sábado, 21 de abril de 2018

Uma breve história dos impostos


Conheça a movimentada e curiosa trajetória do instrumento de poder que determinou o curso da história
Rodrigo Velloso

Peças de barro de 4000 a.C. encontrados na Mesopotâmia são os documentos escritos mais antigos que conhecemos. E o mais antigo desses documentos faz referência aos impostos. Se você acha que paga demais, agradeça por não viver naqueles dias. Além de entregar parte dos alimentos que produziam ao governo, os Sumérios, um dos povos a viver por ali, eram obrigados a passar até cinco meses por ano trabalhando para o rei.

Os mais sortudos seriam empregados na colheita ou para retirar lama dos canais da cidade. Os menos afortunados entravam para o exército, com grandes chances de morrer em um guerra. Quem era rico escapava: mandava escravos para fazer o serviço sujo. Assim que surgiu a moeda, eles tiveram a ideia de substituir a contribuição braçal por dinheiro.

Tonia Sharlach, arqueóloga da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, afirma que já naquela época não havia garantia de contrapartida aos cidadãos. “Não sabemos quais os benefícios que as pessoas obtinham com o pagamento, mas presumimos que eles o faziam porque, caso contrário, o rei os mataria”, diz.

Era assim também no antigo Egito. As evidências indicam que, em 3000 a.C., os faraós coletavam impostos em dinheiro ou em serviços pelo menos uma vez por ano. Ninguém era tão temido quanto os escribas, responsáveis por determinar a dívida de cada um. O controle era tão rigoroso que fiscalizavam até o consumo de óleo de cozinha pelas residências, já que essa era uma substância tributada. Os impostos eram mais altos para estrangeiros, e especula-se que foi para pagar dívidas tributárias que os hebreus, por exemplo, acabaram como escravos.

O Império Romano aperfeiçoou a técnica de impor tributos a estrangeiros. Em economias pré-industriais, a terra e o trabalho são os principais ingredientes da riqueza. Por isso, a conquista de outras terras e povos dava aos romanos acesso a mais riqueza, o que, por sua vez, permitia que conquistassem e controlassem um território ainda maior.

O censo, usado até hoje em muitos países, foi criado pelos romanos para decidir quanto deveriam cobrar de cada província. O cálculo era feito com base no número de pessoas. Até hoje, a capacidade de cobrar impostos é diretamente proporcional à quantidade e qualidade de informações disponíveis sobre os contribuintes.

Em 167 a.C., Roma se tornou tão rica à custa dos povos conquistados que suspendeu a cobrança de impostos sobre os cidadãos romanos. Mais que isso, distribuía pão e outros produtos gratuitamente na cidade como forma de partilhar a riqueza. Como o império era muito grande, terceirizaram a coleta de impostos. Os publicani, ou fiscais, adiantavam dinheiro ao governo pelo direito de recolher impostos e, depois, tratavam de recuperar o investimento acrescido de juros, custos de coleta e, naturalmente, algum lucro.

Ainda assim, calcula-se que menos de 10% do PIB do império era cobrado em impostos. Isso porque os gastos do governo eram limitados. Mais ou menos 50% do orçamento era dedicado à manutenção do exército, inclusive o primeiro sistema de previdência da história, que garantia aos legionários 13 anos de salário depois que cumprissem 25 anos de serviço. O resto era destinado a cobrir as despesas do governante, à construção de estradas, portos e mercados e à manutenção do sistema legal.

Isso mostra uma das características mais consistentes dos impostos ao longo da história. O valor recolhido é função do quanto o governo quer gastar e não da percepção sobre quanto é justo tirar de cada cidadão. Afinal, os romanos, que se consideravam donos dos povos conquistados, cobravam-lhes menos do que muitos governos cobram, hoje, daqueles a quem deveriam servir.

A queda do Império Romano trouxe um novo sistema de organização da sociedade e, portanto, dos impostos. O rei concedia terra aos melhores guerreiros para que pudessem se sustentar e, em troca, os cavalheiros estavam sempre preparados para lutar em nome do soberano. Eles tinham autoridade legal sobre seus territórios, o que incluía o direito de cobrar impostos. Para cultivar a terra, os senhores feudais contavam com servos, que eram obrigados a passar parte de cada mês trabalhando em suas terras – além de pagar impostos sobre sua própria produção.

É nessa época que surge a lenda do mais belo protesto contra excesso de tributação. O conde Leofric de Mercia disse a sua mulher, Lady Godiva, que só baixaria os impostos da pequena cidade de Coventry, Inglaterra, quando ela passeasse nua pela cidade sobre um cavalo branco. Ela aceitou o desafio e, em respeito ao seu ato de bravura e humanidade, o povo fechou as janelas e não a contemplou. Outro herói do período, mais famoso, é Robin Hood. Curiosamente, o lema do herói reflete uma das funções que justificam a coleta de impostos por governos modernos: ele distribuía aos pobres aquilo que tirava dos ricos.

Embora seja representado como tirano na história, o trabalho do senhor feudal não era fácil. Ele tinha que supervisionar a produção de suas terras, cuidar dos assuntos legais e se manter preparado para a guerra. Por isso, cada vez mais senhores passaram a pagar impostos em dinheiro, concentrando sua atenção nas tarefas administrativas. Esse comportamento foi incentivado pelos reis, que preferiam ter menos rivais militares e manter, eles próprios, exércitos profissionais.

Outro fator que motivou a coleta de impostos em dinheiro foi o surgimento, por volta do ano 1000, de pequenas vilas onde se concentravam artesãos produtores de bens de consumo. As cidades tornaram-se centros de riqueza e os reis passaram a cobrar impostos diretamente dos habitantes. Com isso, o poder e as fontes de financiamento se pulverizaram e a força dos reis cresceu.

Na Inglaterra, a concentração do poder real levou a uma revolta e à criação de um dos mais importantes documentos legais da história: a Magna Carta. Cansados dos altos impostos cobrados pelo rei João para financiar guerras mal-sucedidas no exterior, vários barões se uniram em revolta e, em 1215, obrigaram-no a aceitar limitações sobre seu próprio poder, em especial seu direito de cobrar impostos. Assim a Idade Média revela outra constante dos impostos: embora não haja limite às cobranças de um governo, os contribuintes não aceitam por muito tempo as que consideram excessivas ou que julgam ser mal utilizadas.

Entre 1300 a 1700, os reinos se consolidam e se tornam nações. A partir do século 15, o auge da Renascença, os impostos se multiplicam à medida que as atividades da sociedade se diversificam. A burocracia da cobrança aumenta e a crescente complexidade econômica das sociedades leva à criação de teorias econômicas e às novas formas de arrecadação.

A evolução do comércio entre as nações leva à instituição de tarifas de importação e exportação. Ressurgem os impostos sobre a venda de produtos específicos, como os que existiam na Roma antiga. E aumentam os conflitos por causa dos impostos.

A Revolução Industrial do século 18 aumenta ainda mais a complexidade da economia e as teorias em torno de sua organização. É nessa época que surgem as bases ideológicas que hoje representam a esquerda e a direita. De um lado surgem os fisiocratas, um grupo de filósofos franceses liderados por François Quesnay que defendem a liberdade econômica dos indivíduos – inclusive no que se refere à cobrança de impostos.

A influência da fisiocracia sobre o liberalismo moderno é inegável. De fato, o pai do liberalismo, Adam Smith, quase dedicou seu livro A Riqueza das Nações, de 1776, a Quesnay. A essência da doutrina popularizada por Smith e outros, como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, é a crença de que as leis naturais tendem a produzir o progresso e, por isso, deveriam governar a sociedade.

Em outras palavras, liberais acreditam que a economia e a sociedade deveriam operar livremente com um mínimo de intervenção do Estado. Cunharam o termo laissez-faire (“deixe fazer”, em francês) para explicar qual deveria ser a postura dos governos frente à economia.

Do outro lado, a realidade dos baixíssimos salários e péssimas condições de trabalho dos primeiros operários industriais alimentaram uma corrente de pensamento contrária ao liberalismo clássico: o socialismo. Um dos primeiros expoentes desses ideais foi François Babeuf, um revolucionário francês que, não satisfeito com a igualdade política conquistada pela Revolução Francesa, conspirou para derrubar o governo e fundar um sistema que promovesse, também, a igualdade econômica. Ele foi decapitado em 1797, mas o movimento que fundou se desenvolveu e espalhou-se para a Itália e a Alemanha. Seus seguidores começaram a usar as palavras comunismo e socialismo para descrever a filosofia finalmente publicada em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels com o título Manifesto Comunista.

A doutrina do socialismo tem base na crença de que a desigualdade econômica é insustentável e pode levar à revolução das classes mais pobres. Para o socialista, propriedades e meios de produção devem ser controlados pelo governo que, então, distribuirá a riqueza de maneira igualitária.

Em suas formas puras, nenhuma das duas doutrinas funcionou e, desde então, nações do mundo inteiro vêm procurando um meio termo que atenda às necessidades das populações. Para tentar chegar ao equilíbrio, aumentaram os gastos públicos. O primeiro programa de seguridade social surgiu na Alemanha em 1889 justamente para combater o Partido Socialista. Previa aposentadoria para todos os trabalhadores e benefícios para os doentes ou incapacitados. Mais tarde, seriam criados auxílios de desemprego.

Não demorou para que programas desse tipo fossem adotados em outros países. Em 1924, o Chile se tornou o primeiro país latino-americano a instituir um programa similar. Um pouco mais tarde surgiu a ideia de dar, a toda a população, acesso a cuidados médicos. A medicina socializada surgiu na Inglaterra em 1948. Hoje, o sistema de saúde de países como o Canadá é quase inteiramente público. Para financiar programas sociais como esses, os governos tiveram que aumentar a arrecadação.

O imposto de renda nasceu e cresceu nesse período, confirmando a nova função social. Em sua primeira versão permanente, instituída na Inglaterra em 1874, já era progressivo. Ou seja: quem tem mais renda cede uma parcela maior de sua riqueza ao Estado. Até o final do século 19, vários países europeus, assim como a Austrália e o Japão, adotaram o imposto de renda.

Hoje, mesmo que concordem com o princípio da distribuição de renda, muitos contribuintes ainda questionam o grau em que ela deve ser feita e se o governo é o intermediário ideal para tanta riqueza. Embora as correntes políticas tenham se aproximado, ainda há esquerda e direita. Para José Eduardo Pimentel de Godoy, historiador da Secretaria da Receita Federal, as tendências não são invariáveis. “Há movimentos para a direita, para a esquerda, para baixo, para cima – são ciclos que dependem de fatores políticos, sociais e econômicos.”

Os impostos não são bons nem ruins. “Eles têm o potencial de destruir impérios que deveriam sustentar. Mas, com os devidos controles, construíram grandes nações e trouxeram bem-estar para as pessoas”, diz Charles Adams, especialista em direito tributário internacional e autor do livro For Good and Evil: The Impact of Taxes on the Course of Civilization. Os impostos são neutros. E, assim como qualquer poder, seu efeito depende muito mais de quem os usa e como são usados que de sua própria natureza.

Comédia tributária

Às vezes a cobrança sai de controle.

Mictório
Quando percebeu que a urina humana estava sendo coletada e vendida por comerciantes para uso no tratamento de couro, o imperador romano Vespasiano (9 a 79) instituiu um tributo sobre o xixi

Corno, não
Por volta de 1200, o governo de Portugal criou um imposto que indicia sobre cada par de chifres de boi. Caíram na asneira de chama-lo “cornaria” e, por causa do nome, ninguém pagou

Barbaridade
Se você usasse barba na Rússia, em 1702, pagaria uma taxa para mantê-la. Dizem as más línguas que czar Pedro, o Grande, não conseguia cultivar uma barba decente e, por isso, instituiu o impostos

Quarto sem vista
Na Irlanda, em 1696, o valor do imposto imobiliário era calculado com base no número de janelas que a casa tinha. Muito cidadãos cobriram as janelas de suas casas, o que levou a uma epidemia de tuberculose no país
Revista Superinteressante

Dez mil anos de pileque – a história da bebida


Muito antes da era do bafômetro, o álcool era sagrado para a humanidade. E foi isso que fez o mundo ser o que é hoje

 Bruno Garattoni

De uns tempos para cá, a bebida alcoólica virou a grande vilã da sociedade. Vicia, engorda, causa acidentes de trânsito. No mundo moderno, o álcool é meio malvisto. Só que nossos antepassados não pensavam assim: todo mundo enchia a cara (em alguns casos, até as crianças), em quantidades chocantes para os padrões atuais – no século 19, as pessoas bebiam o dobro de hoje. Mais surpreendente ainda é descobrir que esse porre histórico teve um papel fundamental: ajudou a humanidade a superar epidemias, desbravar o planeta, construir impérios, vencer guerras, organizar sociedades democráticas e inventar tecnologias essenciais para o dia-a-dia de todo mundo. As pirâmides do Egito, as Grandes Navegações, os EUA, o feminismo, o leite em caixinha… sem bebida, essas coisas não existiriam (ou seriam muito diferentes). Afinal, o pileque é intrínseco ao ser humano: das frutinhas fermentadas que os primatas ingeriam aos últimos avanços da química orgânica – como o álcool que não dá ressaca –, a evolução e a birita andam de mãos dadas. Trocando as pernas, cambaleando e tropeçando de vez em quando. Mas sempre juntas.

Um belo dia, alguém descobriu que era possível reaproveitar as sementes das plantas para fazer novas plantas. Nascia a agricultura, e com ela a bebida. A primeira poção alcoólica foi preparada na China, por volta do ano 8000 a.C. A análise de jarros encontrados em Jiahu, no norte do país, mostrou que eles continham um drinque feito de arroz, mel, uvas e um tipo de cereja, tudo fermentado. Não se sabe exatamente a graduação alcoólica dessa poção, mas uma experiência revelou pistas. “Fica entre a cerveja e o vinho”, revela o arqueólogo e químico Patrick McGovern, da Universidade da Pensilvânia, que reproduziu a receita em laboratório e achou o resultado um pouco amargo. A civilização dos sumérios (na confluência dos rios Tigre e Eufrates, atual Iraque) aperfeiçoou a fórmula e criou 19 tipos de bebida alcoólica – 16 deles à base de trigo e cevada. Estava criada a cerveja. Era uma bebida de elite, que os aristocratas sumérios bebiam com canudinhos de ouro. Mas logo chegaria ao povão. Cada um dos trabalhadores que construíram as pirâmides de Gizé, no Egito, ganhava 5 litros de cerveja por dia. Ela era considerada “pão líquido”, um alimento fundamental para que os operários agüentassem uma jornada puxadíssima – e cujas propriedades embriagantes ajudavam a contentar a massa. Dois mil e quinhentos anos antes de Cristo, encher a cara de cerveja já havia se tornado um hábito comum. Talvez por isso, a elite tenha começado a migrar para outro tipo de bebida alcoólica: o vinho. O rei Tutancâmon, que morreu em 1300 a.C., foi sepultado com nada menos que 26 jarras de vinho, de 15 tipos diferentes, para não passar vontade no além (os egípcios acreditavam em vida após a morte). E a manguaça pegou. “Por volta do ano 1000 a.C., o álcool já era consumido por todas as civilizações, da África à Ásia”, afirma o inglês Iain Gately em seu livro Drink: A Cultural History of Alcohol (“Drinque: Uma História Cultural do Álcool”, sem versão em português). Os gregos cultivavam nada menos que 60 variedades de vinho, e até chegaram a inventar um jogo baseado nele. Era o kottabos, que consistia em despejar numa vasilha o restinho de bebida que sobrasse no copo. Se o líquido não estalasse ao bater na vasilha, isso significava que Afrodite, a deusa do amor, estava de mal com o pinguço.

Em Roma, o vinho adquiriu relevância geopolítica. Ele passou a ser produzido em grande escala, pois sua exportação era vital para manter a estabilidade nas províncias do império. E os soldados romanos, que levavam a bebida para desinfetar a água dos lugares por onde passavam, logo descobriram outra grande utilidade do álcool: ele podia servir como uma espécie de arma química contra os inimigos. Quando chegavam a territórios que desejavam conquistar, uma de suas estratégias era fingir amizade e dar vinho para os povos locais beberem. No dia seguinte, quando as vítimas estavam acordando de ressaca, os romanos voltavam e faziam um massacre. “Se você estimular que eles [os inimigos] bebam em excesso, e der a eles quanta bebida quiserem, será mais fácil derrotá-los”, ensinou o historiador romano Tácito. Mas o álcool não servia apenas para incapacitar as pessoas. Ele também era considerado um remédio. No século 14, a peste negra se espalhava pela Europa, matando 90% das pessoas que infectava. Mas ,quando a epidemia chegou à cidade de Oudenburg, na Bélgica, o abade local proibiu o consumo de água e obrigou os cristãos a beber só cerveja. Por incrível que pareça, deu certo: muitos deles sobreviveram à peste (pois a cerveja, graças ao álcool, era menos contaminada que a água). O abade foi canonizado, e virou o padroeiro da cerveja – santo Arnoldo.

Com o fim da epidemia, a Europa se recuperou e uma nova aventura começou a se delinear – as Grandes Navegações. Nelas, mais uma vez, o álcool teve um papel central. A expedição comandada pelo português Fernão de Magalhães conseguiu dar, pela primeira vez na história, uma volta completa no globo terrestre. Foi um enorme porre: Magalhães investiu mais em bebida do que em armas, e sua esquadra de 5 navios carregava um gigantesco suprimento de vinho (cujo valor seria suficiente para comprar mais duas caravelas). Já o navio Arbella, no qual os ingleses foram colonizar a América, levava inacreditáveis 40 mil litros de cerveja e 40 mil litros de vinho – contra apenas 12 mil litros de água. Nenhum navegador que se prezasse entrava no mar sem o “tanque cheio”.

Nessa mesma época, a produção de cachaça foi proibida no Brasil, pois Portugal queria garantir o mercado local para seus vinhos. Aí os senhores de engenho começaram a exportar, clandestinamente, a bebida para Angola – onde era trocada por escravos. Os ingleses também faziam isso, e muito: entre 1680 e 1713, trocaram 5,2 milhões de litros de bebida por 60 mil africanos (cada escravo valia 86 litros de rum, o que dá R$ 850 em valores atuais). Mas ela não foi só moeda de troca da escravidão; também ajudou o Novo Mundo a se libertar. Em 1764, a Inglaterra restringiu o comércio de bebida alcoólica, que os colonos americanos importavam e exportavam em grande quantidade. Isso gerou uma insatisfação que viria a explodir, 11 anos mais tarde, numa guerra. Liderados pelo general George Washington, que era dono de uma fábrica de uísque, os soldados americanos se embebedavam durante o combate – cada um tomava 1 litro de rum por dia. Em 1776, a Declaração de Independência dos EUA foi escrita por Thomas Jefferson num bar – e o primeiro a assiná-la foi um contrabandista de vinho, John Hancock.

Mulheres unidas pelo goró

A Revolução Industrial mudou completamente a fabricação de bebidas: elas ficaram mais baratas e passaram a ser produzidas (e consumidas) em enorme quantidade. Em 1830, cada americano entornava o equivalente a 10 litros de álcool puro por ano, nível superior ao de hoje (8,5 litros). É muita coisa: dá 250 litros de cerveja ou 90 de vinho. Foi aí que o alcoolismo, até então apenas uma inconveniência, passou a ser visto como doença séria – e surgiram as primeiras campanhas e associações contra a bebida, que rapidamente conquistaram mais de 500 mil adeptos nos EUA. Alheio a tudo isso, na França, o químico Louis Pasteur estava prestes a fazer uma dos maiores invenções da história. Tentando entender a transformação do açúcar em álcool, ele acabou descobrindo uma técnica revolucionária: a pasteurização, que hoje em dia é usada na produção de leite, iogurte, sorvete e sucos industrializados. Ou seja: se Pasteur não tivesse se metido a estudar o goró (ele publicou dois livros sobre a biologia do vinho e da cerveja), os alimentos do mundo moderno seriam bem diferentes. No começo do século 20, os impostos sobre bebidas alcoólicas eram responsáveis por mais de 50% da arrecadação do governo dos EUA. Mesmo assim o país decidiu instituir, em janeiro de 1920, a lei seca – e as pessoas migraram para bares clandestinos. Isso aumentou a criminalidade e fortaleceu as máfias, mas, por incrível que pareça, teve uma conseqüência positiva: consolidou a igualdade de direitos entre os sexos e mostrou a força dos movimentos feministas. “Durante a lei seca, a presença de mulheres nos bares deixou de ser um tabu”, conta Iain Gately. Elas se mobilizaram para legalizar a prática: em 1932, mais de 1 milhão de americanas já tinham se associado à Women’s Organization for National Proibition Reform (algo como “Liga das Mulheres Contra a Lei Seca”). Adivinhe só o que aconteceu: no ano seguinte, a lei seca foi revogada.

Na 2º Guerra Mundial, o fluxo de álcool refletia a ação no front. Assim que dominaram a França, os alemães foram com sede ao pote – as vinícolas de Borgonha, de Bordeaux e de Champagne passaram ao controle dos nazistas. Na Inglaterra, a situação também era dramática: Hitler bombardeou 6 grandes cervejarias (inclusive uma fábrica da famosa Guinness) e destruiu nada menos que 1 300 pubs. Quando o jogo começou a virar a favor dos Aliados, com dificuldades cada vez maiores para os nazistas, a cerveja alemã paga o pato. Sua graduação alcoólica, que antes da guerra era em média de 4,8%, cai para 1,2% em 1943. Em 1944, os alemães param de fabricar cerveja. E, no ano seguinte, perdem a guerra. Com o fim do conflito, começava a Guerra Fria – em que, adivinhe só, a URSS tentou usar o álcool como arma. Os soviéticos criaram um comprimido que supostamente impedia a embriaguez. A idéia era que os espiões russos tomassem esse remédio e fossem encher a cara com diplomatas americanos – que, completamente bêbados, acabariam revelando segredos de Estado. Não deu muito certo (as cobaias ficaram bêbadas), e hoje em dia o remédio é vendido como “atenuador de ressacas”. Falando em ressaca, a busca por uma cura definitiva chegou a duas propostas. Um composto químico chamado Ro15-4513, que foi criado na década de 1970, e a Alcohol Without Liquid (AWOL), uma máquina que destila e vaporiza bebidas alcoólicas – a idéia é que, se o álcool for inalado, não passa pelo estômago e não produz acetaldeído (substância que é uma das principais causadoras da ressaca). Nada disso funcionou. O Ro15-4513 não está no mercado porque tem uma pequena “inconveniência”: pode provocar convulsões. E a AWOL já foi proibida em vários estados americanos porque é considerada ineficaz e perigosa – como por via nasal a bebida é absorvida mais facilmente pelo organismo e a pessoa não vomita quando está intoxicada, isso aumenta muito o risco de overdose de álcool. Não há solução mágica. A única saída é beber menos, não beber, ou então invejar o musaranho asiático: um bichinho que vive nas florestas da Malásia e, como comprovam pesquisas recém-publicadas, consegue enfiar o pé na jaca sem nunca ficar bêbado (seu único alimento é um néctar que contém 3,8% de álcool). Será que ele passaria no teste do bafômetro?

No século 16, a Inglaterra tinha 16 mil bares o equivalente a 1 bar para cada 187 habitantes hoje, existe apenas 1 bar para cada 529 pessoas

No mundo, cada pessoa consome em média 5 litros de álcool puro por ano o equivalente a 125 l de cerveja 45 l de vinho 12,5 l de vodca

A Declaração de Independência dos EUA, no século 18, foi escrita num bar

Os países onde mais se bebe são: República Checa (cerveja) França (vinho) Moldávia (vodca e destilados)

Hitler odiava bebida e queria acabar com os alcoólatras. milhares deles foram esterilizados durante a2a Guerra Mundial



Beber, cair e levantar
Das frutas ao álcool sólido, as várias maneiras de encher a cara através dos tempos

Macacos 40 milhões a.C.

Há indícios de que nossos antepassados se deliciavam comendo frutas “estragadas” – que, graças à fermentação natural, tinham 5% de álcool.

Pré-história 8000-4000 a.C.

Pessoas do norte da China inventam uma bebida alcoólica feita de arroz. E os sumérios, na Mesopotâmia, criam a cerveja – bem como uma deusa (Ninkasi) para homenageá-la.

Egito 3400-3100 a.C.

Os egípcios montam a primeira cervejaria do mundo. E o povão aproveita: os trabalhadores que fizeram as pirâmides de Gizé bebiam todos os dias.

Grécia 700 a.C.

Os gregos bebem vinho diluído com água (a bebida pura é considerada forte demais). Para curar a ressaca, a grande pedida é comer repolho cozido.

Império romano 270 a.C.

Os soldados se fingem de bonzinhos e oferecem vinho para os povoados que encontram. Quando os inimigos estão bêbados, os romanos os matam.

Hunos 446

Liderados pelo temível Átila, invadem territórios romanos e destroem as vinícolas – sua bebida preferida é o kumis, leite fermentado com 2% de álcool.

Islâmicos 620

A religião restringe o consumo de álcool. Mas os cientistas do mundo islâmico inventam o alambique, que é usado até hoje para fazer bebidas destiladas.

Vikings 850

Espalham o terror na Europa – sempre bebendo uma cerveja escura, doce e bem forte, que tinha aproximadamente 9% de álcool (o dobro da comum).

Monges 1112

A Ordem dos Cistercianos monta uma vinícola em Borgonha, na França. Dá tão certo que eles viram uma multinacional do vinho, com mais de 250 monastérios.

Mesoamericanos séc. 16

Os astecas bebem o pulque, bebida produzida com folhas de agave – e só idosos podem tomar. Os incas preferem cerveja de milho, que dão até a crianças.

Brasileiros séc. 17

Os senhores de engenho começam a exportar cachaça – e os negros amotinados em quilombos aprendem a fabricá-la por conta própria.

Holandeses séc. 17

Inventam o gim, um destilado de cereais com altíssimo teor alcoólico (mais de 45%). A novidade gera uma explosão do alcoolismo na Europa.

Africanos séc. 17/18

Entre 1680 e 1713, senhores tribais trocam 60 mil escravos por bebida alcoólica – cada escravo é vendido por aproximadamente 86 litros de rum.

Rev. Industrial séc. 18/19

Fabricada com novas tecnologias e em grande escala, a bebida fica mais barata. A cerveja é produzida em enormes tonéis, com até 500 mil litros de capacidade.

Russos séc. 20

Inventam uma pílula que permite beber sem ficar bêbado. A idéia era usá-la na Guerra Fria (para que os espiões russos levassem vantagem). Não funcionou.

Ingleses 2004

Lançam uma máquina que permite inalar o álcool em vez de bebê-lo, o que supostamente evita a ressaca e faz o bebum engordar menos.

Americanos 2008

Desenvolvem um processo revolucionário, que permite fabricar goró sólido – basta misturar com água e ele vira um drinque com 11% de álcool.

Para saber mais
Drink: A Cultural History of Alcohol
Iain Gately, Gotham Books, 2008.

Revista Superinteressante