terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Julia e o amor na Era da Razão


Ao narrar a desventura sexual de uma donzela aristocrata com o criado de sua família, o filme ‘Senhorita Julia’ expõe estereótipo feminino e preconceito de classe no século XIX

Rodrigo Elias



Senhorita Julia (Fröken Julie).

Dir. Alf Sjöberg, Suécia, 1951.


When I cannot sing my heart

I can only speak my mind...

John Lennon (Lennon-McCartney), “Julia” en The Beatles (ou The White Album), 1968.


Julia não sabe o que quer. Ela é rica, bonita, de boa família, bem educada, refinada e, dentro de certos limites, libertária. Mas Julia, embora devesse, não sabe o que quer.


Durante a festa de solstício de verão, a jovem resolve se divertir com os subalternos. Um em especial, Jean, acaba se tornando alvo do seu interesse. Nascido e criado na propriedade rural do conde Carl, pai de Julia, ele sabe muito bem qual é o seu lugar dentro desta sociedade aristocrática do final do século XIX: deve obedecer aos seus superiores, mantendo a compostura que compete a alguém da sua classe inferior. Julia, entretanto, encarna as contradições de uma mulher da aristocracia: faz uso da sua posição para conseguir o que quer, mas, por ser mulher, é escrava de instintos sexuais ficcionalizados (ou seja, ela é o que chamaríamos hoje de “romântica”).

A fixação romântico-sexual de Julia por seu criado acaba sugerindo determinadas concepções sobre o que é ser mulher e o que é ser aristocrata na época em que o sueco August Strindberg escreveu a peça Senhorita Julia (1888). Montado desde então do oriente ao ocidente, o texto já foi filmado para a TV e o cinema, sendo esta versão cinematográfica do também sueco Alf Sjöberg, de 1951, a mais aclamada. Um dos grandes nomes do cinema de todos os tempos, Sjöberg levou duas vezes o prêmio principal em Cannes, inclusive por Senhorita Julia, embora tenha se dedicado prioritariamente ao teatro. 

Os estereótipos de classe e gênero vão aflorando naquela noite insone regada a cerveja e vinho, na medida em que a tensão aumenta por conta da possibilidade de um desfecho dramático – a chegada do conde. Em um certo momento, ela, ciosa da sua posição, disfere, para persuadi-lo a fugir em sua companhia, agora uma moça desonrada: “Um criado é um criado.” Ele, de pronto, sentencia: “Uma puta é uma puta”.

Julia, embora em parte presa a comportamentos que seriam típicos do seu grupo social, é uma mulher – e isto, na cabeça dos homens burgueses bem educados do final do século XIX, significa ser guiado por uma concepção romântica deste tipo de ligação homem-mulher; ser homem, por seu turno, significa ter consciência sobre o caráter pragmático (ou social) destas mesmas ligações. Estes estereótipos remetem diretamente àquela concepção emergida no século XVIII, generalizada inclusive pelos romances ficcionais, que atribui ao gênero feminino uma maior susceptibilidade às emoções.

Padrões sobre o que devem ser homens e mulheres começaram a ser maciçamente divulgados no século XVIII. Naquele tempo, associavam-se a generalização do uso da palavra impressa e o efetivo surgimento de um público leitor. É neste mesmo contexto que surge o tipo de literatura ficcional que chamamos de “romance”. Este tipo de literatura vai incorporar uma nova retórica, a das sensibilidades, que estará profundamente marcada por valores morais relativos a sexo e lugar social. Esta retórica das sensibilidades, que terá nos romances o seu maior divulgador, esteve (e até certo ponto, está) amparada em uma nova representação que o homem fez de si mesmo na ordem do mundo – não mais teológica, mas propriamente humana, inclusive do ponto de vista físico.

Prisioneiros dos nervos

O século XVIII foi nervoso. Comumente simplificado como “Era da Razão”, foi, mais do que isso, uma descoberta da responsabilidade do homem sobre o seu destino e sobre o seu passado. Esta descoberta veio acompanhada de dois movimentos: em primeiro lugar, um mergulho no homem físico, em suas estruturas biológicas; em segundo, a constatação, ao longo de todo aquele século, de que o mundo é apreendido e reelaborado através dos sentidos. Detalhado pela primeira vez dentro de uma nova linguagem científica por Thomas Willis em 1664, o sistema nervoso humano extrapolou os interesses médicos e científicos e logo se tornou suporte discursivo para os atos políticos e literários. A estrutura nervosa humana serviu de base a um regime narrativo que definiu a relação entre escrita, leitura e ação no mundo entre os séculos XVIII e XIX. Se há razão em qualquer dimensão da vida no período, ela é resultado da naturalização de uma certeza: somos prisioneiros dos nervos.

O norte-americano George Rousseau, que tem se dedicado à história cultural do século XVIII, especialmente à interface entre literatura e conhecimento médico, propõe a existência do que chamou de uma “retórica dos nervos” no período. Percorrendo uma vastíssima literatura, principalmente inglesa, o historiador reconstrói o percurso e as apropriações feitas na linguagem científica e nas criações literárias do período da questão dos nervos. Estereótipos de classe e gênero, atitudes perante o corpo e o mundo, expectativas políticas e sociais vão precisar lidar com a grande invenção científica do período: a percepção e a análise (o tudo cognitivo) são processos neurofisiológicos.

A primeira grande clivagem desta retórica será a sua sexualização. Os nervos atuariam de maneira diferente em homens e mulheres – e a medicalização da sexualidade (notadamente a feminina) renderá tributos à associação entre o sistema nervoso e o dimorfismo sexual. Além disso, em um período de afirmação burguesa na Europa continental, ao longo de todo o século, os nervos também serão constituídos de acordo com o grupo social. Os balneários, as estâncias e todo um conjunto de tratamento neurológico (ou que supunha como tal) estarão disponíveis apenas para aqueles grupos cuja constituição nervosa será considerada mais delicada: os ricos e bem educados. Não é difícil notar esta segmentação social e de gênero no momento da emergência do romance (o que, aliás, se estenderá por outros períodos históricos): o público buscado é o das classes burguesas, e haverá também um certo direcionamento ao público feminino, o que pode ser visto inclusive na escolha das protagonistas das obras não apenas de Samuel Richardson, mas até mesmo na Juliet do marquês de Sade em Os 120 dias de Sodoma (1785). Mesmo Jane Austen, que a princípio rejeitará muito do que a ciência moderna consideraria simplificações na “teoria nervosa”, escreverá primordialmente para públicos bastante específicos. Este paradigma científico (médico-literário) que se estabelece no século XVIII não ficará imune às representações culturais no que dizem respeito às hierarquias sociais e de gênero em vigor – as distinções que até então precisavam ser justificadas por argumentos teológicos vão encontrar respaldo em uma suposta objetividade científica.

Esta verdade, construída ao longo de todo o século XVIII, está na raiz na própria exaltação da sensibilidade que veremos no programa dos românticos – um desdobramento a princípio imprevisto do programa “iluminista” de percepção do mundo através dos sentidos, que pode ser visto na Encyclopédie (1751). Assim, vemos a expansão e a apropriação de um princípio biológico-anatômico (divulgado na Inglaterra e no continente em dissertações médicas escritas em latim e em língua vulgar desde o início do século XVIII) pelo que pode ser chamado, com certas reservas, de “teoria social”, e uma difusão ainda mais significativa através de sua reelaboração literária.

A Julia de Rousseau

A obra mais significativa neste contexto de generalização de uma nova sensibilidade – que é, inclusive, paralela à própria emergência da subjetividade ocidental relacionada com a escrita e com as práticas de leitura – é de autoria do genebrino Jean-Jaques Rousseau. O nome da livro é Julia ou a Nova Heloísa, romance epistolar publicado em 1761. Trata-se da obra literária de maior circulação no século XVIII, através do qual se pôde observar não apenas uma nova relação entre obra escrita e público leitor, mas a própria construção da ficção romântica como elemento de difusão de um novo modelo de relação de gênero e, por conseguinte, de sociedade. 

O modelo amoroso surgido e difundido ali é radicalmente diverso daquele próprio ao período anterior: a família conjugal (ou “elementar”, para Radcliffe-Brown), que agora se desenhava, pressupunha uma ligação forte entre um homem e uma mulher, uma vez que o modelo familiar extenso, com todos os vínculos de parentela, não se adequava a uma sociedade burguesa industrial. O laço mais forte deve ser entre o casal, e este amor é extremamente valorizado (logo este amor, dito “romântico”, que no período anterior era associado ao adultério). Dissolvida aquela sociedade de vínculos familiares extensos (pais, avós, tios, primos...), onde a mulher podia recorrer a vários indivíduos para garantir sua existência material, a única garantia de sobrevivência será dentro do casamento. Através de uma relação voluntária, esta invenção eminentemente inglesa que é a família conjugal necessita de um cimento ideológico – neste momento o amor terá um outro valor, uma vez que pode afiançar uma ligação vitalícia.

A história de amor narrada por Rousseau em formato de cartas em Julia teve um impacto inédito sobre leitores e leitoras. Um conjunto de cartas recebidas pelos editores e pelo próprio autor revela a relação que os leitores mantiveram com os personagens, especialmente sua protagonista. As desventuras da jovem, cujo destino trágico não turva sua existência virtuosa, despertou entre homens e mulheres os mais exaltados sentimentos. Esta literatura romântica epistolar, que tinha na verossimilhança um elemento de conexão com a “vida real” dos leitores, assume um papel ainda mais relevante quando o seu autor é Rousseau. Seus textos, ficcionais ou não, eram lidos como exemplos para a vida, o que dará a Julia um papel ainda mais destacado como modelo, do valor do sacrifício para que se mantenha uma existência “correta” – no caso, a realização plena do amor dentro do casamento. Como explicou Robert Darnton em um clássico estudo sobre a recepção de Julia, as cartas endereçadas pelos leitores do livro revelam a centralidade destes elementos: “amor, casamento, paternidade – os grandes eventos de uma pequena vida e o material de que a vida era feita em toda parte, na França.” Se Rousseau não foi o primeiro a causar “epidemias de emoção” na Europa, Julia fez com que os leitores quisessem – e tentassem, de fato – viver aquelas vidas.

A partir daí – desta identificação entre público e obra ficcional – desenharam-se as chamadas “patologias literárias”, uma série de efeitos na vida real a partir de reações aos romances. Os mais conhecidos destes efeitos são a “febre Werther” e o “bovarismo”, índices de uma psicogênese propriamente contemporânea relacionada aos modelos propagados pela literatura. Os suicídios “por imitação” que se sucedem à leitura do livro de Goethe ou o descolamento da existência “real” suscitado pela obra de Flaubert apenas confirmam o que já foi classificado como “recepção produtiva” de um texto literário, desencadeado pela Julia de Rousseau. Esta “norma”, uma espécie de elaboração e implantação de padrões sociais a partir de modelos literários, será observada durante todo o século XIX, a partir de velhos e novos romances, e a psiquiatria vai descrever esta decalcomania, que no limite chegava ao crime passional e ao suicídio. O texto literário, a partir da personagem rousseauniana, havia se tornado cosmografia, e as obras de grande impacto publicadas posteriormente, quando tratam da questão da virtude relacionada à questão do gênero e dos afetos, vinculam leitura e performance.



A Julia do filme

Strindberg ocupa lugar especial na literatura e na dramaturgia escandinavas da segunda metade do século XIX, ao lado de Hans Christian Andersen e Henrik Ibsen, e seu trabalho também está na raiz do teatro realista moderno, com seus questionamentos e suas críticas em relação à moralidade burguesa. Ele escreveu Senhorita Julia sob o impacto de uma conturbada relação com o grande amor da sua vida, a jovem baronesa (e atriz) Siri Von Essen, que tinha 24 anos quando ele a conheceu e ficou apaixonado. Julia, sua personagem, tal como retratada no filme de Sjöberg, é uma mulher de linhagem nobre que foge ao padrão reservado para o seu gênero e sua classe: sua mãe, de origem plebeia e encantada pelos ideais de “emancipação feminina” do final do século XIX, escapa ao controle do conde e impõe uma série de subversões na ordem da casa e da família. Julia é resultado destas subversões , e sua trajetória e destino revelam, em alguma medida, uma postura misógina do autor.

A mãe de Julia, a condessa Berta, foi educada segundo os princípios da liberdade e da igualdade das mulheres em relação aos homens. Era contrária ao casamento e não queria ter filhos – aliás, tenta o suicídio ao descobrir que estava grávida. Quando Julia vem ao mundo, os pais (por decisão da mãe) decidem que ela será o exemplo perfeito de que uma mulher vale tanto quanto um homem: é tratada ao longo da infância como um menino, é vestida como tal, cuida dos cavalos, ara a terra, mata bezerros, caça. Na propriedade da família, os homens passam a desempenhar (toscamente) as tarefas geralmente atribuídas às mulheres, como lavar roupas, fiar, cuidar da cozinha; as mulheres desempenham (impropriamente) as tarefas atribuídas aos homens, como recolher e transportar feno. A inversão de papéis quase resulta na ruína da fazenda.

O pai de Julia, então, se livra do “feitiço” feminista da sua companheira e permite que a menina seja o que se entende por menina, deixando, por exemplo, que ela brinque com a sua boneca. Quando o conde começa a agir dentro de uma “normalidade” esperada por seus iguais – como realizar uma recepção para que os seus pares reconheçam a sua união matrimonial – Berta paga um amante para pôr fogo na casa. O pai, ao tomar conhecimento da trama, tenta o suicídio – trata-se de um homem nobre, de constituição nervosa delicada.

A Julia de Sjöberg é a trágica contradição entre o modelo de virtude difundido pela Julia de Rousseau e a sua contestação supostamente feminista. Rompe o compromisso com o noivo de boa estirpe após humilhá-lo feito um cão; se envolve com um criado após renunciar o destino do amor marital “normal” preconizado para as mulheres da sua categoria; é tomada pelo arrependimento e pelo desespero quando a sua situação corre o risco de vir a público. A saída? O suicídio, sugerido pelo pragmático amante.

Outras Julias

Senhorita Julia continua sendo montada e filmada. Ao longo dos séculos XX e XXI, tem recebido atenção na Europa, na Ásia e nas Américas. Além da versão clássica, foi vivida na TV por Helen Mirren em 1972, voltou ao cinema em 1999 e terá mais uma versão na grande tela lançada em 2014, dirigida por Liv Ulmann e trazendo no papel título Jessica Chastain. Só em São Paulo, há atualmente duas montagens da peça em cartaz. Com ênfase em elementos distintos, do conflito interno a partir dos afetos às contradições políticas e sociais, a obra de August Strindberg continua a perguntar sobre o que esperamos da vida em sociedade.

Entretanto, há diversas Julias. Algumas ainda padecem das patologias literárias e buscam a conformação das suas vidas a partir de padrões que são externos – a própria idéia de vida enquanto projeto e realização, com uma agenda, no fim das contas é uma ficcionalização autobiográfica, uma tentativa de enquadramento narrativo de existências que só podem ser caóticas (e as inseguranças dos indivíduos em relação a futuros afetivos, profissionais ou econômicos talvez decorram um pouco disso). Estas Julias, que se parecem com as da ficção, escolheram ser aceitas.

Outras Julias, entretanto, talvez não se enquadrem nestes padrões. Talvez busquem na existência não um enquadramento a partir de expectativas (a repetição na vida de um texto já escrito), mas se movam sem um sentido teleológico, sem agenda, sem um preenchimento de vazios que foram criados a partir de modelos que lhes foram narrados. Estas outras Julias, as que se parecem mais com pessoas reais, escolheram viver.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Bota-abaixo


Amanda Alvarenga

No final do século XIX e na primeira década do XX, a cidade do Rio de Janeiro passou por um processo de transformação e hábitos cotidianos. Neste período, a então capital contava com um pouco menos de 1 milhão de habitantes, desses a maioria era composta por negros acrescidos ao contingente de outras regiões que migraram do campo para a cidade busca de novas oportunidades no ramo de serviços e funções ligadas a atividade portuária. 

Essa camada numerosa e extremamente pobre da população foi levada a constituir e habitar favelas e cortiços. Os antigos casarões localizados nos centro da cidade, neste momento foram redivididos em inúmeros cubículos a fim abrigar famílias inteiras. Nesses ambientes as famílias viviam em condições extremamente precárias, sem acesso as mínimas condições de higiene, não havia acesso à esgoto nem a água, o que levou a cidade a pagar um alto preço pelo seu crescimento desordenado. Esse intenso crescimento populacional acrescido a falta de infra-estrutura urbana e as péssimas condições de higiene fizeram da cidade um foco constante doenças como cólera, febre amarela, varíola, que neste momento tornaram-se endêmicas.

A então capital da República, diante deste crescimento desordenado da cidade e das classes populares, transformou-se em uma ameaça constante a ordem, a segurança e moralidade pública na visão das autoridades, e é claro ao sonho de transformar o Rio de Janeiro nos moldes de uma grande metrópole européia, tal como Paris. A ascensão de de Campos Sales a presidência em 1902 deu novos rumos a cidade. 

A nomeação de Pereira Passos para prefeito e de Oswaldo Cruz para o cargo de diretor da saúde pública significou a execução do plano de reforma urbana e sanitária na cidade. Inicia-se assim o "bota-abaixo", processo de demolição de cortiços e favelas a fim acabar com os focos das doenças perniciosas e promover a remodelação da cidade nos moldes de Paris, promovendo assim alargamento de ruas, a remodelação do porto e a supervisão das construções na cidade.
Revista de História da  Biblioteca Nacional

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Os arquivos secretos da CIA


As origens, os mistérios (e as conspirações) da agência de espionagem mais poderosa que existe – e como ela mudou a história do planeta

Tiago Cordeiro

A manhã nasceu tranquila. Mas, às 7h48, uma nuvem com mais de 350 aviões japoneses se materializou do nada e bombas começaram a chover sobre a base de Pearl Harbor. Naquele 7 de dezembro de 1941, os americanos levaram a maior rasteira do século – e aprenderam, da forma mais dolorosa possível, a importância da espionagem. Surgiu ali a ideia de criar uma superagência de inteligência, capaz de descobrir os segredos e antecipar as ações de todos os outros países, fossem amigos ou inimigos dos EUA. Mas isso só aconteceria após o fim da 2a Guerra Mundial, em 1947, quando os americanos fundaram a Central Intelligence Agency. De lá para cá, a CIA se tornou conhecida pelo poder sinistro, capaz de influir nos destinos do planeta. Uma impressão ruim, que a agência tentou desfazer com um gesto de transparência: liberou na internet 12 milhões de páginas de documentos secretos, que revelam em detalhes suas ações até a metade da década de 1990 (os mais recentes permanecem confidenciais). Revelamos alguns desses episódios, que tiveram consequências profundas para o Brasil e outros países, ao longo desta reportagem. Mas, para compreendê-los, primeiro é preciso entender a história da CIA – que já começou com um segredinho.
A mão invisível

A sede da CIA fica na cidade de Langley, no Estado da Virgínia, onde trabalham 21.500 pessoas. Esse número não inclui espiões nem informantes, só os funcionários “oficiais”: advogados, programadores, engenheiros, economistas, especialistas em relações internacionais e comunicação, tradutores. Todos passam por três entrevistas (uma com polígrafo, para ver se a pessoa está falando a verdade), além de checagens do estado de saúde, do histórico familiar e laudos psicológicos detalhados.

Oficialmente, a agência tem dois objetivos: reunir informações sobre outros países e defender os segredos dos EUA, desmascarando e caçando os espiões estrangeiros. Mas há um terceiro objetivo, que nunca foi reconhecido oficialmente: realizar ações secretas em outras nações. “Na lei que criou a CIA, esse objetivo não era mencionado. Mas estava implícito para o presidente e o Congresso que a agência iria interferir no cenário político de outros países”, afirma o sociólogo americano David Barrett, autor de cinco livros sobre a agência. Ou seja, derrubar e empossar governos. A CIA conseguiu a primeira vitória já em 1948, na Itália. Ela apoiou financeiramente a Democracia Cristã, que venceu as eleições gerais e se manteve influente até os anos 1980. A ideia era evitar que o país fosse dominado pela esquerda local, de modo a conter a influência da URSS. A mesma coisa aconteceu no Japão, onde os americanos financiaram secretamente uma série de políticos, especialmente o primeiro-ministro Nobusuke Kishi, um ex-criminoso de guerra que governou o país entre 1957 e 1960.

O envolvimento não era meramente político. Em vários países da Europa, a agência financiou jornais, panfletos e programas de rádio que defendiam os interesses dos EUA e seus aliados. Na Grécia, a ação foi mais longe: a partir de 1947, a CIA encheu o país de dinheiro, armas e espiões e transformou Atenas em uma de suas maiores centrais. “A CIA teve um papel crucial para manter a Europa longe do comunismo”, afirmam Victor Marchetti e John Marks no livro CIA & The Cult of Intelligence (sem versão em português).
(Dulla/Superinteressante)


Na América Latina, as coisas deram mais certo ainda. Em 1954, a CIA se instalou na Guatemala e dali seguiu para Panamá, República Dominicana, Guiana, México, Honduras, Uruguai, Chile e Brasil – onde a agência trabalhou para derrubar o governo João Goulart, em 1964. O então presidente John Kennedy e o embaixador americano no País, Lincoln Gordon, apoiavam o golpe militar, e queriam usar os tentáculos da CIA para se aproximar da ditadura brasileira. “A agência pode deixar claro, discretamente, que nós não somos necessariamente hostis a nenhum tipo de ação da parte dos militares, desde que seja contra a esquerda”, afirma Kennedy num documento confidencial da época.

Em outros pontos do mundo subdesenvolvido, os agentes americanos também foram muito bem-sucedidos. Ajudaram a eleger presidentes ou derrubar governos no Vietnã do Sul, no Congo, no Laos, na Tailândia. É verdade que, em alguns casos, depois de vitórias inquestionáveis, a história se voltou contra a CIA: os agentes americanos mudaram o governo do Irã em 1953, mas foram surpreendidos por um golpe liderado pelo aiatolá Khomeini em 1979. O presidente do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, que chegou ao poder com apoio direto da agência em 1955, acabou assassinado em 1963 com o apoio da própria CIA, que apoiou os planos golpistas do general Le Van Kim. Mas isso desaguou na Guerra do Vietnã, que durou 19 anos e provocou a morte de quase 60 mil soldados americanos.

No Afeganistão, as coisas também tiveram um desfecho surpreendente. A CIA forneceu armas e dinheiro a forças rebeldes, que resistiram à invasão do país pela União Soviética. Só que, quando os russos foram embora, aqueles mesmos rebeldes fundaram o Talibã – que é inimigo dos EUA, e financiou os ataques de 11 de setembro de 2001. “A guerra secreta contra a União Soviética no Afeganistão deu origem a um inimigo muito mais letal, um grupo fundamentalista radical que foi basicamente criado pela própria CIA”, afirma o historiador americano John Prados, autor do livro The Secret Wars of the CIA(sem versão em português).

A agência financiou a tentativa de invasão de Cuba, em 1961, mas não teve sucesso. Ela perdeu todos os embates contra Fidel – a não ser no Congo, em 1965, onde milícias financiadas pelos EUA derrotaram os soldados cubanos, que eram comandados por Che Guevara. Derrotado, Che foi se esconder na Bolívia – onde foi caçado por Félix Rodrigues, um exilado cubano e agente da CIA. Acabou morto em 1967.

Incrivelmente, a CIA não sabia direito o que se passava em seu principal alvo: a URSS. Em 1953, foi pega de surpresa pela morte de Stálin – e não tinha informações sobre seu sucessor, Nikita Kruschev. Outro deslize ocorreu em 1960, quando um avião espião foi abatido ao sobrevoar a URSS. O piloto, Gary Powers, foi capturado e confessou que trabalhava para a CIA. O incidente deu início à fase mais tensa da Guerra Fria. Mas foi o marco zero dos programas de espionagem aérea da agência, que estão operando até hoje – com satélites e drones.

A CIA sempre investiu muito em tecnologia. Inventou câmeras fotográficas e gravadores minúsculos, e até robôs no formato de peixes para investigar a posição de submarinos inimigos. A partir da década de 1990, não se contentou em apenas espionar – e deu início aos ataques com drones armados, os Predator, que a agência opera em parceria com a Força Aérea dos EUA. Eles já realizaram mais de 2 mil missões no Oriente Médio. “O [então] presidente Obama foi um dos maiores entusiastas dessa solução, que envia fotos e vídeos em tempo real e ataca com eficácia sem colocar em risco a vida de militares americanos”, afirma o sociólogo David Barrett.
(Dulla/Superinteressante)


Ao mesmo tempo em que crescia e ganhava poder, a CIA enfrentava oposição em seu próprio país. Nos anos 1970, o Senado descobriu uma série de ações ilegais da agência. “Um dos erros mais graves foi investigar cidadãos americanos, em território americano. A CIA fez isso a mando de vários presidentes. Kennedy mandou investigar jornalistas, Johnson e Nixon pediram detalhes sobre ativistas”, afirma David Barrett. A coisa explodiu com o escândalo Watergate, em 1972, em que Nixon usou ex-funcionários da agência para espionar adversários políticos.

Outro baque veio em 2001, quando o setor de inteligência americano sofreu o maior revés desde Pearl Harbor. A CIA foi criticada por não conseguir prever os ataques do 11 de Setembro e, pela primeira vez em sua história, passou a responder a uma autoridade superior: a Diretoria de Inteligência Nacional (DNI), que manda na agência. Com isso, a CIA perdeu prestígio. Mas ainda é (muito) poderosa. Entre 2003 e 2006, administrou seu próprio centro de interrogatórios dentro do complexo de Guantánamo. Hoje, segundo uma investigação do Senado dos EUA, mantém prisões secretas no Afeganistão e em mais de 30 países, incluindo Austrália, Suécia e África do Sul.

Nos últimos anos, ela voltou seus esforços para a espionagem digital, com sucesso: em 2010, participou da criação do vírus Stuxnet, que infectou e queimou as máquinas de enriquecimento de urânio do programa nuclear iraniano.

A CIA usa seus hackers como soldados, mas também não está a salvo de ataques. O mais embaraçoso aconteceu em 2015. O diretor da agência, John Brennan, teve a conta de e-mail invadida, e as mensagens, publicadas na internet. Numa delas, ele se queixava das críticas feitas à agência, e dizia: “Certas coisas precisam ser feitas em segredo”. Dessa vez, a CIA não conseguiu.
Documentos revelados

Os pontos mais surpreendentes das 12 milhões de páginas confidenciais liberadas pela CIA na internet.

UM TÚNEL (NÃO MUITO) SECRETO
maio/1955
O relatório da CIA descreve um túnel de 450 m construído pelos EUA e pela Inglaterra sob Berlim Oriental, controlada pela URSS. A rede de telefonia da cidade era formada por cabos subterrâneos, e o túnel permitia alcançá-los e grampeá-los. O esquema funcionou por quase um ano, e rendeu 40 mil horas de grampos. Só havia um problema: como a própria CIA descobriu depois, os russos sabiam de tudo desde o início.

ABRE O OLHO, JANGO
8/fevereiro/1963
“Segundo o presidente Goulart, a URSS se ofereceu para construir uma usina hidrelétrica em Sete Quedas, perto da fronteira entre Brasil e Paraguai”, afirma o documento da agência, que manifesta preocupação com a “presença de grande número de soviéticos, por muitos anos, na região do Rio Paraná”. Um ano depois, João Goulart seria deposto – no golpe militar de 1964, que teve o apoio dos Estados Unidos.

URI GELLER É REAL?
agosto/1973
“Geller demonstrou sua habilidade paranormal de forma convincente e inequívoca”, afirma o relatório sobre o israelense Uri Geller, famoso por entortar garfos e realizar outros feitos difíceis de explicar. Ele foi convidado pela CIA para participar de uma semana de experiências. E teria conseguido, entre outras coisas impressionantes, visualizar e desenhar imagens que estavam penduradas numa sala ao lado.

CONTROLE DA MENTE
várias datas
Há muitos documentos da agência sobre o MK-Ultra, programa em que a CIA tentou desenvolver técnicas de lavagem cerebral e controle da mente. A agência fez experiências com LSD e outras substâncias. Oficialmente, o programa foi extinto em 1973, depois de vazar para a imprensa. Mas a CIA não abandonou o tema: produziu um relatório, em 1980, discutindo a viabilidade de “técnicas de perturbação remota”, como “telecinese”.

OBSESSÃO POR FIDEL
várias datas
A CIA elaborou centenas de documentos sobre Fidel Castro, incluindo planos para sabotá-lo e matá-lo. A principal operação ocorreu em setembro de 1960, quando a agência ofereceu dinheiro para que a Máfia americana mandasse alguém matar Fidel em Cuba, pondo veneno em sua comida. Depois de várias tentativas, a missão foi abortada – e a Máfia ameaçou vazar as informações para a imprensa.

O CASO IRÃ-CONTRAS
23/abril/1987
O então diretor da CIA, Robert Gates, instrui os funcionários a não destruir os registros da operação Irã-Contras. Nessa operação ilegal e secreta, que foi executada em 1985 (e acabara de vir à tona), a CIA vendeu clandestinamente armas ao Irã, para ajudá-lo a vencer a guerra contra o Iraque, e usou o lucro desse negócio para financiar os “Contras”, grupo que tentava derrubar a Frente Sandinista, organização de esquerda que governava a Nicarágua.

EM BUSCA DE ETS
1952 a 1996
A agência investigou detalhadamente suspeitas de OVNIs na Alemanha, na URSS, nos EUA, na Inglaterra e na Lituânia – o episódio mais recente, de 1996. Policiais tentaram se aproximar de um objeto que havia caído do céu. “Quando chegaram a 50 metros, a esfera se moveu e decolou rapidamente.” A CIA dava bastante atenção a possíveis discos voadores porque considerava que, se existissem, eles poderiam ameaçar a segurança dos Estados Unidos.

TORTURA COM OUTRO NOME
2004
O relatório fala sobre o “suposto uso” de tortura no interrogatório de acusados de terrorismo. Depois de afirmar que a CIA não encoraja ou endossa nenhum tipo de tortura, o documento descreve “técnicas aprimoradas” que poderiam ser usadas – como o afogamento simulado (waterboarding). Finaliza dizendo que “não há indícios suficientes” para processar nenhum dos supostos torturadores. Em 2006, o afogamento simulado acabou proibido.
Revista Superinteressante