A CACHAÇA NO FOLCLORE DE MINAS GERAIS
João Dornas Filho
Há um considerável acervo de material etnográfico a respeito da cachaça no Brasil, país de secular tradição na lavoura e industrialização da cana de açúcar, e ainda não foi reunido, existe esparso por todos os recantos da nossa terra.
Em Minas Gerais, não só nas regiões do cultivo da cana, mas também em qualquer lugar onde existam uma dúzia de casas e uma taverna, o lendário, o anedotário e a poética a respeito do restilo ou aguardente são riquíssimos e de subida importância para o conhecimento da nossa demologia.
É um pequeno material que tenho no meu arquivo o que apresento nestas notas:
A cachaça é minha prima,
o vinho é meu parente.
Não há festa nem festejo
que meus parentes não entre.
Vou mandar fazer um bicame
de madeira de canela,
pra passar toda cachaça
dos quintos pra minha goela.
No fim da minha vida
quero morrer de fartura
O quinto será meu caixão,
o alambique a sepultura.
Em Diamantina anotei a seguinte “oração” dedicada a bebida:
Aguardente é excelente,
quem bebe fica quente;
quem fica quente, dorme;
quem dorme, não peca;
quem não peca vai ao céu;
e para que ao céu vamos,
bebamos,
com a divina graça,
cachaça!
Ela é filha do alambique,
neta do canavial,
nascida aqui no Brasil,
nada tem de Portugal,
E sendo bebida tão singular,
que a uns faz rir, outros chorar,
viva!
E nos livre da polícia! Amém.
De várias procedências, mas sempre de Minas Gerais anotei mais estes versos:
Pedi casamento à moça
e ela mandou me dizer
por velho vizinho dela
que eu deixasse de beber.
Eu mandei dizer a ela
pelo mesmo portador,
que eu não deixo de beber,
nem que perca o seu amor.
Pois a garrafa faço a vela,
do alambique meu caixão
Mesmo depois de morto
me metam um copo na mão.
Debaixo do alambique
risquei a minha sepultura
Eu morrendo de cachaça,
sei que morro na fartura.
Para afogar minhas mágoas,
de vinho vou me fartar.
– Afogue-as antes com água
– Não, que elas sabem nadar.
Eu não bebo mais cachaça
nem que ela vem do céu.
Foi por causa da cachaça
que eu perdi o meu chapéu.
Nesta vida de pobreza,
sou feliz, não sei porque.
Todo sonho de riqueza
só resulta em você.
A caiana tá madura,
tá no ponto de moê
Chora, caiana, chora
que eu não posso te valê.
O restante que ora apresento foi colhido no Triângulo Mineiro. Na primeira estrofe em que a cachaça tem o nome de “mão de vaca”, encontra-se o termo “quitanda” com o sentido de varejo de verduras, legumes e anexos que no centro-oeste de Minas significa, porém biscoitos, sequilhos, etc. Isto parece denunciar que a estrofe é de origem peregrina.
Na quitanda tem bolacha
na padaria banana
no açougue “mão de onça”
e na venda “mão de vaca”
A vaca, boa
Caxinguelê-ê-ê!
O diabo tá danado
com você!
Outra, que é variante de alguns antecedentes:
Dentro do alambique
façam o meu caixão
Nas garrafas ponham velas
me enterrem com o copo na mão.
Se santo padre soubesse
o gosto que a cachaça tem,
viria lá de Roma,
beber cachaça também.
No nordeste de Minas (Virginópolis, Peçanha, etc.) copiei estas:
A cachaça é moça branca
filha de homem trigueiro;
quem tomar amor por ela
não pode ajuntar dinheiro
Minha caninha verde
que veio de Montevidéu,
veio engarrafada
na capa do meu chapéu.
Vinho de cana é cachaça,
concha pequena é colher,
língua de velha é desgraça,
bicho danado é mulher.
Evidentemente incompleto recolhi ainda no nordeste do estado este diálogo:
O homem
Vou beber,
Vou me embriagar,
Vou cair na rua
Pra polícia me pegar
A mulher
Ó meu maridinho
Dai-me um chapéu,
Que o meu está velho,
Já saiu o vêo!
O marido
Vou beber,
Vou me embriagar, etc.
A mulher
Ó maridinho,
Dai-me um sapato
Que o meu está tão gasto,
Já saiu o salto!
Ainda da zona do nordeste, onde se fabrica boa cachaça muito apreciada pelos entendidos, recebi, por obséquio do senhor Otávio Courb, mais umas estrofes, que são, aliás, variantes dalgumas que já copiei.
A cachaça é minha prima,
o vinho meu primo irmão,
não há função nenhuma
que meus parentes não vão.
A cachaça é moça branca
filha de um homem de bem
quem tomar amor por ela
perde tudo que tem.
Cachaça é sangue de Cristo,
e alma de satanás;
sangue se bebe pouco,
e alma se bebe mais.
Comunicação interessante é a recebida de um filho de Diamantina, informando existir ali um ditado que diz: “Em Diamantina só os sinos não bebem, porque vivem de boca para baixo”...
O pequeno material aqui apresentado traduz uma significante parcela de quanto há por aí para ser coletado, coordenado e estudado em tão interessante capítulo do nosso folclore.
(Dornas Filho, João. “A cachaça no folclore de Minas Gerais”. Estado de Minas. Belo Horizonte, 24 junho 1962, 2º Caderno, p.3-4)
Jangada Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário