domingo, 31 de outubro de 2010

Obrigado


A Semana Histórica foi um sucesso.
Quero agradecer a todos que participaram com visitas e comentários.

Votem na próxima Semana História Viva...(06/12/2010)
Aceito sugestões.

Minha homenagem a todos é...

Acontecimento

Haverá na face de todos um profundo assombro
na face de alguns risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em lugares desertos
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão alegria
Porque deles é o primeiro milagre
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes
Muitos não compreenderão
Porque suas inteligências vão somente até os processos
E já existem nos processos tantas dificuldades...
Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer...
Será belo e será ridículo
Haverá quem mude como os ventos
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e mentiras
Mas não dizendo nada
Só a alegria de alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem
Que as águas mais turvas contêm ás vezes as pérolas mais belas


Eduardo Marculino

Hammurabi: o homem do código


Hammurabi: o homem do código
Conquistador temido e político habilidoso,o imperador Hammurabi usava suas vitórias militarespara impor a ordem na Mesopotâmia, apoiado no conjuntode leis que marcou a história do direito
por Flávia Ribeiro
O deserto virou mar por um dia em 1754 a.C. Mas a inundação que destruiu Eshnunna, uma das grandes cidades-reinos da Mesopotâmia antiga, não teve nada a ver com a natureza. A catástrofe foi provocada por um homem: Hammurabi, o fundador do Império Paleobabilônico, sexto rei na dinastia de Babel. Conquistador da Mesopotâmia entre 1792 e 1750 a.C., ele já era senhor de um grande território quando, cansado de esperar a rendição de Eshnunna às suas tropas, mandou abrir uma barragem e inundou o local. Essa atitude drástica teria sido um pedido de Marduk, deus nacional de Babel, e dos deuses sumérios Anu e Enlil: destruir a cidade com uma grande massa de água. Oficialmente, os deuses sempre estavam por trás dos atos de Hammurabi, mas quem dava a última palavra era ele mesmo. Graças a sua sabedoria política e a sua habilidade militar, tornou-se um dos grandes líderes da Antiguidade. E o código de leis que usava durante seu governo ficou célebre como uma das primeiras expressões escritas do direito.
A data em que Hammurabi nasceu é desconhecida, mas sabe-se que ele ainda era um jovem quando assumiu o trono de Babel, em 1792 a.C. Naquela época, a cidade era subordinada a outros reis, todos de tradição ou origem semita – como ele, que pertencia ao povo amorita. Quando morreu, 42 anos depois, Hammurabi havia se transformado no soberano de toda a Baixa Mesopotâmia. O território sob seu poder corresponderia, hoje, ao sul do Iraque e a parte da Síria. Não parece grande coisa, mas, há 3 750 anos, esse era quase todo o mundo conhecido pelo povo de Babel – e esse “quase” nunca deixou de incomodar o rei, já que o norte do Iraque, na época chamado de Assíria, foi cobiçado, mas não conquistado por ele. “Hammurabi era um guerreiro, um grande general que ia para a frente de batalha”, conta Emanuel Bouzon, professor de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de O Código de Hammurabi e As Cartas de Hammurabi. “A classe dirigente das grandes cidades conquistadas era morta ou presa, e alguns reis de lugares menores se submetiam.”
Mas só vencer as batalhas não bastava. Era preciso manter a ordem nos territórios conquistados, o que Hammurabi fez brilhantemente. Mais do que um general, ele era um administrador e um legislador, que legou à humanidade um dos mais antigos e importantes conjuntos de leis. Elas estão inscritas numa estela (rocha destinada a receber textos) de diorito negro, que foi encontrada em 1901 numa expedição arqueológica francesa ao Irã. É o famoso Código de Hammurabi, hoje exposto no Museu do Louvre, em Paris. Ele contém 282 sentenças baseadas na tradição oral, nas crenças religiosas e no costume, compiladas por escribas da época. A grande maioria delas provavelmente foi proferida pelo próprio Hammurabi, ao julgar acontecimentos ocorridos durante seu governo. O trecho mais famoso é o que institui a chamada lei de talião, pregando que um criminoso deve pagar por seus crimes na mesma moeda (leia quadro na página seguinte).
A criação e a divulgação de um código legislativo escrito serviram para cristalizar a autoridade do Estado sobre os súditos e, ao mesmo tempo, regular o funcionamento da sociedade. “Com leis redigidas, definem-se as relações entre os homens, assim como as relações deles com suas posses, originando o direito de propriedade”, explica Márcio Scalercio, professor de História da Universidade Cândido Mendes e da PUC-RJ, autor de Oriente Médio – Uma Análise Reveladora sobre Dois Povos Condenados a Conviver. “O Código de Hammurabi não traz as primeiras leis escritas. Mas, daquela época, foram as que melhor chegaram a nós, e elas consagram princípios que duram até hoje, como o valor do testemunho e da prova.”
GUERRA E PAZ
Ao registrar suas leis, Hammurabi não agiu só como legislador, mas como um marqueteiro de primeira, unindo senso de justiça a autopropaganda. Na pedra que contém seus pronunciamentos legais há também um prólogo e um epílogo, nos quais ele se apresenta como um rei “prudente” e “perfeito”, escolhido por deuses como Marduk “para fazer surgir justiça na Terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco”. Em outra passagem, o rei não hesita em se auto-intitular o “Sol de Babel”.
Como soberano absoluto, Hammurabi controlava cada canto de seu império com uma belíssima rede de informações – tinha representantes em todas as cidades que governava, com quem se comunicava por meio de correspondência. Foram encontradas mais de 150 tábuas com inscrições dele endereçadas a três funcionários de Larsa, uma das cidades que conquistou. Essas “cartas” tratavam de temas como julgamentos de crimes, organização agrícola, distribuição das terras entre os homens e ordens sobre trabalho compulsório. Nada escapava ao olhar do rei, nem mesmo a tosquia de ovelhas em uma cidade distante ou um caso de suborno numa localidade do norte. “Era um reino grande, mas ele sabia de tudo e mandava em tudo, era obedecido em todo canto. Havia assembléias de anciãos, assembléias do povo, mas a palavra final era dele”, diz o historiador Bouzon. “Quando não se chegava a um acordo na sentença de um julgamento, mensageiros levavam o caso até a instância final, que era o próprio rei.”
Além de firmar alianças militares com os reis de outras cidades da Baixa Mesopotâmia, Hammurabi explorava a rivalidade entre eles, fazendo com que se destruíssem mutuamente, deixando assim o caminho livre para seu próprio exército. Depois de tomar uma cidade, ele tratava de pacificá-la: reconstruía edifícios e enfeitava ainda mais o templo do principal deus local, como prova de tolerância religiosa. Costumava também arrebanhar colaboradores entre os próprios habitantes do lugar e colocá-los à frente do governo local. Ganhava, assim, a confiança dos moradores submetidos a seu poder e evitava revoltas.
A faceta de bom administrador se manifestava quando Hammurabi promovia o crescimento comercial e agrícola de seus territórios. Em seu reinado, novos canais para irrigação e navegação foram construídos, e os antigos foram aprimorados. Houve ainda trabalhos de regulagem do curso do Eufrates, um dos rios que banham a Mesopotâmia. Foi com medidas assim que, apesar de muitas vezes ter imposto seu domínio pela força, o líder babilônio conseguiu passar uma boa imagem para a posteridade. “Ele propagou a ideologia semita do rei como o bom pastor, preocupado com os ‘cabeças pretas’, como se chamava o povo”, afirma Bouzon. Ao morrer, em 1750 a.C., o comandante deixou o opulento Império Paleobabilônico como herança para seus descendentes. A dinastia ainda durou cerca de 150 anos, mas não resistiu à ausência de seu fundador. Muitas cidades se sublevaram e a Mesopotâmia acabou invadida pelos hititas em 1594 a.C., quando Babel foi saqueada e incendiada. “Enquanto Hammurabi reinou houve paz, mas ela não sobreviveu à sua morte”, diz Bouzon. Acredita-se que a centralização exagerada do governo nas mãos do general tenha tornado muito difícil a tarefa de seus sucessores em substituí-lo.

O código do homem
Para Hammurabi,a punição tinha que sersemelhante ao crime
A chamada lei de talião (talionis, em latim, significa “tal” ou “igual”) apareceu pela primeira vez no Código de Hammurabi. Ela nasceu de um conjunto de sentenças em que o imperador dizia frases como: “Se um homem livre destruiu o olho de um outro homem livre, destruirão seu olho” e “Se um homem livre arrancou um dente de um homem livre igual a ele, arrancarão o dente dele”. Além dos homens livres, chamados de awilum, a sociedade paleobabilônica tinha escravos e uma classe social intermediária chamada muskênum. Quando um awilum cometia alguma dessas ofensas a um muskênum u a um escravo, também pagava por isso, mas o castigo era mais brando: uma multa. Várias leis de Hammurabi seguiam o princípio do talião. Uma delas determinava que se um filho adotivo renegasse os pais que o criaram, dizendo “Tu não és meu pai, tu não és minha mãe”, teria a língua cortada. Alguns séculos depois, o direto à retaliação ganhou novas versões. No Velho Testamento, no capítulo 21 do livro do Êxodo, está escrito: “Se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento”. Já em 450 a.C., quando a plebe romana exigiu que as leis fossem escritas para que não houvesse favorecimento aos patrícios, surgiu a Lei das 12 Tábuas. E lá estava, no parágrafo 11 da sétima tábua: “Se alguém ferir a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”. Apesar de parecer bárbaro, esse tipo de norma foi muito importante para o direito. “A lei de talião é um ensaio de como se estabelecer a pena conforme a intensidade do delito”, explica o historiador Márcio Scalercio. “Todos concordam que a pena para quem rouba deve ser uma e para quem comete assassinato deve ser outra. A diferença é que na maioria das sociedades atuais a lei de talião não existe mais de forma literal.” Mas não em todas. Há países do Oriente Médio em que se paga olho por olho, literalmente. Na Arábia Saudita, no Iêmen e em algunsdos Emirados Árabes, ladrões ainda têm as mãos cortadas.
Saiba mais
Livros
O Código de Hammurabi, Emanuel Bouzon, Vozes, 2003 - Traz as sentenças de Hammurabi comentadas, traduzidas pelo autor diretamente das pedras originais. Tem ainda uma introdução sobre a época do soberano e seu legado.
As Cartas de Hammurabi, Emanuel Bouzon, Vozes, 1986 - Mais de 150 cartas de Hammurabi para seus funcionários em Larsa ganham tradução comentada.
Sociedades do Antigo Oriente Próximo, Ciro Flamarion S. Cardoso, Ática, 1995 - Uma análise das sociedades do antigo Oriente, com destaque para o Egito e a Baixa Mesopotâmia, onde viveu Hammurabi.

Revista Aventuras na História

Semana História Antiga - Imagem no judaísmo

Imagem no judaísmo: aspectos do "aniconismo" identitário

Ivan Esperança Rocha

Professor de História Antiga do departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – 19806-900 – Assis/SP. E-mail:ierocha@uol.com.br


RESUMO

As fontes visuais ganham um espaço cada vez mais amplo entre as ciências humanas e sociais. Na historiografia considera-se sua capacidade de representar os imaginários sociais e de evidenciar as mentalidades coletivas, enriquecendo ou preenchendo vazios deixados pela documentação escrita. Na cultura judaica, no entanto, a imagem teve um tratamento muito particular, tornando-se um elemento distintivo de sua identidade. O que inicialmente tinha como intenção garantir o monoteísmo javístico acaba por definir um certo aniconismo que só muito recentemente foi superado.

Palavras-chave: Judaísmo, Monoteísmo, Haskalah.


ABSTRACT

The visual sources acquire a wider space among the humanities. In the historiography its capacity to represent the social imaginary and to evidence the collective mentalities have been considered, enriching or filling out spaces left by the written documentation. In the Jewish culture, however, the image had a very special treatment, becoming a distinctive element of its identity. What initially had as intention to guarantee the javistic monotheism ended for defining a certain aniconism that only very recently was overcome.

Keywords: Judaism, Monotheism, Haskalah


A imagem tem recebido uma crescente atenção no âmbito das ciências sociais e humanas, particularmente no campo da historiografia, o que se depreende de inúmeros eventos e publicações nivelem âmbito nacional e internacional. As imagens, ou fontes visuais, começam a ser tratadas como uma importante evidência histórica, e igualadas em valor à literatura e documentos de arquivos. 1 Em vez de seu valor afetivo e subjetivo que tinha caracterizado a Antiguidade e a Idade Média, buscam-se agora conhecimentos mais sistemáticos e consistentes sobre elas. Demonstra-se que os fatos sociais se refletem em mecanismos visuais. 2

A cerâmica, manuscritos com pinturas, imagens soltas de propaganda política e religiosa, quadros, estátuas, fotografias ou simplesmente material visual ganham uma importância não mais apenas ligada às suas qualidades estéticas mas à sua capacidade de representar os imaginários sociais e de evidenciar as mentalidades coletivas.3"No estudo das sociedades antigas, a iconografia, neste seu significado mais amplo de material visual, assume um papel de destaque, particularmente, quando não se tem a contrapartida da documentação escrita ou quando esta é lacônica", como se verifica na iconografia funerária ou templária do Egito.4

Por outro lado, na cultura judaica, bem próxima do Egito, no espaço e no tempo, o acesso a dados provenientes da iconografia é muito limitado. 5

Os judeus consideraram sua religião e seu código religioso de comportamento um elemento essencial de sua identidade e de sua sobrevivência ante os inúmeros momentos de dispersão em que foi envolvido. Entre as leis do corpo normativo israelita se encontra uma proibição de produzir ou conservar imagens com o intuito de preservar uma idéia de monoteísmo, que iria de certa forma represar a arte israelita durante séculos. A proibição, inicialmente ligada à reprodução de ídolos estrangeiros, acaba se estendendo a outros tipos de representação iconográfica, particularmente ligada à figura humana – considera-se o homem criado à imagem de Deus, que vigorou, com uma certa intensidade, praticamente até as portas da Haskalah, o iluminismo judaico, iniciado em fins do século XVIII.

A normalização da proibição de imagens em Israel encontra-se no livro do Êxodo: "Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem nas águas debaixo da terra" (20,4). Esta proibição faz parte da legislação religiosa de Moisés e pode ser entendida, dentre outros textos, por meio de Isaías: "A quem havereis de comparar a Deus? Que semelhança podereis produzir dele?" (40,18).

Em um ambiente permeado por cultos idolátricos (Ex 20,5; 34,15, Sl 44,21, 1 Rs 11,8ss, 19,18, Jr 7,18, Is 10,10), os judeus querem se distinguir pela ausência de imagens de Javé. Assim, com raras exceções, com veremos mais adiante, fica proibida a produção de efígies da divindade israelita.6 Isso, no entanto, não vai banir a presença de imagens. Uma das estratégias nesse sentido será a utilizada por Salomão que passa a contratar artistas externos à comunidade israelita para a construção e embelezamento do Templo de Jerusalém, como é o caso de Hiram, um artista de Tiro que tinha grande habilidade no trabalho com bronze (1 Rs 7,13-14). Entende-se, assim, que a proibição não atingia os artistas estrangeiros e dessa maneira se pode justificar a presença de figuras de querubins e leões nos painéis do Templo (1 Rs 7,26).

Uma outra razão da presença de imagens entre os judeus envolvia o casamento dos reis israelitas com estrangeiras que traziam consigo seus cultos e seus deuses. 7 De fato, as descobertas arqueológicas trouxeram à tona uma série de iconografias do período bíblico, como sinetes com figuras de animais, plantas e outros objetos e figuras em argila de nus femininos, estas muito comuns em Jerusalém.

Sinagogas do período próximo à destruição do Templo, em 70 d.C., possuem decorações com figuras geométricas e de plantas; entre os judeus que participaram da revolta de Bar-Kokhba contra os romanos, em 135 d.C., foram encontrados vasos decorados com faces humanas; mas para que se evitasse seu uso como objetos idolátricos os olhos foram apagados.8

No entanto, mesmo com relação à proibição da representação de Javé, existem exceções, como se verifica numa fortaleza, em Kuntillet 'Ajrud, na Península do Sinai, onde foram encontrados graffiti com imagens de Iahweh ao lado de sua Ashera.9

Pode-se dizer que os judeus foram mais tolerantes com imagens que não tivessem relações com o culto. Com o declínio do politeísmo helênico-romano, muitas sinagogas começam a usar motivos da iconografia pagã, adaptando-as às suas necessidades, assim como cenas bíblicas como as da sinagoga de Dura-Europos nas proximidades do rio Eufrates. 10

No século VII, com a conquista do Oriente pelo Islamismo anicônico, os judeus voltam a abandonar as imagens, adaptando-se à nova situação. As constantes dificuldades postas pelo segundo mandamento podem ser vislumbradas no manuscrito judaico ilustrado, chamado Haggadah da Cabeça de Ave. O texto narra a história do êxodo do Egito, onde todas as figuras humanas são representadas por cabeças de pássaros para evitar a proibição icônica.

A discussão sobre a questão da imagem do Antigo Testamento é retomada no Talmude, uma compilação e adaptação de leis e tradições judaicas, realizadas entre 200 a.C. e 500 d.C., que consistem em 63 tratados de assuntos legais, éticos e históricos. O judaísmo ortodoxo baseia suas leis no texto do Talmude. Tem entre seus tratados um específico sobre imagens e ídolos, o 'Abodah Zarah.

De um lado, este tratado expressa uma rígida oposição aos ídolos, proibindo não apenas sua fabricação, mas até mesmo olhar e pensar neles (Tosefta, Shabbath 17,1 et passim; Berakhot 12b). Os ídolos não deviam ser apenas quebrados, mas jogados no Mar Morto para que não pudessem ser mais vistos ('Abodah Zarah 3,3). A madeira de uma asherah não podia ser usada nem para aquecer-se (Pesahim, 25a). Para evitar qualquer contato com os idólatras, os judeus não podiam relacionar-se comercialmente com eles pelo menos três dias antes de suas festas cultuais ('Abodah Zarah 1,1). Ficava proibido caminhar sobre uma rua pavimentada com pedras que tinham sido utilizadas para construir o pedestal de um ídolo ('Abodah Zarah 50a). Aos sábados era proibido até mesmo ler o que estava escrito sob uma pintura ou estátua ('Abodah Zarah 149).

Por outro lado, encontramos no Talmude posições mais abertas com relação às imagens. Não se proíbe qualquer imagem, mas apenas aquelas que tenham um cunho cultual. Estátuas de reis, em um ambiente em que não são consideradas objeto de culto, não são proibidas ('Abodah Zarah 40a). Imagens para ornamentação são permitidas. Qualquer figura dos planetas é permitida, com exceção do sol e da lua (quase sempre representados com cunho cultual) ('Abodah Zarah 43b). Uma asherah é uma árvore sob a qual se pratica um culto e, portanto, proibida. Se, no entanto, existir um altar de pedras sob ela, a árvore pode ser utilizada livremente ('Abodah Zarah 48a).

A ambigüidade do tratamento dado às imagens começa a declinar com a Haskalah, um movimento entre judeus europeus do séc. XVIII, conhecido como o iluminismo judaico, calcado nos valores iluministas, que buscou promover maior integração com a sociedade européia, ampliando o espaço da educação secular e definindo os rumos de um movimento político pela emancipação judaica. 11

O movimento encontrou inicialmente oposição entre os judeus ortodoxos por julgarem que a Haskalah contrariava os princípios do judaísmo tradicional, mas não deixou de ter adeptos entre eles. Uma das idéias contrapostas pela Haskalah é a do messianismo, como a espera de um gesto miraculoso em favor dos judeus; o exílio judaico também deixa de ser interpretado como uma vontade divina, mas como resultado de fatores históricos. 12 Outra influência foi nas artes, com uma ampla revisão de proibições tradicionais, particularmente no que se refere à proibição de imagens.

Como reflexo desse movimento, nos séculos XIX e XX vimos o surgimento de grandes artistas judeus como Marc Chagall (1887-1985) com seus esplêndidos vitrais das doze tribos judaicas conservados na Sinagoga do Hospital Hadassa de Jerusalém, e Lasar Segall, um judeu lituano radicado no Brasil que transformou sua casa em museu com um acervo em torno de 2.500 obras.

Deve-se dizer, no entanto, que a Haskalah, do ponto de vista artístico, foi precedida pela ação de judeus, que apesar de não se envolverem com a pintura já tinham se dedicado a outros tipos de expressões artísticas, como a joalheria, cunhagem de moedas e medalhas, ourivesaria, gravação em madeira, cerâmica, caligrafia e ilustração de manuscritos hebraicos, dentre outras. 13

Numa exposição realizada no Museu Judaico de Nova York, de 18 de novembro de 2001 a 17 de março de 2003, foi apresentada e discutida a arte desenvolvida durante o processo de aculturação judaica no século XIX, sendo apresentada como uma das conseqüências da Haskalah.

Por fim, os judeus, ao se perguntarem se suas antigas leis ainda têm algum valor na atualidade, particularmente, se a proibição de imagens como objeto de culto ainda tem algum valor para a sociedade moderna, encontram uma resposta nas palavras de uma exegeta judia, Nechama Leibowitz (1905-1997), para quem o segundo mandamento ainda continua válido, dado que objetos e bens de materiais, ou a própria ciência, são guindados a uma posição de culto no mundo moderno. 14

NOTAS

Revista de História - UNESP

A imagem pública do músico e da música na antigüidade clássica: desprezo ou admiração?


A imagem pública do músico e da música na antigüidade clássica: desprezo ou admiração?

Fábio Vergara Cerqueira
Professor de História Antiga do Departamento de História e Antropologia – Instituto de Ciências Humanas – UFPEL – 96010770 – Pelotas/RS. E-mail: fabiovergara@uol.com.br

RESUMO

O objeto deste artigo será analisar o conjunto de representações que definem o músico no imaginário social das sociedades grega e romana antigas. Para tanto, buscaremos reconstituir a imagem pública que o homem antigo fazia dele. Essa imagem compunha-se, veremos, de um cluster, algo coerente, algo contraditório, de noções, conceitos, valores e preconceitos.

I - Introdução

O objeto deste artigo será analisar o conjunto de representações que definem o músico no imaginário social das sociedades grega e romana antigas. Para tanto, buscaremos reconstituir a imagem pública que o homem antigo fazia dele. Essa imagem compunha-se, veremos, de um cluster, algo coerente, algo contraditório, de noções, conceitos, valores e preconceitos.

Enquanto um estudo enquadrado na História das Mentalidades segue o conceito, no que se refere à temporalidade, da longue durée: lidamos aqui com elementos mentais, representações, da codificação imaginária de uma figura social específica, o músico, elementos cuja origem histórica não se limita a conjunturas históricas pontuais, cuja causalidade não se remete ao plano estritamente "acontecimental", contingente, mas refletem opiniões que se estruturaram ao longo dos séculos e que manifestam longa permanência, apesar de profundas mudanças sociais vividas pelas sociedades mediterrâneas antigas. Deste modo, abordamos de forma sincrônica, desde uma perspectiva antropológica comparativa, testemunhos de textos antigos que se dispersam por quase 12 séculos, de Homero a Santo Agostinho.

Quando se pensava no músico como profissional, pensava-se ao mesmo tempo em outras dimensões da experiência cotidiana, das quais a música de certa forma participava. Assim, a forma como o músico era visto era contaminada pelos elementos mentais que conceituavam essas outras atividades sociais. É necessário, portanto, entendê-los, para se poder entender a opinião corrente sobre o músico. Além da relação que o músico mantinha com a própria música, em nosso estudo, pesquisamos a relação que este mantinha com algumas outras dimensões da experiência cotidiana, como aquela com o mundo do trabalho, do artesanato e da técnica, com o submundo dos vícios e da prostituição, e, finalmente, com a homossexualidade passiva, com a efeminação.

No presente texto, trataremos tão-somente de dois aspectos da composição da imagem do músico:

1) o descompasso entre o estatuto da música e do músico;

2) o estabelecimento da imagem do músico a partir da intersecção da condição deste com o mundo do trabalho.

Uma questão importante para se falar sobre a imagem do músico é colocar a diferenciação existente entre o que se entendia por músico profissional e por amador. Ora, quem era visto como músico profissional? Entre várias atividades que se caracterizavam por uma ocupação com a música, nem todas eram percebidas como profissão. Podemos aqui enumerar diversas atividades musicais. Temos o professor (de canto, de instrumento ou de teoria), o concertista (músico virtuose que participava das competições) e o compositor (que era também um poeta e com certeza executava suas músicas, como o famoso compositor cretense Mesomedes de Creta, músico oficial da corte de Adriano). Ou, num campo social distinto, as hetairai e pornai (contratadas para alegrar o ambiente sensual dos symposioi), bem como os jovens citaristas e cantores efeminados que atendiam aos prazeres sexuais de adultos pederastas. Os auletai que acompanhavam os sacrifícios religiosos, ou atividades laboriais, como a colheita de uva ou azeitonas, situavam-se no campo do proletariado musical.

Havia, ainda, o músico amador (o cidadão em geral, que na idade escolar, ao menos no período clássico grego, aprendia música para saber distinguir o belo) e o coralista amador (cuja participação nos corais marcava uma obrigação cívica da cidadania em muitas cidades gregas). Contrapondo-se a estes, surgiram os coralistas profissionais (que compunham as corporações ou sindicatos de músicos que apareceram na época helenística, exigindo uma elevada remuneração por seu trabalho especializado). Além desses, podemos enumerar os teóricos musicais (que exerciam também a função de professores) e o fabricante de instrumentos, como o aulopoios (cuja atividade manual o caracterizava como um banausos). Poderíamos ainda recordar vários outros, como o tocador de trombeta (salpinx), que anuncia os exércitos, ou o auletes, que dá o ritmo ao movimento das falanges hoplíticas; ou ainda o auletes ou tocador de castanholas (krotala) que acompanhavam os atores na apresentação de peças, bem como os próprios atores, que ao mesmo tempo eram cantores, e os corodidaskaloi , que ensaiavam os coros e eram responsáveis pelo ensaio dos atores trágicos.

Dessas atividades supracitadas, algumas não eram vistas como profissionais e, portanto, não participavam diretamente da imagem do músico que estudaremos aqui: tanto o músico amador, seja ele cantor ou instrumentista, jovem aprendiz ou adulto diletante, como o teórico musical, não eram vistos como músicos profissionais, pois se dedicavam à música de uma forma digna a um homem livre, contrariamente àqueles que a exerciam como um trabalho do qual, servilmente, tiravam seu sustento. No curso de nossa análise, demonstraremos como essas diferentes atividades eram vistas no estabelecimento da imagem (ou das imagens) do músico em relação aos campos sociais da técnica, do trabalho e do artesanato.

II - O descompasso entre o estatuto da música e do músico:

A cultura grega clássica conferiu à música um lugar de destaque, definindo-a como formadora do caráter do cidadão, pois possibilitaria o aprendizado da virtude e o desenvolvimento espiritual (enquanto à ginástica caberia o desenvolvimento corporal). Por esses motivos, a tradição aristocrática das cidades gregas garantia o ensino musical como etapa básica da formação do jovem, exigindo deste alguns anos de dedicação ao estudo do canto e da lira. Essa valorização da música, porém, não acarretava uma valorização do músico profissional e da dedicação especializada à execução musical por parte de um cidadão adulto. Aristóteles não hesitava em chamar os músicos profissionais de vulgares e em definir a execução musical como imprópria a um homem livre. Para ele, os cidadãos deviam dedicar-se à execução musical somente em sua juventude, abandonando essa prática na idade adulta.

Desse modo, não havia correspondência entre o estatuto da música e o estatuto do músico: sendo a primeira enaltecida, o outro, por sua vez, era socialmente execrado. Ao contrário da beleza moral que a apreciação musical propiciava, dedicar-se à profissão de músico era considerado "labutar em tarefas medíocres e aplicar esforços em objetos inúteis". O músico profissional, portanto, "alardeia indiferença pela beleza moral" (Plutarco. Péricles, 2).

Numa passagem de Plutarco, encontramos uma comparação entre a música e a atividade artesanal e manufatureira, em que ele estabelecia um paralelismo na distinção entre o valor do produto e do produtor: enquanto o produto era valorizado, o trabalho do produtor era desprezado.

Em outros campos, podemos muito bem admirar o que se fez sem, necessariamente, querer fazer o mesmo.

Ao contrário, não é raro suceder que gozemos a obra ao mesmo tempo que desprezamos o autor. Tal é o caso dos perfumes e dos tecidos de púrpura: agradam-nos sim, mas consideramos os ofícios do tintureiro e do perfumista como servis e indignos de um homem livre. Bastante razão teve Antístenes1 quando respondeu a alguém que lhe afirmava ser Ismênias2 um excelente flautista: "Sim, mas como homem é uma nulidade, do contrário não tocaria tão bem". Da mesma forma Filipe3, dirigindo-se ao filho que, com muita graça e talento acabara de tocar cítara num banquete, perguntou-lhe: "Não tens vergonha de tocar com tanta habilidade?". Com efeito, basta a um rei ouvir o som da cítara quando dispõe de tempo para isso, e já presta grande homenagem às Musas ao assistir aos concursos onde outros disputam os prêmios. 4

Desse modo, havia uma coincidência nos critérios de julgamento das profissões de músico e artesão, pois ambas estavam submetidas à "ideologia da causa final".Segundo essa ideologia, "cada tarefa encontra-se definida em função do produto que visa a fabricar: a sapataria com relação ao calçado, a olaria com relação ao pote"5; e, sob o mesmo ponto de vista, a música com relação à melodia e nunca com relação ao músico. Vernant nos permite compreender como, nesse esquema de pensamento, o produtor – artesão ou músico – não era valorizado.

A teoria demiúrgica, cujo resultado é a "ideologia da causa final", submetia a obra do autor (músico ou artesão) à necessidade do usuário. Assim, segundo Vernant, "nesse sistema mental, o homem age quando utiliza as coisas e não quando as produz. O ideal do homem livre, do homem ativo, é ser universalmente usuário, nunca produtor".6 Havia todo um esquema que colocava a ação fabricadora, a poihsiV, o produtor, sob a dependência e o serviço pessoal do usuário.

A mesma teoria demiúrgica que regia o julgamento social dos músicos e artesãos entre os gregos, parecia valer entre os romanos. Para estes,

o verdadeiro autor de uma obra de arte não é quem a modelou, o verdadeiro artífice de um monumento não é quem o ergueu. É o personagem que o desejou e financiou, e quem impôs seu gosto e sua ideologia: o encomendador. ... Seja qual for seu talento, o artifex permanecerá sempre como o agente executor a serviço de um cliente. 7

Graças à "ideologia da causa final", o valor atribuído à música não era repassado à figura do músico, vista como torpe e vulgar. Na Atenas clássica, ter uma formação musical, ser um mousikoV anhr, era sempre uma boa referência social, disso temos inúmeras provas, desde as evidências de que o próprio Platão fosse um músico amador8 e de que Sócrates conhecesse as regras da composição musical,9 até as insistentes desculpas de Temístocles quanto à sua incapacidade para tocar lira.10 No entanto, ser um músico destacado não era garantia de reconhecimento social, mesmo que todos concordassem em pagar bons salários aos virtuosi, que eventualmente podiam se tornar bastante ricos e afamados, como foi o caso de Ismênias de Tebas. Malgrado o desprezo do filósofo Antístenes, que o considerava uma nulidade como homem, Ismênias foi um dos auletai mais ricos e mais prestigiados da Antigüidade.

Desse modo, a distinção entre o valor da música e do músico ligava-se inexoravelmente ao sistema mental, baseado na teoria demiúrgica, que regulamentava a depreciação do trabalho manual e remunerado. De acordo com este sistema, o produtor era desprezado e o produto, submetido ao usuário, era valorizado, como instrumento ideológico para demarcar o assujeitamento de um grupo social a outro – daquele marcado pela servidão àquele presenteado pela liberdade.

Havia, porém, outro sistema que participava do balizamento que separava música e músico, pondo-os em extremos opostos da escala de valores sociais. Tratava-se do sistema de valores que demarcava os campos das atividades intelectuais, de forma correlata àquele que ordenava o universo das profissões, definindo o estudo que era considerado digno de um homem livre e o que caracterizava uma condição servil.

Existia, conforme esse sistema, um conjunto de atividades intelectuais que dignificariam o espírito do homem livre e outras que o tornariam servil, bruto. Desse modo, de um lado, temos as ocupações "liberais", adequadas ao homem livre, que visavam estritamente ao prazer do espírito e ao seu aperfeiçoamento; de outro, temos as práticas, manuais, que piorariam as condições do corpo. Assim, Aristóteles tomava em consideração o corte epistemológico e moral entre conhecimentos "liberais" e "práticos" para estabelecer seu modelo pedagógico, determinando quais os aprendizados que deviam ser ministrados aos jovens:

Não é difícil de ver, então, que devem ser ensinados aos jovens os conhecimentos úteis realmente indispensáveis, mas é óbvio que não se lhes deve ensinar todos eles, distinguindo-se as atividades liberais das servis; deve-se transmitir aos jovens, então, apenas os conhecimentos úteis que não tornam vulgares as pessoas que os adquirem. Uma atividade, tanto quanto uma ciência ou arte, deve ser considerada vulgar se seu conhecimento torna o corpo, a alma ou o intelecto de um homem livre inúteis para a posse e a prática das qualidades morais. Eis porque chamamos vulgares todas as artes que pioram as condições naturais do corpo, e as atividades pelas quais se recebem salários; elas absorvem e degradam o espírito. 11

Segundo Morel, o mundo romano, de um modo geral, repetia as idéias de Platão e Aristóteles no que se refere à dicotomia entre conhecimentos liberais e práticos:

O corte essencial para os romanos não se situa entre as atividades intelectuais e atividades manuais, senão entre ocupações que tendem somente ao prazer do espírito e aquelas que são utilitárias, entre artes "liberais", dignas de um homem livre, como as matemáticas, a retórica ou a filosofia e todas as demais, desde os ofícios manuais até a medicina e a arquitetura. Mais de um romano teria podido tomar para si as opiniões de Platão e Aristóteles, segundo os quais os artesãos eram personagens vulgares e pouco nobres, indignos de serem considerados como cidadãos. Os técnicos mais hábeis não escapariam às críticas, desde o momento em que degradam as artes liberais com aplicações práticas.12

De acordo com Finley, o "divórcio claro, quase total, entre a ciência e a prática" era um aspecto intelectual característico do mundo antigo. "O objetivo da ciência antiga, tem sido dito, era saber, não fazer; entender a natureza, não domesticá-la". Para Aristóteles, apesar de sua ilimitada curiosidade, o interesse pelos conteúdos práticos e técnicos caracterizava um profundo mau gosto.

Os estudos e as ocupações, portanto, não deveriam satisfazer as necessidades humanas, a anagkh, mas a liberdade, as demandas do ócio e do prazer espiritual e moral. Esse era o juízo que orientava os critérios estabelecidos para a educação musical e para o julgamento da atividade do músico profissional. Aristóteles "exclui na educação ... toda disciplina que objetiva o exercício profissional: o homem livre deve visar à própria cultura".13 Estabelecia assim uma clara diferenciação entre fins práticos (ligados ao mundo do trabalho, da necessidade, do artesão, do meteco e do escravo) e fins teóricos (ligados ao ócio espiritual, à liberdade, ao aperfeiçoamento moral do cidadão). Assim, tanto para Platão como para Aristóteles, aprendia-se música não para o ofício (techné), mas para a educação (paidéia).

Como ficavam os conhecimentos e as ocupações musicais nesse esquema do divórcio entre a ciência e a técnica, entre as artes "liberais" e as atividades práticas? A música se situava junto à matemática, à retórica e à filosofia, como arte digna de um homem livre? Ou junto às demais artes e como os ofícios manuais, imprópria ao cidadão? A resposta é plural e aparentemente contraditória, pois dependia do tipo de vínculo que se tinha com a ocupação musical.

Um estudante de música, na juventude, deveria aprender, através das melodias, ritmos e harmonias corretamente escolhidos, as virtudes que deviam marcar o espírito do cidadão. Através da educação musical, os ritmos e harmonias se tornariam familiares às almas das crianças, de sorte que elas aprenderiam a ser mais gentis, harmoniosas e ritmadas; assim, tornar-se-iam mais aptas à palavra e à ação, pois a vida do homem, por toda parte, pensava-se, precisa de harmonia e ritmo. Enfim, o aprendizado da música tornaria as crianças mais civilizadas e daria modéstia à juventude.14 Nesse sentido, o estudo da música tinha um caráter "liberal".

No entanto, se mal conduzida, a educação musical poderia perder o seu caráter liberal. Assim, para não "amesquinhar o corpo ou inutilizá-lo para as ocupações marciais e cívicas do cidadão", "deve-se determinar até que ponto os alunos que estão sendo educados para a excelência na vida pública devem participar da educação musical".15

O objetivo da educação musical, para Aristóteles, era, portanto, formar um amador, e nunca um profissional, haja vista serem os músicos profissionais considerados vulgares. 16 Porquanto "os estudantes de música devem se abster de participar das competições profissionais e das maravilhosas exibições de virtuosismo ... incluídas em tais competições". Uma vez que o intuito é alimentar a alma com beleza moral, "eles devem praticar a música ... prescrita até o ponto em que estejam aptos a deleitar-se com as melodias e os ritmos mais belos".17 Devia-se estudar a música com vistas ao prazer dedicado à atividade intelectual,18 e nunca com o interesse técnico de tornar-se um instrumentista profissional.

Quanto ao estudo da teoria musical, enquanto ciência, sem interesses práticos, este era considerado digno do homem livre, pois levava ao aperfeiçoamento do espírito. Juntamente com a aritmética, a geometria e a astronomia, a música, como estudo teórico dos fenômenos musicais, era considerada uma ciência pura que treinaria o espírito para a elevação (epanagoghé) e conversão (anastrofé) do espírito, para atingir a disciplina suprema, a dialética ou a filosofia.19

No entanto, quando a dedicação à música implicava um caráter de servilidade, na medida em que esta fosse excessiva ou exercida como profissão, então não seria mais recomendada a um cidadão. A prática da música como profissão degradaria o espírito sob várias formas: por constituir uma atividade assalariada; pelo esforço manual e técnico necessário; por lembrar, de certa forma, a atmosfera dos vícios, prazeres frouxos e embriaguez; e, finalmente, pela pecha de efeminação da qual muitos músicos eram acusados. Essas condenações podiam recair sobre diferentes profissões musicais, desde o professor de canto ou lira e o concertista, até as "musicistas" (pornai e hetairai) e bailarinas que animavam os banquetes e os fabricantes de instrumentos. Poderemos entender os julgamentos negativos feitos sobre essas profissões se analisarmos por que lhes eram imputadas as condenações supra-referidas. Para tanto, passaremos à análise do estatuto do músico em relação ao mundo do trabalho.

III - O Estatuto do músico em relação ao mundo do trabalho, do artesanato e da técnica:

As formas como o imaginário grego conceituava o trabalho, o artesanato e a técnica, ligavam-se profundamente às noções antagônicas de liberdade e necessidade, eleuqeria e anagkh, e aos valores agregados a essas noções de que a dignidade e as honras (timai) da cidadania só encontravam lugar quando o homem estivesse livre das necessidades da vida e, de forma inversa, de que ele seria marcado pela servilidade e brutalidade de espírito quando estivesse sempre na dependência da satisfação dessas necessidades. Para os filósofos, a liberdade não era somente uma condição jurídica – significava estar liberto do jugo da sobrevivência e, assim, não precisar submeter-se aos outros para garantir seu sustento. Além disso, era somente nessa liberdade filosófica que se adquiria a virtude para o exercício da cidadania.

Assim, para Platão,

ser cidadão é um ofício que é a cultura da virtude: h thV arethV epimeleia; exclui qualquer outro .... Os cidadãos não poderiam de forma alguma ser artesãos. Os que infringissem a lei atrairiam o ultraje público (oneidos) ou a indignidade (atimia), ou seja, as sanções morais mais pesadas de que a cidade dispunha."20

Platão, de um modo geral, inscrevia-se no lugar certo nessa grande corrente de pensamento grego que recusava qualquer carta de nobreza à atividade demiúrgica. Para ele, a demiurgia deteriorava o corpo, enquanto a banausia (o artesanato manual mais vulgar) e a kapéleia (o comércio varejista) deterioravam a alma.

Apesar de o artesanato ocupar um lugar capital na civilização grega – o que era por vezes reconhecido de forma bastante titubeante –, as invenções gregas por excelência ligavam-se ao universo da palavra, do logoV: a Política, a História, a Filosofia, a Ciência, o Teatro, a Retórica. Essa civilização da palavra teve sempre dificuldade em conviver com o artesanato, com o trabalho e com a técnica, os quais foram relegados a um segundo plano. Parece que a célebre frase de Zilsel continua sendo a melhor síntese desse sistema de pensamento. Afirmava que, na Antigüidade, nur die Zunge, nicht die Hand als göttlich inspiriert.21

Parece igualmente ser verdade que os vencidos venceram os vencedores, pois averiguamos que os romanos são herdeiros, ou pelo menos partícipes, da ideologia do trabalho grega. Para Sêneca, as tarefas de um artesão são "vis" e "vulgares", e "nada têm que ver com as verdadeiras qualidades humanas".22 Do mesmo modo, para Cícero, "todo o artesão pratica um ofício vil". Pensava, da mesma forma, que "a oficina em nada é compatível com a condição do homem livre."23

Não bastando serem vis, vulgares e indignas do homem livre, recebem a balda do trabalho assalariado. Cícero afirmava que "todo salário é sórdido e indigno de um homem livre, pois constitui o preço do trabalho e não de uma arte".24 Um dos fatores que condicionavam a indignidade das sórdidas artes do vulgo, pensava Sêneca, era que os trabalhadores braçais empregariam todo o seu tempo em ganhar a vida. Para ele, o trabalho assalariado nada tinha de belo e em nada se assemelhava ao Bem.25

Aristóteles afirmava que as atividades pelas quais se recebesse salário absorveriam e degradariam o espírito, pois não tinham como objetivo o seu benefício ou o de seus amigos. Quando se buscasse perceber um salário não se visariam às qualidades morais, pois, de forma mercenária e servil, agia-se submetido aos interesses de terceiros. Dessa forma, o trabalhador assalariado equiparava-se ao escravo, pois não era livre, uma vez que não trabalhava para si, mas para outrem. Do mesmo modo, cinco séculos mais tarde, o médico Galeano afirmava que um trabalhador assalariado, enquanto estivesse trabalhando, era um escravo, e só voltava a ser ele mesmo, separado do senhor, ao cair da noite.

Desse modo, quando se trabalhava por salário, não se detinha o uso do que se fazia – era escravidão. Assim, escravos e artesãos – da mesma forma que músicos profissionais – não podiam levar uma vida feliz, pois a liberdade era condição sine qua non da felicidade para Aristóteles. O músico, ao vender seu trabalho, participava da servilidade do artesão.

Podemos então entender as diferentes restrições ao trabalho do músico profissional, inserindo estas no contexto da repulsa ao artesanato e ao trabalho. O virtuose, ao tornar-se um especialista, acreditava-se, entrava no mundo da técnica e retirava-se do universo da liberdade. Adquiria "um aspecto corporal diferente por causa dos movimentos que eles têm de fazer".26 É por isso que, em suas utopias sociais, Aristóteles e Platão condenavam os instrumentos que exigiam do músico maior destreza manual. Platão, por exemplo, recomendava que fossem abandonados, nas "canções e melodias, instrumentos de muitas cordas, capazes de todas as harmonias" (Platão. República, 399a). Aristóteles dizia que

muitos dos instrumentos mais antigos foram também condenados, como o péctis e o bárbitos e os instrumentos destinados a proporcionar apenas prazer a quem os ouvia tocados por outros – por exemplo, o heptágono, o triângulo e a sambuca, e todos os que exigem grande habilidade manual.27

Com a exceção do bárbitos, esses instrumentos referidos por Platão e Aristóteles não compunham o repertório musical amador e diletante, apreciado por esses filósofos; este se constituía basicamente da lyra, do aulos (apesar da insistente censura a esse) e do canto monódico.

A recomendação para que o jovem não estudasse música com o objetivo de se tornar um profissional ligava-se ao temor de que esse fosse contaminado pela techné. Por isso, convinha controlar até que ponto os jovens deviam estudar música;28 por essa razão, rejeitava-se a profissionalização no ensino musical e na execução de instrumentos;29 por esse motivo, do mesmo modo, os adultos deviam afastar-se da execução musical;30 por isso, também, não era de bom tom que um jovem tocasse com muita habilidade, como se fosse um músico profissional. Assim compreendemos por que Filipe repreendeu seu filho, Alexandre (ainda menino), dizendo-lhe que devia ter vergonha de tocar com tanta habilidade, graça e talento, pois a um rei bastava ouvir o som da cítara e prestigiar concursos musicais, quando dispusesse de tempo, para prestar homenagem às Musas.31

Por sua vez, um músico, quando se sujeitava à percepção de um salário em troca de sua música, não se dedicava à arte das Musas em seu próprio benefício; não encontraria nela a beleza moral, pois o salário, de natureza sórdida, era incompatível com aquela. Ele estava, de forma subalterna, a serviço do prazer alheio. "Por isso não consideramos a execução condizente com um homem livre, mas extremamente subalterna".32 A participação em competições também era condenada, pois, como uma atividade profissional, não se participava das mesmas para o aperfeiçoamento próprio.33 A música, praticada para se receber um salário, como forma de garantir o sustento, adquiria caráter vulgar, degradador do espírito.34 Pouco importava se o salário correspondesse a míseros 2 dracmas por noite (remuneração das jovens "artistas" alugadas a seus proxenetas, conforme a legislação vigente em Atenas)35 ou à respeitável soma de 700 dracmas anuais percebida por um professor de música em Teos no séc. II a.C.36 Era sempre uma espécie de homem de ofícios, um banausoV, mesmo quando conseguisse acumular uma vultosa fortuna, como foi o caso do auletes Ismênias, considerado uma nulidade pelo cínico Antístenes, nada obstante possuísse riqueza suficiente para dispor de 7 talentos (42 mil dracmas) para encomendar um sofisticadíssimo instrumento. Ora, uma riqueza acumulada através de salários era sempre uma riqueza que levava o estigma da submissão, da servilidade.

Assim, as confusas representações coletivas sobre o trabalho não poupavam o músico, apesar de toda estima que se tinha pela música. Nem sequer o professor, cujo papel social era inestimável, escapava desses julgamentos, que, no caso, tornavam-se, às vezes, bastante confusos, pois era inevitável reconhecer-se o valor de seu trabalho profissional.

As opiniões sobre o professor de música comportavam-se de forma ambígua, ora admirando seu saber liberal e a sua responsabilidade por introduzir o filho no culto às Musas, ora desprezando sua servilidade, sua dependência do salário para seu sustento. Essa ambigüidade, essa divergência de opiniões, leva-nos a formular duas questões correlatas acerca da imagem do músico:

Primeira: O que pensavam sobre si mesmos os músicos? Essa pergunta, referente à auto-imagem do músico, a seu orgulho próprio, tendo sido tratada em nossa pesquisa, não será aqui abordada, uma vez que este artigo tem como tema a imagem pública do músico.

Segunda: Essas opiniões preconceituosas sobre os músicos profissionais eram compartilhadas por todos os extratos sociais? Perguntando de outra forma, preocupavam-se todos com esses julgamentos filosóficos e esses postulados da "ideologia do trabalho manual" e da "ideologia da causa final"?

Sobre essa última questão, é necessário dizer que esses conceitos ligavam-se a um imaginário social originado nas elites econômicas e políticas terratenentes, que se manteve válido como forma de avaliar as atividades profissionais mesmo em contextos históricos posteriores, nos quais as elites políticas e econômicas já tinham adquirido um perfil mais complexo. No entanto, o fato de ser uma idéia sustentada pelas elites gregas e romanas – e defendida com afinco pela inteligentsia que a representava – não significa que fosse compartilhada por todos. Em verdade, na opinião popular moderna sobre a Antigüidade, como dizia E. Meyer, produziu-se "uma imagem fantástica da teoria do desapreço do trabalho manual",37 que resultou num julgamento histórico equivocado, pois levou à conclusão de que fosse um ponto de vista apoiado irrestritamente por toda sociedade. Mesmo que o registro histórico tenha deixado menos vestígios dos pensamentos que divergiam da "ideologia do trabalho manual", da "ideologia da causa final" e da teoria demiúrgica, muitos pensaram de outra forma.

Conforme Salvioli, essa ideologia mantinha uma relação estreita com o ideal agrário que perfilava o modelo da cidadania na Roma republicana.38 Esse ideal agrário, porém, não era compartilhado por todos. A predominância dos textos que priorizavam o agricultor, bem como o guerreiro, em relação ao artesão, provoca, na expressão de Vidal-Naquet, uma "ilusão de ótica" na interpretação historiográfica moderna – a ilusão de que essa seria a única perspectiva. No entanto, um olhar mais atento descobrirá uma corrente de pensamento paralela – talvez uma "visão do dominado" – que valorizava o artesão e seus saberes. Essa perspectiva já encontrava guarida nos antigos mitos. Platão lembrava que a Hefesto e Atena era "consagrada a raça dos artesãos cujos ofícios conjugados organizaram a vida" em cidade.39

Podemos antever, então, uma ambigüidade no estatuto do artesão, cujo testemunho mais luminoso se encontra na obra de Platão, em que dois sistemas de valores se confrontam. Em paralelo ao sistema público oficial, que prioriza o geórgos (agricultor), encontramos, no Timeu e nas Leis, um sistema dissimulado, que privilegia o démiourgos (artesão). Platão reconheceu, na função artesanal (de Prometeu e Hefesto), o centro da atividade humana. Interessa-nos que, nessa valorização da demiurgia, escondia-se uma corrente de pensamento que não guardava preconceitos tão marcantes quanto ao trabalho assalariado. Platão soube enaltecer o personagem do artesão, ao colocar o Demiourgos, um artesão, como criador do mundo.40

A valorização do mundo do trabalho, do artesanato, das profissões (entre as quais pode incluir-se a de músico), estava elaborada no conceito de Métis, uma categoria mental quase esquecida, que perpassou a cultura grega. Em seu estudo sobre esta, Detienne e Vernant definem-na como a "malícia da inteligência". Trata-se tanto da habilidade do artesão, do oleiro ou tecelão, como da capacidade quase animal do caçador, do pescador ou mesmo do jovem soldado que participa de uma emboscada. Métis é tanto o manuseio hábil e preciso dos materiais pelo fabricante de instrumento para construí-los, como a destreza das mãos do citarista ou auletés, como a delicadeza do canto do músico. Um virtuose, como o auletes Ismênias ou o citarista Lisandro, notabilizaram-se pela sua métis musical. Métis é uma astúcia conjugada entre as mãos e a inteligência. Podemos dizer que, para essa corrente de pensamento, não vale a conclusão de Zilsel, de que entre os antigos a língua, e não a mão, era inspirada pelos deuses. Parece-nos que aqueles que sabiam valorizar a métis não repetiriam com tanto aferro a "ideologia da causa final", como o faziam os filósofos. Para aqueles, é como se a causa final e a motriz fossem de igual importância. O que pensariam essas vozes silenciadas pela historiografia sobre a causa motriz da música, o músico?

A mesma fonte que nos revela a censura do filósofo Antístenes ao flautista Ismênias revela também a existência de alguém que, pouco interessado nos julgamentos filosóficos, bastava-se em admirar as qualidades técnicas do célebre virtuose tebano. Como podemos ver nesse curto trecho de Plutarco, já citado anteriormente: "Bastante razão teve Antístenes quando respondeu a alguém que lhe afirmava ser Ismênias um excelente flautista: ‘Sim, mas como homem é uma nulidade, do contrário não tocaria tão bem'. "41

Como podemos concluir, as reprimendas de cunho filosófico sobre o virtuosismo de Ismênias – partilhadas por Plutarco – em nada prejudicaram sua fama e seu enriquecimento. Bastante admirada foi a métis de vários outros músicos, sobre os quais as fontes nos fornecem inúmeros exemplos. É o caso da admiração pelo citarista Lisandro (séc. VI), citado por Ateneus, cuja técnica, inspiração e destreza lhe permitiram fazer da cítara um instrumento colorido, tocando-a como um aulos. Tocá-la "como um aulos" significava que sua métis musical era tão sofisticada que, mesmo com uma cítara, conseguia descrever uma narrativa. Tal era sua capacidade de obter timbres e efeitos inesperados, que os sofistas – personagens do diálogo de Ateneus – dão a entender que ele tocava a cítara como se fosse vários instrumentos.42

Os espectadores das competições musicais deviam pensar do mesmo modo que os admiradores de Ismênias e Lisandro. Inúmeras evidências apontam que muitos músicos profissionais foram louvados por seus contemporâneos, apesar de todos os preconceitos em relação à profissão. Era comum que alguns alçassem à fama, como esses dois notáveis instrumentistas, cuja destreza e arte foram celebradas ao longo da Antigüidade. A lista de músicos que atingiram o reconhecimento e a glória é, na verdade, bastante extensa, contando inclusive com seus contrapontos lendários, como o músico tebano Arion, que, segundo a narrativa mítica, teria feito fortuna na Sicília graças ao seu talento musical. A fama, riqueza e genialidade de um auletes como o tebano Pronomos ou o citarista e professor ateniense Estratonicos são exemplos desta proeminência social e econômica que alguns músicos adquirem em virtude de seu notável talento. Muitos virtuosi enriqueceram, da mesma forma que Ismênias. Tendo em vista elevada estima com que os gregos guardavam a música, supõe-se que era bastante comum valorizar um músico talentoso e até mesmo adular o vencedor em algum concurso.

A remuneração superior do professor de música em relação aos de letras e ginástica traduz, com certeza, uma valorização profissional. Na fundação escolar de Polítrous, que fixou o ensino público em Teos no séc. II a.C., foram contratados três professores de letras, dois de ginástica e um único de música.43 Um dos motivos dessa diferença – inaceitável na época clássica – é que no período helenístico os músicos tornaram-se profissionais muito caros, devido à crescente especialização técnica, de modo que o professor de música percebia um salário de 700 dracmas anuais, enquanto os outros receberiam, no máximo, 600.

A partir da época de Alexandre, assiste-se, em algumas regiões da Grécia, à formação de corporações de músicos, as quais, graças ao efeito de seu esprit de corps, garantiam honorários elevados para a profissão. Em Mileto, havia um colégio de músicos, os Molpoi. Assim, na época helenística, os coros não eram mais entregues a amadores recrutados entre os cidadãos, mas a grupos de artistas profissionais, os tecnitai. A tendência foi a substituição de coros amadores por coros profissionais, bem como a atribuição da função de professor a profissionais muito qualificados e bem-remunerados. Porém, por motivos de economia, em sendo os honorários desses tecnitaimuito custosos, a substituição não foi total,44 e continuaremos a ver, segundo os registros, coros amadores nas cidades gregas até um período avançado da idade imperial.

Esse processo de valorização do músico profissional pode ser atestado pela prosopografia de alguns músicos, a qual revela uma espécie de processo de sindicalização. As escavações de Delfos nos revelam dados da história de dois músicos, Elpinikios e Cléon, que não eram propriamente professores, mas artistas líricos. Nas Píticas45 de 138-137 a.C., a cidade de Atenas enviou a Delfos um coro de amadores, tendo como khorodidaskaloí contratados Elpinikios e Cléon.46 Uma década mais tarde, os mesmos músicos estarão representando Atenas nas celebrações em Delfos. No entanto, agora participam como membros do

coro de trinta e nove profissionais,47 fazendo parte da numerosa troupe de tecnitai atenienses (são uns sessenta ao todo) que acompanham dessa vez a delegação e cuja brilhante participação na cerimônia lhes valeu o reconhecimento da população de Delfos.48

Elpinikios e Cléon atestam um avanço no reconhecimento do trabalho profissional do músico, ao testemunharem a adesão pelos atenienses ao emprego desses tecnitai musicais na representação da cidade em Delfos. Significa também que a comunidade concordava em onerar os cofres públicos com a dispendiosa remuneração dos músicos. Mesmo que vistos como torpes por filósofos e membros da elite, não se negava o reconhecimento de suas qualidades na arte das Musas. O próprio Aristóteles, defensor da música amadora, precisou curvar-se diante do fato de que os músicos profissionais eram superiores49 na execução da arte patroneada por Apolo.

Assim, quanto à opinião acerca do músico como profissional, é possível também que ocorra uma certa "ilusão de ótica". Não obstante o preconceito que a ideologia dominante depositava sobre o músico profissional, muitos serão aqueles que saberão respeitar e admirar a dignidade e o talento dos virtuosi.

IV - Conclusão:

Se, em alguns casos, podia ser encontrada uma certa dignidade, como na ocupação de professor, avaliada por muitos como uma atividade liberal, a condição de trabalho assalariado era sempre suficiente para a acusação de servilidade. À pecha da dependência de uma remuneração, somavam-se a balda do esforço físico deformante, próprio da técnica (o caso dos concertistas) e o estigma da indecência de profissões que sobreviviam dos submundos e dos prazeres banais (situação das hetairai e pornai do mesmo modo como de alguns cantores, atores e citaristas que, como mulheres, submetiam-se ao desejo sexual homoerótico de outros homens). Não faltariam paralelos mitológicos para sustentar essas visões preconceituosas com relação ao músico: a efeminação de Orfeu; a fragilidade de Anfion em oposição à virilidade guerreira de seu irmão gêmeo Zetos; a rejeição do valentão Héracles às aulas de música de Linos; ou a hybris (desmedida) do citarista Tamyras ou do sileno flautista Mársias, que ousaram desafiar respectivamente as Musas e seu mestre, Apolo.

Pensava-se que um músico amador, que fosse comedido no seu envolvimento com a música, evitando instrumentos de difícil execução e afastando-se das competições, prestava homenagem às Musas sem ofender a virilidade e as honras do cidadão. Educava, pois, seu caráter na audição de melodias compostas nos modos dóricos e lídios, portadoras do ethos praktikós e ethos ethikós. Do mesmo modo, aqueles que se dedicavam à teoria musical não eram vistos como homens vulgares; contudo, eram, em sua grande maioria, professores que cobravam para ensinar seus conhecimentos, o que seria motivo suficiente para repreensões por parte daqueles que desprezavam o salário. Achava-se que, diferentemente dos músicos que serviam a fugazes e condenáveis prazeres, esses espíritos iluminados que se dedicavam à teoria musical alcançavam uma purificação da alma, enchendo-a de alegria, pois a ciência musical, a mousikh, participava do prestígio da astronomia, pela qual a alma entrava em comunhão com os deuses estelares, tornando-a divina ao separá-la das baixezas terrestres.

Como vemos, a valorização filosófica, pedagógica, espiritual e religiosa, da qual se revestiu a música entre os gregos desde os tempos homéricos, não emprestou sua importância àqueles que se empenharam, como profissionais, a prestigiar a arte das Musas. Todavia, houve sempre uma certa ambigüidade. Mesmo prevalecendo o julgamento de que fossem pessoas suspeitas, muitos desprezavam essas retaliações e preferiam reconhecer os méritos dos renomados concertistas e professores que sabiam engrandecer essa arte cuja linguagem era tão apreciada pelos gregos. Indiferente às censuras filosóficas e moralistas, o público que acorria às competições musicais aplaudia efusivamente os vencedores pela sua destreza técnica e inspiração. É assim que o flautista Timóteo, de Tebas, tornou-se célebre pela sua interpretação da peça A loucura de Ajax, de Timóteo, o Milésio. O reconhecimento social de compositores devia ocorrer de forma análoga: assim, a qualidade das composições de Mesomedes de Creta foi coroada com sua nomeação como músico oficial da corte de Adriano, semelhante ao que ocorreu, dezesseis séculos mais tarde, com Mozart na época dos Habsburg.

Destarte, a auto-estima de músicos sérios, que dedicavam horas de estudo a seus instrumentos, não se deixava abalar diante das reprimendas daqueles que os queriam comparar com prostitutas e rapazes "afrescalhados". A certeza de estarem cultuando as Musas garantia o orgulho de seu métier, além de sustentar a crença de que suas almas usufruiriam de privilégios após a morte, graças à proteção que estas lhes proporcionariam. Podiam sempre lembrar aos homens cultos que, segundo os pitagóricos, a ordem do mundo fundada sobre o rigor do número era uma harmonia, uma música. Diante das censuras que lhes eram feitas, podiam sempre retorquir que a música humana, das vozes e instrumentos, que encontrava sua melhor expressão no trabalho de citaristas, liristas, auletai e citaredos profissionais, participava da música das esferas. Numa passagem do Sonho de Cipião, Cícero, revelando-nos certa influência neopitagórica, valoriza o papel espiritual dos músicos:

Os doutos espíritos que souberam imitar essa harmonia com a lira e o canto traçaram o retorno ao céu (o céu, morada dos Bem-aventurados), da mesma forma que os possantes gênios que, ao longo da vida mortal, cultivaram as ciências divinas.50

Marrou caracteriza bem essa atitude ambivalente diante dos músicos profissionais:

Eles são, com certeza, admirados por seu talento, e não se hesitará jamais em pagar seus serviços por bons preços, mas ao mesmo tempo são desdenhados: não pertencem normalmente ao meio social onde são recrutadas as pessoas cultas; seus hábitos, sem dúvida, não são tão suspeitos como aqueles dos pantomimos; no entanto o caráter mercantil de sua atividade basta para lhes desqualificar: são gente de ofício, banausoi.51

Para conseguirmos compreender esse cluster de opiniões sobre o músico, às vezes bastante coerente, mas em alguns momentos tão contraditório, devemos recorrer a Veyne, que nos lembra que as idéias quanto ao trabalho não eram doutrinas, obras de pensadores e juristas,

mas confusas representações coletivas que eram também representações de classe ... Tais representações visavam globalmente a grupos sociais inferiores, reduzidos a viver de salário ou a se colocar a serviço de alguém. Não pretendiam organizar a conduta de todos segundo as regras, e sim exaltar ou enaltecer uma classe social onde tudo é mais ou menos verdadeiro. ... Todos são acusados de trabalhar. ... As idéias antigas sobre o trabalho eram menos idéias do que valorizações, positivas para os poderosos e negativas para os humildes.52

À guisa de conclusão, nesse conjunto de julgamentos sobre o músico, "tudo é mais ou menos verdadeiro", sendo um equívoco perguntar-se o que realmente pensavam. Causava espécie que pessoas tão pouco respeitosas como prostitutas e artistas mambembes fossem coroadas com a arte das Musas. Já professores – responsáveis pela formação dos filhos de homens bem nascidos – e concertistas – que circulavam em meios sociais de maior projeção – não são de todo pessoas maltrapilhas e suspeitas, podendo aspirar, juntamente aos poetas, a dignidade de verdadeiros obtentores dos favores das Musas para o conforto dos homens; porém, estão reduzidos a viver de salário ou a se colocar a serviço de alguém. A dignidade liberal de um professor de lira, canto ou teoria ofuscava-se diante da imagem de ser homem pobre.53 O mesmo ocorria em relação ao virtuose. Não obstante o reconhecimento de seus talentos, Aristóteles considerava a execução extremamente subalterna, pois

os executantes se tornam vulgares, uma vez que seu escopo é mau, já que a vulgaridade da audiência geralmente influencia a música, de tal forma que ela dá aos artistas que a executam com o fito de ser agradáveis à audiência um caráter peculiar, e também um aspecto corporal diferente por causa dos movimentos que eles têm de fazer.

Vemos, no pervicaz desdém aristotélico atinente ao solista, a obstinação em diminuir os méritos daquele artista que se auto-representava como leal e tenaz profeta das Musas.

Finalmente: desprezo ou admiração? Ambos, dependendo de quem emite a opinião e em que situação a pronuncia.

NOTAS

Revista de História - UNESP

Mitologia: abordagem metodológica para o Historiador da Antigüidade Clássica

Dion Crisóstomo

Mitologia: abordagem metodológica para o Historiador da Antigüidade Clássica

Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi
Professora do Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – 19806-900 – Assis/SP. E-mail: adrossi@tvcassis.com.br


RESUMO
O tema central deste artigo é a aplicação da análise semiótica como metodologia de análise histórica do mito presente nos Discursos de Dion Crisóstomo, filósofo bitiniano que viveu entre 40 e 115 d.C. sob o Império Romano.


Ao abordar a temática do mito na Antigüidade Clássica, é certo que se evoca uma questão complexa e que, por isso, apenas serão indicados alguns caminhos que podem ser seguidos. Antes de começar uma discussão sobre o mito na Antigüidade, deve-se pensar em que se constitui o mito. Adotando o mito como uma fala, uma narrativa, infere-se que a linguagem é o veículo do mito.

Segundo Everardo Rocha,

[s]e o mito fosse uma narrativa ou uma fala qualquer, estaria diluído completamente. O mito é, então, uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida das demais narrativas humanas.

Conceituar mito, portanto, é uma tarefa difícil, que está subordinada às mais diferentes correntes do pensamento humano. O mito será entendido aqui no seu aspecto pragmático, isto é, na sua função. Assim, a interpretação do mito está na razão direta de como ele atua na sociedade e, por isso, a interpretação é variável. Segundo Mircea Eliade,1 "O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares".

Werner Jaeger aborda o mito como forma excepcional:

Falamos do valor educativo dos exemplos criados pelo mito ... O mito contém em si este significado normativo, mesmo quando não é empregado expressamente como modelo ou exemplo ... O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Não têm um caráter meramente fictício, embora originariamente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade.

Desse modo, para discutir o mito como expressão do pensamento dos homens, as idéias propostas por Jaeger serão levadas em conta com mais atenção. O mito será entendido como sendo a narrativa daquilo que se pretende que seja, enquanto expressão do pensamento de uma dada sociedade.

Roland Barthes propõe igualmente o modelo de mito, segundo o qual,

... o mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma ... já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais.2

A proposição de Barthes de que o mito é uma fala combina com a constatação feita por Veyne, de certa maneira jocosa, mas realista, de que:

[o]s gregos parecem freqüentemente não ter acreditado muito em seus mitos políticos e eram os primeiros a rir deles quando os expunham cerimoniosamente ... com efeito, o mito tinha-se tornado verdade retórica ... o conteúdo dos discursos de cerimônia não era sentido como verdadeiro e muito menos como falso, mas como verbal. As responsabilidades por esta langue de bois não cabem aos poderes políticos, mas a uma instituição própria desta época, a retórica.

Com efeito, a abordagem do mito deve levar em conta as condições teóricas propostas por Jaeger, Barthes e Veyne. Outro aspecto fundamental que age efetivamente para a manutenção do mito, diríamos sobrevivência do mito, como referência de comportamento da sociedade, é a memória. A memória, um aspecto fundamental para a compreensão da composição e da função do mito, e o aspecto histórico subjacente à construção também devem ser evocados. Segundo Barthes, preocupado com a relação História–mito e História–mitologia,

[é] a História que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum surgir da "natureza" das coisas.3

Aceitando-se a análise de Barthes, tem-se como posto que a palavra, instrumento de transmissão do mito, tem seu significado relacionado com a idéia de preservação, de conservação de algum tipo de informação, retenção nos quadros mentais de muito do que foi produzido pela sociedade. Assim, a construção do mito na memória tem, ao mesmo tempo, um caráter social-individual e social-coletivo, já que é o indivíduo que faz o seu registro e a acumula e é o coletivo que a recupera.

A memória é preservada por meio de códigos inteligíveis dentro das sociedades em que é produzida, constituindo assim vestígios do passado vivido por essa mesma sociedade. Para Pierre Nora,

... a memória é vida ... e está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.

Essa breve reflexão sobre mito e memória remete para outra questão fundamental que é o tempo. O tempo da memória não tem uma série contínua e mensurável e sim uma qualidade associativa e emocional. O tempo da memória salta para um ponto desejado e estabelecem-se datas por associações. A consciência de duração é feita pelos seguintes termos: "há muito tempo", "outro dia", ou por associações de experiências vividas pela sociedade ou pelos indivíduos, como, por exemplo, "no tempo de meu avô".

Segundo José Carlos Reis,

[a]pesar de terem sido os criadores da ciência dos homens no tempo, os gregos possuíam também um pensamento extremamente anti-histórico. Concebiam apenas o conhecimento do eterno, do permanente, do imutável, do supralunar. Esse ser supralunar realiza um movimento circular. Aristóteles define o movimento regular por três propriedades: eternidade, unidade e continuidade. A única espécie de movimento a possuir essas características é o circular.

O pensamento grego, segundo Finley, dividiu o tempo da memória, ou seja, o seu passado, em dois tempos: o tempo da era heróica, durante o qual a tradição oral grega foi criada e mantida, tendo como resultado a criação de um passado mítico baseado em elementos que diferiam em caráter e precisão, cuja origem remontava a períodos de tempos bastante esparsos. Essa "tradição" não transmitia meramente o passado, ela o criava. O principal objeto desse período foram a formação e a manutenção de uma identidade grega feita pela criação de uma consciência e de um orgulho pan-helênicos, até mesmo localizados ou de caráter regional, em que emerge a criação do governo aristocrático e especialmente o direito da aristocracia de governar externando a ênfase às suas notáveis qualificações e virtudes. Trata-se de um processo de criação mítica que não termina no século VIII a.C., final do chamado "período Homérico" e quando se tem historicamente a formação da polis. Ele continua presente na mitificação de indivíduos combinando elementos antigos com novas formas, adaptando-se às mudanças religiosas e políticas.

A era pós-heróica é marcada pelo interesse na preservação do passado remoto e mítico, todavia totalmente vivo na consciência grega e expressou-se pela conservação e repetição do mapa mítico. O passado heróico era alvo de uma atenção passiva que assegurava a sua manutenção na lembrança social, na versão aceita e perpetua-se nas gerações futuras por meio da preservação desse conhecimento e da sua permanente utilização. Primeiro, o registro desse passado não dispunha de documentos nem arquivos de onde tirá-los, por essa razão foi preservado por meio da oralidade. No segundo momento, da oralidade à prática cultural, incluindo-se aí o registro escrito, tem-se a elaboração do universo ritual que, por si só, fiel às origens da tradição, acaba por consolidar a relação fala-ação que consagra o princípio de que o mito é o principal veículo da memória na sociedade grega.

Pode-se remeter agora para outro aspecto: como os gregos pensavam a relação mito–memória–História? Para Aristóteles, a História preocupa-se com o particular. "Por particular refiro-me ao que Alcibíades fez e pelo que passou", afirma em Poética. Para o filósofo grego, contrapondo História e Poesia, a Poesia era muito mais filosófica e universal. A principal questão em Aristóteles era distinguir mito de História, pois a atmosfera na qual os primeiros historiadores escreveram, os chamados pais da História, estava impregnada de mitos.

Quando Heródoto atingiu a juventude, o passado distante estava bastante vivo na consciência dos homens, mais vivo do que os séculos ou as gerações recentes: Édipo, Agamenon e Teseu eram mais reais para os atenienses do século V que qualquer figura histórica anterior a esse século salvo Sólon, e este foi elevado à categoria daqueles, ao ser transformado em figura mítica.4

O mito era o grande mestre dos gregos em todas as questões do espírito e de comportamento social. Com ele, aprendiam moralidade e conduta, as virtudes da nobreza, sobre raça, cultura e política. Está aí uma das razões por que a História, na Antigüidade Clássica, em boa parte foi tida com base principalmente na poesia épica, podendo-se comparar então as duas formas de narração do passado. Havia um reconhecimento de que a tradição épica era baseada em fatos concretos, todavia considerem-se as épocas distintas, do ponto de vista da experiência histórico-cultural, e é preciso estabelecer a diferença entre Homero e Tucídides, que está justamente na apresentação do estilo de suas escritas. Homero empregou adequadamente a licença poética enquanto Tucídides fez seu relato dos fatos de forma objetiva. No entanto, a fonte de seus escritos é a mesma, a memória coletiva, perpassada pela via da oralidade.

Para os gregos, ser cidadão significa ser membro da polis e participar de suas atividades plenas. A base dessa participação pode resumir-se a dois aspectos essenciais: a aceitação das leis e a ligação ao direito de possuir terras. Assim, só é cidadão quem possui terras e tenha nascido no interior do território da pólis, desde que homem livre ou filho de pais livres. No mundo da polis, há um grande contingente de não-cidadãos, representados principalmente pelos escravos e estrangeiros – metoikoi –, que não têm o direito político. E, por conseqüência, a constituição da cidadania grega é conhecida pela organização e pelo funcionamento da sua unidade básica que é o demos.

Existe nessa constituição uma prática política ligada a aspectos existenciais e a representações que, de certa forma, caracterizam-se como referência da dominação. A retórica é tida como uma dessas representações, na medida em que reproduz fundamentalmente de modo organizado e articulado a filosofia grega. E entenda-se também que toda a educação grega, como elemento institucional de dominação, está alicerçada na formação filosófica. É na ação pedagógica que o mito é utilizado como recurso de retórica para a argumentação e transmissão do pensamento dominante – enquanto convencimento e fixação de preceitos históricos, éticos e morais.

Veyne, entretanto, propõe uma indagação: acreditavam os gregos em seus mitos? Reside nessa questão algum tipo de polêmica pouco convencional. Primeiro, Veyne sugere que o mito está contido na tradição e vulgata:

Como é possível acreditar pela metade ou acreditar em coisas contraditórias? As crianças acreditam ao mesmo tempo em que Papai Noel lhes traz brinquedos pela chaminé e esses brinquedos são colocados lá por seus pais; então, acreditam mesmo em Papai Noel? Sim...

Há, por assim dizer, um questionamento a fazer sobre mito e verdade, antes de continuarmos pensando o mito como, ao mesmo tempo, fonte e veículo de informações. Paul Veyne estabelece uma discussão sobre imaginação e verdade pensando no mito como instrumento de comunicação.

Por outro lado, os usos do mito lançam olhares seletivos sobre a verdade e ao longo do tempo, com a transmissão oral ou escrita, seus componentes são comprovados ou não pela prática cultural. Assim, os acontecimentos "míticos" acabam sendo superados pelos acontecimentos "históricos", cujas evidências mostram-se racionais em relação ao mito. Deve-se pensar no mito, portanto, enquanto veículo de informações, uma necessidade das verdades encarregadas da manutenção do status quo das poleis gregas e, por analogia, da categoria de cidadãos. A questão não é, pois, "acreditar" nos mitos, mas, sim, entendê-los com seus exemplos e a sua constituição. A função dos mitos na formação do cidadão grego é a de incutir no imaginário da polis a credulidade, a participação e a função de uma pequena parcela da população, parcela essa constituída dos homoioi.

Foram feitas até aqui algumas divagações sobre o papel do mito no comportamento dos segmentos dominantes da cidade grega. É esse o fundamento da construção cultural do mito no mundo mediterrâneo antigo, especialmente com a combinação helenística desembocando no mundo de domínio romano após o século III a.C. O mito, em suas práticas e representações, pode ser trabalhado como comunicação literária, recurso que é dos mais comuns quando se trata de compreender o pensamento de determinados segmentos sociais.

Segundo Hartog,

A tarefa de um historiador da cultura pode, a partir daí, dar a ler estes textos, reconstruindo – para falar como a hermenêutica – a questão à qual eles respondem, redesenhando os horizontes de expectativas em que, desde os seus primeiros dias até os nossos ..., eles vieram inscrever-se, recalculando as apostas que assinalaram e significaram, apontando os qüiproqüós que sucessivamente provocaram. Essa historicização não significa modernizá-los ou atualizá-los, mas sobretudo fazer ver sua inatual atualidade: suas respostas a questões que nós não mais levantamos, não sabemos mais levantar ou que simplesmente "esquecemos".5

Para melhor compreender e analisar os aspectos da linguagem literária, veículos dos mitos gregos, deve-se procurar uma teoria lingüística que ofereça subsídios teóricos e práticos para a análise.

O trabalho com o discurso literário significa navegar pela teoria lingüística, mesmo considerando que a tarefa do historiador não tenha por objetivo a análise lingüística. Todavia, é preciso entender o mecanismo da linguagem, a sua estrutura funcional e as várias formas de análise que oferecem elementos observáveis para compreender o momento e a forma em que o discurso foi produzido, o seu alcance na manutenção e afirmação na relação entre opinião pública e o status quo.

Para tanto, propõe-se a utilização da semiótica como instrumento de abordagem teórico-metodológica do mito. Entende-se aqui a semiótica como uma teoria geral de signos6 e com esse entendimento abriu-se ainda mais o leque de opções. A aplicação da teoria semiótica fundamenta, pois, a análise histórica na medida em que a construção da História também é feita sobre signos.7

Quando se trata da leitura de um historiador, as imagens produzidas pelos signos historicizam-se, pois procurar compreendê-las contextualmente é mais do que um hábito, é um compromisso. Quando se chega a esse momento, já estão superados o ceticismo e a ignorância. O leitor avança num logos escolhido, já deu todas as chances ao texto, "[v]isto em seus níveis múltiplos, suas diversas linhas melódicas, suas rupturas também, retomadas, impasses, e como a expressão de uma ou de várias estratégias narrativas".8

O contato com a relação identidade–alteridade permite encontrar no texto lido toda a sua consistência, sua respiração, e vê-lo animar-se e ser posto em movimento. Semelhanças, vocabulário, cadência, memória, esquecimento, vida, morte, paixões, mitos, antimitos, heróis, anti-heróis são componentes indispensáveis ao texto literário, na medida em que ele representa igualmente, via de regra, a viagem realizada pelo autor. A mescla "do realmente acontecido" com o que "deveria acontecer" ou "teria acontecido" está presente na relação autor–texto quanto ao enredo. No caso de textos produzidos na Antigüidade Clássica, há de se observar que essa viagem acontece quase sempre da epopéia à História, envolvendo figuras heróicas, míticas, lendárias, com defeitos e virtudes humanos, entretanto de traços semidivinizados. Há, por assim dizer, uma narrativa que se coloca à frente do leitor e cabe a ele fazer essa identificação.

A metáfora e a alegoria (alegoria é um conjunto de metáforas) são utilizadas pela linguagem verbal para suprir a ausência de um signo que não transmita, na sua essência, a totalidade de uma qualidade inerente ao signo analisado. Para se entender a metáfora é necessário ter como referência a palavra em uma moldura, ou seja, em seu contexto. Um dos principais veículos da metáfora é o mito, embora a literatura e a poesia sejam também seus grandes meios. No mito, a principal figura de linguagem é a alegoria, que é, nada mais nada menos, uma cadeia de metáfora e simbolismos. Os mitos estão entranhados de alegorias e figuras de linguagem que representam o momento sociocultural de sua produção.

Para entender melhor a alegoria, é necessário retomar um pouco a doutrina benjaminiana. Para Walter Benjamim,9 a reabilitação da alegoria é a temporalidade e historicidade do símbolo em oposição à sua eternidade. Para Benjamim, a reabilitação da alegoria será uma reabilitação da História, da temporalidade e da morte na descrição da linguagem humana. Além disso, ele condena a redução do símbolo e da alegoria a uma mera redução dos termos a uma relação entre aparência e essência.

Enquanto o símbolo aponta para a eternidade da beleza, a alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias. Enquanto o símbolo tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (allo-agorein), que é aquilo que visava, portanto ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último.

Num contexto determinado, a alegoria pode remeter a uma significação precisa dentre outras; enquanto signo, ela remete a todas as significações possíveis, portanto a nenhuma, não há mais ponto fixo, nem no objeto nem no sujeito da interpretação alegórica que garanta a verdade do conhecimento. A escrita e a alegoria somente são ditas "arbitrárias" para uma posição que mantém a afirmação da possibilidade de um saber necessário, transparente e imediato. Se o sentido da totalidade se perdeu, isso se deve também, e mais ainda, ao fato de sentido e História estarem intimamente ligados.



Uma proposta de análise do mito: Dion Crisóstomo (40-115 d.C.)

Com o que já foi visto em relação à concepção de mito e uma possível metodologia aplicada para análise, pode-se propor uma análise alegórica dos discursos de Dion Crisóstomo, filósofo grego do II século d.C.

Estudar a obra de Dion Crisóstomo representa um desafio enquanto tarefa para recuperar a realidade histórica, considerando principalmente que se trata de obra literária, revestida e recheada de componentes metafóricos, simbólicos, que expressam sob essa aparência não só a criatividade e a imaginação do autor. Significa também fazer a leitura que possibilite recuperar um momento da História da província do Ponto-Bitínia durante o governo do imperador Trajano (98-117). O período em que a obra foi produzida apresenta, no entanto, importante núcleo documental representado por outras obras literárias, mais direcionadas para a realidade social vivida, e pelas descobertas arqueológicas.

A estrutura urbana no mundo greco-oriental, localizado na Ásia Menor e na Síria, mantém as mesmas bases sobre as quais foi montada. A presença romana não modificou o perfil das cidades, as quais apresentam uma tradição milenar de culturas orientais que não se alteraram com a chegada das instituições municipais dos romanos. Ao contrário. O que se vê é o fortalecimento das condições sem nenhuma modificação das monarquias orientais.

A combinação histórica mais marcante na definição do modo de vida das províncias orientais foi o largo emprego da língua grega e a preservação das estruturas mentais do Oriente. A chegada dos romanos não provoca mudanças estruturais. Ao contrário, adotando a prática do respeito às condições históricas das províncias integradas ao seu imenso corpo de conquistas, Roma buscou preservar as raízes provinciais como mecanismo de dominação. É o que ocorreu no Ponto-Bitínia, que teve assim o desenvolvimento das suas cidades no interior da dominação romana conservando as suas bases greco-orientais. Para manter relações regulares, Roma serviu-se de uma política diplomática que quase sempre se valeu das chamadas "forças vivas" locais, tidas como formadoras de opinião e capazes de assegurar a presença romana, possivelmente sem grandes traumas. A estratégia mais evidente era a utilização sistemática e ordenada dos meios de comunicação entre Roma e as províncias. Neste caso, o mar Mediterrâneo teve papel destacado, tornando-se, desde o século I a.C., o mare nostrum dos romanos. Por meio dele, alcançavam-se regiões as mais distantes, utilizando-se vias complementares como o rio Nilo no Egito, o mar Egeu entre a Grécia e a Ásia Menor, a Propôntida na entrada do mar Negro, e o próprio mar Negro. Esses caminhos, que eram os caminhos da vida econômica do Império romano, levavam também aspectos das culturas ocidental e oriental. O Mediterrâneo era, pois, um grande espaço cultural,

que se constituiu como área privilegiada de elaboração e circulação de idéias, não se resume nem geográfica nem culturalmente a uma massa aquática e à zona terrestre limitadas pelas margens de um mar interior que se confina com a Europa e a África e, no extremo oriental, com a Ásia. É um espaço global mais vasto – marítimo, ribeirinho e continental, definido culturalmente a partir de um núcleo geográfico ...

É certo que as cidades bitinianas enfrentavam problemas políticos internos, os quais podem ser bem apreendidos no Livro X, que contém as Cartas trocadas entre Plínio, o Jovem, e Trajano. Os problemas vinham ocorrendo desde o governo de Vespasiano (69-79 d.C.), o que se pode observar pelas obras de Tácito, e arrastaram-se até Trajano, encontrando seu epiceno na época de Domiciano (81-96 d.C.). Tais problemas consistiam, principalmente, em atritos entre as cidades que disputavam a hegemonia regional, a adoção, da parte de alguns imperadores, de uma política de perseguições que atingiu intelectuais e filósofos, principalmente os de origem grega, como é o caso de Dion Crisóstomo.

Os Discursos de Dion Crisóstomo são compostos de vários temas. Mas há neles um tema dominante, uma tônica: despertar os cidadãos para o sentido da liberdade e da paz de que gozavam as cidades, sendo, contudo, impossível voltar ao passado glorioso, incomparável sob todos os aspectos. Dion Crisóstomo dava conselhos para que a vida pública não sofresse os efeitos das convulsões sociais, prejudiciais ao bom funcionamento das cidades. Não é por acaso que Dion Crisóstomo, originário de família aristocrática, se pusesse a fazer construções que doava à cidade de Prusa.

Dos chamados cínicos há na cidade um grande número ... Nas encruzilhadas, nas ruelas e nos pórticos dos templos, congregam e enganam os escravos, os marinheiros e as pessoas dessa ordem, dando livre curso a suas falácias, a sua conversa inesgotável e suas respostas vulgares. Com isso, nada fazem de bom, senão danos muito graves.10

A divulgação das idéias cínicas tinha a conotação de propaganda política, que situava frente a frente a realeza, como obra dos deuses, e a tirania. Essa oposição, de natureza filosófica, provocou a perseguição aos filósofos e aos senadores contrários a Vespasiano e a Domiciano.

Dion Crisóstomo pronunciou seus Discursos em várias cidades do Oriente na época de Trajano, especialmente em Alexandria e em Társia, além dos discursos bitinianos pronunciados aos cidadãos de Prusa, de Nicéia e de Nicomédia. Como nos atesta John Cohoon,

Ao longo dessa peregrinação, ele alcançou Borístenes, florescente colônia de Mileto ao norte do Mar Negro e não distante da moderna Odessa. Ele penetrou também em Viminacium, campo romano permanente no Danúbio, e viveu entre os selvagens Getas, cuja História ele escreveu.11

Após a morte de Domiciano, em 96, o exílio de Dion Crisóstomo ter minou. Antes de retornar a Roma, no verão do ano de 97, fez um discurso durante a realização da assembléia dos gregos em Olímpia. Uma vez em Roma, foi recebido pelo vetus imperador Nerva (Discurso XVIII). O contato com o princeps possibilitou a Dion Crisóstomo reivindicar benefícios aos habitantes de Prusa,

...mas foi impedido pela doença [de Nerva] de alcançar pleno sucesso. Ele retornou, contudo, a Prusa com a notícia de que tais favores estavam garanti dos e então encabeçou uma embaixada enviada pelos cidadãos para exprimir seus agradecimentos ao Imperador. Essa embaixada, entretanto, encontrou Nerva morto e Trajano Imperador em seu lugar"12.

O contato com o imperador Trajano, em 98 ou 99, deu a Dion Crisóstomo nova oportunidade de estreitar ligações com o princeps, tal como ocorrera com Nerva. Antes de Trajano partir para a campanha da Dácia, recebeu do imperador os favores reivindicados para Prusa. De pois disso, de Roma, Dion Crisóstomo viajou para Alexandria e outras localidades do Oriente, voltando depois para sua cidade natal, já no final do ano 99 ou início do ano 100.

Em Prusa, Dion Crisóstomo, por conta própria, cuidou de urbanizar sua cidade oferecendo-lhe melhorias que lhe custaram dinheiro e aborrecimentos pessoais. Para dar conta dessas melhorias, foram demolidas algumas construções da cidade, o que lhe custou um processo. Plínio, o Jovem, que foi legatus pro praetore do Ponto-Bitínia nos anos 111-112, interveio junto ao princeps Trajano, conforme a relata na Carta X.81: "Dion Cocceianus, ao que parece, quis, numa reunião da boule, que um edifício público, que foi erigido às suas custas, fosse transmitido formalmente à cidade".

Uma das razões do desejo de Dion Crisóstomo, possivelmente a mais forte, conforme Plínio, o Jovem, é que "... havia no mesmo monumento a estátua e os corpos inumados [da mulher de Dion e de seu filho] ...13"

Graças ao seu nascimento e por ser homem rico e de posição política destacada, Dion Crisóstomo teve ótimo relacionamento com seus com patriotas de Prusa. Como aristocrata, ele precisava de sua comunidade. As honras formais e informais oferecidas pelos concidadãos – o aplauso, as magistraturas, as estátuas, os santuários, os jogos funerários – constituíam o prêmio material e espiritual dos aristocratas, os quais retribuí am por meio de presentes na forma de liturgias cívicas e do exercício de influência política em favor de sua terra natal. Essa simbiose socio-política é revelada por Dion Crisóstomo quando ele se vangloria dos benefícios concedidos à cidade de Prusa.

Por outro lado, Dion Crisóstomo registra a rivalidade entre as cidades bitinianas; entre Nicéia e Nicomédia, e entre Prusa e Apaméia. Essas rivalidades fazem que Prusa receba tratamento especial de Dion Crisóstomo por meio da construção de imagens generosas da cidade, a ponto de elevá-la ao nível de líder das cidades e cabeça de uma federação, mesmo afirmando que:

Vocês podem estar seguros de que, embora Prusa não seja a maior das nossas cidades e não tem sido calma por longo tempo, ela é mais ilustre do que muitas igualmente estimada do outro lado do mundo, e que ela tem motivado por muito tempo seus cidadãos a colocá-la no topo, não em último, ou em terceiro ou em segundo, na competição com todas as outras cidades gregas.14

Dion comenta ainda que Prusa era uma cidade cheia de cabanas e casebres e esse quadro serviu de forte incentivo às suas atitudes evergéticas. Dion Crisóstomo morreu, ao que parece, por volta do ano 120.



A concepção teogônica em Dion Crisóstomo: o Discurso Olímpico

O Discurso Olímpico foi lido por Dion Crisóstomo em Olímpia no ano 97 d.C., diante de uma grande platéia que foi à cidade para assistir aos jogos e diante da famosa estátua de Zeus que foi esculpida por Fídias, o grande escultor grego, mais de cinco séculos antes.

Em seus comentários introdutórios, Dion Crisóstomo nos conta que estava retornando do Danúbio, onde o exército romano sob o comando de Trajano estava iniciando a Segunda Guerra Dácica, e lança a questão: deveria falar aos ouvintes sobre a terra dos dácios e o impedimento da guerra ou abordar o tema sugerido pelo deus em cuja presença eles estão? Para tanto, descreve algumas passagens vivenciadas junto ao exército romano:

Eu, que era desnecessário a todas àquelas coisas [legiões, armamentos], aproximei-me entre os homens que não eram broncos, e não tinham tempo para ouvir os discursos, mas estavam muito sensíveis e tensos como cavalos de corridas na linha de partida, ansiosos pela largada e em seu excitamento e avidez pisoteando o solo com seus cascos. Nesse lugar podíamos ver por toda parte espadas, por toda parte corseletes, por toda parte lanças, e todo o lugar estava repleto de cavalos de armas, e com homens armados.15

Dion Crisóstomo não vacila em falar do presente em termos claros nos discursos dirigidos aos seus ouvintes gregos. A anedota histórica situada no passado não é para Dion Crisóstomo um lugar de fuga do presente, no máximo um lugar de reconhecimento que permite estabelecer um vai e vem entre o presente vivido a que Dion Crisóstomo assiste lucidamente e o passado prestigioso então pano de fundo da vida real. Ele respeita e protege as recordações de um passado que conhece bem, mas se recusa a refugiar-se, mesmo em pensamento, como tantos gregos de seu tempo, neste brilho de outrora ou que sua cultura lhe faz viver, se recusa como muitos a forjar estas suas recordações prestigiosas como armas contra Roma. Condena os falsos filósofos e os perigosos sofistas que pregam a revolta contra Roma pela exaltação do passado glorioso.16

Dion Crisóstomo busca a reconciliação geral e procura no passado exemplos de acordos, os modelos de virtudes cívicas que propõe como ideal para os seus contemporâneos. Garantidas pela autoridade dos anciãos, estas qualidades parecem necessariamente ser eternas e consubstanciais para a cultura grega. É por este fasor que ele propõe o tema da Guerra Dácica. Embora os gregos se encontrem, naquele momento, diante de um lugar permeado de sentimentos religiosos e helenísticos, o mundo ao seu redor é retomado com a descrição de um campo de batalha muito próximo. Dion Crisóstomo lembra aos seus ouvintes que há uma campanha militar não muito longe e que faz parte desse mundo vivido.

Completamente sozinho eu me mostrei no meio deste poderoso anfitrião, perfeitamente tranqüilo e o mais sereno observador da guerra, fraco no corpo e avançado nos anos, não conduzindo 'um cetro dourado' ou sagrados adornos de ouro ... desejando ver homens fortes lutando por império e poder, e seus oponentes por liberdade e terra nativa. Então, não porque eu me acovardei diante do perigo ... mas porque eu retomei à memória um velho juramento, eu mudei meu curso para junto de vocês, sempre considerando que as coisas divinas tem o clamor maior e mais vantajoso do que as coisas humanas, por mais importante que estas posam ser.17

É digno de nota que Dion Crisóstomo, na referência à Guerra Dácica não faz referência ao nome do imperador, fala apenas em "homens fortes lutando por império e poder". Essa é uma característica presente em todas as referências que ele faz a Nerva ou a Trajano. As nomeações dos imperadores contemporâneos são sempre feitas por analogias.

Os personagens que animam as estórias contadas por Dion Crisóstomo são sempre os mesmos e são poucos: são os filósofos Sócrates, Diógenes, Pitágoras; os heróis de mitologia popular Hércules, de caráter polêmico, Ciro, Crésus, os sete sábios, Sólon e o herói por excelência da história grega neste momento, aquele cujo império prefigurou a conquista romana, Alexandre, o Grande. Esses personagens intervêm freqüentemente nos discursos de Dion Crisóstomo. Pôr em cena um soberano (Alexandre) e um filósofo (Diógenes), ou novamente um rei velho (Filipe) e um príncipe jovem (Alexandre) seria um processo crítico. Por meio da utilização das figuras existentes e presentes no imaginário grego, Dion Crisóstomo faz referência direta, aproximando-se da realidade do período vivido por ele, principalmente em relação aos governos de Nerva e de Trajano. Podemos ver nessas referências a evocação das figuras dos imperadores romanos de seu período que estão no presente, mas que têm a justificativa de seu papel político no passado memorável dos gregos por intermédio das figuras helenísticas que representam a unificação do mundo universal.

Retóricos e filósofos criticaram ou condenaram Alexandre; mas, se fosse maltratado como herói retórico, Alexandre também era, desde o reinado de Augusto e como criador do império, o marco de um debate ideológico sério. Alexandre seria capaz de derrotar Roma se ele tivesse que enfrentar a sua força? A idéia de uma possível vitória deste grande conquistador havia sem dúvida confortado os gregos que acharam difícil aceitar a lei do vencedor.

Embora seja apenas inicial essa preocupação de Dion Crisóstomo no Discurso Olímpico, a mera menção da dúvida sobre o tema é pura figura de retórica para relembrar aos gregos que o mundo romano ainda está presente, embora a preocupação com sua grecidade, representada na concepção divina e suas imagens, seja a que fundamente o seu ethos.

Dion Crisóstomo finalmente escolhe a segunda opção e, após explicar que a concepção da natureza dos deuses, e especialmente dos mais importantes, é inata em toda a humanidade, e que esta inata concepção e crença é fortalecida pelas experiências dos homens e na observação do seu mundo, dá uma classificação do modo em que a concepção e a crença na sua existência são implantadas na mente dos homens. No parágrafo 39 ele faz uma classificação sobre a noção inata e a noção adquirida. Então na seção 44 e seguintes ele subdivide a noção adquirida em voluntária e de exortação dada pelos poetas, a compulsória e prescritiva dada pelos legisladores, aquela dada pelos pintores e escultores e as noções e conceitos como as demonstradas e expostas pelos filósofos. Dion Crisóstomo é cuidadoso, contudo, em apontar que os poetas, legisladores, escultores e outros não teriam influência se não fosse a noção primária e inata.

Da crença dos homens nas divindades e a suposição de que haja um deus que nós preservamos e cuja origem ... foi a idéia que é inata em toda a humanidade e veio resultar em fatos reais e verídicos, uma idéia que não foi estruturada desordenadamente nem ao acaso, mas tem sido poderosa e duradoura desde o início dos tempos, e tem surgido entre todas as nações, sendo um dom comum e geral aos seres racionais. Como uma segunda fonte de informação nós designamos a idéia que tem sido adquirida e de fato implantada na alma dos homens por meio das narrativas contadas, mitos, e costumes, em alguns casos não atribuídas a um autor ou anônimas, mas em outros casos escritos e tendo como seus autores homens de grande fama. Desta noção adquirida dos seres divinos deixe-nos dizer que uma parte é voluntária e passível de exortação, uma outra parte compulsória e prescritiva. ... Mas qual destas duas influências mencionadas deve ser chamada ao tempo primitivo, entre nós gregos, nominativamente, poeticamente ou legislativamente, eu tenho receio em não poder discutir isso detalhadamente na presente ocasião; mas talvez seja conveniente que o tipo das quais dependem, não de penalidades, mas de persuasão deveria ser mais antiga do que o tipo que aplicam compulsão e prescrição. Após este ponto ... o sentimento da raça humana sobre o seu primeiro e imortal ancestral, aquele a quem nós temos na herança da Hélade chamado de Zeus Ancestral, caminha passo a passo junto com aqueles homens que têm seguido seus mortais e humanos ancestrais.

Nessa citação podemos analisar alguns pontos que levam a uma relação com a parte introdutória do discurso como "a noção inata e a noção adquirida e implantada na alma dos homens". Esta comparação é clara em relação à formação do sentimento religioso e de toda a concepção teogônica entre os gregos e os "bárbaros", como se refere Dion Crisóstomo em várias passagens. A relação entre a naturalidade do culto ao Zeus Ancestral desenvolvido pelos gregos e a imposição ao culto do imperador imposto pelos romanos. O caráter da ancestralidade hereditária para a formação de uma população que se identifica como descendente do deus fundador de toda a humanidade e em cujo templo eles se encontram.

Na verdade a benevolência e desejo de servir que a prole sente perante seus ancestrais está, no primeiro tipo, presente neles, inato, como um presente da natureza e como um resultado dos atos de bondade recebida, desde que isto tenha sido gerado imediatamente do nascimento do amor e apreço em retribuição ... que o iniciou e o nutriu e o amou ...

Considerando o segundo e o terceiro tipo, que são derivados de nossos poetas e legisladores, o formador exorta-nos a não conter nossa gratidão daquele que é o mais antigo e do mesmo sangue, além de ser o autor da vida e da existência, o mais antigo usando a compulsão e o tratamento da punição àqueles que refutam obediência ...

Após essas idéias, o orador procede para o que é mais importante no discurso no qual ele oferece uma grandeza de idéias aparentemente originais sobre quais são o campo e a função das artes plásticas e quais são as suas limitações. Ele coloca os seus pensamentos na boca de Fídias, que analisa o específico caso de sua própria estátua de Zeus e atenta para mostrar que ele usou todos os recursos da arte da escultura na produção da ilustre estátua do mais importante dos deuses. Fídias, no curso de sua exposição, fala sobre outras coisas que ele usou na sua concepção de Zeus de Homero, faz também uma detalhada comparação entre a respectiva capacidade da poesia e da escultura em retratar e representar e decide sobre a vantagem da poesia.

Nenhum escritor antigo até o tempo de Dion Crisóstomo, cujo trabalho tenha sobrevivido, segundo J. W. Cohoon18, nos deu tal tratamento sobre o tema. Os outros, assim como Plutarco, fizeram apenas passagens de referências às artes plásticas. Certamente nenhum deles fez uma comparação tão detalhada entre a escultura e a poesia. Em Flávio Josefo, ainda segundo Cohoon, pode-se encontrar um tratamento sobre o tema. Paul Hagen,19 contudo, em suas Quaestiones Dioneae, tenta mostrar uma comparação entre certas passagens de Cícero, Plínio, o Velho, e Quintiliano que Dion Crisóstomo não é original em suas teorias de arte, mas assumiu a concepção de Pérgamo, onde estava a mais famosa escola de escultura que florescia em seu tempo. O trabalho mais exemplar conhecido dessa escola é o Gaulês Agonizante, que agora está no Museu Capitolino em Roma.

Dion Crisóstomo certamente tinha acesso fácil a Pérgamo. Se ele não é original em suas idéias sobre a arte, ele estava muito interessado nela, de qualquer forma. A questão da originalidade das idéias não é o importante para o historiador. A representação social que está contida em seu discurso supera qualquer tentativa de abordagem sobre a originalidade ou influência de Dion Crisóstomo sobre os pensadores de seu tempo. Segundo Cohoon, Dion Crisóstomo abordou esse tema em mais de uma ocasião e traçou de diferentes maneiras a abordagem das artes plásticas em diferentes lugares para diferentes platéias até encontrarmos a versão que hoje temos nesse discurso.

O livro organizado por Simon Swain,20 uma coletânea de textos produzidos por estudiosos sobre Dion Crisóstomo, tem mostrado os caminhos abertos para as novas pesquisas sobre o autor bitiniano. São poucos os historiadores que analisam a documentação de Dion Crisóstomo. O maior interesse tem sido nas áreas de filosofia e de literatura. Em 2001, a autora defendeu junto ao Programa de Pós-Graduação, nível de Doutorado, da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Assis, a tese sob o título "Princeps e Basileus nos Discursos de Dion Crisóstomo (96 a 117 d.C.)", sob a orientação do Dr. Ivan Esperança Rocha. Esse foi um trabalho de iniciação à documentação de Dion Crisóstomo no que tange à produção brasileira, quiçá até mesmo em língua portuguesa. Os pesquisadores Christopher P. Jones,21 Tim Whitmarsh, Simon Swain,22 Aldo Brancacci,23 Paolo Desideri24 e John Moles25 não se cansam de externar que a documentação é instigante e apaixonante, mas, no entanto, pela sua característica retórica e alegórica, muito difícil de ser analisada. Ao se propor este artigo, pretende-se apenas debater algumas possibilidades metodológicas de abordagem da documentação em questão que se destaca, principalmente, por sua constituição documental que desafia o historiador, mas que, no entanto, encontra várias possibilidades nas discussões interdisciplinares atuais presentes na historiografia atual.

NOTAS

Revista de História - UNESP