangue nem “de mãos”. Com o passar do tempo, porém, formou-se uma nova elite que, mesmo sem as benesses da monarquia, acumulou riquezas e tornou-se poderosíssima: dispunha de terras, engenhos, plantações e até mesmo de exércitos particulares.

Aos poucos, o grupo se integrou à chamada “nobreza da terra”. Assim se definiam os membros da elite de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, formada por um grupo beneficiado pela monarquia e por outro que se tornou poderoso mesmo sem contar com o aval do rei. Ainda que o último não fosse oficialmente reconhecido como nobre, isso não impedia seus membros de negociar postos e benefícios com Lisboa. Os “nobres da terra” ocupavam posições de destaque nas câmaras municipais e cargos militares, controlavam as alfândegas, os recursos e o patrimônio administrado pelas Santas Casas da Misericórdia.

Esse processo era facilitado pela grande distância que separava Lisboa e as capitanias da América portuguesa. O controle do rei sobre esses potentados era atenuado. Nas capitanias mais periféricas, onde a nobreza política era uma raridade, a “nobreza da terra” tinha amplo controle sobre a população, composta de uma minoria de brancos e uma maioria de mestiços, índios, pretos alforriados e escravos.

Longe de ser uma ameaça para a autoridade da metrópole, o poder local desses capitães era indispensável à manutenção do império colonial. A monarquia perdoava seus defeitos para reforçar alianças com aqueles súditos poderosos, radicados em territórios remotos, disputados por outras potências européias. Bom exemplo foi o do filho bastardo do governador do Maranhão, o mameluco Bento Maciel Parente. Ele lutou contra os holandeses e foi agraciado pelo rei com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua participação na guerra foi tão relevante que o monarca concedeu-lhe não só o título, mas também o perdão pelos seus defeitos (bastardia e “sangue infecto”).

Nessas paragens, a ordem era imposta pelos militares. Dominando postos administrativos, terras, armas e mão-de-obra, eles freqüentemente contrariavam as leis portuguesas, mas eram tolerados devido aos postos estratégicos que ocupavam.

Quanto mais leais e úteis ao soberano, mais honra e privilégios reuniam. E essa tradição não se limitava aos portugueses e seus descendentes, pois indígenas, negros e pardos também pleiteavam benefícios. Se fossem chefes militares, melhor: consideravam-se acima das leis por contar com um trunfo valioso: a capacidade de liderar tropas e de defender os interesses régios. Por lutar na guerra contra os holandeses em Pernambuco, o chefe indígena Felipe Camarão e o líder negro Henrique Dias também receberam o perdão do rei e a promessa de pensão, cargos, título de cavaleiro e comenda (rendas provenientes da exploração territorial). Esses leais vassalos logo pleitearam ao monarca que tal patrimônio fosse herdado por seus filhos e netos. A família Camarão desfrutou desse privilégio durante cem anos.

De tão arraigada no cotidiano, a busca por privilégios sobreviveu às muitas metamorfoses do país. É possível identificá-la até hoje – como na prática de julgamento especial para policiais e militares e no direito à prisão especial para aqueles que concluíram um curso superior.

Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a desigualdade não é problema. É tradição.

Ronald Raminelli é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância (Alameda Casa Editorial, 2008).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Crimes sem castigo

Na Colônia e no Império, a impunidade atordoava autoridades e impressionava estrangeiros
Luís Francisco Carvalho Filho

A sensação de impunidade sempre existiu no Brasil. O primeiro dicionário da língua portuguesa, Vocabulario Portuguez e Latino, escrito pelo padre Raphael Bluteau e publicado em Coimbra entre 1712 e 1728, já estampava um verbete com a sua definição: “falta de castigo”, “tolerância”.

Não há estudos estatísticos capazes de comprovar a adequação deste sentimento à realidade durante os períodos colonial e imperial. Mas a preocupação de autoridades, exposta em documentos oficiais, e o relato de viajantes estrangeiros revelam que o problema da impunidade sempre esteve no centro da vida política brasileira.

Com a divisão do território em capitanias hereditárias em 1534, os governadores e seus ouvidores tinham carta-branca para julgar escravos, “gentios” (índios), “peões e cristãos e homens livres” até em caso de pena de morte. Mas a necessidade de povoar a nova colônia era mais imperiosa do que a aplicação da Justiça. A política de perdão, da tradição portuguesa, como incentivo ao povoamento, fica clara na carta de privilégio assinada na época pelo rei de Portugal, D. João III, estabelecendo que – com exceção dos crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa – nenhuma pessoa poderia aqui, em virtude dos crimes antes cometidos, “ser presa, nem acusada, nem proibida, nem forçada, nem executada, de maneira alguma”.

Duarte Coelho (1485-1554), donatário e primeiro governador da mais próspera das capitanias, Pernambuco, foi o primeiro a se queixar da vinda de degredados: "o que Deus nem a natureza remediou, como eu posso remediar, Senhor, senão com cada dia os mandar enforcar...”. Em carta a D. João III, Duarte Coelho reclamava também do comportamento dos demais governadores, que se recusavam a cumprir pedidos de prisão de infratores que se refugiavam em outras capitanias. Em 1546, ele adverte o rei sobre o perigo desse comportamento: “Os delitos e malefícios aqui cometidos, aqui hão de ser punidos e castigados. Se de minhas terras fugirem alguns malfeitores para outras, com temor do castigo, ou de outras para a minha (...) em breve tempo se despovoará o povoado e irá tudo ao través”.

A instalação do governo-geral, em 1549, tentou corrigir esse desvio com a fixação de uma autoridade suprema, Tomé de Souza (1503-1579): seu corregedor tinha a atribuição de ingressar e fazer justiça em todas as capitanias. Mas os relatos de sua administração indicam que ele também exerceu seu poder de julgar conforme as conveniências do momento.

No mesmo ano em que toma posse, Tomé de Souza ordena, sem um julgamento formal, que um índio acusado de assassinar um colono em Salvador fosse amarrado à boca de um canhão e atirado “pelos ares, desfeito em pedaços”. O simbolismo do ato seria percebido pelo inglês Robert Southey (1774-1843), no seu livro História do Brasil: “Mais humano para o padecente, mais terrível para os espectadores, não há suplício imaginável. Encheu de terror os Tupinambás e foi útil lição aos colonos”. Já no ano seguinte, ao saber da prisão de dois franceses no Sul por contrabando de pau-brasil – atividade que a Coroa considerava intolerável¬ –, Tomé de Souza decide garantir-lhes um destino bem menos drástico. Em carta ao rei, justificou-se assim: “Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro”.

É bem verdade que não faltam exemplos de punição criminal rigorosa no Brasil colonial. O navegador francês Pyrard de Laval (1570-1621), que passou pela Bahia em 1610 depois de atribulada viagem, naufrágio e prisão no Oriente, relata ter visto a forca onde teriam sido executados 13 franceses em Salvador. Alguns governantes se notabilizavam pelo empenho repressivo. Foi o caso de César de Menezes, de Pernambuco, que na segunda metade do século XVIII promoveu a captura e o enforcamento do cangaceiro José Gomes, o Cabeleira, considerado precursor de Lampião.

Mas, em geral, o rigor extremo das Ordenações do Reino de Portugal – conjunto de leis que vigorou até 1830, quando foi editado o Código Criminal do Império no Brasil – era, na prática, pouco eficaz. Essa falta de efetividade decorre de uma série de fatores, como as sistemáticas políticas de perdão, a vastidão territorial, a ausência de autoridade nas vilas, os favorecimentos pessoais. O Tribunal da Relação, instalado no século XVII na Bahia, lento e distante das outras capitanias, também foi incapaz de atender às demandas por Justiça.

As queixas a respeito da impunidade eram comuns. Em 1745, uma carta régia de D. João V explicita a falta de efetividade das Ordenações e resume o sentimento da época: “... as leis costumam ser feitas com muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração, e... nos casos crimes sempre ameaçam mais do que na realidade mandam”.

Em 1721, Rodrigo César de Menezes, governador de São Paulo, afirma ao vice-rei que matar gente é “um vício muito antigo em os naturais desta cidade”, e que mandou levantar a forca “na mesma parte em que antigamente estava”, para que, à vista dela, como um recurso de propaganda, “se pudessem abster de continuarem semelhantes delitos”.

Para pôr fim à impunidade, sobretudo nas camadas inferiores da população, Juntas de Justiça foram paulatinamente sendo criadas nas diversas capitanias, com o poder de aplicar a pena de morte. Sem direito a recurso ao Tribunal da Relação. A carta régia que instituiu a Junta de Justiça em Minas Gerais justificava-se pelos “muitos e continuados delitos que se estão fazendo (...) bastardos, carijós, mulatos e negros” porque “não viam o exemplo de serem enforcados”.

Já com a presença de D. João VI no Brasil, é criada em 1816 a Junta de Justiça do Rio Grande de São Pedro do Sul, atendendo a uma reivindicação do governador: “Nessa capitania se cometem muitos e atrozes delitos com dano dos meus fiéis vassalos... O motivo desta freqüência e multiplicidade e atrocidade de crimes é, além da ferocidade e falta de civilização de muitos dos habitantes desse vasto e ainda pouco povoado território, a impunidade dos delitos que, ou ficam de todo por punir, ou se lhes impõe as penas muito tempo depois e muito longe do lugar em que aconteceram”.

À medida que se consolidava o processo de colonização, formavam-se, principalmente nas regiões periféricas, núcleos de mandonismo local e redes de proteção. Na prática, as elites regionais conseguiam inviabilizar a aplicação da lei. Um indicador desse fenômeno é o reduzido número de execuções de pessoas integrantes da chamada “nobreza da terra”. E quando isso acontecia, eram degolados – a forca, considerada infamante, era reservada para a população comum.

A desigualdade perante a lei impressionaria viajantes estrangeiros no período imperial. O suíço Johann Jakob von Tschudi, que visitou o país na década de 1860, se pergunta: “Quantas vezes aconteceu no Brasil que um homem rico e influente tivesse sentado no banco dos réus a fim de se justificar de seus crimes?” A descrição do Poder Judiciário que faz Hermann Burmeister, naturalista alemão que viajou pelo Brasil de 1850 a 1852, também é severa: “Ninguém se peja de absolver ladrões conhecidos, assassinos notórios e defraudadores, quando o promotor os acusa, e tanto menos quando os acusados são ricos ou membros de alguma família influente”.

É que a Independência do Brasil, em 1822 e a edição dos nossos códigos, na década de 1830, não haviam mudado a situação. Em 1836, como aponta o pesquisador João Luiz Ribeiro, o Correio Oficial, que circulava no Rio de Janeiro, clamava contra a “doçura” da legislação e contra a impunidade, “tornada habitual”.

Em seu discurso de posse, Diogo Feijó, eleito regente do Império em 1835, frisava: “A impunidade deve cessar... O governo será infatigável em promover a execução das leis penais, cumpre que o cidadão pacífico, o homem honesto, não esteja a discrição do turbulento e do perverso”.

Anos mais tarde, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça do imperador Pedro II entre 1853 e 1857, empreendeu uma cruzada sem precedentes contra a impunidade. Em dois anos foram executados pelo menos 17 homens livres pela prática de homicídios. Em Um Estadista do Império (1896), Joaquim Nabuco explica a atitude do pai: “Quando a sociedade fica assim paralisada, dominada pelo poder do crime, desmoralizada por efeito da impunidade, é preciso a autoridade, de qualquer modo, quebrar o prestígio dos facínoras”.

Nabuco, conforme o relato de seu filho e biógrafo, “incitava os presidentes (das províncias) a preocuparem-se sobretudo dos resultados, a não terem escrúpulo de algum excesso que pudessem cometer”.

É a outra face da moeda da impunidade. A repressão a todo custo. Sem escrúpulos de consciência, os fins justificam os meios. Em 1877, ao falar dos métodos adotados para a extinção de um quilombo em Iguaçu, no Rio de Janeiro, o ministro da Justiça, Francisco Januário da Gama Cerqueira, explica que “na esfera da atividade da polícia nem sempre é possível proceder de modo irrepreensível perante a lei”, e que os meios empregados “não são dos mais confessáveis, mas surtiram excelente efeito”.

O sentimento de impunidade dos crimes e o arbítrio da ação policial, como mecanismo tolerado de resolução desse problema político, formam no Brasil um círculo vicioso que ainda não se desfez.

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO É ADVOGADO E ARTICULISTA DA FOLHA DE S. PAULO.

Saiba Mais:

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra, 1712-1728. Versão fac-similar no site do IEB/USP: http//www.ieb.usp.br/online/índex.asp

NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. I – Império. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1972.

NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil: Crônica dos tempos coloniais. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 1975.

Memória da Justiça Brasileira: Do condado portucalense a D. João de Bragança (Vol. 1); Da restauração portuguesa ao grito do Ipiranga (Vol. 2); Independência e constitucionalismo (Vol. 3). Salvador: Tribunal de Justiça da Bahia. Versão on-line: http://www.tjba.jus.br

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

domingo, 8 de março de 2009

O Brasil é o país da impunidade? - parte 4


"É impossível ter uma sociedade íntegra na miséria"
Cláudio Weber Abramo

Depende do que se entende por impunidade. Stricto sensu, impunidade significa que alguém é declarado culpado de algo, tem a sentença transitada em julgado, e não é punido. Essa impunidade não existe no Brasil, numa freqüência considerável.

O que as pessoas normalmente consideram impunidade é na verdade uma família de situações em que alguém é mal visto (às vezes com toda a razão) porque está sendo processado. Apesar de suspeitas e dos processos, esse indivíduo não é julgado em última instância e não se lavra contra ele uma sentença. Então não chega a ser impunidade. Mas por que as pessoas ficam indignadas? Pelas circunstâncias que cercam o funcionamento do poder judiciário — que envolve não só os tribunais, mas todo o sistema, Ministério Público, Polícia, etc. Tudo isso funciona muito mal. Uma das razões é de natureza doutrinária, interpretativa, por parte dos magistrados. É uma característica do regime jurídico romano-germânico, e isso não vai mudar. Na Itália o Judiciário sofre do mesmíssimo tipo de problema: as interpretações variam, o que leva as instâncias superiores a serem muito assediadas.

A tentativa de criar a chamada súmula vinculante, que determina que mesmo um assunto tem que ser julgado da mesma maneira nas várias instâncias, é exatamente o que os advogados não querem. E por que não querem? É um problema essencialmente econômico, não tem nada de cultural: esses meliantes profissionais que andam pela política têm grana para pagar advogado. E advogado que consegue levar um processo ao STF custa caro. Não precisa chegar longe: um funcionário público federal metido em algo bastante pesado, desde que seja de classe média-alta, não será condenado porque pode pagar um bom advogado.

Outro problema é nosso Código de Processo Penal. Ele propicia infindáveis oportunidades para que os réus interponham recursos de toda natureza, em geral meramente formais, fazendo com que o processo não ande. O jornal O Globo publicou uma estimativa de que um processo comum tem 82 oportunidades de ser contestado, em suas várias etapas e instâncias.

Em qualquer lugar do mundo, é muito improvável que um rico vá para a cadeia. Afinal vivemos em um regime que privilegia o econômico, que favorece o capital, e isso se reflete em qualquer esfera da vida. O que existe nos outros países são medidas compensatórias, como agilizar processos e propiciar mais acesso à assistência jurídica para as camadas menos abastadas. No Brasil o camarada que furta um copo de iogurte pode cumprir pena de dois anos de prisão. Não recorre, sequer sabe que pode recorrer. Claro que, neste caso, a decisão em primeira instância foi absurda. E isso é efeito da atitude do julgador perante o pobre, sabemos como são os juízes. Como combater esse problema? Com um sistema que permita a análise interna e a revisão das sentenças desses juízes: verificar como é o desempenho desse cara.

Grande parte das mazelas do setor público não diz respeito a aspectos formais, à institucionalidade dos poderes. Tem a ver, sim, com gerenciamento, gestão. O descumprimento de uma norma não é um problema legal, é gerencial. E a Justiça é extraordinariamente inadimplente nessa área.

Na sociedade existem organizações que abordam o funcionamento do poder público, de acordo com seus interesses. Algumas tentam interferir na área judicial. Há grupos de mulheres contra a violência doméstica que têm alguma eficácia, por exemplo. Quando o interesse está bem formulado, se o pessoal for organizado e minimamente informado, pode influenciar. Na Transparência Brasil, trabalhamos pelo aperfeiçoamento da integridade do Estado, para que cumpra seus objetivos. Uma Secretaria de Saúde precisa propiciar administração de saúde, gastar dinheiro de forma eficiente. Nisso entra uma parte importante de nossa missão: o combate à corrupção. Para isso, tentamos construir mecanismos de monitoramento do Estado e melhorar o acesso à informação.

A solução passa por desenvolvimento econômico, pela diminuição das disparidades de renda. À medida que a sociedade produz mais riqueza e grupos de interesse se tornam mais fortes, eles vão combater, ainda que parcialmente, a ineficiência do estado. A venda de sentenças, por exemplo, é um grave problema que preocupa setor privado. No caso de uma cláusula contratual rompida, quando leva o caso para a Justiça, o empresário fica com a dúvida: será que a outra parte vai comprar o juiz? Isso é razoavelmente comum. Então o setor privado tem todo o interesse em pressionar o Judiciário. Não pressiona porque tem receio de agastar esse poder e ter prejuízo lá na frente. O setor privado tem, tradicionalmente, uma atitude conservadora. Isto está nas raízes antropológicas do Brasil: sempre houve pouca competitividade no setor privado, oligarquias influenciando a constituição das corporações, etc.

Também depende da região do país: o setor privado no Rio é decadente e reacionário, o gaúcho ainda mais. Se pensarmos do Sudeste para cima, então chegamos à África. É um abismo econômico enorme. Somada a economia da região sul, da região sudeste e da Bahia, temos 80% do PIB brasileiro. É impossível ter uma sociedade íntegra na miséria. Não dá. Como pode um aparelho de estado funcionar direito em Rondônia, em Sergipe? As oligarquias dominam a imprensa e a política, e como não há produção econômica, todo mundo depende do Estado.

Quando dizem “O que falta é educação”, eu pergunto: para quem? Não há demanda de mão-de-obra no mercado de trabalho. Nenhuma sociedade aplica na educação se não tem mercado de trabalho. Por isso a reforma da educação depende da reforma da economia.


Revista Nossa Historia

O Brasil é o país da impunidade? - parte 3


"O clima de caça às bruxas não é próprio de um Estado democrático equilibrado"
Miguel Reale Junior

A impunidade varia de acordo com o momento histórico. No século XIX, enquanto a Europa já estava imbuída do pensamento iluminista e seus países já tinham acabado com os privilégios, o Brasil tinha até Constituição, mas continuavam os privilégios. Entre o discurso liberal e realidade liberal havia uma distância imensa. Ainda tínhamos a escravidão. Os detentores do poder que praticassem crimes contra escravos não eram punidos. Um caso histórico foi o da escrava Honorata, vítima de estupro por seu senhor. O Tribunal da Relação entendeu que ela não poderia ser representada pelo Ministério Público, porque este defendia pessoas miseráveis — e ela era miserável, mas não era pessoa. O desembargador que assinou a decisão [Freitas Henriques] seria o primeiro presidente do Supremo Tribunal Federal.

Isso muda na República, mas apenas em parte. Continuou a perseguição às classes desprotegidas, pobres, especialmente no Rio, onde se adotou uma política de tolerância zero contra capoeiristas, mendigados, bêbados, vagabundos. Sob a égide do positivismo, achavam que podiam salvar o país, torná-lo de primeiro mundo, tinham a pretensão de saber o que é o bem, o que é o bom. Isso resultou numa expressão muito forte de paternalismo jurídico — um corte por cima, nas mãos da classe hegemônica na política.

A famosa cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda se dava entre os membros da elite. Só existia enquanto não quebrasse a estrutura de poder vigente. Logicamente, isso causava injustiça.

Hoje o problema é o acesso à justiça, ainda muito restrito. É um quadro curioso: grande número de processos em andamento, mas pequeno número de partes. A maioria das ações envolve o Estado ou grandes empresas. Não existe justiça próxima do povo: as pessoas não têm advogado, assistência jurídica ou defensoria pública organizada e suficiente. Existem devotados membros da Defensoria Pública, mas eles estão sobrecarregados.

A sensação de impunidade maior, que atinge todos nós, é a violência de rua. Ela tem dois lados: a ineficiência da polícia – só 2% dos crimes de autoria desconhecida são descobertos – e a ação policial repressora. A impunidade policial leva a práticas de injustiças gravíssimas: mata inocentes e culpados sem processo. A população é tratada de forma discriminatória e violenta, o que gera uma sensação de insegurança jurídica imensa.

O clamor contra a impunidade tem levado à perseguição da classe superior, o que também provoca exageros. É como se a injustiça contra os ricos compensasse a injustiça que houve e há contra os pobres. Criam-se reações emocionais, afronta-se o estado de direito. Na mídia, na polícia, no Ministério Público, o clima de caça às bruxas não é próprio de um Estado democrático equilibrado. Não se pode utilizar esse clamor para a exploração dos sentimentos de vendetta, de ressentimento. Se for para fazer picadinho do Daniel Dantas, atual inimigo público número 1, todo mundo aplaude, pois ele representa a classe exploradora. Isso é ruim, porque não é a busca da justiça: é uma ação vingativa de toda uma história social que permeia o presente.

Caminhas lentamente, ainda. As raízes do nosso comportamento são fincadas lá atrás, na escravidão. É grande a responsabilidade dos meios de comunicação, que infelizmente são os educadores — não é mais a família, a escola, o sindicato, a igreja. É a TV. Ela cumpre um papel social na transmissão dos valores, e não é isso que dá audiência, popularidade. O nível é baixo para atender ao desejo da massa, que não está socialmente e culturalmente preparada porque não teve acesso a ensino e valores. E quando digo “massa” não me refiro à classe econômica. É “massa” no sentido de inércia. A deseducação transita da classe A à D no plano moral, ético, de valores. Somos todos iguais perante a injustiça e a barbárie.

Revista Nossa Historia

O Brasil é o país da impunidade?


"Desinteresse gera impunidade"
Tico Santa Cruz

A pessoa que comete um crime, se for de classe social alta, já conta com a impunidade, graças às brechas do sistema e da legislação criminal. A justiça está sempre aberta à interpretação da lei, e o juízes tendem a interpretar a favor de quem tem bons advogados. Há excesso de processos, muitos atrasam e vencem, e as pessoas ficam livres da punição.

Temos uma história de segregação, com relação à educação e à inclusão. Os primeiros historiadores responsáveis por escrever a História do Brasil não incluíram as raízes brasileiras, os índios e negros, não abordaram a sociedade em sua diversidade.

A legislação é escrita e mantida por quem está no poder, se beneficia da impunidade e mantém o sistema. Aqueles que deveriam ser os principais responsáveis por cuidar dos interesses de toda a nação geram mecanismos e brechas pra que eles próprios não sejam punidos ou flagrados pelas garras da lei.

E a sociedade brasileira não enxerga o que é público como responsabilidade dela. Não se enxerga como um todo, mas de forma individual. “Se não me atinge diretamente, não me interessa”. Se tenho condição de pagar plano de saúde e escola particular, se tenho um carro que me dá transporte seguro, então pouco importa se não existe educação de qualidade para todos ou se o sistema de saúde é péssimo.

O desvio de verbas públicas deveria ser motivo para uma indignação geral. Mesmo que eu não usufrua do serviço público que perde recursos para a corrupção, estou no contexto da sociedade que vai sofrer as conseqüências. Não assumir responsabilidade pelo que é público colabora para manter esse sistema como uma regra, não exceção.

Meu objetivo, ao ir a escolas, faculdades, presídios, carceragens, é tentar clarear a questão desse mecanismo: entender o que existe é o primeiro passo para se situar e ver de que forma você faz parte da engrenagem. Você vai a uma escola pública em Duque de Caxias (RJ) e descobre que ela não tem teto. E o governo vem dizer que vai colocar ar condicionado em todas as escolas. Aqueles alunos têm que ter consciência de que sua escola e o poder público estão diretamente ligados. Se eles, os alunos que usufruem do serviço, não se colocam, o paradigma se mantém. É preciso unir forças para revertê-lo, e tornar o público, público.

Não vejo outra solução que não a mobilização social. E não apenas dos setores prejudicados em algum tema específico. Você já viu passeata de professores por melhores salários? Só vão os professores! Não vão pais, alunos, médicos ou qualquer outro cidadão. Não é visto como um problema público. Quando vou a manifestações que não dizem respeito a meus interesses particulares, dizem: “o cara tá querendo aparecer”. Afinal, sou um artista, o que estou fazendo ali? Gostam de vangloriar a cultura da celebridade, que não representa nada além da própria ostentação, então interpretam que só pode haver essa lógica: chamar a atenção. Mas se houvesse vários artistas e intelectuais na mesma manifestação, eu seria só mais um. Talvez o problema não seja meu, e sim de quem não vai. O desinteresse gera impunidade.

Historicamente, quem detém o poder encontra formas de tirar a legitimidade dos movimentos sociais. Autoridades que teoricamente deveriam incentivar certos movimentos, tendem a querer tirar sua legitimidade com argumentos estúpidos. Aconteceu quando cobrávamos ações do poder público nas comunidades pobres, além da repressão — que se ofereça qualidade de vida melhor. E então o secretário nacional de Segurança, Antônio Carlos Biscaia, deu entrevista dizendo que o movimento não tinham legitimidade porque algumas pessoas usavam drogas e financiavam o tráfico. Fiz exame de sangue para mostrar que não uso, e cobrei dos representantes da Assembléia Legislativa do Rio a mesma atitude, pois também se manifestaram contra.

É uma mentalidade influenciada pelo filme Tropa de Elite, que tem argumentos totalmente estúpidos. Serve de escudo para as pessoas justificaram as falhas do sistema e jogarem a responsabilidade para o usuário de drogas. Nenhum deputado quis fazer o exame de sangue, exceto um, já idoso, que se colocou à disposição. Então quem consome drogas não tem o direito de cobrar do Estado qualquer tipo de ação? Mandei uma carta ao secretário questionando como deveria organizar uma passeata do tipo: pedindo antidoping das pessoas? Discriminar quem usa e quem não usa para poder legitimar o movimento?

Revista Nossa Historia

O Brasil é o país da impunidade? - parte 1


"O direito virou um instrumento de luta"
Marcelo Burgos

Vários estudos clássicos tratam do tema da singularidade brasileira, defendendo que a impunidade é uma herança da história colonial, que acabou dando lugar a uma relação mal resolvida entre o plano privado e o público.

A esfera do direito marcada por favorecimentos e privilégios seria quase um vício de origem de nossa formação. Entre diferentes autores, de Oliveira Viana a Sérgio Buarque de Holanda, firmou-se quase um consenso sobre essas conseqüências perversas. O plano público seria poroso a interesses particularistas. Não conseguimos criar um estado de direito universalista, não temos capacidade de construir uma sociedade igualitária, com a lei funcionando igualmente para todos, e ninguém acima dela.

Mas esta mesma bibliografia também aponta algumas mudanças em curso, mas que demandavam processos de longa duração. O próprio Oliveira Viana, ideólogo do Estado Novo, em seu último livro afirmou que não é possível modificar essa cultura política por decreto, por decisão do Estado. Isso pressupõe uma longa transformação, que nos permita viver um dia a cultura democrática, a sociedade igualitária.

A partir dos anos 1970, a modernização do país se deu numa velocidade sem paralelo no mundo. A industrialização e a urbanização transformam a estrutura social, surge uma classe operária urbana mais maciça e a subjetividade burguesa torna-se dominante, a idéia de indivíduo é afirmada. Mas tudo isso em um ambiente que limitava a sociedade de participar ativamente, de exercer direitos civis e políticos. A transformação que houve foi só no plano da economia e da sociabilidade, não no da cultura política.

Por isso a sociedade dos anos 1980 está brutalizada, não tem relação orgânica com o direito e com as instituições, nem poderia ter. Surge então uma nova agenda, e a Constituição de 1988 consegue estabelecer um nexo entre esses três planos: econômico, social e político (que é também jurídico).

A cena contemporânea aponta para uma evidente transformação. E ela vem da Constituição Federal de 1988. Até os anos 1980, nunca tínhamos vivido uma democracia. Em 88, pela primeira vez o país produzia uma Constituição num contexto de maior participação popular. E consciente de que a democracia é algo que ninguém pode ensinar, só se aprende exercitando. Trata-se de um marco valorativo de respeito aos direitos civis e às liberdades individuais, e coloca como meta a construção de uma cultura democrática.

Hoje surgem novos atores, as minorias se mobilizam, começa um processo de decantação da Constituição. O homem comum passa a se posicionar politicamente. Hoje ele anda com a Constituição Federal debaixo de um braço e a Bíblia do outro. Isso é nítido nas falas do sujeito que luta para permanecer na favela e do garoto que defende o baile funk, nas reivindicações dos gays, dos negros, das mulheres, dos deficientes. O direito virou um instrumento de luta, defesa e afirmação de segmentos marginalizados..

É um processo absolutamente novo e inédito no país, que só teve regimes autoritários ou democracias constrangidas. Não quer dizer que já tenha sido capaz de eliminar as marcas que vêm de longe: o direito como instituto de controle e de exclusão social, a serviço de uma sociedade hierarquizada. A democracia não avança por igual em todas as áreas. Uma das áreas de reiteração de padrões que vêm de longe é a Justiça Criminal. Um vestígio disso é a idéia da prisão especial. O sistema criminal precisa se tornar compatível com democracia. É preciso repensar a militarização da Polícia, e também a Polícia Civil, cujo poder ninguém controla.

O próprio Judiciário vinha passando incólume por todo esse processo. Sua participação na Constituição Federal foi corporativista. A reforma do Judiciário e do processo penal é uma dimensão importantíssima. A mudança da cultura jurídica começa pela universidade, nos cursos de Direito. Vinte anos atrás, a impunidade estava muito naturalizada, era aceita tacitamente. Professores de Direito Penal diziam, sem se dar conta da gravidade, que o Código Penal era “PPP”: para preto, pobre e prostituta. Esse cinismo atravessava as instituições todas, e deixou marcas.

A OAB tem um papel ambíguo, resiste às mudanças, age com corporativismo. A transformação na concepção do direito é um processo muito profundo. Mudanças na interpretação da lei, aqui e ali, com a construção de uma nova argumentação jurídica, acontecem no microcosmo de cada caso, de cada processo, pela cabeça de um juiz, de um promotor, pelo tom das ações civis públicas. O STF tem tido um papel interessante. Apesar de nem sempre simpático à opinião pública, como no caso da restrição ao uso de algemas, vem permitindo o avanço da universalização do direito. Tem atuado para colocar limites, preservar a liberdade.

O avanço não é em linha reta, é em zigue-zague. Mas do ponto de vista sociológico — de uma cultura do mundo popular — as reformas são inevitáveis e vêm ocorrendo. A mídia vem confrontando o Judiciário, o Ministério Público e a polícia em nome de ideais de igualdade e transparência. Está disseminado um discurso de horror ao privilégio. Criminosos de colarinho branco hoje estão presos em Bangu 8. Tem banqueiro lá, tem deputado, pessoas que há dez anos jamais se pensaria em prender.

Essa escandalização contra a impunidade só aparece quando está em curso um processo de formação de uma sociedade igualitária. É a afirmação do valor da igualdade no seio da sociedade. A atuação das polícias nas favelas, por exemplo: no calor da hora, a opinião publica acha que tem que ser assim mesmo. Mas quando acontecem chacinas como a do Alemão, no ano passado, há certo consenso de que é inadmissível.

Considero este processo irreversível. A questão é a velocidade com que vai acontecer, e os riscos contidos no que aparentemente é uma virtude. O principal risco é a criação de um estado policialesco, no qual nos tornarmos reféns do estigma contra a impunidade. Liberdade é um direito também. Não podemos viver grampeados, com escutas telefônicas e câmaras em todo lugar. Isso lembra o conto O Alienista, de Machado de Assis: de repente, todo mundo vai sendo preso. O número 2 da Polícia Federal sendo preso pelo número 1. E quem prende o número 1? O presidente da República? É preciso contrabalançar o desejo por justiça com o direito à liberdade.

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