1° de julho de 1501
Expansão dos otomanos deixa na defensiva a Europa cristã
tom do apelo do papa Alexandre VI, transmitido havia seis meses ao rei de Portugal pelo embaixador de Veneza, Domenico Pisani, já dizia tudo: era urgentíssimo armar uma cruzada naval para conter os turcos otomanos, o império em expansão que já tem a República Veneziana praticamente à sua mercê. Fiel à missão de combater os inimigos da fé cristã, dom Manuel não se fez de rogado e os portugueses agora aguardam ansiosos por notícias da grande armada que deixou o porto de Lisboa duas semanas atrás para socorrer os venezianos no Mar Egeu. São trinta navios, naus e caravelas, sob o comando de dom João de Meneses, conde de Tarouca. Não se deve esperar, contudo, que o esforço resulte em batalha decisiva no confronto entre as dois grandes centros de poder de nossa época – os otomanos e a cristandade. O equilíbrio de forças é grande, nenhum lado pode esperar aniquilar o outro. Além disso, o combate aos turcos derrapa com freqüência, visto que os cristãos vivem às turras entre si ou abandonam a Santa Cruzada se encontram pelo caminho presa tentadora para saquear.
Essa é uma guerra travada por mares e terras de três continentes. Seu desfecho repercutirá, previsivelmente, durante séculos na vida dos povos da Europa. Neste momento, a cristandade está na defensiva. Com um pé em cada continente, os otomanos são os primeiros asiáticos a estabelecer um império duradouro na Europa. Menos de cinqüenta anos atrás, eles capturaram Constantinopla, a cidade construída por Constantino, o primeiro imperador romano convertido ao cristianismo, e lhe deram o nome de Istambul. A queda foi um choque para a Europa cristã. Seu conquistador, o sultão Maomé II, construiu um palácio de sonhos no ponto mais alto da cidade, o Topkapi, e transferiu para lá a capital do império otomano. Assombra pensar que, apenas dois séculos atrás, nenhum cavaleiro cristão daria uma segunda olhadela no que era então uma tribo insignificante na horda turca recém-chegada das estepes. O primeiro sultão, Osman (Otman em árabe, daí o nome do império), que viveu no início do século XIV, era um gázi, como chamam um paladino da gázua, a guerra sem quartel aos não-muçulmanos. A essa guerra santa ele acrescentou um propósito imperial: o sonho de um mundo unido sob o estandarte do Islã.
O império dos sultões inclui agora uma grossa fatia do sul da Europa. O exército de Bayezid II, o atual detentor da espada de Osman, magnífica arma de dois gumes que passa de sultão a sultão, está nos portões de Belgrado. Da Praça de São Marcos, os venezianos podem ver, com o coração aos pulos, os incêndios de seus entrepostos no Mar Adriático. A situação só não é mais grave porque Bayezid II tem pouco apego às coisas da guerra, preferindo consolidar as conquistas com novos regulamentos e um gordo aparato burocrático deixado, em boa parte, a cargo de escravos cristãos.
Entregar a administração a escravos, tirados desde pequenos da família e criados na mais estrita fidelidade ao sultão, é uma das peculiaridades dos otomanos. Outra, um antigo costume transformado em lei por Maomé II, estabelece que o príncipe que primeiro for aclamado sultão mate todos os seus irmãos. Os príncipes são estrangulados com uma corda de arco, visto que seria sacrilégio derramar sangue real. A lei é bárbara, mas se sustenta sobre uma lógica fria que o florentino Nicolau Maquiavel provavelmente aplaudiria. É melhor matar uns poucos, dizem os otomanos, que correr o risco de o império ser devastado por guerras sucessórias. Bayezid viveu esse drama até consolidar seu poder. Venceu em batalha o irmão caçula, Jem, mas o príncipe derrotado encontrou refúgio com os Cavaleiros de São João em Rodes, a última fortaleza cruzada na Ásia Menor. Durante doze anos de exílio no mundo cristão, ele foi pivô de conspirações internacionais. Seis anos atrás, ao tomar Roma, o rei Carlos VIII capturou Jem e o enviou para a França. O príncipe adoeceu e morreu no caminho, levantando fortes suspeitas de que tenha sido envenenado a mando do irmão.
Os otomanos dizem que o mundo é dividido entre o Reino da Guerra, a eterna fronteira dos gázis contra os infiéis, e o Reino da Paz, onde povos e religiões coexistem sob a justa lei do sultão. A aplicação disso na prática pode ser vista em Istambul, que em nada lembra a decadente capital bizantina. Transformou-se numa encruzilhada cosmopolita e cresce mais rápido que qualquer outra capital européia. Judeus e mouros expulsos da Espanha e de Portugal chegaram recentemente. Engrossam a multidão de turcos, gregos e armênios nas lojas e vielas do bazar aberto dia e noite. O sultão permite que judeus e cristãos pratiquem discretamente sua religião, costumes e leis em troca de um imposto especial. Graças à pax otomana, o comércio e o artesanato prosperam, abrem-se estradas para o trânsito de caravanas, as colheitas são abundantes e a população aumenta sem parar.
Os mercadores venezianos e outros viajantes cristãos estão bem familiarizados com os costumes turcos, mas muitas de suas instituições continuam a parecer intrigantes aos olhos europeus. A mais perturbadora é o harém, onde vivem encerradas as esposas, concubinas e escravas dos muçulmanos mais endinheirados. Se dermos ouvidos aos relatos dos cruzados que retornam do Oriente, somos levados a acreditar que se trata de um tipo de bordel, onde se permite toda a luxúria. Embaixadores enviados à corte otomana descrevem uma realidade bem diversa. É por pudor puritano que os muçulmanos escondem as mulheres do olhar cúpido de estranhos. A situação das mulheres cristãs, em especial na Península Ibérica, não é muito diferente. O que espanta mesmo é a poligamia. Bayezid II tem centenas, alguns dizem milhares, de mulheres (o sultão favorece as loiras trazidas de seus domínios nos Bálcãs) vigiadas por eunucos brancos e negros – em geral cristãos do Cáucaso ou africanos do Sudão, pois as leis do Corão proíbem emascular muçulmanos. O serralho é um ninho de intrigas e histórias escabrosas. Visto que o Corão não estabelece diferença entre os filhos das esposas e das concubinas, é intensa a disputa entre as mulheres para promover os direitos de seus respectivos herdeiros. Mas coitada daquela que desagradar a seu senhor, pois ele manda colocá-la num saco e a joga nas águas do Bósforo. Conta-se que um sultão, consumido por fúria insana, desfez-se de todo o seu harém. Um mergulhador que naqueles dias tentava libertar a âncora de um barco viu-se diante de uma floresta de sacos agitando-se ao sabor das correntes marinhas.
A Europa cristã escuta fascinada e incrédula os relatos sobre essa sociedade onde todo mundo parece ter orgulho de se proclamar escravo do sultão e um filho de pastor pode chegar a grão-vizir. Onde já se ouviu falar em altos funcionários ou comandantes militares nascidos em choupanas? Sim, pois, além dos quadros administrativos, também têm a mesma origem os janízaros, a infantaria de elite formada por soldados-escravos. A guerra é o celeiro que alimenta a burocracia e o exército. Todos os anos os otomanos importam 20 000 escravos eslavos e norte-africanos. A estes acrescenta-se o "tributo de meninos", que determina que todo quinto menino cristão nascido nos domínios otomanos deve ser entregue ao serviço do sultão. A família pode esquecê-lo. Os mais robustos serão selecionados para o corpo de janízaros – "homens da espada". Separados desde a tenra infância dos laços familiares, esses soldados de fartos bigodes só são fiéis ao sultão. Os meninos escravos que sobressaem na matemática ou caligrafia são levados à escola no palácio e iniciados na profissão de criado real. Entre eles é escolhida a nova administração pública – um sistema baseado inteiramente no mérito, o que a Europa cristã, onde a linhagem familiar continua a ter enorme peso quando se trata da distribuição de cargos públicos, não consegue entender.
Quando defrontaram pela primeira vez com as tropas otomanas, os europeus espantaram-se com a velocidade e o silêncio com que marcham. Um cronista francês escreveu: "Eles partiram subitamente e 100 soldados cristãos fariam mais barulho que 10000 otomanos. Quando o tambor tocava, colocavam-se em marcha, jamais errando o passo, jamais parando até receber ordem. Com armas leves, numa noite viajam tanto quanto seus adversários cristãos em três dias". Uma esquadra de engenheiros garante que não faltarão pontes pelo caminho. Milhares de camelos e carroças asseguram o abastecimento das tropas e as balas para os canhões. Os otomanos os preferem tão grandes que muitas vezes é preciso fundi-los no próprio local da batalha.
O mais impressionante é a mehter, a banda militar com seus címbalos e tambores. "Quando eles passam tocando todos ao mesmo tempo, o barulho faz o cérebro dos homens sair pela boca", narrou um sobrevivente das lutas nos Bálcãs. Essa inovação otomana na arte da guerra, a banda militar que marcha com o exército na batalha, espalha terror quando anuncia um assalto ou acompanha a parada vitoriosa numa cidade recém-conquistada. O terror, imaginado ou real, é uma das melhores armas do arsenal dos otomanos. Costumam enviar na vanguarda uma força de irregulares recrutados nas aldeias e chamados de delils – os fanáticos. Pagos apenas com o que saqueiam, devastam o território inimigo como praga de gafanhotos. O sultão os usa para esmagar as defesas fronteiriças e aterrorizar a população. Quando necessário, são sacrificados para absorver os primeiros ataques inimigos. Enquanto o exército está em terras otomanas, contudo, a disciplina rigorosa não permite que nenhum militar maltrate os camponeses, estrague as colheitas ou roube um só de seus carneiros. É com certeza um pensamento herético, mas os cavaleiros cristãos bem fariam se adotassem esse costume dos inimigos otomanos.
Revista Veja
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