Assassinato de Luther King desencadeia violentos distúrbios
raciais em mais de 110 cidades americanas, com bombas, saques
e incêndios. E a situação está longe de ser controlada
Washington em chamas: casas e lojas da capital americana foram incendiadas por negros no dia seguinte à morte de King
Foi necessário apenas um único tiro de rifle, preciso e letal, para fulminar uma das mais eloquentes vozes pela igualdade de direitos que os Estados Unidos jamais ouviram. Entretanto, com a mesma rapidez com que silenciou Martin Luther King, o balázio detonou um estrepitoso barril de pólvora. Milhares e milhares de negros não conseguiram segurar sua indignação, que se faz ouvir por todo o país de maneira assustadoramente impactante. Assim que a notícia do assassinato ganhou as ondas do rádio e se espalhou de costa a costa, mais de 110 cidades americanas viram-se mergulhadas no caos de uma verdadeira guerra civil racial. Nas ruas, tumultos, bombas, incêndios, saques, confrontos armados - um rastro de violência e destruição que levou à convocação da Guarda Nacional e até mesmo do Exército em certos municípios. Pior: a onda de brutalidade ainda parece longe de estar totalmente controlada.
Cerco à Casa Branca: tropas federais protegem o prédio contra possíveis vândalos
A situação mais grave foi registrada na capital do país, Washington, que virou um campo de batalha ainda na noite de 4 de abril. A explosão de violência começou na esquina das ruas 14 e U Noroeste, no setor de Columbia Heights, e rapidamente se espalhou pelos três maiores corredores da cidade - além da rua 14, a rua 7 Noroeste e rua H Nordeste. Várias lojas foram saqueadas e imóveis totalmente destruídos. O prefeito Walter Washington declarou estado de emergência no dia seguinte, determinando um toque de recolher de treze horas, em vigor a partir das 15h30. Uma marcha liderada pelo ativista negro Stokely Carmichael terminou em violento confronto com a polícia. A força local de 3.000 homens não era páreo para as multidões de até 20.000 manifestantes. O presidente Lyndon Johnson, então, determinou a alocação imediata de mais de 13.000 soldados das forças armadas e 1.750 membros da Guarda Nacional, além de 2.000 pára-quedistas, que chegaram no sábado para ajudar as tropas federais. Até o fechamento da presente edição já foram contabilizados seis mortos, cerca de mil feridos, 6.000 prisões e 900 incêndios.
Em Baltimore, a situação é igualmente alarmante. Pela primeira vez desde as greves de 1870, a cidade é patrulhada por forças federais. São mais de 9.000 homens procurando restabelecer a ordem que, desde quinta-feira, já não existe mais nos setores leste e oeste, onde se concentra a maior parte da população negra. O governador do estado de Maryland, Spiro Agnew, decretou toque de recolher, convocou a Guarda Nacional e proibiu a venda de bebidas alcoólicas. As determinações, porém, estão sendo ignoradas pelos arruaceiros, que tumultuam as ruas dia e noite, saqueando comércios e residências. Até mesmo alguns estabelecimentos de negros - que estão se identificando com placas com a inscrição soul brother, "irmão de alma", para evitar ataques - vêm sendo alvo de violações. A prefeitura calcula que pelo menos 600 lojas foram saqueadas. Ônibus escolares estão sendo usados para o transporte de presos - o número de capturas é grande demais. Há 1.700 vagas nas cadeias da cidade, mas 2.200 pessoas, entre saqueadores e pessoas que ignoraram o toque de recolher, já foram detidas.
Prejuízo e tensão: loja de bebidas na rua 14 de Washington foi destruída por jovens
Apelo no gueto - De Chicago e Detroit chegam relatos de selvagerias semelhantes, mas os habitantes de pelo menos duas grandes cidades dos Estados Unidos, Boston e Indianápolis, preferiram a paz e a introspecção ao ódio e à baderna. Ao menos até agora, ambas passaram incólumes aos tumultos. Em Indianápolis, parece ter surtido efeito o emocionado apelo do senador Robert F. Kennedy, que desobedeceu as recomendações de seus assessores e da polícia e mesmo o pedido de sua esposa Ethel para discursar, na noite do assassinato de King, diante de uma plateia negra, em um gueto da cidade. Kennedy se responsabilizou por sua segurança e, de um palco improvisado na caçamba de uma camioneta, reverenciou o legado do líder ativista e conclamou a nação a se unir pela não-violência - apesar de todo o sentimento de raiva e desconfiança que, admitiu ele, muitos negros deveriam estar sentindo. Para isso, o senador usou seu próprio exemplo, num dos raros momentos em que mencionou em público a morte do irmão, o presidente John Kennedy.
Já em Boston, uma das cidades americanas em que a questão racial é mais acirrada, muitos estão creditando a relativa tranquilidade, ironicamente, ao inflamável "Senhor Dinamite" - o mundialmente famoso cantor James Brown. Na verdade, na noite do assassinato, ocorreram confrontos entre civis e policiais em Roxbury. Para o dia seguinte, as autoridades já se preparavam para mais altercações - o que levou o prefeito Kevin White a cogitar cancelar o show que o músico faria no ginásio Boston Garden. Entretanto, assessores políticos e líderes da comunidade negra aconselharam a prefeitura a permitir a realização do espetáculo - e, mais ainda, transmiti-lo ao vivo pela televisão. James Brown não apenas consentiu como encorajou seus fãs a ficarem em casa para ver a apresentação. Dito e feito. Aquela noite foi pacífica em Boston: os únicos estrondos foram provocados pelo vozeirão indomável do astro nascido na Carolina do Sul. Desde então, não foram registrados distúrbios significativos na cidade.
Revista Veja História
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