segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Leal servidor real


Leal servidor real
Em um cenário de incertezas e às vésperas do rompimento entre Brasil e Portugal, Bonifácio defendeu a monarquia e o poder centralizado até o fim.
Paulo Henrique Martinez

As palavras proferidas por Pedro I na abertura dos trabalhos da Assembléia Constituinte, em maio de 1823, causaram forte impressão tanto em seus opositores quanto em seus aliados. Adotada na França e trazida para o Brasil pelo próprio imperador, a Fala do Trono era uma prática institucional que revestia o diálogo entre os poderes Executivo e Legislativo, e nessa primeira manifestação trazia um recado claro e direto. O jovem imperador renovava sua afirmação de 1822, quando fora coroado e sagrado: “defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim”.

A frase refletia muito da colaboração de José Bonifácio durante o embate político iniciado em 1822, e que só teria desfecho com a dissolução da Assembléia Constituinte, em novembro de 1823. Em menos de dois anos, sua atuação marcaria a vida política brasileira e também, mais tarde, as interpretações históricas sobre a ruptura no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, estabelecido desde 1815.

A distinção entre a nação, encarnada no Brasil, e o Estado, encarnado no imperador, era sublinhada na afirmação de D. Pedro I, e afastava qualquer intenção de submissão do Poder Executivo – exercido por ele – aos ditames da nação – reunida e representada naquela Assembléia Geral Constituinte e Legislativa. José Bonifácio, fiel aliado, apoiava a atitude do imperador.

É fato que as teorias democráticas da época moderna proclamavam a legitimidade do poder emanado da vontade geral do povo. Era também inegável que o príncipe D. Pedro se fiava nas manifestações de apreço e de confiança política que recebera ao longo de 1822 – algo pouco comum para qualquer monarca europeu. Muitas delas partiram de diferentes corpos políticos, como câmaras municipais, juntas de governo nas províncias e do Conselho de Procuradores do reino do Brasil, além de autoridades civis e militares. D. Pedro I acreditava que a condição de que desfrutava como imperador e “defensor perpétuo” não derivava do absoluto e sagrado direito hereditário dos reis, e sim da vontade e da decisão dos povos do Brasil. Enfim, julgava sua autoridade tão legítima quanto a da Assembléia Constituinte, eleita para traçar os destinos do novo Império. Tal como expressara na Fala do Trono, não faria concessões: os constituintes que não viessem limitar e disciplinar a conduta do Poder Executivo para além daquilo que o imperador estava disposto a ceder.

D. Pedro via a convocação da Constituinte como um ato de sua grandeza como governante e de seu liberalismo. Uma iniciativa que expunha o apego do Poder Executivo ao constitucionalismo, essa fórmula jurídica que regulava as relações entre os poderes de Estado e colocava o Brasil em compasso com os modos políticos do novo tempo. Os deputados constituintes que não tentassem se sobrepor ao imperador, subvertendo e usurpando seu engajamento e compromisso constitucional.

Esta posição política fora arduamente alcançada e demandara duas viagens do príncipe, a Minas Gerais e a São Paulo. Exigira também intensa atuação governamental e diplomática não só de José Bonifácio, mobilizando também a esposa de D. Pedro, a princesa austríaca D. Leopoldina. O ministro do Reino enfrentara abertamente oposicionistas atuantes – como altos funcionários e oficiais militares portugueses –, exilara os adeptos do liberalismo doutrinário, liderados por Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa e José Clemente Pereira, e não deixara de atacar a maçonaria e a imprensa que esses homens comandavam. O imperador e seu ministro suportariam os bicos-de-pena que traçavam as linhas da liberdade de imprensa? Poderiam conviver com esta novidade política trazida pela era dos direitos?

O momento constituinte ameaçava abalar um frágil equilíbrio, obtido à custa de violência, prisões, deportações e muita ação política e administrativa visando não apenas consolidar o poder de D. Pedro, mas também organizar seu governo. Era preciso dotar o Estado de infra-estrutura, recursos, funcionários, instituições e força militar suficiente para que ele fosse capaz de se manter e agir com autonomia perante as autoridades portuguesas e os grupos econômicos atuantes no Brasil. Estes, por sua vez, reivindicavam o atendimento de seus interesses particulares e imediatos no comércio, no tráfico africano, na escravidão, na apropriação da terra, na ocupação de postos governamentais, na arrecadação e isenção de tributos, na abolição e aquisição de privilégios econômicos e sociais.

O estabelecimento da corte portuguesa no Brasil, em 1808, criara oportunidades de ganhos e investimentos altamente rentáveis por meio de acesso aos cargos da administração real e ao mercado da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno. A partida de D. João VI, em 1821, abriu espaço para manifestações e participação políticas vitais para a expansão desses negócios. Alguns de seus representantes apoiariam a permanência do príncipe regente no Rio de Janeiro, na expectativa de preservar e ampliar seus interesses.

Foi a integrantes destes grupos, sobretudo os que eram ligados ao comércio, e que ocupavam postos governamentais, que o então príncipe D. Pedro recorreu para fundamentar seu prestígio e sua força armada. José Bonifácio foi um fiador intelectual, político, administrativo e diplomático deste audacioso empreendimento de um poder centralizado e unitário no reino do Brasil, pilar de sustentação para a monarquia portuguesa e para a dinastia dos Bragança, apesar da conjuntura de incertezas e de riscos para a Coroa, decorrente da revolução do Porto, em agosto de 1820.

Em janeiro de 1822, quando ascendeu ao ministério do Reino, as estratégias políticas de José Bonifácio estavam apontadas para a manutenção da unidade e regeneração da monarquia portuguesa. Esta deveria ser fortalecida e sustentada por um pólo de poder que reunisse as províncias do reino do Brasil, assegurando-lhes prerrogativas institucionais no âmbito da Justiça, da economia, da administração local, do governo central, da cobrança de tributos e de despesas públicas. Tais prerrogativas foram defendidas como medidas para a emancipação do Brasil que era integrado ao Reino Unido. Em busca de sua consecução, José Bonifácio e o irmão, Martim Francisco, logo alçado a ministro da Fazenda, amealharam inimigos e seduziram aliados. Os dois ministros coordenaram áreas importantes na condução do Estado – como a política interna, as relações exteriores e as finanças do Império – e desenvolveram sua ação política em duas frentes.

A primeira estava voltada para a consolidação e o exercício do poder de D. Pedro, sediado no Rio de Janeiro. Os meios empregados para atingir esse objetivo foram a centralização das decisões administrativas, a definição da organização política do reino do Brasil – e depois do Império – e o comando das forças armadas. A segunda estava voltada para a coordenação da vida política das províncias brasileiras, e para isso foram afastados os funcionários e oficiais alinhados aos adversários e vinculados a Portugal, e realizada eleição dos representantes para o Conselho de Procuradores e, depois, para a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa.

O exame da atuação política e ministerial de José Bonifácio revela sua preocupação com a preservação da ordem política e social no Brasil e o quanto ela ofusca as reformas sociais. O atuante ministro deu pouca atenção aos problemas da agricultura e da mão-de-obra escrava, por exemplo. Não que essas questões tivessem desaparecido de seu ideário político, mas foram transferidas para o embate que esperava travar na Assembléia Constituinte. Esta foi a arena que escolheu para disparar propostas referentes à ocupação dos territórios brasileiros; à disseminação do trabalho livre, com o aproveitamento da mão-de-obra indígena e a atração de trabalhadores rurais europeus, em substituição ao braço do africano escravizado; e a distribuição de terras como forma de povoamento e defesa das áreas interioranas e fronteiriças.

O momento, porém, exigia outras definições prévias. Na Europa, o desabamento das estruturas jurídicas do Antigo Regime havia desatado uma era das revoluções. As relações entre Estado e sociedade haviam mudado. Este fato atiçou o conflito entre Bonifácio e os partidários de Gonçalves Ledo e despontou na Fala do Trono, logo na abertura da Assembléia Constituinte brasileira.

Havia, ainda, um obstáculo na esfera política luso-brasileira. Desde a segunda metade do século XVIII, um rápido e intenso processo de expansão mercantil e agrícola conquistava terras vorazmente, incrementava o tráfico africano, o trabalho escravo e o interesse pelo mundo natural da Colônia. As tensões sociais e políticas emergiriam rapidamente nesse novo mundo que o português criou. As políticas do governo joanino animaram interesses econômicos e aguçaram contradições sociais e regionais.

Em 1822, as divergências entre diferentes interesses econômicos e opiniões políticas tornaram-se conflitos abertos. Rompeu-se a unidade política entre Portugal e Brasil. Rompeu-se também a unidade, sempre tensa, entre os grupos que apoiavam D. Pedro no Rio de Janeiro. Em 1823, essas desavenças atingiram a Assembléia Constituinte. Afastado do ministério desde julho, José Bonifácio faria seus propósitos políticos ecoarem na imprensa, levando a guerra de notícias e o embate entre opiniões para as ruas, para os corredores dos palácios, dos quartéis e da própria Assembléia. Munido da força que o ministro lhe dera, D. Pedro dissolveu a Constituinte, prendeu deputados, reprimiu críticos e deportou líderes. Entre eles, José Bonifácio.

Paulo Henrique Martinez é professor no Departamento de História da Unesp/Assis e autor de “O ministério dos Andradas (1822-1823)”, in JANCSÓ, István (org.), Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí: Hucitec/Fapesp/Unijuí, 2003.

SAIBA MAIS:

BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.

CAVALCANTE, Berenice. José Bonifácio: razão e sensibilidade, uma história em três tempos. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A astúcia liberal. São Paulo/Bragança Paulista: Ícone/USF, 1999.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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