sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Três séculos de trevas

Desde a chegada dos pioneiros africanos, em 1619, os
negros da América enfrentam uma contenda laboriosa em busca
de direitos iguais, passando pela escravidão e pela segregação

Mercado de escravos na capital: Lincoln via o comércio de negros de seu gabinete no Capitólio enquanto ainda era congressista

Agora sem uma de suas figuras mais atuantes, o movimento negro nos Estados Unidos seguirá sua dolorosa cruzada para estreitar a fenda racial que se abriu paulatinamente ao longo de mais de 300 anos de História, desde que os primeiros africanos chegaram aos Estados Unidos, em 1619. O Ato dos Direitos Civis, aprovado em 1964, atendeu a muitas das reivindicações das minorias americanas. É evidente, porém, que mais de três séculos de discriminação não poderiam ser reparados por um único documento. Por isso, os esforços pela alteração não apenas das leis, como também da mentalidade e da cultura da América, precisarão ser mantidos por uma nova geração de líderes, de maneira que oportunidades iguais se apresentem tanto a negros como a brancos.

Brancos na frente, negros no fundo: ônibus segregado em Atlanta, em abril de 1956

Em 1619, os pioneiros africanos desembarcaram na Virgínia como servos por contrato - status semelhante ao dos trabalhadores ingleses, que também empenharam anos de trabalho para cobrir os custos da passagem à América. Pouco tempo depois, entretanto, a escravidão, ainda que não regulamentada, já se verificava em muitos estados do país. A cultura do tabaco no Sul dos EUA se alimentou do tráfico negreiro para compor sua mão-de-obra por décadas a fio; como resultado, o censo americano de 1860 registrava uma população de 4 milhões de escravos nos quinze estados em que a escravidão era legal. Nesses estados, a população total era de 12 milhões de pessoas. Cerca de 500.000 negros viviam livres no país naquele tempo.

As vozes abolicionistas, que timidamente apareceram nos EUA no século XVIII, ganharam força com a eleição à presidência de Abraham Lincoln, opositor declarado da escravidão, em 1860. Convencidos de que seu modo de vida estava ameaçado, os estados do Sul se separaram da União e detonaram a Guerra Civil Americana. Em 1863, durante o conflito, Lincoln assinou a Proclamação da Emancipação, libertando os escravos dos estados confederados e proibindo a escravidão em todo o país. Mas era apenas o começo da jornada.

Medo nas ruas: Ku Klux Klan no Alabama

Segregação institucionalizada - No fim do século XIX, os estados do Sul, afetados economicamente com o fim da escravidão, promulgaram as chamadas leis Jim Crow, uma série de determinações para legitimar a discriminação racial e dificultar o acesso dos negros ao voto. Legislações semelhantes apareceram por todo o país, e a segregação passou a ser uma realidade nos Estados Unidos. Prédios e transporte públicos, escolas, restaurantes, cinemas e até cadeias tinham áreas separadas para brancos e negros - a dos negros, via de regra, em estados deploráveis. Casamentos entre brancos e negros ou seu descendentes eram proibidos em diversos estados, para evitar a miscigenação. Na Carolina do Norte, nem mesmo os livros da biblioteca poderiam ser consultados por negros e brancos - se o primeiro a retirá-lo fosse um branco, apenas os brancos teriam acesso ao volume.

Atleta pioneiro: Jackie Robinson em 1947

Entre os anos de 1916 e 1930, uma onda de migração negra do sul para o norte, meio-oeste e oeste do país - regiões onde a tolerância e as oportunidades eram maiores - deu início ao movimento pela igualdade de direitos. Entretanto, apesar de alguns pioneiros terem ultrapassado a barreira racial (como o atleta Jackie Robinson, craque do beisebol, que em 1947 tornou-se o primeiro jogador negro nas ligas maiores da modalidade preferida dos americanos, colocando um ponto final na segregação que durou 60 anos), apenas a partir da década passada é que os resultados coletivos começaram a aparecer. O boicote de Montgomery e a marcha em Washington, ambos marcados pela não-violência e pela tentativa de integração racial pregada por Martin Luther King, tiveram grande repercussão - e, mais importante ainda, resultados práticos. Contudo, alguns líderes e grupos, notadamente Malcolm X (1925-1965) e o recém-formado Black Power, advogam pela ruptura total entre a América negra e a branca, utilizando-se da violência se for preciso. A grande incógnita é o caminho que será tomado pelos herdeiros de King - se a rota da não-violência trilhada pelo reverendo ou uma estrada muito mais sinuosa, manchada de sangue.
Abril de 1968

Revista Veja

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