terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O sonho e o pesadelo da Europa

A ideia de uma Europa unificada, em que todos compartilham os mesmos valores, costumes e convicções políticas, é antiga. Já a sua concretização é controversa. Laura de Mello e Souza fala sobre os dilemas da imigração na Comunidade Europeia de hoje.

Laura de Mello e Souza



O continente europeu visto por satélite em imagem de 2002. (foto: Nasa)

Em 1752, François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), um dos expoentes, na França, do movimento cultural chamado de Ilustração, escreveu que a Europa cristã havia se tornado uma espécie de grande república dividida em vários Estados, com muitas semelhanças. 

Todos tinham um fundo comum de religião, abraçavam os mesmos princípios de direitopúblico e de política e se empenhavam em manter uma balança equilibrada de poder, além de outros aspectos comuns. 

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), outra grande figura desse movimento, considerou não mais existirem, então, franceses, alemães, espanhóis, “nem mesmoingleses, só há europeus”. E acrescentou: “Todos têm os mesmos gostos, as mesmas paixões, os mesmos costumes porque nenhum recebeu uma forma nacional por meiode uma instituição particular”.

Se o século 18 marcou o triunfo da Europa do ocidente sobre a parte oriental, é bom lembrar, como os historiadores britânicos John Pocock e Anthony Pagden, que a ideia de Europa nasceu no Oriente, nas regiões onde os turcos muçulmanos e os árabes viviam às turras com a cristandade. 
A ideia de Europa nasceu no Oriente,onde turcos muçulmanos eárabes viviam às turras com a cristandade

Surgiu entre os povos de cultura grega, noperíodo entre as guerras persas e a época deAlexandre da Macedônia. Nos mitos e nas lendas, o nome de Europa era dado às terras que ficavam a leste do estreito de Bósforo, diferenciando-as daquelas a oeste, chamadas de Ásia. 

Inicialmente, a ideia se referiu ao mundo civil – helenístico, e depois helenístico-romano –, para distingui-lo do mundo bárbaro. A seguir, serviu para diferenciar cristãos e pagãos. 

Parece que a palavra ‘europeu’ foi usada pela primeira vez por Enéas Silvio Piccolomini (1405-1464), humanista do Renascimento italiano feito papa com o nome de Pio II. Mas quem deu um sentido laico e político à palavra foi o também italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527): a Europa, escreveu, se distinguia das demais terras por causa de suas instituições, que eram permanentes, e não contingentes.
Sem lugar para a diferença

Com os descobrimentos, os povos da América impuseram aos europeus uma reflexão sobre diferenças culturais e, ao mesmo tempo, sobre a unidade do gênero humano. Se eram também homens aqueles seres variados, uns nus, vivendo nos matos, outros vestidos ricamente, habitando palácios, era preciso cristianizá-los e civilizá-los: em suma, urgia europeizá-los.


Alegoria de três continentes: 'A Europa sustentada pela África e pela América', gravura feita em 1796 pelo artista britânico William Blake(1757–1827).

Pagden ponderou que, sendo uma comunidade cultural, a Europa nunca chegou a sê-lo do ponto de vista étnico e político, nem mesmo quando, como na Ilustração, se considerava hegemônica. Comunidade“diversificada e mestiça, cuja história real ignoramos”,escreveu o historiador espanhol Josep Fontana, dependendo sempre de um espelho para poder se definir e se diferenciar dos outros.

Pocock, por fim, percebeu que a unidade da Europa foi, em grande parte, fruto de dois grandes momentos, definidos em termos econômicos. Entre 1713 e 1789, no auge da Ilustração, apresentou-se como uma república de Estados, unidos pela parceria entre soberania civil e sociedade civil, imprescindível ao desenvolvimento do comércio. 

Acontecimentos recentes deixam claro que o velhosonho da Europa não comporta a mistura ou a mestiçagem

Contemporaneamente, a partir da formaçãoda Comunidade Europeia, o continentecogitou na submersão do Estado e de sua soberania “em nome de uma era pós-moderna, na qual o mercado global exige a subjugação da comunidade política e talvez, também, da comunidade étnica e cultural”. Econstatou: “Estamos em vias de deixarmos deser cidadãos e de nos comportarmos apenas como consumidores”.

Acontecimentos recentes deixam claro que o velho sonho da Europa não comporta a mistura ou a mestiçagem. E o pesadelo é esse que se vê agora, quando levas cada vez maiores de migrantes ameaçam uma ideia de Europa construída milenarmente. Populações que, não raro, vêm das regiões originalmente designadas como Europa: Grécia, Bálcãs e outras.

Em um muro de Lisboa, flagrei, com uma amiga, duas frases contraditórias. À direita,estava escrito: “Economia marxista”. À esquerda: “Morte aos ciganos”. Uma, a criticar o sonho europeu da unidade conferida pelo consumo. A outra, a reafirmar o horizonte ideal de uma Europa sem uniformidade e sem jaça.

Laura de Mello e Souza
Departamento de História, Universidade de São Paulo
Revista Ciência Hoje

Quem tem medo da radioatividade?

Como herança da destruição causada pela explosão das bombas atômicas ao fim daSegunda Guerra, a energia nuclear ganhou uma reputação difícil de mudar. Um novo livro desmistifica a radioatividade e aponta as vantagens e desvantagens de seu uso.

Bruna Ventura


Embora a radioatividade esteja associada a bombas atômicas e acidentes nucleares no imaginário de muitos, ela está por trás de inúmeras aplicações benéficas, como a radioterapia (foto: Dina-Roberts Wakulczyk / CC 2.0 BY).


Foram mais de cem mil mortos imediatamente após a explosão das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. Noventa por cento deles eram civis. Era o fim da Segunda Guerra Mundial, mas o sofrimento de milhares de pessoas não terminaria em 1945. Gerações depois, as sequelas da radioatividade ainda eram sentidas, como mostram os altos índices de câncer de mama nas meninas nascidas em Hiroshima no pós-guerra.

De uma hora para outra, toda indústria bélica ficou obsoleta, já que a tecnologia de apenas uma bomba poderia destruir uma cidade inteira em minutos.

Ironicamente, as mesmas propriedades do átomo capazes de causar tamanha destruição também podiam salvar vidas se empregadas no tratamento de câncer. A radioterapia, o exame de raios-X e o marca-passo artificial são exemplos de aplicações pacíficas da radioatividade. Para muitos, no entanto, a função da energia nuclear se resume a dizimar vidas.


O temor suscitado pelos cogumelos atômicos se espalhou pelo mundo e ecoa até hoje devido à falta de informações precisas sobre o tema. Para desmistificar essa imagem reducionista e ameaçadora, dois professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) acabam de lançar o livro Perdendo omedo da radioatividade.

No livro, o físico Felipe Damásio e a química Aline Tavares resgatam a história de como o homem explorou o interior do átomo a partir do final do século 19, quando foram descobertos os raios-X, pelo alemão Wilhelm Röntgen, e a radioatividade, pelo francês Antoine Henri Becquerel e pelo casal Pierre e Marie Curie (esta última de origem polonesa).

A obra é fruto de um debate sobre os benefícios e perigos da tecnologia nuclear durante as aulas dadas por eles no Instituto de Física da UFRGS. Durante esses debates, os autores perceberam que muito se falava, mas pouco se sabia sobre o tema e resolveram aprofundá-lo. 


Vilã ou heroína?

A partir dos trabalhos pioneiros do fim do século 19, o livro mostra a evolução do conhecimento científico sobre o interior do átomo, passando pelos trabalhos de Albert Einstein, duas guerras mundiais e a corrida armamentista da Guerra Fria na década de 1960.
O risco de acidentes e a destinação do lixo nuclear são tratados de forma esclarecedora

Ao destacar as aplicações da tecnologia nuclear na medicina molecular, na agricultura, na indústria e na datação de artefatos na arqueologia, os autores mostram que rotulá-la como vilã ou heroína da história depende do ponto de vista a partir do qual se quer enxergá-la.

A obra também aborda a polêmica que aindaenvolve a geração de energia nas usinas nucleares como alternativa à queima de combustíveis fósseis das usinas termelétricas de gás e carvão e ao impacto socioambiental das hidrelétricas. Os fantasmas associados às usinas nucleares – o risco de acidentes e a destinação do lixo nuclear – são tratados de forma esclarecedora pelos autores.

O vocabulário do livro é simples, o que faz com que o texto possa ser apreciado mesmo por quem não está familiarizado com o tema. Vale destacar também que as fórmulas matemáticas foram deixadas de lado, para que pessoas sem formação específica em física ou matemática possam formar uma opinião crítica e criteriosa sobre a energia nuclear.

Perdendo o medo da radioatividade
Felipe Damasio e Aline Tavares (ilustrações: Lor)
Campinas, 2010, Autores Associados
148 páginas
Bruna Ventura

Revista Ciência Hoje