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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Notícias História Viva




Cientistas desvendam profecia maia do 'fim do mundo em 2012'
Especialistas se reúnem no México para discutir teorias apocalípticas geradas a partir da filosofia do tempo de antiga civilização.

Arqueólogos de diversos países se reuniram no Estado de Chiapas, uma área repleta de ruínas maias no sul do México, para discutir a teoria apocalíptica de que essa antiga civilização previra o fim do mundo em 2012.

A teoria, amplamente conhecida no país e contada aos visitantes tanto no México como na Guatemala, Belize e outras áreas onde os maias também se estabeleceram, teve sua origem no monumento nº 6 do sítio arqueológico de Tortuguero e em um ladrilho com hieróglifos localizado em Comalcalco, ambos centros cerimoniais em Tabasco, no sudeste do país.

O primeiro faz alusão a um evento místico que ocorreria no dia 21 de dezembro de 2012, durante o solstício do inverno, quando Bahlam Ajaw, um antigo governante do lugar, se encontra com Bolon Yokte', um dos deuses que, na mitologia maia, participaram do início da era atual.

Até então, as mensagens gravadas em "estelas" - monumentos líticos, feitos em um único bloco de pedra, contendo inscrições sobre a história e a mitologia maias - eram interpretadas como uma profecia maia sobre o fim do mundo.

Entretanto, segundo o Instituto Nacional de Antropologia e História (Inah), uma revisão das estelas pré-hispânicas indica que, na verdade, nessa data de dezembro do ano que vem os maias esperavam simplesmente o regresso de Bolon Yokte'.

"(Os maias) nunca disseram que haveria uma grande tragédia ou o fim do mundo em 2012", disse à BBC o pesquisador Rodrigo Liendo, do Instituto de Pesquisas Antropológicas da Universidade Autônoma do México (Unam).

"Essa visão apocalíptica é algo que nos caracteriza, ocidentais. Não é uma filosofia dos maias."

Novas interpretações

Durante o encontro realizado em Palenque, que abriga uma das mais impressionantes ruínas maias de toda a região, o pesquisador Sven Gronemeyer, da Universidade australiana de Trobe, e sua colega Bárbara Macleod fizeram uma nova interpretação do 6º monumento de Tortuguero.

Para eles, os hieróglifos inscritos na estela se referem à culminação dos 13 baktunes, os ciclos com que os maias mediam o tempo. Cada um deles era composto por 400 anos.

"A medição do tempo dos maias era muito completa", explica Gronemeyer. "Eles faziam referência a eventos no futuro e no passado, e há datas que são projetadas para centenas, milhares de anos no futuro", afirma.

Para a jornalista Laura Castellanos, autora do livro "2012, Las Profecias del Fin del Mundo", o sucesso da teoria apocalíptica junto à cultura ocidental se deve a uma "onda milenarista" que, segundo ela, "antecipa catástrofes ou outros acontecimentos cada vez que se completam dez séculos".

Para Castellanos, esse tipo de efeméride é reforçada por uma "crise ideológica, religiosa e social".

Ela observa que as profecias sobre 2012 não têm somente uma "vertente catastrófica", mas também uma linha que "prognostica o despertar da consciência e o renascimento de uma nova humanidade, mais equitativa".

Crença no final

A asséptica explicação científica e histórica vai de encontro à crença popular no México, um país onde há quem procure adquirir os conhecimentos necessários para sobreviver com seu próprio cultivo de alimentos em caso de uma catástrofe mundial.

Muitos dos que vivem fora procuram regressar ao país porque sentem que precisam estar em casa em 2012, e há empresas que oferecem espaço em bunkeres subterrâneos, com todas as comodidades.

Afinal, o possível fim do mundo também é negócio. O próprio governo mexicano lançou uma campanha para promover o turismo no sudeste do país, onde estão localizados os sítios arqueológicos maias.

Muitos governos dos Estados onde existem ruínas da antiga civilização maia já estão registrando aumento na chegada de turistas. BBC Brasil

domingo, 6 de março de 2011

Lázaro Cárdenas fez reforma agrária no México

Érica Alves da Silva*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Divulgação/Fondo de Cultura Económica

O presidente mexicano Lázaro Cárdenas (1934-1940)

Reconhecer os significados do governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) no México não é uma tarefa simples. Primeiro, porque ainda existe no estudo desse contexto histórico uma variedade de interpretações. Há aqueles que consideram suas ações populistas, enquanto outros negam essa interpretação.

Segundo, porque durante seu mandato presidencial Cárdenas conquistou apoio de diferentes grupos da sociedade mexicana, muitas vezes com interesses divergentes, como as massas camponesa e operária, além de alguns líderes do PNR (Partido Nacional Revolucionário). Este tipo de relação levou a várias caracterizações de sua figura, sendo chamado tanto de revolucionário como de reformista. E, por último, porque sua história ajuda a compreender o processo da revolução mexicana.

Origem humilde de Lázaro Cárdenas

Nascido em 1895 na cidade de Jiquilpan e tornando-se arrimo de família muito jovem, depois da morte do pai, Cárdenas precisará ter dois empregos. Desde jovem posiciona-se criticamente em relação à situação do país, que vivia sob influência do porfiriato, período de aproximadamente 30 anos em que o general Porfirio Díaz governou o México de forma intermitente de 1876 até 1911.

Cárdenas engaja-se no exército revolucionário em 1913, depois de receber uma ordem de prisão pela criação de um jornal de oposição ao regime. Nesse jornal Cárdenas demonstrava o descontentamento com as condições mexicanas, defendia o programa de Madero (que governou o México de 1911 a 1913), que visava reformas políticas e era contrário à reeleição.

É fundamental ressaltar que o programa de Madero respondia às aspirações da classe média, boa parte dela formada por ricos proprietários e dissidentes do porfiriato. Para as comunidades indígenas, o objetivo central era livrar-se de qualquer incômodo causado pelo governo, como a alta cobrança de impostos.

Embora tenha estudado pouco, Cárdenas era alfabetizado (e também autodidata), o que facilitou galgar à posição de segundo capitão no exército, responsável pela correspondência do general Garcia Aragón no Exército Revolucionário Constitucionalista, com chance de subir na hierarquia militar.

Reivindicações populares

Nesse contexto se tornava cada vez mais visível a cisão entre os líderes do Exército Constitucionalista, com visão mais moderada, e aqueles que desejavam uma revolução popular, como Zapata e Villa, fortemente ligados às idéias de reforma agrária.

Mesmo com a diferença entre os moderados e os grupos de Villa e Zapata, com o passar do tempo o grupo de Cárdenas (moderados) passou a incorporar algumas reivindicações da população. É neste sentido que Carranza (novo líder de Cárdenas depois da morte de Garcia Aragon) ampliará suas relações com as idéias de reforma agrária.

No ano de 1928, Lázaro Cárdenas passa a dedicar-se à política institucionalizada e torna-se governador de Michoacán. Três anos depois, torna-se presidente do PNR (Partido Nacional Revolucionário) e, já em 1934, presidente do México.

Intervenção estatal

Durante o espaço de tempo de 1928 a 1933, Cárdenas orienta as ações políticas que efetivará na presidência. Durante esses anos já se configura a defesa da intervenção estatal na economia e na política, além de "concessões" às massas camponesas e operárias, para conter o avanço de suas reivindicações.

Cárdenas fazia parte do que se denomina ala esquerda do PNR, grupo representado também pelos generais Obregón e Francisco Múgica, mais comprometidos com as reivindicações dos operários e camponeses que o restante do partido.

No governo de Obregón (1920-1924) houve crescimento do movimento operário e as leis trabalhistas foram mais respeitadas. Entretanto, o movimento operário já se encontrará atrelado ao Estado no governo de seu sucessor, Calles (1924-1928). Este general se manterá no poder no México durante o período de 1928 a 1935 (período denominado maximato), no cargo de chefe máximo da revolução. Isso lhe possibilitará nomear e destituir todos os presidentes mexicanos até a chegada de Cárdenas à presidência do país.

Conciliador de conflitos

Enquanto governador de Michoacán, Cárdenas inicia seu papel de árbitro e conciliador de conflitos, que caracterizará sua ação presidencial. Cárdenas já procura conciliar os interesses do operariado e do patronato, efetuar a divisão de latifúndios, criar novas escolas, incentivar a educação popular e organizar a frente única de operários, camponeses e estudantes.

Em 1930, Lázaro Cárdenas deixa temporariamente o governo de Michoacán e assume a presidência do PNR. Devido à crise mundial decorrente da quebra da bolsa de Nova York, há a efervescência das pressões populares e mais uma vez sua ação se mostra conciliadora. Cárdenas procura obter base de apoio popular pautado na idéia de reconstrução nacional, na busca por reformas e é desta maneira que desenvolverá sua política de massas durante o mandato presidencial.

Sua presidência caracteriza-se pela implementação de uma forte política de massas e pela efetivação de uma série de reformas sociais que respondem às aspirações da classe trabalhadora.

As ações de Cárdenas devem ser analisadas dentro do contexto da Grande Depressão, que obrigou diversos governos a dar prioridade às questões sociais. Entretanto, no México, especificamente, essas reformas tinham significado especial, que era a criação de uma "Nova Nação", pautada no ideário da revolução mexicana, ou seja, na esperança de criação de uma sociedade em que todos tivessem igualdade.

Reforma agrária

Durante a presidência de Cárdenas realizou-se uma grande transformação na estrutura fundiária mexicana. É importante salientar que a divisão de terras no México já estava em andamento nos governos anteriores ao de Cárdenas, mas sua firme atuação em relação à reforma agrária não tinha precedentes na história do país. Ele efetua tal transformação devido à pressão política das massas camponesas, já que a estabilidade política do país dependia desse posicionamento.

Uma das ações mais conhecidas de seu governo foi a nacionalização da exploração do petróleo mexicano. Cárdenas "aproveitou" o choque entre as companhias de petróleo, em sua maioria inglesas e americanas, e o movimento operário, que reivindicava melhores condições de trabalho e aumento salarial, para nacionalizar a exploração do subsolo mexicano.

Para justificar tal atitude Lázaro Cárdenas utiliza um artigo (número 17) da constituição revolucionária de 1917, que permitia acabar com o que era considerado privilégio das companhias petrolíferas. Na realidade a alta lucratividade das empresas e os baixos salários dos trabalhadores justificavam tal atitude, que se tornou também símbolo da luta pela soberania mexicana e de patriotismo.

Dessa maneira pode-se concluir que o governo de Lázaro Cárdenas teve de reconhecer os movimentos sociais (camponeses e operários) como interlocutores políticos. Atender as suas antigas reivindicações, que levaram a significativas reformas sociais, era uma questão latente e ao mesmo tempo uma estratégia para manter as tensões desses grupos sob controle.
*Érica Alves da Silva é historiadora.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Chávez Ravine: uma história americana


photos from Chavez Ravine: 1949: A Los Angeles Story

Chávez Ravine: uma história americana
Durante a década de 1950, a comunidade mexicana em Los Angeles resistiu à polícia e ao preconceito. Mas acabou expulsa da terra que ocupara durante mais de um século

por Yuri Vasconcelos

A manhã quente e poeirenta de 8 de maio de 1959 marcou a vida de Manuel Arechiga e sua família. Naquele dia, eles foram arrastados de suas casas por policiais e expulsos do local onde viveram por mais de 30 anos. Aos berros, agarrando-se em móveis e tudo o mais que encontrasse pela frente, Abrana, a matriarca, exigia que a deixassem ficar. Aurora, a filha mais velha, foi presa. A brutal cena foi registrada por fotógrafos e emissoras de televisão que cobriam a expulsão da última família de Chávez Ravine, uma comunidade pobre da periferia de Los Angeles, na Califórnia. Menos de uma hora depois, tratores colocavam abaixo o lar dos Arechiga.

Os fatos ocorridos em Chávez Ravine são a síntese de uma história marcada por injustiça, intolerância e especulação imobiliária. Para entender por que os Arechiga e tantos outros foram privados de seu lar, é preciso recuar no tempo. Uma década antes da expulsão, 300 famílias viviam em Chávez Ravine. Lá, imigrantes mexicanos se misturavam a descendentes das pessoas que ocuparam a região desde quando ela ainda nem ficava nos Estados Unidos.

A comunidade ficava encravada num vale ao norte de Los Angeles, cercada por um extenso bosque chamado Parque Elysian. No passado, Chávez Ravine já havia abrigado uma aldeia de índios, uma fazenda de gado e um cemitério judeu. Seu nome homenageava Julian Chavez, um dos primeiros líderes da região, que comprara aquelas terras em 1840 – quando a Califórnia ainda era do México. Em cem anos, os três pequenos povoados (La Loma, Palo Verde e Bishop) que compunham o bairro de 1,3 quilômetro quadrado criaram um estilo de vida auto-suficiente. Plantavam, criavam animais e educavam as crianças numa escola local, isolados da metrópole que se agigantava. Era uma xangrilá dos despossuídos.

O destino de Chávez Ravine começou a mudar em 24 de julho de 1950, quando lá chegou um ofício emitido pela Autoridade de Habitação de Los Angeles. Em 26 linhas, ele informava que o local havia sido escolhido para um projeto de reurbanização e que todos deveriam abandonar suas casas. Elas dariam espaço para 24 edifícios de 13 andares e 163 residências de dois pavimentos, que formariam um empreendimento batizado de Colinas do Parque Elysian. Os cerca de 1100 moradores do local, prometia a carta, teriam prioridade na ocupação das novas moradias. A notícia caiu como uma bomba na comunidade, que não havia sido consultada sobre qualquer insatisfação com o lugar onde morava.

Alguns recusaram-se a sair, mas muitos, atraídos pelo valor da desapropriação – quase sempre injusto –, deixaram para trás suas casas, seus amigos e suas memórias. Entre eles a família do jovem Albert Elias, nascido em Palo Verde, em 1931. “Certa noite, nós estávamos jantando e meu pai disse: ‘Vendi a casa. Eles me ofereceram 9 600 dólares. Achei que estava bom’”, recorda-se Elias, em depoimento ao fotógrafo Don Normark, autor do livro Chávez Ravine, 1949: A Los Angeles Story (“Chávez Ravine, 1949: Uma história de Los Angeles”, inédito no Brasil). Segundo Normark, que no final da década de 1940 registrou o dia-a-dia da comunidade em centenas de fotos (como as desta reportagem), o projeto tinha boas intenções. “Perto do centro da cidade, com apenas 40% de sua área ocupada, Chávez Ravine parecia oferecer aos planejadores e arquitetos uma oportunidade ideal para melhorar a vida daqueles moradores de baixa renda”, disse. Mas a iniciativa não traria benefício algum para os que lá viviam.

Naqueles tempos de pós-guerra, os Estados Unidos viviam uma histeria anticomunista. Qualquer pessoa suspeita de simpatia com o regime soviético era convocada a se explicar. A chamada “caça às bruxas” destruiu reputações e condenou centenas de inocentes à prisão. E o que isso tem a ver com Chávez Ravine? Simples: os críticos do programa de reurbanização se valeram da paranóia e taxaram seus autores de socialistas, uma vez que o projeto tinha como finalidade distribuir casas aos mais necessitados. Um dos maiores defensores do projeto, Frank Wilkinson, diretor da Autoridade de Habitação de Los Angeles, foi chamado para depor, em agosto de 1952, no Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado. Ficou calado e foi acusado de ser um agente comunista. Perdeu o emprego e passou um ano na cadeia.

No ano seguinte, o projeto Colinas do Parque Elysian foi abandonado e a área foi vendida para a prefeitura de Los Angeles. Chávez Ravine foi, aos poucos, se transformado em uma cidade-fantasma. Água e luz foram cortadas, não havia coleta de lixo. A maioria das casas havia sido demolida e outras eram usadas para treinamento do Corpo de Bombeiros. Poucas famílias, como os Arechiga, ainda viviam clandestinamente no local.

É aí que entra o último grande personagem dessa história: Walter O’Malley, dono de um time de beisebol, os Dodgers. Ele queria tirar a equipe de Nova York, onde não conseguira lugar para construir um estádio. Sonhava levá-la para um outro grande mercado, a Califórnia (nos Estados Unidos, os times de beisebol têm donos, que podem levá-los para onde quiserem. Seria como o Flamengo deixar o Rio de Janeiro para se instalar em Fortaleza). No início de 1957, o prefeito de Los Angeles, Norris Poulson, percebeu a grande oportunidade: de um lado, um terreno ocioso, do outro, um empresário querendo construir um estádio que geraria novos negócios. Não teve dúvidas: cedeu a área, praticamente de graça, para O’Malley erguer a arena dos agora Los Angeles Dodgers. “Gastamos milhares de dólares e os Dodgers ficaram com tudo por apenas uma pequena fração do valor. Foi uma tragédia para o povo e uma das coisas mais hipócritas que poderia acontecer à cidade”, disse Frank Wilkinson no documentário Chávez Ravine: A Los Angeles Story, dirigido por Jordan Mechner e musicado por Ry Cooder (veja quadro na pág. 58).

A negociata, no entanto, gerou controvérsia, já que o vale deveria ser destinado a um bem público. O prefeito Poulson foi acusado de ter feito um acordo espúrio com o dono dos Dodgers. Os apoiadores da venda, entre eles o ator Ronald Reagan (que se tornaria, nos anos 1980, presidente dos Estados Unidos), acusavam os oponentes de ser “inimigos do beisebol”. Na época, uma campanha liderada pelo jornal Los Angeles Times difamou os moradores de Chávez Ravine. Com requintes de racismo contra descendentes de mexicanos, a comunidade foi acusada de abrigar plantações de maconha e esconderijos de bandidos. A celeuma só foi resolvida com um plebiscito, em dezembro de 1958. Por uma margem inferior a 2%, a população de Los Angeles deu a vitória aos Dodgers.

Em 1959, a polícia de Los Angeles foi terminar o serviço. E então voltamos à manhã onde começamos este texto. Depois que os policiais o tiraram de sua casa e os tratores demoliram seu lar, Manuel Arechiga ainda acampou, durante cinco dias, sobre os destroços. Em vão. Quatro meses depois, começaram as obras do estádio, que foi inaugurado em 10 de abril de 1962. Com capacidade para 56 mil pessoas, é, até hoje, a “casa dos Dodgers”, como dizem os americanos. Pouca gente, no entanto, conhece a história por trás da construção do estádio, que maculou a tão propalada democracia americana. “A lição fundamental é que líderes civis e burocratas com grandes projetos precisam respeitar a face humana de uma cidade tal qual a encontraram”, afirmou, ao jornal Los Angeles Times, o historiador Ronald Lopez, especialista em estudos sobre comunidades mexicanas nos Estados Unidos.

Atualmente, os antigos moradores de Chávez Ravine formam um grupo chamado Los Desterrados e encontram-se anualmente no Parque Elysian, local que era o playground de sua infância. Com o estádio dos Dodgers ao fundo, fazem piquenique com suas famílias e contam velhas histórias de uma comunidade que vivia em paz e harmonia e acabou sendo destruída pelo crescimento da grande metrópole.


Lado B
Ry Cooder lançouum disco sobre o fimda comunidade


Mais conhecido como produtor da banda Buena Vista Social Club, que redescobriu o trabalho de geniais músicos cubanos, o guitarrista e compositor americano Ry Cooder sabia muito pouco sobre Chávez Ravine quando foi convidado, há quatro anos, pelo fotógrafo Don Normark para fazer a trilha sonora do documentário Chávez Ravine: A Los Angeles Story. Apaixonou-se pelo projeto e convidou personagens e músicos com origem na própria comunidade para participar da produção da trilha. O resultado foi o álbum Chávez Ravine, um libelo político-social com 15 músicas que contam, por meio da rumba, da polca, do jazz, do R&B e de outros ritmos, um pedaço vergonhoso da história americana. No site www.nonesuch.com/Hi_Band/rycooder, você pode ouvir quatro das faixas do disco, inclusive “Poor Man Shangri-la”, que é um verdadeiro retrato cantado da vida no antigo bairro de Chávez Ravine.
Saiba mais

Livro
Chávez Ravine: A Los Angeles Story, Don Normark, Chronicle Books
Revista Aventuras na História

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Registros documentais no cinema da Revolução Mexicana


Registros documentais no cinema da Revolução Mexicana

Maurício de Bragança
Professor de História da América do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ



RESUMO

Este artigo pretende focar as relações entre cinema e história nas duas primeiras décadas do século XX no México. O cinema foi apresentado pela primeira vez no país em uma sessão dedicada a Porfirio Díaz. Percebendo seu potencial propagandístico, o ditador logo se converteria na primeira grande estrela do cinema mexicano. O cinema forjava-se como "documento histórico" stricto sensu, num registro da verdade inquestionável. A Revolução redefiniu seu papel, registrando a ebulição pela qual passava a sociedade em documentários que se distanciavam do mero aspecto da curiosidade espetacular para atingir uma verdadeira presença do realizador junto ao cenário político nacional. O desdobramento da Revolução, com a superação da fase insurrecional, e o processo de domesticação do discurso revolucionário no âmbito oficial acabaram por esvaziar o teor de contestação das imagens documentais. A imagem do corpo de Zapata assassinado, que circulou pelo território nacional, é um emblema deste projeto.

Palavras-chave: cinema, história, Revolução Mexicana


As relações entre cinema e história apresentam complexidades de diversas naturezas, entre ética, epistemológica e, sobretudo, metodológica. Neste sentido, ao se trabalhar a textualidade produzida pelo cinema como uma fonte rica e vigorosa para o historiador, é necessário tomar alguns cuidados e é imprescindível tecer algumas discussões pertinentes ao campo das interdisciplinaridades. Metodologicamente, podemos afirmar que o engajamento do historiador ao campo cinematográfico se constrange de um método stricto sensu, como já o localizou Phillipe Dubois, mas há um instrumental a ser utilizado e há, sobretudo, uma tomada de posição do historiador.

E, nesse sentido, as discussões sobre cinema e história ampliam suas bases para posturas éticas do pesquisador diante do objeto estudado e, principalmente, diante do cinema (e da cultura visual de um modo mais amplo) como registro de fonte documental. E aqui residem os primeiros problemas para os pesquisadores interessados no "uso de imagens como evidência histórica" (Burke, 2004, p.11). Nas últimas décadas, a interrogação da imagem foi reprocessada sob uma perspectiva que colocava o estudo da cultura como um ponto central para as ciências humanas, conduzindo, segundo Knauss (2006, p.107), a uma "revisão do estatuto do social".

Nesse contexto, o lado subjetivo das relações sociais ganhou espaço e consolidou uma tendência que passou a sublinhar como a cultura – o sistema de representações – instigava as forças sociais de um modo geral, não sendo mero reflexo de movimentos da política ou da economia. A virada cultural destacou os vínculos entre conhecimento e poder, o que serve, igualmente, para demarcar o estudo das imagens. A cultura visual seria, portanto, um desdobramento de um movimento geral de interrogação também sobre a cultura em termos abrangentes. (ibidem)

Neste sentido, torna-se importante recuperar as discussões propostas por Jacques Le Goff no célebre artigo Documento/Monumento, no qual o autor, recuperando uma espécie de construção dos discursos da tradição sobre o monumento, lugar de reafirmação de uma memória coletiva, problematiza as relações entre história/documento/monumento, alargando o conceito de documento (gesto já iniciado desde os fundadores da École des Annales) e partilhando, inclusive, da idéia foucaultiana de suspeitar do monumento. Numa espécie de síntese de seu pensamento, Le Goff sentencia:

A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos "neutra" do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. Os medievalistas, que tanto trabalharam para construir uma crítica – sempre útil, decerto – do falso, devem superar esta problemática porque qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. (Le Goff, 1996, p.547-8)

A conclusão de Le Goff sobre a aparência de verdade que encobre o documento vai ao encontro de Ismail Xavier (2005) quando, ao analisar o caráter de dissimulação do cinema, convoca-o a partir da chave "revelação-engano". Nestas considerações também são descartadas – ou ao menos profundamente relativizadas quando o objeto é o cinema – a idéia de verossimilhança e fidelidade. Isso não quer dizer que a história não esteja presente na articulação do texto cinematográfico, ao contrário, ela apresenta parâmetros para construção do discurso cinematográfico, não se constituindo um mero pano de fundo ou contexto. As relações entre cinema e história se apresentam, portanto, muito mais complexas e problemáticas.

Nas articulações possíveis e necessárias entre o campo da história e o campo da cultura visual estão imbricadas discussões acerca das linguagens, das representações e das práticas sociais que oferecem os aportes imprescindíveis para a problematização das relações entre as formas simbólicas e o mundo social, como muito bem apontou Roger Chartier (2006) em um ensaio em que interroga a "nova história cultural". Localizando o campo de disputa em que se situa a política de representações culturais no âmbito da história, Chartier elucida:

A uma abordagem clássica, ligada à localização objetiva das divisões e das diferenças sociais, ela [a nova história cultural] opõe a sua construção móvel, instável, conflitual, a partir das práticas sem discurso, das lutas de representação e dos efeitos performativos dos discursos. (idem, p.29)

Tais discussões já haviam sido sistematizadas nos estudos do historiador Marc Ferro (1976), cujo clássico texto "O filme: uma contra-análise da sociedade?" tornou-se referência para muitos historiadores que se debruçavam sobre o filme como forma de interrogar a história. Ferro (idem, p.202) lança a questão sobre o aspecto de representação de realidade apreendida, ou reconduzida, pelo cinema: "de que realidade o cinema é verdadeiramente a imagem?" Assim, o historiador francês parece apontar o foco sobre os esquemas de representação, tornando mais espinhosa a questão da apropriação e manipulação dos discursos sobre a imagem e a própria produção da imagem em si.

No encaminhamento dessas preocupações, os historiadores já admitem que "a imagem não ilustra nem reproduz a realidade, ela a reconstrói a partir de uma linguagem própria que é produzida num dado contexto histórico" (Kornis, 1992, p.238). O cinema assume, assim, um local privilegiado como fonte capaz de apontar caminhos para a análise de comportamentos, de práticas sociais e políticas, e de projetos ideológicos em um determinado momento histórico. Isso possibilita descartar, de uma certa forma, a recorrência ao cinema como possibilidade de uma simples descrição da sociedade, como se o filme se prestasse a uma utilização como um parâmetro de confirmação da estrutura social apreendida em análises alheias ao objeto fílmico.

As posições de Marc Ferro têm sido questionadas por autores como Eduardo Morettin (2007), que aponta que, para o historiador francês, o cinema se apresenta como confirmação daquilo que o texto histórico indica, não conferindo relevância à textualidade da linguagem do cinema. Ao pensar as relações entre cinema e história a partir de dicotomias como "aparente" – "latente", "visível" –, "não visível" ou ainda "história" – "contra-história", Ferro despreza, segundo as considerações de Morettin, o caráter polissêmico da imagem, já que a obra cinematográfica seria vista como portadora de dois níveis de significado independentes. "Pelo contrário, afirmamos que um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo dessa tensão um dado intrínseco a sua própria estrutura interna" (Morettin, 2007, p.42). Para Morettin, Ferro nunca tomou de fato o cinema como objeto empírico para colocar em questão sua idéia do filme como contra-análise, passível de ser feito prioritariamente pela análise fílmica, quando o filme é "alçado ao primeiro plano" (idem, p.61). Somente a análise fílmica, para o pesquisador brasileiro, é capaz de recuperar o significado de uma obra cinematográfica, extraindo do filme as questões pertinentes a sua própria natureza enquanto objeto específico.

Com esse movimento, evitamos o emprego da história como pano de fundo, na medida em que o filme não está a iluminar a bibliografia selecionada, ao mesmo tempo que não isolamos a obra de seu contexto, pois partimos das perguntas postas pela obra para interrogá-lo. Dessa forma, impedimos que o cinema seja sufocado pela pesquisa histórica ... (idem, 2007, p.63)

Neste artigo pretendemos apresentar as problemáticas discussões entre cinema e história a partir da experiência dos documentários mexicanos da primeira e segunda décadas do século XX de forma que demonstre toda a complexidade deste diálogo. A história, sobretudo nos documentários que focaram a Revolução Mexicana, teve um papel para além de um mero contexto ou como pano de fundo, assim como os filmes nunca se colocaram como um simples sintoma do projeto histórico. Desta forma, as relações entre história e cinema apresentam um nível de complexidade que pretendemos adensar através da abordagem deste repertório fílmico produzido no México.

O cinema chegou ao México pela equipe dos irmãos Lumière em agosto de 1896, oito meses depois de apresentado pela primeira vez em Paris, e estreou numa sessão dedicada ao ditador Porfirio Díaz no Castelo de Chapultepec. A novidade teve uma grande repercussão na imprensa, que recebeu positivamente a "admirável invenção do aparato prodigioso". O jornal católico El Tiempo publicava, no dia 13 de setembro de 1896, uma elogiosa matéria que lamentava apenas que nas imagens que se haviam tomado da Cidade do México, e que chegariam a outras Nações, "... aparezcan tantos encamisados y tantos sucios ..." (De los Reyes, 1973, p.23).

Logo alguns empresários se interessariam em comprar o equipamento de filmagem e projeção da empresa Lumiére e passariam a viajar pelo interior do país para captar imagens que seriam exibidas ao público mexicano. Um desses empreendedores foi o engenheiro italiano Salvador Toscano, que acabou se convertendo numa figura-chave deste primeiro momento do cinema mexicano. Esta produção cinematográfica vinha impregnada de uma postura positivista, confirmando o cinema como um aparato científico que deveria registrar "a verdade" tal como era vista pelos olhos.

Numa primeiríssima fase deste cinema mexicano, que o historiador Aurelio de los Reyes (1973) situa entre 1896 e 1900 aproximadamente, a tendência era captar a realidade exterior num tipo de apreensão da imagem muito próxima à representação pictórica indicada pelas artes plásticas. A SIP (Secretaria de Instrução Pública), percebendo o potencial propagandístico do cinematógrafo, acabou convertendo o ditador Porfirio Díaz na primeira grande estrela do cinema mexicano, visto em pequenos registros documentais como El general Díaz despidiéndose de sus ministros, El general Díaz y sus ministros en Chapultepec, El general recorriendo el Zócalo, Grupo en movimiento del General Diaz y de algunas personas de su familia ou El General Diaz paseando a caballo en el bosque de Chapultepec (Luna, 1979). O presidente, inclusive, foi o protagonista do primeiro filme de larga metragem mexicano de que se tem notícia, o documentário Fiestas presidenciales en Mérida, filmado em 1906 pelo cinegrafista Enrique Rosas (Orozco; Bernal, 1985; Luna, 1979). Aos representantes da Lumière interessava difundir pelo mundo o novo invento e para isso a aproximação com os governantes era uma estratégia fundamental. Assim fora com Porfirio Díaz no México, com Félix Faure na França, com o imperador da Alemanha, com o czar russo, com a infanta Isabel de Espanha.

Díaz contaba con todos los tributos para constituirse en el primer héroe cinematográfico nacional. Su carisma fue aplaudido en aquellas imágenes en las que la mejor sociedad mexicana (aquella que tenía la decencia a flor de piel, el apellido antañón y amaba a la patria en la medida en que ésta es muy redituable) lo veía como un titán que preservaba el orden y el progreso con su poca política y mucha administración. (Luna, 1979, p.51)

Simultaneamente à chegada dos representantes da Lumière no México, chegavam também as sessões do Vitascopio de Edison, iniciando uma concorrência programada entre os franceses e os norte-americanos. Contudo, diferentemente da Companhia de Lumière, os filmes apresentados pelo Vitascopio eram fabricados em estúdio e contavam pequenas histórias de curta duração destinadas à diversão do público. As produções Lumière, além do entretenimento – que naquele final de século já era praticamente garantido devido ao assombro que despertava a novidade –, tinham também o objetivo de instruir e informar.

O cinematógrafo viria confirmar, no final do século XIX, o êxito de uma administração baseada numa idéia de "civilização e progresso". O imenso desenvolvimento de uma malha ferroviária, a luz elétrica, o processo de industrialização que se iniciava, a instalação de um sistema de iluminação pública (que era acompanhada com deslumbramento pela população que se emocionava diante da mágica das lâmpadas acesas), as obras de saneamento, a pavimentação das ruas, o projeto de planejamento urbano, tudo indicava os indícios de prosperidade econômica conseguida pela ditadura de Don Porfirio. O mundo foi testemunha das conquistas do projeto civilizatório mexicano na Exposição Universal de Paris, em 1900, quando o governo, ao escolher o modelo de construção de um pavilhão no melhor estilo clássico francês, descartava um outro projeto que propunha a construção de um prédio de características aztecas, já que era necessário afastar do imaginário internacional a idéia de um México ligado à "selvageria" pré-colombiana. O cinema, que era também fruto desse desenvolvimento industrial, tornava-se cúmplice desse progresso.

Por outro lado, esse progresso não chegava às periferias da capital e do país, que apresentavam condições de vida cada vez mais precárias sob um forte modelo de exclusão social da grande maioria das camadas populares. Para tais multidões, que começavam a chegar às cidades, os inventos trazidos pela modernização e pelo progresso não tinham, porém, um aspecto científico, mas sugeriam uma forma de entretenimento e diversão.

De todas as novidades que apareciam como aparatos modernos, o cinema foi o que teve uma difusão e aceitação mais generalizada, por um preço muito mais reduzido que outras diversões. Em apenas três anos, o valor da entrada para uma sessão de projeção de filmes numa das 22 salas de cinema que já se espalhavam pela Cidade do México havia baixado muito. Do valor de um peso – o mesmo que custava um assento na sombra na Plaza de Toros ou um lugar num camarote com luneta na ópera – passou a cinco ou três centavos (De los Reyes, 1997). Isso impulsionava a rápida popularização do cinema, que deixava de ser visto apenas como objeto de curiosidade científica (a partir dos estudos realizados para captação dos movimentos) e passava a ser experimentado como espetáculo de diversão pública.

A popularização do cinematógrafo era vista pelas classes mais abastadas como uma "vulgarização científica". Assim, os intelectuais foram abandonando suas esperanças no invento, que rapidamente se distanciava de seu aspecto "científico".

Durante los primeros seis meses después de su llegada a la Ciudad de México, el cine fue aceptado por todos los círculos sociales, pero pronto, literatos, científicos y algunos voceros de la sociedad lo menospreciaron por haberse convertido en un espectáculo ciento popular. A sus ojos se había convertido en un aparato de "vulgarización científica". (De los Reyes, 1973, p.65)

Embora ainda não se atribuísse um valor artístico ao cinematógrafo, e sim científico, a "estética" do invento seguia as ditadas pela arte naturalista do momento, que buscava captar a vida mexicana, ou o recorte que se fazia dela, em todos os seus detalhes ao demonstrar acima de tudo a "verdade" do assunto: reproduzir a paisagem mexicana, captando as cenas de costumes do país, para informar seu povo e o estrangeiro.

Os primeiros filmes apresentavam simples cenas corriqueiras que se assemelhavam à pintura. Os cinegrafistas necessariamente se inspiravam na Natureza para a elaboração de seus filmes, dando uma olhada na realidade exterior. Por isso esses filmes eram chamados de "vistas", nos quais se reproduzia a preocupação de pintores e literatos em captar o mundo exterior (De los Reyes, 1981). Desta forma se construía uma forte ligação entre a imagem cinematográfica e a idéia de realidade. O público reagia à aparição do general Porfirio Diaz na tela com entusiasmados aplausos assim como gritava olé e lançava seus sombreros ao ar em filmes de touradas, reproduzindo um comportamento de fora das salas de cinema e criando novas formas de sociabilidade a partir do "ato social de ir ao cinema". Numa crônica publicada no jornal El Universal do dia 27 de março de 1917, Hipólito Seijas descrevia o comportamento popular num típico cinema dos arrabaldes da cidade: "parece un mercado y no un lugar de espectáculos". A intensa participação do público durante as sessões era algo sempre destacado.

De repente la vista se pone fuera de foco y el público, como si se pusiera de acuerdo, comienza a patear; y si no le hacen caso, grita y se pone iracundo como un chiquillo, y si el operador no arregla con violencia el momentáneo desperfecto, los asistentes son capaces de destruir el cobertizo. La misma psicología de la multitud, cuando sale un toro manso o un auto no corre en la pista. (SEIJAS apud CASANOVA, 1992, p.144)

O cinema produziu, sem a necessidade dos artifícios da pintura, a ilusão de verdade. Cinematógrafo e kinetoscópio tornaram-se sinônimos de verdade. As "vistas" mexicanas se caracterizavam por refletir a vida mexicana: feitos importantes da vida nacional, festas pátrias, viagens do general Diaz, touradas e cidades de província. Cinema como documento histórico, já que a realidade poderia ser captada em toda a sua integridade. Para os intelectuais, graças a estes aparatos não era possível adulterar a história com notas tendenciosas.

Os empresários ambulantes percorriam o interior do país filmando aspectos da vida das cidades e exibindo-os a seus públicos até esgotar seu potencial, num cinema que se forjava sob um forte sentido de transumância (De los Reyes, 1973, 1997). No melhor estilo Lumière, esses empresários-cinematografistas registravam as imagens das pessoas em seus passeios de domingo, a saída das missas, o fim de expediente da fábrica, casamentos, festas oficiais e, sobretudo, o general Porfirio Díaz. Esses homens de cinema convertiam-se em produtores-cinegrafistas-exibidores, difundindo as imagens documentais mexicanas. E a história mexicana registrada pelo cinema tornava-se cada vez mais próxima ao discurso oficial da "belle époque" porfirista.

No último mandato de Don Porfirio (1904-1910), as câmeras se detinham em mostrar o progresso e o desenvolvimento alcançados pelo projeto da Pax Porfiriana, sob o lema positivista de "ordem e progresso". Enquanto as cerimônias oficiais despertavam a curiosidade das lentes do cinema – como o encontro entre Porfirio Díaz e o presidente dos Estados Unidos William Taft –, acontecimentos como os massacres dos trabalhadores pelas tropas do governo durante as greves de Cananea (1906) e Río Blanco (1907), mantinham-se longe das telas.

A Revolução de 1910 redefiniu o papel do cinematógrafo, registrando a ebulição pela qual passava a sociedade mexicana em documentários que aos poucos foram se distanciando do mero aspecto da curiosidade espetacular para atingir uma verdadeira presença do realizador junto aos movimentos que agitavam o cenário político nacional. A produção cinematográfica multiplicou-se entre 1910 e 1913, atingindo certa maturidade técnica e estética. A Revolução trazia mudanças importantes na realização documental, como uma complexidade na ordenação de imagens e o oferecimento de uma reportagem de um fato histórico como único número do programa (De los Reyes, 1986, p.14). Para o historiador do cinema mexicano Aurelio de los Reyes (1997), esta é a verdadeira Época de Ouro do cinema mexicano, quando o movimento revolucionário torna-se o grande protagonista, dividindo a cena com os filmes que retratavam o dia-a-dia da capital. Desde que chegara ao país, o cinema seguia majoritariamente dedicado ao registro documental.

O documentário da Revolução ainda era marcado por um olhar naturalista, que exigia "objetividade e imparcialidade". Abundavam nesses filmes as cenas de violência que marcavam o movimento, como as chocantes imagens da incineração de cadáveres vítimas da Dezena Trágica (etapa da Revolução que, em 1913, chegou à capital do país), onde os corpos eram empilhados em enormes montanhas nas ruas da Cidade do México.

O cinema apresentava a prova inconteste da História. De los Reyes revela que o próprio assassinato de Emiliano Zapata em Chinameca, em 1919, havia sido filmado por um cinegrafista oculto, sob encomenda do señor Jesus Guajardo, cuja intenção era a de receber uma prova irrefutável de que o morto era de fato o temido líder de Morelos (De los Reyes, 1981, p.229).

O público se identificava com o momento histórico projetado na tela. As sessões de cinema convertiam-se em verdadeiras manifestações políticas, com uma ruidosa participação do público, que assobiava e aplaudia os grupos e chefes das facções. A consciência da importância do registro dessas imagens fazia com que cada líder revolucionário mantivesse seus próprios fotógrafos e cinegrafistas. Os irmãos Alva acompanhavam Madero, filmando os acontecimentos ocorridos tanto na capital quanto no interior do país. Jesús Abitia registrou campanhas de Obregón e deslocamentos de Venustiano Carranza. Villa teve uma íntima ligação com diversos cinegrafistas norte-americanos de algumas companhias de cinema que registravam suas batalhas e com quem inclusive o temido Leão do Norte assinou um contrato para um filme sobre a sua vida1. Os zapatistas também se deixaram filmar por alguns cinegrafistas (De los Reyes, 1992).

La Revolución estimuló la conciencia histórico-visual de los fotógrafos y de los caudillos. Agustín Víctor Casasola lo expresó claramente durante una exposición de los fotógrafos de prensa en 1911: "somos impresionadores del instante, esclavos del momento", afirmó en su discurso inaugural ante el presidente interino Francisco León de la Barra. (De los Reyes, 1997, p.52)

Assim, por desgaste, e por "alterar a ordem pública", o governo começava a impor travas à realização e circulação desse tipo de "perigoso material", que pouco a pouco foi deixando de ser produzido. Em 1913 foi publicado um Reglamento de cinematógrafos com vistas a regular e censurar a produção de filmes que "alterassem a ordem". Junto a essas normas, foram publicados pela primeira vez na história do país decretos restringindo a prática do cinema por perceber o perigo que este poderia exercer junto às massas (Orozco & Bernal, 1985).

Na fase constitucionalista encarnada na figura de Venustiano Carranza, era necessário derrotar as forças insurrecionais e recuperar a ordem através da pacificação do território. Além disso, as imagens da revolução chegavam ao exterior, principalmente aos vizinhos Estados Unidos, confirmando, segundo o governo constitucionalista, uma imagem do mexicano que historicamente vinha sendo retratada no cinema gringo: bandoleiro, sanguinário, violento, bárbaro, bêbado, selvagem e absolutamente passional. Este de fato não era o interesse do governo nacionalista que precisava urdir com habilidade a domesticação e institucionalização do processo revolucionário.

Os próprios líderes camponeses que combatiam as tropas federais tinham bastante consciência de sua auto-imagem e, neste sentido, vale a pena determo-nos especialmente sobre a imagem construída de Pancho Villa, o líder dos exércitos da Divisão do Norte. Os jornalistas norte-americanos tinham muito interesse sobre a personagem de Francisco Villa, que era retratado pela imprensa nos Estados Unidos, em fins de 1913, como uma espécie de herói popular equiparado a Robin Hood, por sua generosidade, e a Napoleão, por seu gênio militar. O jornalista marxista britânico John Reed chegou ao México como correspondente de The World e Metropolitan Magazine em fins de 1913, acompanhado de uma câmera fotográfica e outra cinematográfica a fim de conhecer de perto o temido revolucionário para que pudesse escrever seu futuro clássico relato México Rebelde, que seria publicado em folhetim no Metropolitan Magazine a partir de abril de 1914 (De los Reyes, 1992).

Entre 1914 e 1916, Villa foi sem sombra de dúvida a personagem da revolução mexicana que mais interesse e curiosidade despertou no fotojornalismo cinematográfico norte-americano. É importante lembrar que a irrupção da Revolução Mexicana coincide com o início do fotojornalismo cinematográfico nos Estados Unidos e, portanto, converteu-se num estímulo para os jovens repórteres cinematográficos2. Durante a Revolução, esses profissionais puderam testar novos equipamentos cinematográficos e desenvolver formas de narrativas nas reportagens de atualidade que seriam empregadas mais tarde nos filmes da I Guerra Mundial. A Revolução convertia-se, desta forma, numa espécie de laboratório para a pesquisa e o desenvolvimento desse modelo de produção de relato (De los Reyes, 1992). Isso reforça as advertências feitas pelo historiador Peter Burke (2004) ao pensar a utilização da imagem como "testemunho ocular":

... o significado das imagens depende do seu "contexto social". Estou utilizando esta expressão num sentido amplo, incluindo aí o "contexto" geral, cultural e político, bem como as circunstâncias exatas nas quais a imagem foi encomendada e também seu contexto material, em outras palavras, o lugar físico onde se pretendia originalmente exibi-la. Nesta visão resumida de enfoques mais ou menos novos para a imagem, há um lugar para a história social e cultural. (Burke, 2004, p.225)

Pancho Villa tinha uma grande intuição publicitária e contava, em suas filas, com as melhores equipes de cinegrafistas norte-americanos que relatavam seus feitos com as mais fantásticas técnicas de espetacularidade narrativa. Harry E. Aitken, presidente da Mutual, chegou a mandar fabricar em San Antonio, no Texas, oito câmeras de desenho especial que pudessem ficar no alto ao filmar as batalhas de modo que o operador expusesse a máquina sem expor sua própria vida. Villa passou a se preocupar, inclusive, com sua apresentação pessoal e de seu Exército por conta da má impressão que havia causado nos Estados Unidos através de filmes que o mostravam sujo e desarrumado, com roupas rasgadas3. Segundo De los Reyes (1992, p.41-2), em janeiro de 1914 Francisco Villa firmou o primeiro contrato com a Mutual Film Corporation, para que estes pudessem realizar um filme autobiográfico do general que contava, entre outras cláusulas,

que Mutual ... tenía el derecho de exhibir las películas en la zona liberada por Villa y la totalidad de los Estados Unidos y Canadá; si los camarógrafos no captaban buenas escenas de batallas, Villa se comprometió a fingirlas y a no permitir que operadores y fotógrafos de otras compañías lo retrataran. Los beneficios económicos se repartirían al 50%, a cuenta de los cuales recibió veinticinco mil dólares. Villa se reservaba el derecho de exhibir las películas a sus hombres y se comprometió a efectuar los ataques a la luz del día.

O novo documentário mexicano nascia, a partir de 1916, com o governo de Carranza, com um forte cunho nacionalista oficialista que objetivava levar ao exterior a imagem de um México já apaziguado, filiando-se inclusive aos preceitos porfiristas de propagandismo político (um cinema "científico" para difundir os "progressos" do país). Era necessário divulgar a "vitória" da Revolução como obra de "reconstrução nacional".

As sucessivas derrotas dos exércitos de Pancho Villa pelas tropas carrancistas chefiadas por Álvaro Obregón acabaram por modificar a imagem de Pancho Villa nos relatos feitos por norte-americanos. Não podemos deixar de enfatizar que é nessa época que se normalizam as relações entre México e Estados Unidos, conturbadas durante o período de governo do general Huerta. Do tom laudatório da imagem heróica do líder da Divisão do Norte, passou-se a uma narrativa de western na qual Pancho Villa convertia-se em um notório bandido e assassino mexicano foragido das forças legais. Em 1916, dois cinegrafistas, Tracy Mathewson (a serviço da Hearst) e Leland J. Burrud (da Gaumont) foram autorizados a acompanhar a expedição punitiva que foi ao México para caçar o temido general.

O novo documentário elegia um ângulo muito bem definido da realidade: o progresso, as belezas naturais e os atos oficiais. Não havia oposição política nesses filmes e nada se falava das frentes zapatistas e villistas que continuavam combatendo contra o governo carrancista. O nacionalismo deste cinema documentário tirou do foco a gente comum. Não há muitos registros, nesta época, de imagens de fábricas, campos, ruas das cidades, saída das missas. Era o sonho de um México tranqüilo, em ordem e progresso.

En esta etapa no se concibe al cine como un medio capaz de analizar la realidad social, sino más bien como un espectáculo que con un poco de suerte puede dar beneficios económicos. Ahora bien, con todo, se le reconocía al cine un potencial educativo y moralizador útil para reflejar una adhesión básica a los valores establecidos. En efecto, los realizadores de la época no se creen obligados a apoyar el nuevo orden de las cosas pero, en el fondo, se sienten agradecidos al constitucionalismo de que finalmente haya exorcizado al demonio de la insurrección campesina. Así se explican las veladas referencias a las milicias zapatistas como "facciones sediciosas" o bien como "los elementos que asolaron al país durante varios años y cometieron toda clase de atropellos". ... (Orozco; Bernal, 1985, p.17)

Assim, as práticas políticas envolvidas nos modelos de representação, sejam elas individuais ou coletivas, ganham espaço na análise de tais documentários, confirmando as relações que se processam entre tais modelos e as próprias divisões do mundo social. São essas representações, segundo Chartier (2006, p.39), que "suportam as diferentes modalidades de exibição de identidade social ou de força política, tal como os signos, os comportamentos e os ritos os dão a ver e crer".

Em 1950, Carmen Toscano toma a rica produção deixada por seu pai, o engenheiro e cinegrafista Salvador Toscano, e, através da montagem desse material, parte em busca da memória coletiva do povo mexicano da primeira metade do século XX, resultando num filme intitulado Memorias de un Mexicano.

Numa edição pautada pelo emblema familiar, própria do espaço privado articulado pela linguagem do melodrama – hegemônico na produção audiovisual daquele momento –, a filha do cineasta pretendia construir um discurso que definisse a identidade mexicana da primeira metade do século XX a partir da escolha de um repertório comum: ritos, crenças, mitos históricos e legados heróicos articulados no interior do registro memorial. A narração presente no filme constrói a história de sua própria família, tecendo-a com o cenário nacional. Assim, as desavenças familiares narradas refletem a própria correlação de forças políticas que dividiam também a sociedade mexicana. A linguagem do melodrama no cinema, tanto de ficção como documental, naquele momento, contribuía para pautar a agenda política nacional junto aos grandes públicos. A partida de Porfirio Díaz para Paris, em 1911, narrada sob forte carga nostálgica no filme da filha de Toscano, também significa a partida de seu pai, o documentarista Toscano, que acompanha o velho ditador na viagem ao exílio.

Todos os espaços dessa memória devem ser preenchidos, não deixando margem para lacunas e fissuras no projeto histórico da Nação. A história e a memória articuladas no interior do discurso fílmico de Memorias de un Mexicano não assume a lacuna e o esquecimento como partes integrantes do conceito de memória, numa perspectiva autoritária e totalizadora da história que, ao assumir uma filiação épica de discurso do tipo "meninos: eu vi!", silencia resistências a esse discurso hegemônico. Constrói-se desta forma uma noção de identidade coletiva fundada num ato que, como diria Ricoeur, "proíbe o esquecimento", articulando o registro da memória à identidade como "a manutenção de si mesmo através do tempo" (Ricoeur, 2000).

As conquistas da Revolução deviam aniquilar o caráter traumático provocado pelo horror das imagens dos cadáveres incinerados na capital da República em 1913. O apagamento do conflito, projeto político da vitoriosa classe média que acabou por assumir o controle e o destino do processo revolucionário, se materializa sobre a emblemática imagem do corpo de Zapata assassinado. Essa imagem, que percorreu o território e a consciência da Nação, logrou domesticar o brado libertário dos indígenas aviltados que não conseguiram fazer valer seu projeto agrário. Emiliano Zapata, emblema maior do projeto fracassado de revolução social, já poderia, então, ocupar seu assento no panteão dos heróis da Revolução Mexicana por conta de uma memória que se institucionaliza através do esquecimento promovido pela grande narrativa sustentadora da "coesão social nacional".

Na última seqüência do filme, vemos sucessivas imagens do monumental desenvolvimento da capital do país, com seus modernos arranha-céus da década de 1940, suas amplas avenidas e seu movimento frenético porém ordenado, escolas públicas, modernos trens, plano detalhado de máquinas em funcionamento, que se fundem com imagens do passado para terminar num plano aberto de uma avenida da cidade onde ao fundo se vê o Monumento a la Revolución. Sobre essas imagens o narrador sentencia:

México ya no es la vieja ciudad en que nascí. Un ritmo más acelerado parece mover a la nación, pero en el fondo del nuevo México viven los ideales del pasado: la libertad, el derecho, la justicia. Lo mismo en la independencia que en la Reforma y que en la Revolución hay un pueblo invariable en sus luchas y en sus esperanzas que no han sido en van. Parecen mirar las imágenes del pasado y descobriren las arterias de la ciudad y siento que algo de mi mismo habrá de perdurar mientras el recuerdo de lo que he vivido palpite en la memoria de cualquier mexicano.

As memórias de um mexicano transformam-se em memórias de todos os mexicanos, num efeito totalizador sobre o qual as articulações entre memória e esquecimento, memória e identidade e memória e poder pensadas por Halbwachs (1997) nos ajudam a refletir. O discurso editado por Toscano apresenta-se monológico: não existem versões, mascarando a lembrança que se articula dialeticamente a múltiplas formas de esquecimento – relação essa fundamental para a problematização do conceito de memória –, como nos indica Huyssen (2005): o esquecimento como memória impedida, como memória manipulada, como esquecimento comandado.

O discurso historiográfico linear e positivista construído pela edição da filha de Toscano, ao produzir sentido à obra do pai, hierarquiza memórias, tornando visíveis as marcas da organização de sentidos em torno de uma história oficial, detentora da memória nacional, e silenciando memórias subalternizadas no interior deste processo uníssono. Porém, como nos diz Andreas Huyssen (2000, p.68),

... a memória coletiva de uma sociedade não é menos contingente e instável; de modo nenhum é permanente sua forma. Está sempre sujeita à reconstrução, sutil ou nem tanto. A memória de uma sociedade é negociada no corpo social de crenças e valores, rituais e instituições. No caso específico das sociedades modernas, ela se forma para espaços públicos de memória tais como o museu, o memorial e o monumento.

Vale lembrar que o filme documental Memorias de un Mexicano foi declarado monumento histórico do México em 1967, pelo governo do general Gustavo Díaz Ordaz, responsável no ano seguinte pelo massacre dos estudantes na Plaza de Tlatelolco, quando estes reivindicavam uma nova inscrição na história.

Aqui nos reconduzimos ao início do texto quando trouxemos o artigo de Le Goff ao tomar o conceito de documento de forma mais ampla, onde o filme é convocado a desmontar a aparência enganadora que o constrói, num gesto em que "é preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos" (Le Goff, 1996, p.548).



Revista de História

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Há diferenças entre as pirâmides do Egito e as do México?

Beatriz Santomauro (bsantomauro@abril.com.br). Com reportagem de Rita Trevisan

Sim, já que não havia contato entre essas civilizações 2 mil anos a.C., quando as pirâmides começaram a ser feitas. Sem comunicação, não houve influência recíproca na cultura da época e as construções mostram características variadas, como se vê nas ilustrações.

Consultoria Eutimio González, do StudioClio, Instituto de Arte e Humanismo, em Porto Alegre, Francisco Marshall, coordenador do Núcleo de História Antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Mônica Carolina Savieto, do Centro Universitário Fundação Santo André (FSA).

México
Ilustrações: Sattu



Egito
Ilustrações: Sattu



Revista Nova Escola

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Causas da rebelião em Chiapas


Causas da rebelião em Chiapas

Pablo González Casanova


Hoje, pode parecer antiquado falar de causas. O conceito é, não obstante, legítimo. Seu uso se faz necessário para contestar as explicações arbitrárias do que se passa. A rebelião indígena e camponesa em Chiapas deu ensejo a que grandes escritores e poetas, acompanhados pelas televisões e pelos amplos círculos oficiais, elaborassem novos mitos satânicos, parecidos aos que, na Idade Média, desorientavam o conhecimento dos infelizes e intimidavam os incrédulos com o fogo da fogueira em que se queimavam os valentes. Os ideólogos neoliberais de hoje tentam explicar a rebelião em Chiapas como obra de "stalinistas" e "estrangeiros", de minorias de obcecados e forasteiros que manipulam os "pobres índios". Outros querem explicá-la como uma mera "rebelião de índios". Se por causa entendemos os fatores que antecedem e determinam um fato, a explicação, por meio de mitos modernos, por mais diferente que seja das medievais, atribui a forças malignas as batalhas que desagradam aos poderosos. A violência na interpretação obriga a recuperar e a esclarecer as "verdadeiras causas".



Uma herança rebelde

Os maias se destacam entre os povos que mais resistiram à conquista espanhola. Em Yucatán e Guatemala, não foram submetidos até 1703 e logo voltaram a se rebelar. Em Chiapas, organizaram uma grande revolta em 1712 (1). Como disse Chilam Balam: "Vino el pleitear ocultamente, el pleitear com furia, el pleitear com violencia, el pleitear sin misericordia". E esses mesmos povos voltaram a se rebelar em 1° de janeiro de 1994. Por quê e contra o quê? Contra uma violência renovada que tem tentado destruir a identidade, a personalidade, a dignidade de homens e mulheres cujas terras têm sido constantemente arrebatadas, que têm sido explorados sem misericórdia e deixados famintos até serem convertidos em seres minúsculos que parecem crianças de tão pouco que se têm alimentado em muitas gerações. O fato de, hoje, os maias se rebelarem de novo, como os tzetales, os tzotziles, os choles, os zoques e os tojolobales, corresponde a um legado que produz os mesmos efeitos em outras regiões da Mesoamérica.

Na Lacandona e nos Altos Chiapas está vivo o mito de Juan López, homem invencível vindo do céu, que lutou contra o exército há muitíssimos anos e que prometeu regressar para ajudar os índios em sucessivas batalhas.

A crise da fazenda tradicional

Na origem da rebelião, também se encontra o desenvolvimento de Chiapas. Desde os anos 30, havia-se iniciado a crise dos latifúndios cafeeiros. Os peões "agregados" da fazendas (acasíllados) (2) fugiam para outras regiões menos desgraçadas. Nos anos 50, ocorreu a liberação dos peões pelas fazendas de gado em formação. Estas já não necessitavam de seus serviços. Na década de 1970, extinguiu-se, virtualmente, o peão "agregado". Chiapas se converteu em grande produtor de eletricidade e de petróleo. Novamente, os peões "livres" abandonaram as propriedades de café, de cana, de milho e, ainda, de gado. Dirigiram-se para os trabalhos relacionados à eletricidade, ao petróleo, às represas e às estradas. Outros se dirigiram para a Selva para tentar uma vida pobre porém própria; são os que hoje habitam o território onde se move o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

Na Selva, tzeltales, tzotziles, choles, zoques, tojolobales e mestiços se relacionam entre si. Surgiu entre todos uma identidade de etnias oprimidas frente a fazendeiros, pecuaristas e "kaxlanes", como são chamados os "ladinos" ou mestiços. Esta começou a ser formada em meados dos anos 70, fortalecendo-se e aumentando nos anos 80 por meio da Associação Rural de Interesse Coletivo União de Uniões (ARIC U de U), e culminou em fins dessa década com um processo de integração das organizações de etnias e de trabalhadores. Seus membros haviam deixado a servidão sem encontrar espaço no novo desenvolvimento do país.

A ação pastoral

A terceira causa da mudança — em uma ordem difícil de determinar — proveio do Concílio Vaticano II e da Conferência Episcopal de Medellín. Desde então, deu-se início a uma renovação pastoral "auxiliada pela sociologia religiosa e com a animação do Movimento por um Mundo Melhor" (3). A sistematização da mudança expressar-se-ia na Teologia da Libertação, hoje violentamente censurada pelos ideólogos neoliberais, e mundialmente famosa. A Teologia da Libertação expressaria um importante movimento cristão que, respeitando o dogma e a fé, impede que um e outra sejam utilizados contra os pobres e os oprimidos.

A ação pastoral desse movimento iniciou-se nos anos 60: párocos e catequistas se dedicaram a ensinar aos índios que são considerados seres humanos (4). Fundamentados no Concílio Vaticano II, ensinam-lhes a expressar seu pensamento, a valorizar a vida de sua comunidade com a palavra de Deus e com a interpretação da Bíblia. Ensinaram-lhes — com base em seus costumes de discutir e chegar ao "acordo" — novas formas de organização para o trabalho coletivo, a discussão fraternal e a tomada de decisões. A partir da fé, levaram-nos a interpretar os textos sagrados: a ler o Êxodo para que o identificassem com seus povos e encontrassem na história dos judeus e de sua própria opressão. Ensinaram-lhes a interpretar a utopia cristã do reino de Deus em sua própria terra. E mais, deram-lhes as bases de uma cultura democrática que começava no respeito próprio para desembocar no respeito dos demais e na construção, com todas as organizações que representam interesses comuns, de uma Igreja Católica que incluísse os tzeltales, os choles, os tojolabales.

Os próprios párocos escutaram os índios e modificaram sua pastoral, incrementaram "a reflexão e a prática" do que chamaram "catequese de encarnação", que tendia a "que a palavra de Deus se revestisse e se divinizasse" do acontecer histórico, da cultura, da vida comunitária dos povos indígenas. Os catequistas "se converteram em porta-vozes da reflexão da comunidade e deixaram de ser mestres que levavam uma reflexão pré-fabricada".

O trabalho de educação e de catequese foi extraordinário. Também o de organização. Nenhum partido político ou instância cultural fez algo parecido. Um bispo de San Cristóbal, chamado Samuel Ruiz, juntamente com os sacerdotes, párocos e diáconos do bispado, trabalharam em 2.608 comunidades, com mais de quatrocentos pré-diáconos e oitocentos catequistas. "Viveram a caridade" como pobres e como índios, transmitiram aos pobres e aos índios "todas essas maldades" que consistem em crer, pensar e "ser" orgulhosamente índio.

Na diocese, nasceram diversos "ministérios da comunidade". Partindo de suas culturas indígenas maias, "adquiriram o compromisso que leva à construção do Reino de Deus na justiça e na verdade". Catequistas, secretários, chefes, mordomos presidentes, coros, responsáveis de regiões, promotores da saúde, coordenadores de mulheres, tuhumeles (ou diáconos) e servidores em defesa dos direitos humanos "responderam à necessidade de que os despojados caminhassem".

Os estudantes de 1968

Depois de 1968 — que no México terminou com o sacrifício de Tlatelocolco —, os líderes estudantis seguiram muitos caminhos: uns ingressaram no sistema, ou o sistema os cooptou; outros organizaram movimentos sociais urbanos e bairros populares; outros contribuíram para formar partidos políticos, como o PRD (Partido da Revolução Democrática), o maior partido de esquerda da história do México; outros ajudaram a formar movimentos camponeses ou foram participar das guerrilhas de Sonora, Chihuahua, Guerrero. Na ideologia dos antigos estudantes, havia um elemento comum: lutar por uma democracia em que o povo trabalhador e explorado tomasse as decisões por si mesmo, e pelo fim do sistema repressivo, autoritário e excludente vigente no México.

Em meados dos anos 70, os antigos sobreviventes de 1968 começaram a chegar em Chiapas. Integraram-se nas organizações populares, "ajudando-as a organizarem-se e a adquirirem uma maior consciência para levar adiante suas lutas". Em 1976, os militantes da União do Povo penetraram na Selva: tiveram ricas experiências de organização no Vale do Mayo e do Yaqui e em Laguna.

Em meio a erros, desencontros, crises teóricas e estratégicas, os líderes de 1968 estabeleceram a necessidade da união e da organização de todos os "operários, camponeses, colonos, estudantes, pequenos comerciantes, empregados, profissionais". Propuseram elaborar um programa de lutas por terras e salários, por escolas e hospitais, e, em geral, por melhores condições de vida.

As principais diferenças internas surgiram no que concerne ao maior ou menor respeito à democratização das organizações. O triunfo da posição democrática se deveu a teses que vinculavam a expressão de opiniões com a informação e com a participação, como afirmava um documento de 1977:

É necessário que exista a mais ampla democracia que consiste em uma grande participação de idéias e de opiniões sobre o ponto que se está tratando. Em uma reunião ou assembléia, devemos conseguir que todos tenham suficientes informações para que possam opinar. Requer-se escutar o maior número de opiniões e de idéias e proporcionar uma ampla participação.

O principal objetivo é — acrescenta — "que, a partir das demandas mais sentidas do povo, formem-se organizações de massa". O movimento expressava "a atmosfera revolucionária", característica da época, com suas variantes na luta contra a exploração do homem pelo homem. Postulava também a instauração de um sistema que fizesse da democracia nas próprias organizações de massa sua arma fundamental. Os dois objetivos — o da luta contra a exploração e o da luta pela democracia — se mantêm até hoje, e têm-se estendido como valores já internalizados pelas organizações da Lacandona e do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Outros — como o socialismo e a luta de classes — perderam seu valor estratégico e saíram do cenário por um tempo indeterminado.

Um sistema de "assembléias itinerantes" permitiu que todos aumentassem a sua capacidade e prática milenária de discutir e de decidir. A dissensão e o "Acuerdo" se estenderam ao longo da Selva. Quem nela habita adquiriu uma cultura comum que, com diferentes línguas, une etnias, religiões e ideologias nas mesmas metas e nas mesmas ações. Aprenderam algo novo: como discutir e decidir sobre a luta revolucionária e como defender as suas organizações dos agentes provocadores. Os revolucionários aprenderam que os ritmos do povo não são os deles. Aprenderam que não apenas deviam organizar os índios mas aprender com a sua forma de organização. Construíram organizações e politizaram as já existentes. Politizaram-se eles mesmos e se confundiram com os demais. Deixaram suas idéias marxista-fundamentalistas. Descobriram que o "reordenamento do mundo" somente poderia vir através de uma luta pela democracia que incluísse as autonomias e delas partisse, bem como os direitos dos povos indígenas e dos pobres, até abarcar toda a nação. Contando com ela, com seus trabalhadores e com seu povo.

Um grande plano de provocação oficial se montou novamente na ultra-esquerda, que buscava se encaminhar para a desorganização das bases independentes e o fortalecimento das organizações de massa do Estado. Provocadores e ultra-esquerdistas não lutaram pelo possível. Tampouco pelo impossível. Quando podiam, extrapolavam as ideologias, atrapalhavam-se nas ações e exageravam sua própria exaltação verbal de gesticuladores revolucionários.

Os dirigentes da Selva enfrentaram a provocação e a ultra-esquerda com uma nova cultura e uma nova política de preservação vital e de autonomia, de serenidade e firmeza. Também dissuadiram e derrotaram os acomodados e sua propensão a aceitar concessões individuais e coletivas, com perda da dignidade pessoal e da autonomia política. Os argumentos ultra-esquerdistas sobre "a linha correta", com batalhas de antemão perdidas, e os de cooptação e integração de indivíduos e clientelas, foram enfrentados e canalizados pela democracia com justiça e dignidade. Assim, muitos revolucionários vindos de fora da Selva passaram da revolução esperada à inesperada (5). Aprenderam a lutar pelo impossível para antecipar o possível.

Menos terras para mais "pobres"

Em 1971, por decreto presidencial, foi entregue a metade da Selva a uma etnia quase extinta: os lacandones. Com o pretexto de preservar alguns que restavam, pretendeu-se arrebatar as terras de tzeltales, tzotziles, choles, tojolobales e zoques, que as habitavam há duas ou três décadas, e a quem se acusou de "usurpadores". Por trás do decreto, havia um grande negócio de políticos e madeireiros. Todos se apresentaram como a Companhia Florestal Lacandona S. A. Esta se apressou em firmar um contrato com os "legítimos donos" da terra, adquirindo, assim, o direito de extrair, ao ano, 35 mil m2 de madeira, o que eqüivale a dez mil árvores de cedro e de acaju. A Selva se tornou monopólio da Companhia. Sua extensão era nada menos que 614,321 hectares.

Ajudada pelo governo, a Companhia se propôs a "relocar", isto é, expulsar os supostos intrusos. Alguns deixaram a região; outros começaram a lutar pela defesa de suas terras. Estes foram a maioria.

As centenas de líderes indígenas do Êxodo, os oito mil catequistas, os ex-líderes de 1968 e os da guerrilha do Norte e do Pacífico deram início a uma nova etapa de mobilizações que os levou à capital do estado e até a capital da República (1981). Foi o início das grandes lutas legais que se combinaram com ações diretas.

Os habitantes da Selva haviam sido expulsos de outras terras. Nos vales centrais, com a reconstrução das represas, mais de cem mil pessoas tiveram que emigrar. Suas terras ficaram em baixo d’água. A exploração do petróleo inutilizou grandes extensões de terra, convertidas em terras inóspitas ou mananciais. Algo como cinqüenta mil pessoas se viram obrigadas a sair do local onde habitavam. A crise econômica de fins dos anos 70 e princípios dos 80 diminuiu as fontes de trabalho urbanas. Duzentos mil trabalhadores ficaram sem emprego e foram obrigados a voltar à terra que haviam deixado. Para culminar, em 1982, ocorreu uma erupção em Chichonal que inutilizou 70 mil hectares de terra. Cerca de vinte mil povoados tiveram de ser relocados (6). Muitos iniciaram o êxodo para a Selva Lacandona. Não sabiam que ali também tentariam expulsá-los. E por todos os meios.

A terra em Chiapas, principal fonte de sustento das populações mais pobres, tornou-se cada vez mais escassa. Ao mesmo tempo, ocorreu o crescimento natural da população; na área rural, o crescimento se deu a uma taxa de 3,6% ao ano. A partir de 1985, em regiões onde, anteriormente, havia disponibilidade de 16 hectares por família, a proporção média passou a ser de menos de 4 hectares. O crescimento da população foi um fator muito importante para o empobrecimento dos camponeses que já eram pobres, sobretudo porque se combinou com o despojo das terras e recursos pelas companhias e pelos latifundiários. Ainda antes de serem muitos, os camponeses já careciam de créditos, de assistência técnica e de mercados humanamente aceitáveis. Sua produção era e é extensiva, com técnicas de "roza-tumba e queimadas", e semeaduras freqüentes, o que aumentava o desgaste das terras. Por tudo isso, a pressão demográfica, que se tornava cada vez maior, chegou a um ponto intolerável.

Os conflitos agrários com o Estado se acentuaram. Em princípios dos anos 80, quatrocentas propriedades e latifúndios foram invadidos pelos camponeses; cem mil sobreviveram como invasores e setenta mil solicitaram terras ao Departamento Agrário sem que fossem atendidos.

As demandas e invasões continuaram. Em princípios dos anos 90, Chiapas possuía 27% das demandas de terra de todo o país, sem que fossem satisfeitas. Dos 10.600 expedientes em trâmite na Secretaria da Reforma Agrária, três mil eram de Chiapas. Por trás de longos e custosos processos, os camponeses não ganhavam nada. Quando havia uma resolução presidencial em seu favor, ela não era executada. (7)

Os sem-terra adquiriram, cada vez mais, consciência de que, apesar do fato de eles terem sido empobrecidos, marginalizados e excluídos, os grande proprietários tinham latifúndios disfarçados que nem sequer exploravam. Como não apenas realizaram mobilizações de protesto, mas também deram início à ocupação de algumas parcelas de terra e ao seu cultivo, o caráter violento da resposta dos fazendeiros tornou-se sistemático. Se antes atacavam violentamente os índios para usurpar-lhes seus direitos, agora atacavam "com mais razão" e com muita cólera, acusando-os de violar a sagrada propriedade privada, a paz social e o direito. Líderes presos e assassinados, famílias e comunidades desalojadas e perseguidas, terras recuperadas pelo Exército ou pelas Guardas Brancas. Em todas as partes, são mantidas as lembranças das respostas violentas: em Simojovel, Huitiupan, Sabanilla, Yjalón, Chilón, Ocosingo, Las Margaritas. Ainda assim, havia a esperança de que um dia se aplicaria a Constituição e far-se-ia justiça. Para alimentar essa esperança, o governo, de vez em quando, comprava algumas terras dos proprietários e as entregava aos indígenas.

Em 7 de novembro de 1991, o Executivo Federal — em cumprimento da política neoliberal acordada com o Fundo Monetário Internacional, das exigências do Tratado de Livre Comércio (TLC-NAFTA) e seguindo os interesses dos grandes latifundiários e políticos mexicanos e estrangeiros — enviou ao Congresso um projeto de reforma do Artigo 27 da Constituição. O novo texto não somente legalizava os latifúndios disfarçados e legitimava as declarações de que não havia mais terra para repartir, como facilitava a privatização de terras sem dono e comunais pelos latifundiários. O novo texto foi aprovado por meio de uma aliança do PRI e do PAN, fundando um novo Estado mexicano. Como afirma Maria del Carmem Legorreta, atualmente da ARIC oficial, "um dos efeitos mais imediatos da reforma constitucional é o fortalecimento implícito dos antigos fazendeiros". Estes se sentiram, desde então, favorecidos pelo marco legal. Amparados por suas Guardas Brancas e pelos aparatos do Estado, formaram uma moderna organização para governar Chiapas: a "União para a Defesa da Cidadania" (8). Os latifundiários tornaram-se "democratas". Por meio de sua democracia ladina, expulsaram os índios que não lhes eram úteis. Mas quando quiseram expulsá-los da Selva, tiveram que enfrentar a resistência de muitos. Era seu último refúgio e resolveram defendê-lo. Mas não apenas estes lutaram, como também os camponeses e os índios de muitas regiões de Chiapas, em especial dos Los Altos. Durante esses anos, eles haviam-se organizado cada vez mais, não obstante o governo e os fazendeiros continuassem tratando-os da mesma forma como tratavam quando eles ainda não estavam organizados: com as mesmas políticas de negação, de repressão e de cooptação. Mas estas já não funcionavam mais.

A politização dos "povos indígenas"

Na consciência política se encontram os fracassos eleitorais do índios. Por volta de 1982, dentro do Partido Socialista Unificado do México (PSUM), nas Las Margaritas, os tojolobales lutaram pela presidência municipal. Ao perderem-na, "perderam a esperança", segundo se dizia. Em 1974, os índios de San Juan Chamula tomaram a presidência municipal como protesto ante a fraude eleitoral cometida pelo PRI. Dias depois, foram desalojados pelo Exército. A partir de então, um governo de caciques (9) deu início a uma perseguição de milhares de chamulas, acusando-os de serem protestantes. Os expulsos ficaram sem casa e sem terra. Hoje, mais de vinte mil deles vivem nos arredores de San Cristóbal. Estão na miséria. Os caciques exercem em Chamula uma ditadura autônoma e brutal, justificando-a no respeito a seus "costumes". Eles se apóiam em mestres "bilíngües" que formam com eles um novo grupo de poder vinculado ao governo estatal (incluído o federal) e aos comerciantes e fazendeiros. "Em Mitontic, Chenalhó, Tenejapa, domina seu capricho". (Para que alguns expulsos regressassem, foram necessárias imensas pressões e distrair os caciques com uma viagem a Roma e a Israel).

A democracia eleitoral nas regiões indígenas é uma ficção. Os governos locais se assemelham aos da época colonial. Nos ritos eleitorais, os ladinos e seus aliados indígenas discriminam, reprimem, encarceram, expulsam e assassinam seus opositores. A crônica de seus crimes políticos é interminável. Às vezes, exercem o poder de forma paternalista, inclusive com alianças com os "Conselhos Supremos Indígenas" e com outros organismos oficiais que praticam um certo populismo ilimitado. O paternalismo beneficia a pouquíssimos.

A política de partidos é, em geral, um movimento de cúpulas. Os "líderes" indígenas encontram-se no PRI, no PAN, no PSUM, no PST, no PRD. Freqüentemente, trocam de partido, para "ver" qual resolve seus problemas comunitários ou pessoais. Suas lutas desembocam em fenômenos de clientelismo que permitem realizar pressões conjuntas nas quais "algo" se ganha. Inclusive os membros do PRI participam de diferentes tipos de pressões e até se mobilizam para a tomada de palácios municipais e escritórios do governo. O conjunto das lutas não altera a estrutura de poder no qual dominam fazendeiros e pecuaristas. Quando ocorrem explosões locais, seus efeitos são efêmeros e o sistema pouco a pouco se recupera.

Em Pantelhó, após as eleições de 1984, todos os índios desceram com seus facões. Diziam que já lhes havia acabado a paciência. Como eram maioria, e tinham os facões na mão, os mestiços se viram obrigados a reconhecer seu triunfo: aquietaram-se por um tempo. Depois de uns meses, foram ver o presidente municipal que os índios haviam elegido. Pediram-lhe que prestasse contas. O presidente municipal — antes rebelde e gritador — se tornou manso. "Desde então — disse um delegado do PRI — don Dionisio tem-se alienado cada vez mais". (10)

A experiência indígena em matéria política mostra que os representantes imediatos dos índios podem ser democraticamente controlados em suas próprias comunidades; mas quando entram para formar parte do governo municipal e ocupam postos mais altos "não lhes resta outra via" senão corromper-se, submeter-se ou morrer. Ainda que alguns se submetam apenas relativamente e reivindiquem algo para seu povo, a perda de sua dignidade lhes traz muitos danos e é causa de verdadeiros estragos para qualquer política de acumulação de forças.

Em muitos povoados do México, a escritório municipal do PRI está interligado à chefia municipal. O mesmo ocorre em Chiapas. Nas zonas indígenas, geralmente, as autoridades não aceitam a intromissão de qualquer partido político que não seja o oficial. Fazendeiros e pecuaristas os apóiam. Nada que afete o PRI ou os grandes proprietários é tolerado. A função eleitoral se faz sem proposições que atentem contra os privilégios e os privilegiados, ou que impliquem a possibilidade jurídico-política de eleger representantes contrários ao PRI e aos pecuaristas ou fazendeiros. (11)

A experiência de ser "manejado pelo PRI ou por partidos que parecem ser de oposição e não são, como o PAN, o PST e o PARM", provoca antipatias políticas em muitas agrupações. Os indígenas sentem que, nas condições atuais, "não têm uma visão clara de para que serve a política", salvo quando buscam vantagens pessoais ou triunfos efêmeros. Para muitos, a politização nos partidos somente se associa a uma radicalização contrária ao populismo indígena oficial e a outras formas de autoritarismo. Ir mais além, até a construção de uma alternativa, torna-se difícil.

Em 1994 — com a solidariedade do EZLN —, realiza-se uma primeira tentativa de luta eleitoral na qual os povos indígenas participam da ofensiva com uma grande dose de cidadania. Diferentes organizações lançam um candidato da sociedade civil e do PRD ao governo do Estado; é uma circunstância inovadora que parece inaugurar uma nova etapa das lutas políticas e sociais. A velha classe-etnia dominante reage com violência extremada e consegue o apoio desejado quando, em 9 de janeiro de 1995, o Exército ataca os opositores, na Selva, destruindo povoados zapatistas. Se o novo movimento busca uma luta política com dignidade para seus integrantes e autonomia para suas organizações, a velha-nova classe colonial põe todo o peso em uma política que destrói a vida ou a dignidade dos índios e qualquer indício de autonomia ou mediação política para a defesa de seus direitos e interesses vitais. De passada, e "como quem não quer nada", ataca em geral a parcela da população mais pobre, os movimentos populares urbanos e as classes médias que lutam contra a ordem secular e "moderna".

Em todo caso, estrutura-se claramente uma força e uma organização política, democrática e autônoma, nas próprias formações indígenas e camponesas. Este é o caso das coordenações dos Conselhos Supremos Tzeltales e Tzotziles, que são democráticos e representativos e da CEOIC, criada em 1994, com dezenas de organizações camponesas indígenas que se enfrentam na cooptação governamental e empresarial. Nelas, nasce a vontade organizada e civil de alcançar uma democracia com dignidade, justiça e liberdade. É esta vontade que anima e modula a rebelião em Chiapas. Sua definição inclui a luta pela cidadania, pela terra e pela libertação dos povos indígenas, objetivos articulados na consciência política das suas organizações agrárias e civis desde 1992, quando, durante a Marcha dos 500 Anos de Resistência Indígena Popular, os participantes formaram a Frente das Organizações Sociais Chiapanecas. Nesta, esboçou-se algo similar a uma frente cívica e urbana, não partidária nem eleitoreira, que propôs a Nova Luta Política dos Índios, pela terra, pela nação mexicana e por um sistema democrático com justiça e dignidade e com autonomia em relação às organizações sociais e políticas e às instituições municipais, governamentais e culturais.

Semelhante projeto irritou visceralmente a "longa duração" dos sentimentos colonialistas, racistas, etnicistas e "fascistas" das velhas oligarquias blanco-mestizas que dominam a região há quinhentos anos e cujos interesses se ligam aos das companhias dispostas a perseguir e exterminar os índios, quando for necessário, para arrebatar suas propriedades ou os territórios em que sobrevivem. Certamente, as forças dominantes, em suas expressões mais reacionárias, estão dispostas a levar adiante um projeto que alie a democracia ao colonialismo. A simulação é parte de sua lógica. De fato, a consciência notável dos índios, a cada vez mais poderosa organização de suas forças, a evidente ascensão de suas lutas desde outubro de 1974 — quando organizaram, em San Cristóbal de las Casas, o Congresso Indígena —, nada lhes permitiu resolver seus mais elementares roblemas. Ao contrário, estes se agravaram com a crise, o neoliberalismo e a crescente repressão. (12)

A violência e a lei

No regime racista e oligárquico vigente em Chiapas, a violência institucional é a lei. Sem risco de nenhum tipo de punição, seja na terra, no trabalho ou na política, aquele que detém o poder tem a possibilidade de violar a lei, seja esta agrária, trabalhista ou eleitoral. O contrário ocorre com aqueles que são indígenas ou mestiços pobres, camponeses, trabalhadores e até empregados: em qualquer momento podem ser lançadas sobre eles falsas acusações e serem-lhes aplicados todos os tipos imagináveis de pena por delitos.

Há um racismo e um crime rasteiro do qual ninguém fala nas reuniões elegantes ou cívicas. Em 1970, por exemplo, nas margens de Cupic, alguns jovens fazendeiros se divertiam praticando tiro ao alvo com indígenas meeiros. Em Simojovel, região na qual continuaram existindo de fato os peões "agregados", até 1975, estava vigente o direito de pernada. Em Tapachula, Pichucalco, La Concordia, Joltenango, La Paz, havia uns cemitérios tenebrosos chamados de "particulares" nos quais se enterravam desaparecidos. "A lei do monte ordena que se mate o índio e o tordo" (13). Nas propriedades, existem prisões. Nas prisões, existem troncos. Nos troncos, existem presos que não estão processados. Os índios não entendem a linguagem dos fiscais, nem o juiz entende a dos presos. A maioria não tem amigos ou padrinhos que os defendam. Como afirma um antropólogo,

Não há profissionais entre os tojolobales. Não há sacerdotes, não há gente do governo ... O sistema dificilmente toleraria que um tojolobal ocupasse uma chefia municipal. A falta de apoio se alia à ignorância e ao terror interiorizado. (14)

Um índio que reclama pelos seus direitos é um terrorista. Provoca irritação e medo. A lei só regula as relações entre os poderosos ou justifica seus atropelos. E isto no caso de ser necessário. Na maioria das vezes, não o é. Há mecanismos de racionalização e de "opção racional" que permitem renovar o sistema sem provocar o mínimo complexo de culpa, que acabam por transformar esses fatos em "corretos", "normais" e "racionais".

Alguns pecuaristas e fazendeiros se movem entre a violência e a negociação. Trazem heranças do antigo sistema de concessões coloniais e de outros mais ou menos recentes. Em períodos revolucionários de "ascensão das massas", doaram terras a seus camponeses e venderam-lhes algumas parcelas. Atualmente, renasce em alguns deles a idéia de vender terras aos novos invasores, pois para eles é vantajoso: garante uma maior tranqüilidade e até mesmo é valioso como negócio. Mas seu primeiro impulso é o de ameaçar de morte os invasores e até preparar e realizar brutais "avisos". Após a nova rebelião zapatista, muitos proprietários se armaram até os dentes, aumentaram suas Guardas Brancas e abasteceram seus arsenais. A repressão e a negociação permanecem abertas e contidas, realizam-se com violência e são propostas como submissão aos que renegam seus valores, traem ou delatam sua gente. Há anos, os camponeses não têm deixado de tomar terras e alcaidias. O fato ocorre novamente após três governos particularmente repressivos: o de Juan Sabines, o de Absalón Castellanos — que foi seqüestrado e anistiado pelos zapatistas — e o de Patrocinio Goanzález Garrido, secretário de Governo quando se instalou o conflito: todos eles se dedicaram a reprimir as novas demandas do índios que reclamavam seus direitos e cujo ponto de partida mais recente foi o Congresso Indígena de 1974.

As estatísticas em relação ao terror não são confiáveis; mas, mesmo assim, são terríveis. De 1974 a 1987, contam-se 982 líderes assassinados somente em uma parte da região indígena de Chiapas; 1.084 camponeses detidos sem bases legais; 379 feridos gravemente; 505 seqüestrados ou torturados; 334 desaparecidos; 38 mulheres violentadas; milhares expulsos de suas casas e de suas terras; 89 povoados que sofreram queimadas de habitações e destruição dos cultivos. E, como afirmou um ex-líder, em Absalón "aumentou a violência em 100%". (15)

Conforme a crise se acentuava, os camponeses descobriam que se protestassem eram reprimidos, ainda que fossem do PRI — como ocorreu com um movimento em 1986. Sua politização e sua firmeza fizeram com que eles se defendessem da morte inútil, de provocadores como os de "Antorcha Campesina" que os levavam a lutas suicidas e também de quem buscava intermediá-los e corrompê-los, atados ao sistema, como os da "ARIC Unión de Uniones" que se juntaram ao PRI. Cada vez mais, camponeses e indígenas defenderam com prioridade a autonomia de suas organizações. Muitos passaram para os contingentes do EZLN numa atitude originalmente defensiva, mas que fazia dessa "autonomia" um conceito irrenunciável e generalizado, compreensível e muito mais profundo do que a autonomia da pessoa humana, a municipal, a dos partidos em relação ao Estado, a universitária ou a das regiões étnicas e multiétnicas. Entre incompreensões, o conceito de "autonomia" como o de "dignidade" adquiriu todos os perfis de um novo projeto de democracia. Muitos, todavia, não o compreendem. Não conseguem perceber até que ponto o movimento iniciado na Lacandona e em Chiapas — como o do México — não se deterá até que se construa um sistema que respeite as autonomias, que não queira cooptar e integrar os cidadãos e que respeite sua dignidade não somente nos momentos de guerra mas também durante a paz.

A violência negociada com perdas e ganhos

Desde o início da existência do terror internalizado que se empreende uma luta para superá-lo. Com decisão, frieza e fraternidade, às vezes, consegue-se dar um primeiro passo nesse sentido. Surgem tentativas de se levar adiante uma luta unida, associada, com tramas e vínculos que se ampliam em uniões de sem-terras, em centrais camponesas, em sindicatos. Nestes, luta-se contra a cooptação, a corrupção de líderes e parentes, levando-se a um endurecimento persistente em que se expressam as correntes políticas do México moderno e as posições revolucionárias mais variadas.

As organizações sociais se defendem para não serem meros instrumentos dos partidos políticos. Seus integrantes aprendem a tomar decisões coletivas estratégicas e não somente circunstanciais. Alcançam posições de força nas comunidades, nos bairros e nos centros de trabalho e coordenam-se com outras organizações, inclusive utilizando os partidos políticos. Trata-se de organizações camponesas de resistência cívica que trabalham em comissões e em assembléias gerais que são convocadas pessoalmente para tomar decisões. Nelas, o idioma utilizado é, em geral, o castelhano. "Os bilingües" (entre os quais existem muitos professores primários aliados aos povos indígenas) ocupam posições fundamentais de união. As mulheres e as crianças participam ativamente, mais até do que se pensa. Os agrupamentos servem também para organizar a economia, os transportes, a semeadura e a colheita, o crédito e o comércio. Algumas representam o germe de uma economia alternativa de produção e de repartição coletiva, que, através da "cooperação", permite a acumulação de pequenos capitais. Não deixam de ocorrer atos de solidariedade por parte dos camponeses e operários de outras regiões da República. As comunidades do Vale do Yaqui em Sonora ou os sindicatos mineiros e siderúrgicos de Monclova e Monterrey, entre outros, têm efetivado a sua solidariedade. Com os fundos recebidos, as organizações indígenas contratam empregados e até advogados e, em alguns casos, chegam a comprar terras que seus membros tenham ocupado previamente.

Dadas as características do Estado mexicano, os camponeses e indígenas de Chiapas enfrentam vários tipos de experiência na luta: a cooptação de alguns dirigentes, a repressão seletiva de outros, a ação direta das próprias massas (para a tomada das terras, de palácios municipais, de escritórios governamentais) e a negociação das massas e de seus líderes com as autoridades e com os proprietários.

A violência pode ser individual ou coletiva. Também a negociação. Matam o líder, ou lhe desfecham um golpe, ou o prendem, ou massacram os invasores, ou os prendem para dizimá-los, ou cooptam uma grande parte do povo, ou fazem concessões, fingindo que "se aceita todo mundo". Às vezes, as negociações beneficiam a muitos; e até resolvem o problema da maioria de um movimento. Mas, no geral, os beneficiados são apenas uma parte a qual se busca separar da maioria. Esse tipo de negociação é também causa da rebelião.

Essa é uma técnica de negociação antiga que se leva a cabo desde os anos 20 e que persiste ainda hoje. Ao longo do tempo, tem-se forjado uma cultura de cálculos sobre custos-benefícios entre governantes, proprietários, colonos, operários, indígenas e camponeses. É uma cultura que convive com a violência "senhorial". Se esta se reproduz e se encastela em visões orgulhosas de caciques "muy machos" ou "muy cabrones", com assassinos pagos, aquela se levanta com tradições populistas ou inovações que apontam para uma cultura de negociação social ainda imprecisa. Evoca também as técnicas de domesticação com "pão e cacetada".

O Estado mediador — com esta mediação a serviço do Estado e dos poderosos — responde realizando concessões a certos movimentos e organizações violentas, por mais escandalosos que sejam, quando estão organizados, e quando sua repressão implicaria custos políticos e sociais "demasiadamente" altos.

Estado e organizações possuem uma cultura relativa do direito. Sabem que a lei não se aplica necessariamente, nem antes da violência, nem depois. Praticam um certo tipo de legislação e de interpretação do espírito da lei dentro de uma ordem ao mesmo tempo violenta e civilizada. Legalizam as concessões depois de exercida a violência por ambas as partes ou com a ameaça — implícita — de tornar a exercê-la.

A principal novidade do século XX e sua derivação populista consiste em que a violência com negociação deixa de ser monopólio de pecuaristas, fazendeiros e governantes. Índios e camponeses também exercem a violência, ainda que seja para negociar. Negociam terras, créditos, liberação de presos. E, se conseguem algumas vantagens, realizam compromissos de paz e até se sujeitam a apoiar o PRI e o governo. Em caso de negação, desencadeia-se a repressão seletiva, dificultam-se os créditos, acabam-se as concessões, levantam-se acusações contra os insubmissos ante as instâncias governamentais, suprimem-se os líderes e até as organizações. No caminho, por via das dúvidas, utilizam-se, algumas vezes, "agentes provocadores" que, com posições aparentemente mais radicais, desqualificam os verdadeiros líderes ou fazem abortar os movimentos. O sistema resiste com suas antigas tradições colonialistas e oligárquicas. Também com as populistas. E renova umas e outras com as da "guerra suja" ou de "baixa intensidade" que inclui as medidas de divisão das populações, de corrupção dos assustados e de "ação cívica", a cargo dos mesmos soldados e forças repressivas que destroem as casas, os bens, os grãos e as ferramentas dos sublevados e estendem a mão "humanitária" em relação aos "condenados" que aceitam passar para suas fileiras e converter-se em delatores e outras forças auxiliares.

Muitas "comunidades" e moradores dos povoados indígenas, que "não possuíam uma visão clara da política", percebem, cada vez mais, as diferenças do PRI, do PRD ou do PAN. Nas uniões camponesas e indígenas, aparecem propostas nacionais que são motivo de discussão. Essas propostas dão a seus integrantes uma visão mais ampla da luta. Levam a propor, por exemplo, a derrogação da Lei de Fomento Agropecuário, a necessidade de uma produção a serviço do povo, a nacionalização indispensável da indústria de alimentação, a redução da propriedade a 20 hectares de rega e uma nova reforma no mutilado Artigo 27 da Constituição: uma reforma agrária para o século XXI.

Ao não aceitar ordens arbitrárias e injustas, ao aprofundá-las, surgem processos de radicalização intelectual, individual e coletiva. Mas, às vezes, surge também uma espécie de dialética entre radicalização e desânimo. As lutas legais não obtêm resultados quase nunca. As que recorrem a atos de força têm custos crescentes sobretudo com a crise do populismo, da democracia neoliberal e da própria contra-revolução global. Os problemas mais elementares não se solucionam. A repressão sem negociação regressa até o antigo regime pré-populista. A política se partenaliza como ocorria anteriormente. Nem lei nem negociação; pura repressão, com vulgares tentativas de cooptação-transição; é uma ameaça que parece estender-se e crescer.

Na dialética do desânimo-radicalização, os diaristas agrícolas e os avulsos têm que manter posições de luta mais firmes. Ainda que a muitos falte educação política, todos possuem uma certa educação, uma certa informação, uma certa articulação da cultura camponesa de resistência e de perseguição. Aparecem nas assembléias, nas reuniões, nas debates. Neles se delineia a necessidade de superar as lutas populistas do passado com uma organização democrática disciplinada, digna do conjunto dos povos, e na qual participem os velhos e as crianças ao lado dos homens e das mulheres.

Os líderes das uniões, os catequistas, os professores e alguns antigos ou novos estudantes colaboram na criação desse nova posição que se insere na própria cultura democrática indígena com suas "coordenações" e seus "conselhos supremos" de base popular. A terra e a luta "contra a repressão na qual se vive" continuam sendo os objetivos principais, (16) mas a estes se soma a democracia dos povoados indígenas e da nação mexicana. Esta é uma novidade de peso crescente, tão grande que já se tornou também irrenunciável, o que ainda não é entendido por muitos líderes governamentais e empresariais dispostos somente a tornar a negociação populista e mediadora, ou que aplicam uma política de "resistência" para ver quando as massas se cansam.

Por traz da nova luta pela democracia, desenvolvida pelos índios, aparece, de forma reiterada, a luta contra a discriminação, a exclusão e a exploração dos povos "indígenas". A cúpula política e social continua tratando os índios como os trataram seus antepassados espanhóis, crioulos ou mestiços aladinados. O ladino ou "kaxlán" herdou os costumes e privilégios de uma situação colonial, hoje inserida nessa "armadilha de pobreza" a que se refere Alan B. Durning, e que abarca desde as estruturas locais e nacionais até a global. Por detrás da nova luta dos povos indígenas, encontra-se o Tratado de Livre Comércio que os deixa desamparados para competir no "moderno" mundo atual. Para eles, o TLC e sua expressão imediata nas modificações do Artigo 27 e no intercâmbio comercial excludente, cada vez mais desigual, constituem uma verdadeira ameaça a sua sobrevivência.

Os anos 80 assistiram a intensificação da pobreza, da marginalização e da exclusão, com as políticas neoliberais fortemente articuladas com um renascer dos caciques índios e brancos. Em Chiapas e no país inteiro cresce o número de explorações e abusos com os salários de fome e os preços irrisórios que são pagos pelo trabalho — que diminui cada vez mais — e pelos produtos indígenas, vendidos com prejuízo. Alguns desses produtos, como o café, articulam-se à economia transnacional que compartilha os benefícios do que Luiz Hernández Navarro chamou de "lei de San Garabato" — vender caro e comprar barato (17). Segundo ele, "o exemplo do café é um entre muitos de um modelo de desacumulação e desemprego destinado a deixar os pobres na pobreza por séculos e séculos. Na última semana — acrescenta — "o preço do café no mercado mundial subiu quase 100%, no nacional subiu 60%, e, mesmo assim, a Cooperativa Cholón B’ala, em Tila, Chiapas, continuou pagando o mesmo valor pelo quilo do produto". O autor afirma que há camponeses que vendem aquilo que produzem sem lucro, ou com perda. E pensa, com razão, que "a diferença permanece em alguma parte". Descapitalizados, os pobres produtores de café "não podem aproveitar o ‘boom’ para produzir mais: não têm crédito, e, em sua maioria, necessitariam de um financiamento nove vezes superior à garantia que podem oferecer aos bancos. Nem para eles, nem para os produtores de milho, nem para todos os demais, há perspectivas de solução para a ‘armadilha da pobreza’".

Para vencê-la, propõe-se uma luta defensiva-democrática, uma revolução defensiva-democrática cuja única possibilidade de vitória é que ela se transforme em uma grande luta política e social, capaz de modificar as correlações do poder e o mercado no sentido de um projeto local, nacional e eventualmente global. No que diz respeito a essa luta democrática, não se conhecem suficientemente as variantes e as tendências e se carece ainda de um teoria geral. Somente se sabe que, sem uma luta democrática com dignidade e autonomia dos que se encontram na parte de baixo da estrutura social, não haverá vitória social segura nem negociação que permita ao povo acumular forças para enfrentar a opressão e a exploração do PRI, dos caciques, do governo, do sistema.

A primeira revolução do século XXI

Antes do cessar fogo, chamou-me a atenção ver escrito em uma parede de San Cristóbal uma frase que dizia: "Nós não somos guerrilheiros, somos revolucionários". Dias antes, don Samuel Ruiz, o bispo herdeiro de Las Casas, havia-me dito, referindo-se a eles: "É estranho. Como revolucionários, são muito raros. Interpelam o governo para que haja eleições honradas".

Em torno dessas primeiras aproximações, fui descobrindo que a rebelião em Chiapas tem duas grandes linhas de comunicação e de ação particularmente novas na história das revoluções. Essas duas linhas parecem herdar e superar as propostas anteriores, não somente em relação ao restante do mundo, como também no próprio México, incluindo-se Chiapas. Nelas, estão as heranças dos êxitos e fracassos dos russos, chineses e cubanos, ou, mais recentemente, de Nicarágua, El Salvador e Guatemala; das revoluções, das guerrilhas, dos movimentos camponeses de povos indígenas e, com muitos detalhes simbólicos, políticos e militares, do movimento ocorrido no México entre 1910 e 1917.

Em certo sentido, uma linha, a memória e a criação histórica estão relacionadas com o que poderíamos chamar de uma política de empatia e de hegemonia. Em outro, memória e criação estão relacionadas com uma política de acumulação de mediações próprias que permite avançar até objetivos cada vez mais profundos nos quais aparecem outras qualidades de vida. Em breves palavras, o discurso zapatista parece buscar um interlocutor múltiplo e dirigir-se, alternativa ou simultaneamente, a uma grande quantidade de públicos, potencialmente atores. O fato mesmo de se denominarem de zapatistas e de revolucionários é, por si, uma mensagem a todos os camponeses e a todos mexicanos, visto que, no subconsciente coletivo e na educação sentimental, genuína e falsa dos mexicanos, todos se sentem "zapatistas" e são "revolucionários". O discurso não se descuida do interlocutor mais longínquo — o índio — nem das forças progressistas do mundo, nem dos jornalistas e dos meios de comunicação do México e dos outros países, nem dos intelectuais, por mais sofisticados que estes sejam. Àqueles, fala-se em seu próprio idioma e nele escuta-se, e a estes, enviam-se mensagens e "metamensagens" com citações em inglês e até em francês, e com correções na pronúncia do castelhano e convites ao bem falar e escrever do que eles mesmos dão provas.

Os zapatistas mostram que dominam dialetos, lenguas francas e expressões in. O discurso de comunicação múltipla, ou o enfocado ou "focalizado" em um público especial, aumentam sua capacidade persuasiva com o manejo multidimensional da razão, do entendimento e do juízo e com a expressão das formas de pensar em estilos que não são pomposos nem contundentes. Às vezes, aparece em seus rostos semi-ocultos uma leve ironia inesperada ou uma grosseria juvenil que pede licença no sentido do humor. Insere-se na mensagem moral e política como o cotidiano alegre que não se acaba, por trás do que oculta, a firme decisão de igualar a conduta com o pensamento ou de cumprir a palavra. Surge também como a alegria da morte que é uma forma da vida ousada e um meio de identidade do herói, com o que não o é, ou que ainda não o é. Aparece assim um teatro na revolução para Hamlets indecisos e espectadores distantes.

A motivação da "dignidade" constitui uma base moral da luta zapatista que corresponde, no México, ao que foi a prática político-moral de Martí em Cuba. É difícil alcançar os mexicanos com razões "morais"; em nossa cultura, a "dignidade" tem a capacidade de desatar uma dinâmica muito mais poderosa.

A política de mediação, ou de meios e caminhos para conseguir objetivos é muito original. Nas propostas dos zapatistas, objetivos e meios aparecem, todavia, como intercambiáveis. Fora o fato de exigirem do governo que este realize eleições honestas (no ano da insurreição que é ano de eleições presidenciais), lutam pela democracia, pela justiça e pela liberdade e asseguram sua luta com as armas. Em uma palavra, os zapatistas se somam à mais popular e reclamada das lutas atuais do povo mexicano e de outros povos do mundo. Ao fazê-la, não optam por um só caminho, através de uma hipótese apenas: exploram as alternativas para ver qual a que melhor funciona. Ao mesmo tempo, programam uma democracia nova entre os revolucionários; uma democracia plural em relação às ideologias, às religiões e às opções políticas, que não é necessariamente o caminho para o socialismo, e em que não se aceita que a democracia "formal" seja somente "mediatização", em que inclusive se exige aplicá-la efetiva e honestamente, sem trapaças. Porém, longe de se deter ali, os zapatistas pedem democracia com justiça, liberdade para os indivíduos e não somente para os povos. Ou vice-versa. Fazem sua a idéia de um regime que não seja presidencialista e de uma federação que seja real, em que haja um certo equilíbrio de poderes soberanos. Colocam o problema da justiça para os "homens da sombra" e com eles. Exigem a democratização em todos os níveis do governo, da sociedade civil e do Estado.

No terreno das persuasões de forte impacto, como revolucionários não se declaram vanguarda, como chefes não mostram sinais de caudilhos. E mais: afirmam haverem calculado que o triunfo é impossível sem uma luta que não venha de todos os movimentos dispersos e juntos. E, quanto a Marcos, o mais conhecido de seus porta-vozes e líderes (aliás, é "subcomandante"), quando se apresenta, afirma que tem superiores, e que estes, para certas decisões, consultam seus povos de forma exaustiva, em que votam os adultos e até as crianças. O movimento zapatista supera as graves experiências autoritárias antigas e modernas de caudilhos latino-americanos e de "nomenklaturas" ao estilo russo.

Se o que foi dito até então foi pouco, há outros fatos notáveis nos quais conta a imaginação histórica que se alimenta da experiência, ou a teoria geral que se constrói a partir de abstrações locais e regionais. Nesses terrenos, é impressionante ver como se combinam as políticas de conflito e consenso, de enfrentamento e negociação, e, como em ambas, com interesses e princípios indeclináveis, juntam-se expressões muito cordiais e respeitosas e disposições de diálogo.

Em matéria de desestruturações, por trás da ausência de uma teoria da história universal passada e futura, dir-se-ia que os zapatistas são como uma espécie de revolucionários da chamada "pós-modernidade", dessa época em que "a razão rompeu-se" com o triunfo universal do capitalismo.

Conflito e consenso, guerra e negociação, enfrentamento e diálogo, rupturas e tréguas, desacordos e pactos com governos e proprietários, tudo isso submete à prova as hipóteses ou projetos para avançar, aprofundar e ampliar os sucessos com os integrantes do movimento, ou que com ele simpatizam, com os que resistem, com os que observam, (com "os públicos" de Kierkegaard no México). A todos, pede-se que se organizem em torno de uma esperança ou contra seu próprio temor. E que alcancem pela paz o que eles talvez não conseguissem alcançar pela guerra. Nem sequer lhes pedem que se não o lograram pela paz, tentem pela guerra. Seu chamado ao resto do país é para que se dê conta de que se houver luta, uma luta na qual eles não estejam sós e que os povos estejam lutando juntos — de forma séria — pela democracia com justiça e dignidade, poder-se-á alcançar, pela paz, o que, de outro modo, seria inalcançável pela guerra ou pela paz. O todo organizado é o objetivo e o meio principal, é o que pode assegurar a mudança pacífica e qualquer mudança.

A contribuição do EZLN quer ser muito modesta e é também ambiciosa: defender, pelas armas, na Selva Lacandona e nos Montes Azules, a terra, a liberdade e a dignidade que os alçados não puderam defender de outra maneira; e iniciar uma transformação na consciência do povo de Chiapas e do México para que, com a democracia e a paz, alcancem objetivos de liberdade e justiça não somente nas montanhas, nem somente na Selva, nem somente em Chiapas, mas no país. O EZLN recorda a bela imagem da borboleta que desata uma tormenta, e a mais exata dos grandes movimentos que parecem começar do zero e que se tornam universais. Implica uma negociação que não seja "arresto" e uma revolução que ponha um basta à violência contra os povos indígenas para abrir caminho a uma democracia com liberdade e justiça, com dignidade e autonomia.

O projeto se formula em dialetos particulares que se universalizam e em linguagens universais que florescem entre mexicanos tzeltales, tzotziles, choles, zoques e tojolobales. Talvez se realize. Mas em todo o caso, será uma tragédia para a humanidade se não se realizar.


Notas

1. Veja-se RUZ, M. H. La cultura maya: vigencia de la pluralidad. México: Universidad de México, 1993. P.4-9; VIQUIERA, J. P. María de la Candelaria. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

2. N.T.: Acasilldos: peão que, no México, vive em fazendas prestando serviços nas horas extras.

3. Veja-se a extraordinária "Carta Pastoral en esta hora de la Gracia com motivo del saludo de S. S. al Papa Juan Pablo II a los indígenas del continente. Samuel Ruiz García. Obispo de San Cristóbal de las Casas, Chipapas. 6 de agosto de 1993. Fiesta de la Transfiguración del Señor".

4. Veja-se LEYVA SOLANO, X. Militancia político-religiosa e identidad de la Lancadona. (Mimeo.).

5. Cf.: "Chiapas 94: Carnaval de la Historia". Entrevista com Luis e Antonio García de León. 11-2 nov. 1994. Guadalarara, Jalisco (México).

6. Cf.: RODRÍGUEZ, E. La agudización de los problemas agrarios en Chiapas durante la década de los 80. In: PALACIO, L. H., SANDOVAL, J. M. (Orgs.). El redescubrimiento de la frontera Sur. México: Ancien Regime, 1989. p.141-52.

7. MUENCH NAVARRO, P. La reforma agraria en Chiapas. Cuadernos de Centros Regionales (Chiapas), n.7, 1994.

8. LAGORRETA DÍAZ, M. C. La reforma al artículo 27 Constitucional y su efecto en la Unión de Campesinos de Ocosingo, Chiapas. Cuadernos de Carlos Reynosa, n.7, 1994. Veja-se GARCÍA DE LEÓN, A. Chiapas y la reforma del artículo 27. Los regresos de la historia. Ojarasca, n.11, p. 20-7, 1992. Veja-se também Prólogo in: EZNT. Documentos y comunicados. México: Era, 1995.

9. N. T.: Cacique: pessoa de grande influência política em uma localidade, déspota, tirano regional.

10. RODRÍGUEZ, op. cit., p.209, 305.

11. TAPPAN MERÁS, J. E. Legislación y práctica de la democracia en Chiapas. México: CIIH, 1985.

12. Para uma excelente análise da política e organização dos índios e camponeses de Chiapas e a agudização de seus problemas, veja-se: Taller de análisis de las cuestiones agrarias. In: LOS ZAPATISTAS de Chiapas. San Cristóbal de las Casas: s. n., 1988. 93p.

13. Cf.: RODRÍGUEZ, op. cit., p.147. O zanate (tordo) é um pássaro ictérico "sumariamente nocivo à semeadura dos cereais, que arranca os grãos semeados e devora os frutos. O macho é negro ... etc.". Cf.: SANTAMERÏA, F. Diccionario de mexicanismos. México: Porrúa, 1974.

14. VAZQUEZ SOTO, L. Organización Campesina Tojolobal. Instancias organizativas e sus luchas. San Cristóbal de las Casas: Universidade Autónoma de Chiapas, 1983.

15. Os dado anteriores só correspondem a 38 dos 100 municípios com os quais Chiapas conta; referem-se apenas a quatro das seis regiões indígenas da entidade. Veja-se Boletines e Informes. San Cristóbal de las Casas: Centro de Derechos Humanos Fray Bartolomé de las Casas, 1989; GÓMEZ CRUZ, P., KOVIC, C. Com un pueblo vivo, en tierra negada. San Cristóbal de las Casas: Centro de Derechos Humanos Fray Bartolomé de las Casas, 1994. p.185.

16. VAZQUEZ SOTO, op. cit.

17. HERNÄNDEZ NAVARRO, L. El drama cafetalero. La Jornada, 3 set. 1994.

Pablo González Casanova é professor da Universidade Autônoma do México (UNAM), da qual foi reitor. Atualmente é Conselheiro do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Tradução do espanhol: Cristiane Nova

Revista Olho da Historia