MONOGAMIA E CASAL
Justas núpcias ou concubinato, a monogamia reina sozinha. Mas monogamia e casal não são a mesma coisa. Não perguntaremos aqui como realmente decorria a vida cotidiana de maridos e esposas, e sim como a moral vigente, nas diferentes épocas, exigia que um marido considerasse a mulher: como uma pessoa, sua igual, a rainha fazendo par com o rei (mesmo que a dita rainha lhe servisse de criada sob um nome [pág. 45]
mais honroso)? Ou como uma criaturinha eternamente menor, cuja única importância consistia em ser a instituição do casamento personificada? A resposta é simples: no século I antes de nossa era um romano deve considerar-se um cidadão que cumpriu todos os seus deveres cívicos; um século depois, deve considerar-se bom marido e oficialmente respeitar a mulher. Em outros termos, chegou um momento em que se interiorizou numa moral essa instituição cívica e dotal que era o casamento monogâmico. Por que tal mudança? Michel Foucault acha que o papel dos homens, dos machos, muda quando o Império sucede a República e as cidades gregas independentes; os membros da classe dirigente, cidadãos militantes que eram, tornam-se notáveis locais e fiéis súditos do imperador. O ideal greco-romano de autodomínio, de autonomia, estava ligado à vontade de exercer também um poder sobre a vida pública (ninguém é digno de governar se não sabe se governar); no Império, a soberania sobre si mesmo deixa de ser uma virtude cívica e torna-se um fim em si: a autonomia proporciona a tranqüilidade interior e a independência em relação à Fortuna e ao poder imperial. Esse era eminentemente o ideal do estoicismo, a mais difundida das seitas de sabedoria, ou "filosofias", que exercia então tanta influência quanto às ideologias ou a religião entre nós. Ora, o estoicismo pregou à exaustão a nova moral do casal. Uma ressalva: tudo que vamos contar vale apenas para um vigésimo ou um décimo da população livre, para a classe rica, que se presumia também culta; a documentação não nos permite ir além. Nos campos italianos, os camponeses livres, pequenos proprietários ou meeiros dos ricos, eram casados: não se sabe mais sobre eles; civismo ou estoicismo, tais opções não lhes diziam respeito.
Moral cívica, depois moral do casal. Quando se passou de uma à outra, em um século ou dois, o que mudou foi menos a conduta das pessoas (não sejamos demasiado otimistas), ou mesmo o conteúdo das normas que se devia seguir, do que uma coisa mais formal e contudo mais decisiva: a condição pela qual cada moral se arrogava o direito de dar ordens e ao mesmo tempo a [pág. 46]
maneira como considerava as pessoas: soldados do dever cívico ou criaturas morais responsáveis. E essas formas comportavam o conteúdo. A primeira moral dizia: "Casar-se é um dos deveres de cidadão". A segunda: "Quem quer ser um homem de bem só deve fazer amor para ter filhos; o estado do casamento não serve aos prazeres venéreos". A primeira moral não questiona a fundamentação das normas: como apenas as justas núpcias permitem gerar cidadãos de modo regulamentar, deve-se obedecer e casar.
A Segunda, menos militarista, quer descobrir um embasamento das instituições; como o casamento existe e sua duração ultrapassa em muito o dever de gerar filhos, deve ter outra razão de ser, fazendo com que dois seres racionais, o esposo e a esposa, vivam juntos durante toda a sua existência, ele é, portanto, uma amizade, uma afeição duradoura entre duas pessoas de bem, que só hão de fazer amor para perpetuar a espécie. Em suma, a nova moral queria dar prescrições justificadas a pessoas racionais; sendo incapaz de ousar criticar as instituições, cabia-lhe descobrir um fundamento não menos racional no casamento. Essa mistura de boa vontade e conformismo gerou o mito do casal.
Na velha moral cívica, a esposa era apenas um instrumento da função de cidadão e chefe de família; fazia filhos e aumentava o patrimônio. Ma segunda moral, a mulher é uma amiga; tornou-se "a companheira de toda uma vida". Só lhe resta continuar racional; quer dizer, conhecendo sua inferioridade natural, obedecer; o esposo a respeitará como um verdadeiro chefe respeita seus auxiliares devotados, que são seus amigos inferiores.
Em suma, o casal chegou ao Ocidente no dia em que a moral decidiu se perguntar por que boa razão um homem e uma mulher deviam passar a vida juntos e não mais aceitou a instituição como uma espécie de fenômeno natural.
mais honroso)? Ou como uma criaturinha eternamente menor, cuja única importância consistia em ser a instituição do casamento personificada? A resposta é simples: no século I antes de nossa era um romano deve considerar-se um cidadão que cumpriu todos os seus deveres cívicos; um século depois, deve considerar-se bom marido e oficialmente respeitar a mulher. Em outros termos, chegou um momento em que se interiorizou numa moral essa instituição cívica e dotal que era o casamento monogâmico. Por que tal mudança? Michel Foucault acha que o papel dos homens, dos machos, muda quando o Império sucede a República e as cidades gregas independentes; os membros da classe dirigente, cidadãos militantes que eram, tornam-se notáveis locais e fiéis súditos do imperador. O ideal greco-romano de autodomínio, de autonomia, estava ligado à vontade de exercer também um poder sobre a vida pública (ninguém é digno de governar se não sabe se governar); no Império, a soberania sobre si mesmo deixa de ser uma virtude cívica e torna-se um fim em si: a autonomia proporciona a tranqüilidade interior e a independência em relação à Fortuna e ao poder imperial. Esse era eminentemente o ideal do estoicismo, a mais difundida das seitas de sabedoria, ou "filosofias", que exercia então tanta influência quanto às ideologias ou a religião entre nós. Ora, o estoicismo pregou à exaustão a nova moral do casal. Uma ressalva: tudo que vamos contar vale apenas para um vigésimo ou um décimo da população livre, para a classe rica, que se presumia também culta; a documentação não nos permite ir além. Nos campos italianos, os camponeses livres, pequenos proprietários ou meeiros dos ricos, eram casados: não se sabe mais sobre eles; civismo ou estoicismo, tais opções não lhes diziam respeito.
Moral cívica, depois moral do casal. Quando se passou de uma à outra, em um século ou dois, o que mudou foi menos a conduta das pessoas (não sejamos demasiado otimistas), ou mesmo o conteúdo das normas que se devia seguir, do que uma coisa mais formal e contudo mais decisiva: a condição pela qual cada moral se arrogava o direito de dar ordens e ao mesmo tempo a [pág. 46]
maneira como considerava as pessoas: soldados do dever cívico ou criaturas morais responsáveis. E essas formas comportavam o conteúdo. A primeira moral dizia: "Casar-se é um dos deveres de cidadão". A segunda: "Quem quer ser um homem de bem só deve fazer amor para ter filhos; o estado do casamento não serve aos prazeres venéreos". A primeira moral não questiona a fundamentação das normas: como apenas as justas núpcias permitem gerar cidadãos de modo regulamentar, deve-se obedecer e casar.
A Segunda, menos militarista, quer descobrir um embasamento das instituições; como o casamento existe e sua duração ultrapassa em muito o dever de gerar filhos, deve ter outra razão de ser, fazendo com que dois seres racionais, o esposo e a esposa, vivam juntos durante toda a sua existência, ele é, portanto, uma amizade, uma afeição duradoura entre duas pessoas de bem, que só hão de fazer amor para perpetuar a espécie. Em suma, a nova moral queria dar prescrições justificadas a pessoas racionais; sendo incapaz de ousar criticar as instituições, cabia-lhe descobrir um fundamento não menos racional no casamento. Essa mistura de boa vontade e conformismo gerou o mito do casal.
Na velha moral cívica, a esposa era apenas um instrumento da função de cidadão e chefe de família; fazia filhos e aumentava o patrimônio. Ma segunda moral, a mulher é uma amiga; tornou-se "a companheira de toda uma vida". Só lhe resta continuar racional; quer dizer, conhecendo sua inferioridade natural, obedecer; o esposo a respeitará como um verdadeiro chefe respeita seus auxiliares devotados, que são seus amigos inferiores.
Em suma, o casal chegou ao Ocidente no dia em que a moral decidiu se perguntar por que boa razão um homem e uma mulher deviam passar a vida juntos e não mais aceitou a instituição como uma espécie de fenômeno natural.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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