domingo, 29 de setembro de 2013

A Bíblia como você nunca leu



Pena de morte para virgens defloradas, palmadas para as crianças, regras para a poligamia... e uma política radical de juros. Conheça as leis mais curiosas da Bíblia. Tópico por tópico. Ao pé da letra.
Alexandre Versignassi e Tiago Cordeiro

A Bíblia não é apenas a Bíblia. Ela também funciona como uma espécie de Constituição. Natural: o Livro Sagrado não é exatamente um livro, mas uma coleção de 66 livros. Alguns são basicamente de histórias, caso do Gênesis, que narra o início dos tempos e as origens do povo de Israel. Outros não. Eram obras que, antes de entrarem para a Bíblia, tinham vida própria na forma de códigos de conduta. Ou seja: eram versões antigas, escritas entre o século 10 a.C. e 5 a.C., daquilo que hoje conhecemos como "código civil" e "código penal".

Esses códigos, essas leis, estão principalmente nos livros Deuteronômio e Levítico. Mas aparecem por praticamente toda a Bíblia, inclusive no Novo Testamento, escrito a partir do século 1 e que revisa boa parte dessas leis. Por essas, muitos preceitos bíblicos são contraditórios ou sujeitos a mais de uma interpretação. "No contexto em que foram escritos, porém, eles ajudaram a formar um povo com uma identidade tão forte que sobreviveria a séculos de diáspora e uma religião que dominaria o mundo ocidental", diz o historiador Marc Zvi Brettler, professor de estudos judaicos da Universidade Brandeis, nos EUA. 

MARIDOS & ESPOSAS
Poucas coisas mudaram tanto nos últimos 3 mil anos como a instituição do casamento. Então esse é o nosso primeiro tópico. Para começar, o Velho Testamento deixa claro que as mulheres deveriam ser funcionárias de seus maridos. Funcionárias mesmo: não só com deveres, mas com direitos também. Se uma esposa fosse "demitida" pelo parceiro, por exemplo, podia ganhar uma carta de recomendação, que a moça podia usar como trunfo na hora de tentar uma vaga de mulher de outro sujeito.

Não é exagero falar em "vaga": um homem podia ter tantas esposas quanto quisesse (ou melhor: quanto pudesse adquirir e sustentar). A poligamia era a regra. Tanto que o primeiro caso aparece logo no capítulo 4 do primeiro livro da Bíblia: "E tomou Lameque para si duas mulheres" (Gênesis).

A situação era tão comum que vários dos personagens mais importantes do Antigo Testamento viviam com mais de uma esposa sob o mesmo teto. Abraão acolhe uma segunda mulher a pedido de Sara, sua número 1, que não conseguia ter filhos. Depois a própria Sara dá à luz Isaac, enquanto a escrava Hagar tem Ismael. Nota: a tradição considera o primeiro como pai de todos os judeus e o segundo, patriarca dos povos árabes.

O caso de Jacó, filho de Isaac e também patriarca de todos os judeus, é o mais conhecido: ele casa com as irmãs Lea e Raquel, filhas de Labão. E compra o dote delas trabalhando no pastoreio do sogro por 14 anos - 7 anos de labuta por cada esposa.

Mas nunca na história do Livro Sagrado houve maior predador matrimonial que Salomão, o rei: foram 700 esposas. Setecentas de papel passado, já que o sábio soberano ainda mantinha 300 concubinas. E tudo isso sem pílula nem camisinha... Por isso mesmo o Deuterônimo traz regras para a distribuição de bens entre filhos de diferentes mulheres - os rebentos de mães com mais milhagem em anos de casamento ganham mais. E os primogênitos também. Mas por quê, afinal, a poligamia era a regra lá atrás? "Provavelmente porque havia mais mulheres do que homens entre os judeus, que com frequência estavam envolvidos em guerras violentas. A poligamia, então, era uma forma de garantir a manutenção da população", diz o historiador Richard Friedman, professor de estudos judaicos da Universidade da Geórgia. "Além disso, uma mulher solteira tinha pouquíssimas alternativas para sobreviver, a não ser se prostituir. Quando um único homem é provedor de várias mulheres, essa questão acaba minimizada."

O Novo Testamento não cita tantos exemplos de poligamia, mas sugere que ela ainda era comum no século 1. Jesus não toca no assunto, mas, em duas cartas, são Paulo recomenda que os líderes da nova comunidade cristã tenham apenas uma esposa porque "assim eles teriam mais tempo para dedicar aos fiéis". "O cristianismo só refuta a poligamia quando se aproxima do poder em Roma, que proibia a poligamia", afirma Brettler. Como escreve santo Agostinho no século 5, "em nosso tempo, e de acordo com o costume romano, não é mais permitido tomar outra esposa".

Escravas também tinham direitos: se um homem casava com uma de suas servas, só poderia se divorciar se vendesse a mulher para outro senhor. Bom para a mulher, já que evita a situação constrangedora de trabalhar para o ex - e de graça... Menos "feminista" é outra lei bíblica: quando um homem morre e deixa uma viúva, seu irmão deve casar com ela, para garantir que o patrimônio da família não se perca. O adultério, adivinhe, é crime - pudera: no Brasil mesmo era crime até 2005 (detenção de 15 dias a 6 meses, segundo o artigo 240 do Código Penal). A diferença é que lá a pena era de morte mesmo - para ambos os envolvidos na relação sexual fora da lei.

Mais brando é são Paulo, que dá orientações para o dia a dia do casal. Ele até diz que os homens são a cabeça da relação, mas pede que os maridos respeitem as esposas. Um grande salto para nas regras de matrimônio da Antiguidade.

SEXO
Além de polígamo, qualquer homem podia ter amantes, contanto que oficiais. Eram as concubinas. Jacó trabalhou 14 anos pela posse de suas duas mulheres - mas ganhou duas concubinas de bônus pelos bons serviços prestados. Uma série de regras estabelece como deve ser a vida sexual também: toda mulher tem de se casar virgem, ou então poderá ser dispensada pelo marido - por outro lado, se o marido acusar falsamente a esposa de não ter casado casta, deve permanecer com ela até o fim da vida. Para comprovar sua pureza, a acusada devia apresentar testemunhas dispostas a defender a limpidez do passado dela. As leis sexuais, enfim, eram bem abrangentes: "Quem tiver relações com um animal deve ser morto", diz o Êxodo. E masturbação também não pode. Como diz o sutil são Paulo: "A mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao marido. E o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à esposa". "O sexo na Bíblia é cheio de contradições", diz o arqueólogo Michael Coogan, autor de God and Sex (Deus e o Sexo). "É de se desconfiar que fossem realmente levados a sério naquela época."

BÍBLIA S/A - NEGÓCIOS E FINANÇAS
A ética comercial do Livro Sagrado tem regras simples: não roubar nem trapacear no peso ou fazer nada que prejudique a outra parte. A cobrança de juros também é proibida. As ordens se repetem ao longo da Bíblia, sempre em tom firme: "Não tomarás dele juros nem ganho" (Levítico), "Não emprestando com usura, e não recebendo mais do que emprestou" (Ezequiel). E isso numa época em que a grande moeda corrente eram sacos de grãos. O fato é que a restrição à cobrança de juros é mais antiga do que a Bíblia. As leis da Babilônia, codificadas mil anos antes, já impunham tetos na cobrança de juros, provavelmente para evitar que os mais espertos enriquecessem à custa de empobrecer o resto da sociedade. Jesus, inclusive, radicaliza. Não só condena os juros como também a cobrança do principal (a quantia emprestada inicialmente): "E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que mérito há nisso?" (Lucas). Cristo, aliás, dá muita atenção à cobiça. "Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mateus, 6:24), diz. E pede que seus seguidores façam como os lírios-do-campo, que recebem proteção e alimento da divindade sem precisar trabalhar. Também diz, para desespero de um fiel cheio de posses, um de seus maiores hits verbais: "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus". Mas existe uma exceção na política bíblica de juros: nos casos em que o empréstimo é concedido a um não-judeu ("um estranho", nas palavras do Deuterônimo), é permitido praticar a usura. Até por isso os judeus se tornaram os grandes banqueiros da Idade Média. Os cristãos também respeitavam a Bíblia, e não emprestavam a juros entre si (para eles, os "estranhos" eram os judeus). Mas num mundo sem juros o estímulo para conceder empréstimos é nulo. Então a maioria cristã pedia empréstimos para quem os concedia, a juros - as minorias judaicas. O fato de os judeus não terem direito à posse de terras também ajudava - emprestar a juros era uma das poucas formas de renda possíveis para quem não tinha como plantar para acumular excedentes.

Se o Livro Sagrado proíbe a cobrança de juros, mas só entre judeus, o mesmo vale para a escravidão. Você pode ter escravos, contanto que "sejam das nações que estão ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas", diz o Levítico. Mas havia uma exceção: era possível a um judeu endividado vender a si mesmo para o credor.

"A escravidão era comum entre todos os povos daquela área, mas os servos eram relativamente bem tratados, sem violência desnecessária. Os próprios israelitas seriam respeitados quando foram forçados ao exílio na Babilônia", afirma a historiadora Catherine Hezser, professora de história das religiões da Universidade de Londres e autora de Jewish Slavery in Antiquity (Escravidão Judaica na Antiguidade).

Por isso mesmo, os israelitas são orientados a conceder uma série de direitos a seus escravos, que servem por 6 anos, e no sétimo são libertados. Se ele for escravizado com a esposa, os dois são libertados juntos. Até para punir os indisciplinados existem regras - se o dono arrancasse um olho do servo, seria obrigado a libertá-lo (Êxodo). Ou seja: a Bíblia também servia como uma espécie de CLT para escravos.

Mas a parte mais humanista nas relações de trabalho previstas na Bíblia é uma regra para os fazendeiros: sempre deixar sem colher as plantações das bordas do terreno. Para quê? Para que as pessoas mais pobres, sem-terra, possam aproveitar essa parte.

MARVADO VINHO
O álcool nem sempre foi consumido com moderação na Bíblia. A palavra "vinho" é citada mais de 200 vezes, e os porres são frequentes: Ló é embebedado pelas filhas e Amnon, filho de Davi, está mais pra lá do que pra cá quando é assassinado por ordem de seu irmão Absalão - a quem interessar: foi pelo crime de ter estuprado a própria irmã, Tamar. "Os sacerdotes são orientados a não beber antes de entrar no templo, e o álcool é relacionado à perda de controle pessoal e da capacidade de diferenciar o bem do mal. Mas nada no texto bíblico proíbe o consumo", diz historiador Marc Zvi Brettler.

O álcool chega a ser recomendado para curar os males da alma. Está no livro Provérbios: "Dai bebida forte ao que está prestes a perecer, e o vinho aos amargurados de espírito".

Às vezes, a coisa era uma festa da uva mesmo. Davi, num arroubo de populismo, oferece uma jarra de vinho a cada cidadão de Israel. E tem o primeiro milagre de Jesus: transformar água em vinho ¿ segundo o evangelista João, no melhor vinho da festa. São Paulo vai mais além: recomenda a um discípulo, Timóteo, que troque a água pelo vinho. A dica tinha um motivo prático. "Às vezes, naquele tempo, era mais saudável consumir álcool do que água, que frequentemente era insalubre", diz Brettler.

SAÚDE E EDUCAÇÃO
A medicina bíblica é obcecada por manchas na pele - uma preocupação muito compreensível para um povo que vivia no deserto, sob um sol escaldante. Os líderes religiosos é que faziam o papel de médicos. "Quando um homem tiver na pele inchação ou pústula, então será levado a Arão ou a um de seus filhos, os sacerdotes" (Levítico).

Os sacerdotes avaliavam pessoalmente cada caso suspeito, seguindo as regras estabelecidas por Deus, transmitidas a Moisés e transcritas no Livro Sagrado. Primeiro, passar azeite sobre o ferimento (o mesmo produto também é recomendado para lavar os cabelos). Depois de uma semana, no retorno da consulta, vem o diagnóstico definitivo: se o pelo sobre a mancha estiver mais claro, e a ferida estiver mais funda do que a pele, o doente tem lepra.

A partir desse momento, a vítima não tem mais espaço na comunidade. É obrigada a andar pelas ruas, anunciando sua condição para evitar que desavisados entrem em contato com o doente e também sejam contaminados. Ocasionalmente, profetas conseguiam curar leprosos. No Novo Testamento, os sacerdotes cristãos são indicados para curar todo tipo de doença. "A oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará" (Tiago).

A preocupação com a pele não era a única norma de conduta social. Era proibido cortar e aparar a barba ou vestir tecidos que misturassem lã e linho (Levítico) - hoje, entre as comunidades que buscam seguir a Bíblia ao pé da letra, existem testadores de tecido, especializados em monitorar a composição das roupas com um microscópio e impedir fiéis de desobedecer à orientação e cometer pecado. Pela regra, também é importante vestir sapatos seguindo uma ordem - primeiro o pé direito. Se for necessário amarrá-lo, é o contrário: primeiro o esquerdo.

A Bíblia também orienta na educação dos filhos. Eles devem ser apresentados a Deus recém-nascidos e, no caso dos meninos, circuncidados no oitavo dia de vida. Ao longo da infância, os pais têm a obrigação de repassar a eles a palavra de Javé. Já o Novo Testamento é mais pedagógico, digamos assim: enfatiza a educação pelo bom exemplo dos pais, para que os jovens respeitem a Deus e se comportem corretamente por vontade própria, e não porque foram forçados. Criar adultos calmos e centrados também é importante. "E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor" (Efésios). Quando não funcionar, o Antigo Testamento indica que um bastão flexível deve ser usado para bater nos desobedientes (no Brasil, seu uso poderá trazer problemas com a Justiça caso seja aprovada a Lei da Palmada). O objeto tem até nome, vara da correção, e é indicado para qualquer situação em que o pai considere que a criança não seguiu suas instruções.

"A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe" (Provérbios), diz o texto bíblico, que promete: o castigo pode dar frutos no futuro. "Disciplina seu filho, e este lhe dará paz, trará grande prazer a sua alma". Mas cuidado - a punição não pode ser exagerada: "Castiga seu filho, mas não te excedas a ponto de matá-lo" (Provérbios).

HOMOSSEXUALIDADE
O amor entre homens era punido com a morte - a não ser que você fosse o rei Davi. Os livros Samuel I e Samuel II contam a história da amizade entre ele e Jonatã, filho do rei Saul, antecessor de Davi e candidato natural ao trono de Israel. Davi acaba escolhido para a sucessão, mas isso não abala o relacionamento dos dois. Está escrito: "A alma de Jonatã se ligou com a alma de Davi. E Jonatã o amou, como à sua própria alma" (Samuel I). Em outra passagem, Jonatã tira todas as roupas, entrega a Davi e se deita com ele. "E inclinou-se 3 vezes, e beijaram-se um ao outro" (Samuel I). "Esse relato incomoda os intérpretes tradicionais da Bíblia, que tentam explicar a relação como uma forte amizade, e o beijo como um costume comum entre homens", diz o historiador finlandês Martii Nissinen, da Universidade de Helsinki e autor de Homoeroticism in the Biblical World (Homoerotismo no Mundo Bíblico). "Mas é difícil negar a referência à homossexualidade nesse caso, mesmo que a lei judaica a proíba expressamente." Em mais de uma ocasião, os relacionamentos entre homens são chamados de "abominação" e "pecado contra Javé". Para alguns especialistas, o Antigo Testamento também sugere um relacionamento homossexual entre duas mulheres, Noemi e sua nora Rute. Está no livro de Rute um trecho em que ela diz a Noemi: "Aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu." Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada".

SACRIFÍCIOS
Muito sangue jorra na Bíblia. Abraão é orientado a sacrificar seu próprio filho Isaac a Javé - e teria obedecido, caso um anjo não aparecesse no último minuto dizendo era tudo um teste para sua fé. Além disso, durante os 40 dias em que detalha suas regras ao patriarca, Deus exige uma série de sacrifícios de animais.

Os rituais são descritos com grande riqueza de detalhes. Moisés manda matar e drenar 12 bois. O sangue é colocado numa tina. Metade é lançada no altar e o resto sobre a multidão. Carneiros abatidos são esfregados no corpo de fiéis, que seguram seus rins nas mãos para oferecê-los a Javé. Pedaços de bichos são queimados sobre o altar. Era uma forma de trocar favores com os deuses. Por isso mesmo, o sacrifício de animais existe em praticamente todas as culturas da Antiguidade. "O sangue é o maior símbolo da vida. Ao usá-lo em rituais, os fiéis reforçavam seu vínculo com a divindade e se purificavam", diz Richard Friedman.

Jesus aparece com uma novidade: não pede sangue animal. "Eu quero a misericórdia, não o sacrifício". Friedman explica: "Na interpretação cristã posterior, o próprio Jesus é considerado o sacrifício final, que limpa os pecados da humanidade de forma definitiva, o que dispensa a morte de animais".

CRIME E CASTIGO
Sequestro, adultério, homossexualidade, prostituição... Tudo isso dava pena de morte. Até fazer sexo com uma virgem poderia custar a vida do "criminoso". Esse caso, aliás, é um labirinto jurídico: se um homem transar com uma virgem dentro de uma cidade, os dois morrem; se for no campo, só ele. A lógica é que, dentro da cidade, alguém ouviria a virgem gritando por socorro caso o sexo não fosse consentido. Se ninguém ouviu é porque ela não gritou, supõe a lei. E se não gritou é porque cometeu um crime também - o de consentir. No campo é diferente: não dá para saber se ela gritou ou não. Na dúvida, então, morre só o homem.

Matar também dava em pena de morte, claro: "Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu" (Gênesis). Adorar outros deuses também trazia problemas sérios, já que é sinal de desobediência a um mandamento fundamental: "Não terás outros deuses diante de mim". Moisés chega a mandar matar 3 mil judeus por causa disso.

Matar o próprio escravo também trazia problemas. "Se alguém ferir seu escravo ou sua escrava com um bastão e morrer sob suas mãos, seja punido severamente, mas se sobreviver um ou dois dias, não seja punido, porque é seu dinheiro" (Êxodo). A pena indicada, nesse caso, é o açoite, com um limite de 40 chibatadas.

O Levítico também manda matar prostitutas a pedradas, a não ser que a moça de vida fácil seja filha de um sacerdote. Aí a punição é pior: "Com fogo será queimada". A regra seria fortemente contestada por Jesus, com a famosa frase que salvou Maria Madalena: "Aquele que não tem pecado atire a primeira pedra". Ainda assim, nem todos os autores do Novo Testamento parecem concordar com a recomendação de Cristo. As cartas de são Paulo, por exemplo, defendem o respeito à lei romana, que autoriza o apedrejamento a prostitutas.

Como o Antigo Testamento não aceita o aborto, é crime provocá-lo, mesmo que por acidente, mas a pena depende da gravidade da situação. Se dois homens brigarem e, no meio do quebra-pau, ferirem sem querer uma mulher grávida que estava por perto e provocarem a morte do feto, os dois vão pagar uma indenização estabelecida pelo marido - que perdeu um bem precioso, seu herdeiro. Agora, se a mãe ficar gravemente ferida ou morrer, então vale a famosa lei do Talião - "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe" (Êxodo). Em geral, a pena de morte por apedrejamento não precisava ser julgada pelos sacerdotes. A maioria dos crimes recebia a punição na hora, diante de um grupo de pessoas que presenciaram a cena ou que estavam por perto da cena do crime e foram informadas. Mas também existem regras mais amenas, estas, sim, negociadas dentro dos tribunais e com direito a defesa do acusado. Por exemplo: o Antigo Testamento estabelece que toda mulher menstruada é tão impura que até mesmo os lugares onde ela se senta devem ser evitados. Se um homem encostar na esposa, na mãe ou na irmã nesse período do mês, ele não pode sair de casa por sete dias. E, se fizer isso, pode ter de pagar uma multa.

Em caso de roubo e furto ou qualquer outro prejuízo ao patrimônio alheio, como matar por acidente o cabrito do vizinho, a pena é o pagamento de 4 vezes o valor do bem que foi levado ou destruído. Se a pessoa que cometeu a infração não tivesse condições de pagar, podia ser vendida como escrava.
Tudo isso, é claro, são aspectos de uma vida cotidiana que não existe mais. Mas com a mensagem essencial dos textos sagrados é diferente. E essa mensagem pode ser resumida em uma frase, que também ecoa em todas as grandes religiões da Terra: não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você. Ou mais ainda, como Jesus diz no Evangelho de Mateus: "Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós". Está aí uma recomendação impossível de refutar. E que geralmente traz ótimos resultados. Em qualquer lugar, em qualquer tempo.

PARA SABER MAIS
Everyday Life in Bible Times
Arthur W. Klinck, Concordia College, 2006
Living Judaism
Wayne Dosick, HarperCollins, 2007
Revista Superinteressante

Anéis olímpicos

Saiba mais sobre o símbolo dos anéis olímpicos
Rodrigo Ortega



1. Símbolo das Olimpíadas.

2. Criado em 1912, representa a união entre as nações.

3. Os 5 anéis não indicam os 5 continentes, como muitos acreditam. Juntamente com o branco do fundo, eles representam, na verdade, as cores das bandeiras dos 28 países que disputaram as Olimpíadas daquele ano, em Estocolmo, Suécia.

Origem
O símbolo dos anéis olímpicos foi criado pelo francês Pierre de Frédy, mais conhecido como Barão de Coubertin, fundador das Olimpíadas modernas. O barão se inspirou em outra entidade que ele ajudou a fundar, a União das Sociedades Francesas de Esportes Atléticos, em 1887. O logo da instituição era formado por dois anéis.

Farsa nazista
Até 1985, alguns historiadores achavam que Coubertin havia se inspirado nessa pedra, na Grécia. Mas trata-se de uma inscrição feita pelos nazistas para os jogos de 1936, em Berlim.
Revista Superinteressante

Quais países estudam a história do Brasil?


Europeus, africanos e asiáticos se dedicam ao tema, mas pouco. O assunto geralmente é ensinado dentro da história da América Latina
Marcel Verrumo

Zé Carioca ainda é um porta-voz do Brasil. A animação da Disney Você Já Foi à Bahia? (1944), estrelada pelo papagaio, é muito usada na hora de introduzir o Brasil em salas de aula no exterior. "O desenho foi criado como parte da política de boa vizinhança", diz Lise Sedrez, professora da UFRJ, que lecionou nos Estados Unidos. O destaque dado em classe depende das relações - históricas, culturais, comerciais etc. - entre os países. "Nos EUA, as escolas de ensino médio que ensinam português também tratam da história brasileira", diz Lise. Lá, é comum escolas próximas a comunidades de brasileiros ensinarem essas disciplinas. Já o país historicamente mais ligado a nós, Portugal, não dá tanta importância ao tema (veja abaixo). Outros europeus, como Espanha, França e Reino Unido, encaixam o assunto na grade de história da América Latina. Historicamente, o Brasil ainda é periferia.
O passado brasileiro no mundo

Temas e personagens nacionais estudados além das fronteiras

América
Nos países latinos, o tema mais recorrente é Getúlio Vargas, que é discutido junto a seus pares populistas, como Juan Domingo Perón, na Argentina. Nos EUA, os assuntos mais comuns são colonização e escravidão.

Europa
O tema é pouco discutido e aparece em subdivisões da disciplina que podem soar estranhas para nós, como história atlântica. Nem Portugal dá destaque. Lá, o Brasil é estudado junto com o finado império português.

África
Embora alguns países africanos compartilhem conosco o colonizador e, consequentemente, a língua, eles não se aprofundam em nossa história. Angola e Moçambique, por exemplo, enfocam só a escravidão.

Ásia
Há institutos específicos no Japão. Mas no Timor-Leste, ex-colônia de Portugal, é pior. Verônica Lima, da Universidade Nacional do país, diz que o maior contato com nossa cultura vem da música sertaneja. Ai, Se Eu te Pego é o novo Zé Carioca.
Fontes Demian de Melo e Lise Sedrez, professores de história da UFRJ; Koji Sasaki, professor da Universidade de Tóquio, Japão; Maicon Carrijo, pesquisador de história na USP; Verônica Lima, professora da Universidade Nacional do Timor-Leste.
Revista Superinteressante

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Nestorianismo


Padres nestorianos em procissão noDomingo de ramos
Pintura de parede do século VII ou VIII em uma igreja nestoriana na China

Nome derivado do Bispo de Constantinopla, , Nestório, que chegou a afirmar a natureza humana de Cristo. Para Nestório, somente Deus, o Pai, era divino, não o Filho.Os concílios de Éfeso (431) e da Calcedõnia (451) condenaram  com veemência essa doutrina. Expandiu-se somente no Oriente.
Nestorianismo é uma doutrina cristológica proposta por Nestório, Patriarca de Constantinopla (428 - 431 d.C.)

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A nossa África


Em visita ao continente, Freyre pôde ver de perto o que antes só conhecia pelos livros

Alberto da Costa e Silva

Em 1843, durante um debate no Senado sobre o tráfico negreiro, Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) argumentou que o Brasil necessitava de escravos africanos porque a África civilizava a América. Antes e depois dele, houve algumas vozes, em geral discretas, que apontaram a influência africana sobre certos aspectos da vida brasileira. Tardaria, porém, quase um século para se ler em Pandiá Calógeras (1870-1934), na sua Formação Histórica do Brasil (1930), que tinham sido os negros que introduziram a metalurgia de ferro em Minas Gerais, em forjas africanas e com técnicas africanas. 

Três anos mais tarde, em 1933, em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre salientaria a importância da bagagem de experiências de vida nos trópicos trazida pelos africanos para o Brasil, com ênfase nas técnicas de produção econômica, no preparo do ferro, na mineração do ouro e na ourivesaria, na agricultura, na criação extensiva do gado, na tecelagem e no trabalho do couro e da madeira. Em seu livro, Freyre mostrava que o negro, ou seja, a África, estava dentro de cada brasileiro, entranhada nos seus modos de vida, em casa e na rua, na infância, na juventude, na maturidade e na morte. 

Para Freyre, a África era coautora do Brasil. Mas a África que ele conhecia era a que os escravos trouxeram consigo e a que lhe chegara pelas leituras – e tinha então em sua estante não mais do que uma ou duas prateleiras com livros sobre o continente africano. Na África, havia estado apenas em Dacar. E só muitos anos depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, visitaria aquelas partes do continente sob o domínio de Portugal, atendendo a um convite que lhe fez, em 1951, o governo de Lisboa. Dessa viagem a Cabo Verde, Guiné, Angola, São Tomé e Moçambique, fez um belo relato em Aventura e rotina (1953), no qual fica evidente que as autoridades coloniais não deixaram que demorasse o olhar sobre o que mais lhe interessava. Não andou sozinho por parte alguma. Parecia que tinham a intenção de que não visse a África e os africanos, mas tão somente o que se fizera português na África. Algumas vezes teve de pedir paciência a seus guias e acompanhantes para ver melhor o que para estes não passava de um vilarejo de pretos, para conversar com um soba (nome dados aos chefes africanos) ou desenhar um penteado de mulher. 

A exceção deu-se em Moçambique, porque Freyre se desentendeu, logo à chegada, com o governador português e, graças à ausência de solicitude deste, pôde ver o que não estavam interessados em mostrar-lhe: a riquíssima multiplicidade de culturas da ilha que deu o nome ao país. As formas, as cores e os perfumes da África do Índico entraram-lhe alma adentro. Nessa ilha pequenina, viam-se lado a lado, conciliados, conflitantes ou até mesmo confundidos, prédios, móveis, vestidos, comidas e modos de ser da África, da Arábia, da Pérsia, da Índia, da Indonésia, de Portugal e do Brasil. Freyre deslumbrou-se com tudo, mas principalmente com as mulheres, nas quais – as palavras são dele, em Aventura e rotina  a mestiçagem alcançava “vitórias esquisitas de beleza e graça nas formas, nas cores, no sorriso, na voz e no ritmo do andar”. Não podia ele deixar de ver nisso uma prova de que estava correta a sua teoria do lusotropicalismo. Na verdade, porém, a mestiçagem étnica e cultural em Moçambique antecipara de muito a chegada dos portugueses. O seu início datava de mais de 2.500 anos, e envolvera bantos, somalis, etíopes, árabes, persas, guzerates, cholas, malabares, cingaleses, javaneses e muitos povos mais. 

Mesmo em Angola, apesar dos antolhos que nele puseram, não lhe escaparam muitas coisas. E emocionou-se com várias delas. Por exemplo, com as lápides no cemitério dos brancos em Moçâmedes, nas quais leu que este, e aquele, e aquele outro haviam nascido em Pernambuco. Eram os filhos brasileiros dos portugueses, muitos deles já abrasileirados, que fugiram do Recife, na metade do século XIX, por causa das perseguições antilusitanas, e foram, pode-se dizer, refundar aquela cidade entre o mar e o deserto. Mas foi o cemitério dos negros – posteriormente objeto de um opúsculo, Em torno de alguns túmulos afro-cristãos – que o fascinou, como uma mistura de tradições de sepultamento africanas e europeias. Nas lápides pintadas com cores vivas, via-se uma cruz de desenho complicado, tendo abaixo, em relevo, figuras humanas, como a Madona com o Menino, ou um grupo de pessoas a olhar-nos de frente, ou, ainda, os instrumentos de trabalho do morto (martelo, serrote, alicate, no caso de um carpinteiro), tendo à frente um vaso para recolher a comida e a bebida que se ofertavam periodicamente ao morto. 

Gilberto Freyre se interessava principalmente pela África que havia no Brasil. Não deixou, contudo, de fascinar-se com aquela África que, abrasileirada, atravessou de volta o Atlântico. Quem dela lhe deu as mais pormenorizadas e entusiásticas notícias foi o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996). Com base em suas informações, Freyre escreveu os textos que acompanharam as fotografias de Verger numa série de reportagens publicada em 1951 na revista O Cruzeiro, e que, reelaborados, dariam um ensaio brilhante sobre os ex-escravos que regressaram à costa ocidental da África e ali criaram as comunidades de brasileiros, também conhecidos como agudás ou amarôs. 

Nas duas ou três ocasiões em que lhe contei o que vira e vivera em minhas viagens pela África, ele se inclinou na minha direção a fim de ouvir melhor. E animou a conversa com sua curiosidade inesgotável. Mais de uma vez, não escondeu a frustração por não ter voltado ao continente africano, não só para aprender mais sobre o que o Brasil devia à África, mas também para conhecer Tombuctu, Ajudá, Abomei, Lagos, Kano, Zanzibar e as igrejas escavadas na pedra da Etiópia. 


Alberto da Costa e Silva é membro da Academia Brasileira de Letras e autor de O quadrado amarelo (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009). 

Parecia que tinham a intenção de que não visse a África e os africanos, mas tão somente o que se fizera português na África

Saiba Mais - Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.FREYRE, Gilberto. Em torno de alguns túmulos afro-cristãos de uma área africana contagiada pela cultura brasileira. Salvador: Universidade da Bahia/Livraria Progresso Editora, 1959.FREYRE, Gilberto. “Acontece que são baianos...” IN: Problemas brasileiros de Antropologia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962.
Revista de História  da Biblioteca Nacional

sábado, 21 de setembro de 2013

Pimenta, especiaria da América


Colombo e seus navegadores foram os primeiros europeus a conhecer as pimentas das Américas

No século XVI os navios europeus vinham às Américas não só para buscar pau-brasil e algodão, macacos e papagaios, mas também um produto a que os historiadores não davam muita atenção: as pimentas conhecidas como ardidas – dedo-de-moça, piripiri, tabasco, jalapeño, pimentão e pimenta-doce. Originárias das Américas do Sul e Central, eram diferentes da pimenta-negra (Piper nigrum) trazida da Ásia com o cravo, a canela e outras especiarias, argumentam Christian Fausto dos Santos, Fabiano Bracht e Gisele Cristina da Conceição, pesquisadores do Laboratório de História, Ciências e Ambiente da Universidade Estadual de Maringá, com base em relatos de cronistas, médicos e viajantes da época (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, janeiro-abril de 2013). Segundo os pesquisadores, Cristóvão Colombo e seus navegadores, no século XV, foram os primeiros europeus a conhecer as pimentas americanas, que eram plantadas no México havia 9 mil anos e nos Andes peruanos desde 2.500 anos antes de Cristo. Depois de Colombo, a disseminação foi rápida, e as pimentas começaram a ser plantadas em hortas e quintais, inicialmente da península Ibérica. Um dos relatos indicou que as variedades americanas eram mais aromáticas e de gosto melhor do que as das Índias, então a principal especiaria buscada no Oriente. Em outro estudo, o grupo de Maringá relatou que as pimentas eram usadas no preparo das comidas a bordo dos navios, para evitar o escorbuto.
Revista FAPESP

Siderurgia na Colônia

As tentativas de produzir ferro no Brasil começaram no final do século XVI no interior de São Paulo

NELDSON MARCOLIN 


Ruína da fábrica de ferro em foto de 1987

A história dos sucessos e fracassos da Real Fábrica de Ferro de Ipanema, um empreendimento siderúrgico realizado no século XIX no Brasil, já foi analisada e contada várias vezes. Hoje se conhecem bem as dificuldades técnicas enfrentadas por suecos e alemães contratados para conseguir produzir ferro em grande quantidade e com qualidade no interior de São Paulo, o que nunca foi alcançado. Nesse período a siderurgia já estava avançada na Europa, onde os altos-fornos eram feitos com base no conhecimento científico acumulado nos últimos séculos. Já as tentativas de produzir ferro antes da Real Fábrica são uma história pouco conhecida. O minério era transformado em ferro por práticos fundidores que trabalhavam em condições precárias no meio da mata, com fornos muito pequenos e dificuldade para distribuir a produção.

Muitos práticos em metalurgia e fundição e mineiros especializados em ouro, prata e pedras preciosas foram trazidos ao Brasil em 1598 por dom Francisco de Sousa (1591-1602), o sétimo governador-geral do Brasil. Sousa seguia informações sobre a ocorrência de minérios valiosos em uma região perto da então Vila de São Paulo de Piratininga, no morro de Araçoiaba, a 15 quilômetros do atual município de Iperó. Os trabalhos de exploração no local começaram um ano antes com o bandeirante e comerciante português Afonso Sardinha, esperançoso de encontrar metais nobres no local, de acordo com o historiador Pedro Taques (1714-1777).

Em Araçoiaba, no entanto, a abundância do minério de ferro restringia-se à magnetita. A fim de aproveitar o potencial daquela área foram construídos fornos e forjas para fazer barras e peças simples como facas, espadas, ferraduras e cravos. “Os fundidores faziam esse trabalho utilizando o conhecimento prático, sem o entendimento científico dos fenômenos presentes na fundição, especialmente os que ocorrem na combustão dos materiais”, diz a historiadora Anicleide Zequini, especialista no tema do Museu Republicano de Itu, ligado ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).“Esses fenômenos só foram desvendados durante a chamada revolução científica, entre 1789 e 1848, com o avanço da química e passo a passo com a Revolução Industrial.”
Vestígios do forno de fundição

A exploração empreendida no morro de Araçoiaba por dom Francisco e Sardinha não durou muito. Na época, o investimento tinha de ser parcialmente ou totalmente feito pelo explorador. Se o capital fosse limitado e o retorno não se desse logo, o investidor ia à bancarrota, como aconteceu com dom Francisco. Suas investidas não surtiram efeito e ele morreu na miséria. Depois houve duas outras iniciativas semelhantes. No século XVII, em 1684, o português Luiz Lopes de Carvalho construiu um engenho de ferro no mesmo lugar. Para conseguir dinheiro ele hipotecou suas propriedades em Portugal, mas faliu em 1682. No século seguinte, em 1763, foi a vez de Domingos Pereira Ferreira tentar. “Ele deve ter sido o último a produzir ferro naquele morro com a ajuda dos fundidores”, diz Anicleide. A Real Fábrica foi erguida apenas em 1810 alguns quilômetros distante daquele local.

Araçoiaba não foi o único lugar de São Paulo a fabricar ferro no século XVII. Na Vila de São Paulo foi aberta a Fábrica de Ferro de Santo Amaro, em 1607, uma sociedade de Diogo Quadros com Francisco Lopes Pinto e Antonio de Souza. Durou alguns anos e fechou.

As atividades realizadas do século XVI ao XVIII no interior de São Paulo foram investigadas entre 1983 e 1989 pela arqueóloga Margarida Davina Andreatta, uma das pioneiras da arqueologia histórica no Brasil, segundo Anicleide. A área pesquisada e escavada por Margarida foi encontrada com a ajuda de um pesquisador da história da região, José Monteiro Salazar. Ela identificou o sitio, denominado Afonso Sardinha, e achou escórias, telhas, cerâmica em geral e vestígios de forno e outras construções. Quando Anicleide fez sua tese de doutorado sobre o sítio mandou datar as peças e comprovou que eram do período pesquisado. “Foi o primeiro sítio do século XVI datado em São Paulo”, diz Margarida. Hoje aposentada da USP, ela ainda vai duas vezes por semana ao Museu Paulista e coordena um grupo de arqueologia histórica da Universidade Braz Cubas, de Mogi das Cruzes (SP).
Revista FAPESP

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Saiba quem foi que espalhou a primeira pandemia de peste bubônica na Europa


O imperador bizantino Justiniano sonhou reviver o período clássico ao reconquistar Roma, mas seus exércitos podem ter espalhado uma praga que matou metade dos europeus

Lidiane Aires

A Europa andava mal das pernas em 540. Ainda era o início da Alta Idade Média, também chamada de Idade das Trevas, que havia começado em 476, com a queda do Império Romano do Ocidente - e duraria até por volta do ano 1000 -, período marcado pelo abandono das cidades, estagnação da economia e miséria da população. A guerra varria o continente por causa da campanha do imperador bizantino, Justiniano, numa tentativa de restaurar o Império Romano do Ocidente (veja quadro). Foi nessa época dura que os europeus tiveram de enfrentar a primeira pandemia da história.

Foi a chamada Praga de Justiniano, a primeira epidemia de peste bubônica, que voltaria a assolar a Europa séculos depois, entre 1346 e 1352. Transmitida por pulgas de ratos infectados, vindos dos navios, a praga surgiu no Egito, passou pelo Oriente Médio e chegou à capital do Império Bizantino, Constantinopla, em 540, matando 5 mil moradores por dia, e eliminando metade da população (estimada entre 500 mil e 1 milhão de pessoas) da cidade. A doença se espalhou também pela Síria, Europa e Ásia Menor (atual Turquia). Meio século depois, haviam morrido em decorrência da doença entre 25 e 100 milhões de pessoas. "É difícil precisar dados estatísticos, mas é possível afirmar que 40% da população de toda a área mediterrânea foi dizimada por volta do ano 600", afirma Celso Taveira, doutor em história bizantina e professor da Universidade Federal de Ouro Preto. A peste bubônica, que mais tarde ficou conhecida como peste negra, ataca os nódulos linfáticos, localizados em axilas, virilhas e pescoço, que incham e formam enormes bolhas de pus. As extremidades do corpo são atacadas por necrose, o que dava aos infectados uma aparência aterradora, algo como mortos-vivos.

Soldado invisível

Devido à sua mobilidade, as tropas justinianas podem ter ajudado a propagar a doença, mas foram também extremamente afetadas por ela. O exército foi assolado pela praga e até o próprio imperador contraiu a doença, mas sobreviveu. O impacto na população europeia e, consequentemente, nas guerras travadas por Justiniano se deu de várias formas. Constantinopla chegou a ser fechada e a entrada de navios foi proibida, fazendo com que as pessoas passassem a morrer de fome. Em questões militares, com a falta de pessoal para as batalhas, a situação foi de estagnação e derrotas. 

A praga afetou também os persas, que contraíram a doença durante a guerra contra os bizantinos, em 543. Com o enfraquecimento do exército, Justiniano viu-se incapaz de dar continuidade aos combates e foi forçado a firmar um acordo de paz com o rei persa, Cosroes, em 545. Alguns historiadores acreditam que os danos causados aos persas e bizantinos os tornaram vulneráveis às conquistas muçulmanas no século seguinte. Estima-se que a pandemia tenha durado mais de 200 anos. "Não se pode falar de uma epidemia que durou de um período a outro, mas que ela mudava de lugar", afirma Silvia Waisse, professora de história da ciência da PUC-SP. Na pandemia do século 6, nem a imperatriz Teodora escapou. Alguns a culparam, dizendo que a praga era uma punição divina por sua promiscuidade. Não passava pela cabeça dos médicos que pulgas, ratos e organismos invisíveis pudessem causar o mal. "A noção de que havia alguma coisa que se transmitia só se estabeleceu no final do século 15", diz Silvia.

O (quase) retorno do Império Romano

Em 285, tentando organizar o caos administrativo do decadente Estado romano, o imperador Diocleciano dividiu o Império em duas partes, Ocidente e Oriente. Roma - e, com isso, o Império Romano do Ocidente - caiu nas mãos dos bárbaros em 476, mas a parte oriental sobreviveu. A capital, na cidade de Constantinopla, foi chamada de Bizâncio até 330 - daí o nome Império Bizantino, que, aliás, não era usado pelos bizantinos. Para eles era Império Romano e ponto, mesmo depois de mudarem a língua oficial para o grego, em 620.

A peste foi um imenso revés na campanha de Justiniano para restaurar o Império Romano às suas antigas fronteiras. Iniciada em 527, e contando com generais legendários, como Belisário e Narses, Justiniano retomaria dos bárbaros toda a Itália, norte da África e parte da península Ibérica. No entanto, pelo impacto brutal da doença, e problemas políticos e econômicos, a reunificação de Roma seria efêmera. A Itália seria perdida para os lombardos em 568, meros 3 anos após a morte de Justiniano, e o Império Romano do Oriente sofreria grandes derrotas para os povos islâmicos a partir do século 8, até a queda de Constantinopla para os turcos otomanos, em 1453. Os gregos viveram sob domínio otomano até 1822, quando declararam independência e iniciaram uma guerra contra os turcos com o apoio de países europeus.

Saiba mais

LIVROThe Secret History of the Court of Justinian & The Persian War, Procopius, www.gutenberg.org/ebooks/12916
Revista Aventuras na História

Por dentro do Mossad, o serviço secreto judaico


Antes de existir o estado de Israel, já havia um serviço secreto judaico. Saiba por que hoje ele é o mais eficiente do mundo e inspira tanto terror e admiração

Eduardo Szklarz

Em 19 de janeiro de 2010, uma loira de batom vermelho embarcou no voo 526 da Air France, em Paris, com destino a Dubai. O funcionário da imigração dos Emirados Árabes Unidos checou o passaporte da moça: a irlandesa Gail Folliard, 23 anos. Pouco tempo depois, a jovem se hospedava no Al Bustan Rotana, um 5 estrelas da cidade. Ninguém desconfiou que a bela garota se tratava de uma agente do Mossad, o serviço secreto israelense. Ela integrava uma operação para matar Mahmoud al-Mabhouh, o maior traficante de armas do Oriente Médio. O árabe estava em Dubai para negociar a compra de mísseis iranianos para o grupo palestino Hamas. Como era de praxe, fez o check-in no Al Bustan Rotana. Só que, desta vez, ele não saiu vivo de lá.

Folliard ficou na cola de Mahmoud. Foi ela que provavelmente o convenceu a abrir a porta de seu quarto, às 20h30, quando dois agentes do Mossad entraram para executá-lo. Funcionários do hotel só acharam o corpo deitado sobre a cama no dia seguinte. "Foi ataque cardíaco", afirmou o médico de plantão. Mas a autópsia revelou que o sangue continha traços de succinilcolina, um poderoso relaxante muscular. A polícia de Dubai concluiu que os agentes do Mossad injetaram a droga na coxa de Mahmoud para impedir que ele reagisse e depois o sufocaram com travesseiros - simulando morte natural. Xeque-mate. Como sempre faz nessas ocasiões, Israel manteve um discurso ambíguo. Não negou nem confirmou que o assassinato havia sido obra do Mossad. "Vocês veem muitos filmes de James Bond", disse aos jornalistas Avigdor Lieberman, ministro de relações exteriores de Israel. Mas os especialistas não têm dúvida: a operação mostrou que o Mossad continua em forma - e de fazer inveja a 007. Nesta reportagem, revelamos os bastidores do melhor serviço secreto do mundo.

Encalço dos inimigos

A semente do Mossad foi plantada nos anos 30, em meio à crescente tensão entre árabes e judeus da Palestina - na época, uma colônia britânica. O agricultor Ezra Danin recebeu uma missão da Haganá, a brigada paramilitar judaica: passar informes sobre árabes que organizavam atentados contra judeus. O negócio de Danin era plantar laranja, mas a Haganá sabia que ele tinha muitos contatos entre o bando inimigo. O pacato camponês largou a enxada e, em pouco tempo, já sabia os endereços, hobbies, placas de carros e clubes que os líderes árabes frequentavam.

"Danin lançou as bases da compilação, da interpretação e do uso de inteligência sobre os árabes nos anos da luta pela Palestina", escrevem o historiador israelense Benny Morris e o jornalista britânico Ian Black no livro Israel¿s Secret Wars (Guerras Secretas de Israel, sem tradução no Brasil). Em 1936, quando estourou uma revolta árabe em larga escala, Danin liderou uma unidade que grampeava telefones, decodificava mensagens e farejava agentes duplos. Em 1940, ele fundou o Shai, o braço de contraespionagem da Haganá. Diversos árabes se tornaram seus informantes - e não só por dinheiro. Na maioria das vezes, sofriam perseguições de outros árabes por fazer negócios com judeus. "Eles temiam por sua vida e tinham fortes razões para se livrar de seus perseguidores. E nós exploramos essas situações na hora de recrutá-los", escreveu Danin anos depois.

Como se vê, antes de declarar sua independência, em 1948, Israel já tinha seu serviço secreto. Mas ele foi criado oficialmente em 1951 como Instituto de Inteligência e Operações Especiais, ou simplesmente Instituto (Mossad, em hebraico). O foco inicial eram os países árabes hostis a Israel. Não havia dinheiro nem gente suficiente para outras missões, como perseguir nazistas pelo mundo. Em 1960, porém, o diretor Isser Harel abriu uma exceção ao saber que Adolf Eichmann vivia calmamente na Argentina. O arquiteto da Solução Final da Alemanha nazista trabalhava na filial da Mercedes-Benz, fingindo ser o mecânico Ricardo Klement.

Um comando do Mossad liderado pelo agente Rafi Eitan sequestrou Eichmann quando ele caminhava pela rua Garibaldi, nos arredores de Buenos Aires, e o manteve por 9 dias algemado à cama de um apartamento alugado. O nazista deixou a Argentina sedado num avião da companhia israelense El Al rumo a Jerusalém, onde foi julgado e condenado por crimes contra a humanidade. Morreu na forca em 1961, no único caso de sentença de morte de uma corte em Israel.

"A Argentina protestou, dizendo que violamos sua soberania, mas a operação não afetou a relação entre os dois países", disse Rafi Eitan por telefone a AVENTURAS NA HISTÓRIA de seu gabinete em Jerusalém, onde hoje lidera o partido político Gil. Com a operação, Eitan e os israelenses mandaram um recado ao mundo: o Mossad podia alcançar o inimigo onde estivesse. E nada poderia detê-lo.

Em 1962, Eitan e seus colegas descobriram que o médico Joseph Mengele, responsável por experimentos macabros em Auschwitz, vivia no interior de São Paulo. "Estivemos lá, conversamos com pessoas que conheciam Mengele e o fotografamos", diz Eitan. "Mas decidimos não capturá-lo porque não estávamos preparados o suficiente. Uma operação desse tipo demanda meses. Logo depois o governo de Israel mudou e a nova administração decidiu cancelar a missão." O nazista morreu em 1979 e foi enterrado em Embu, em São Paulo.

Guerra nas sombras

Nos anos 70, organizações terroristas começaram a recrutar estudantes palestinos na Europa. O Mossad pescava nas mesmas águas. "Os palestinos usavam a saudade de casa e o patriotismo como isca. O Mossad usava dinheiro", diz Aaron J. Klein, ex-membro da Direção de Inteligência Militar de Israel. Numa rápida conversa, o recrutador do Mossad descobria o ponto fraco do estudante que abordava. Se o jovem tinha um parente doente, por exemplo, oferecia tratamento num bom hospital. E conseguia informações valiosas.

Com informações assim, o Mossad saiu à caça do Setembro Negro, o grupo palestino que matou 11 atletas israelenses na Olimpíada de Munique, em 1972. Um dos alvos foi Mahmoud Hamshari, representante da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) em Paris. Ele tinha no currículo a explosão de um avião que voava entre Zurique e Tel Aviv em 1970, matando 47 pessoas. Hamshari não titubeou quando um jornalista italiano o convidou para um encontro num café. O repórter era um agente. Enquanto Hamshari saboreava um croissant, agentes invadiram seu apartamento e rechearam o gancho do telefone com explosivo plástico. No dia seguinte, quando a esposa e a filha do palestino já haviam saído, o telefone tocou. "Por favor, posso falar com o doutor Hamshari?", disseram. "É ele", respondeu. A explosão causou um rombo na cabeça do terrorista, que morreu 3 semanas depois. A vítima seguinte foi Abu-Khair, emissário da OLP no Chipre. Seu corpo foi dilacerado por uma bomba sob sua cama no Olympic Hotel. Os chefes do Setembro Negro foram caindo um a um, como peças de dominó.

Em junho de 1976, veio a revanche: uma facção liderada pelo palestino Wadi Haddad sequestrou um avião da Air France e o levou para o aeroporto de Entebe, em Uganda, onde o ditador Idi Amin Dada lhe deu proteção. Os terroristas fizeram de reféns os 105 passageiros judeus (os demais foram liberados) e exigiram que Israel libertasse 53 terroristas. Com orientações do Mossad, Israel enviou 3 aviões Hércules C-130 numa missão de resgate que incluiu 200 soldados, jipes e até um Mercedes-Benz preto idêntico ao de Idi Amin.

"Seis agentes rodearam o aeroporto de Entebe com aparelhos que interferiam no radar da torre de controle. Desse modo, confundiram as autoridades", diz o escritor galês Gordon Thomas no livro Gideon¿s Spies: The Secret History of Mossad (Espiões de Gedeão: A História Secreta do Mossad, sem tradução no Brasil). "Os soldados liberaram os reféns e mataram os terroristas. O único oficial morto foi Yoni, irmão do atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu."

Haddad, o cérebro do sequestro, foi fisgado em 1977 com uma caixa de chocolate belga. Os agentes sabiam que ele era chocólatra e envolveram os doces com um veneno letal. A caixa foi dada de presente por um palestino infiltrado. Haddad morreu no ano seguinte, vítima de uma doença misteriosa. A facção que ele liderava se desintegrou e o número de atentados contra alvos israelenses no exterior caiu de imediato.

Mas não se engane: o Mossad também erra, e feio. Em julho de 1973, por exemplo, o marroquino Achmed Bouchini foi alvejado com 10 tiros numa piscina pública da cidade norueguesa de Lillehammer. Os israelenses o confundiram com o terrorista Ali Hassan Salameh, líder do Setembro Negro. (O verdadeiro Salameh foi eliminado em Beirute, em 1979.) Outro papelão foi quando o Mossad tentou matar o líder do Hamas Khaled Meshal na Jordânia, em 1997. Os agentes esguicharam um veneno em seu ouvido, mas foram pegos pela polícia. A Jordânia só os liberou quando Israel entregou o antídoto para a toxina ¿ e o chefão do Hamas sobreviveu.

A chave do êxito

Como o Mossad se tornou o melhor serviço secreto do mundo? Por pura necessidade. Num país cercado de inimigos como Israel, manejar inteligência é crucial para prevenir ataques e punir agressores. "Este é o único país que não terá uma segunda chance se perder uma guerra", dizem os israelenses. O Mossad leva isso muito a sério. E embora esteja na vanguarda no uso de tecnologias, continua fazendo espionagem à moda antiga. Infiltra agentes, alicia informantes e leva a cabo operações encobertas.

Tudo isso demanda muito esforço. Para eliminar Mahmoud al-Mabhouh, por exemplo, 30 agentes do Mossad viajaram a Dubai divididos em equipes. A maior delas, de vigilância, acompanhou cada passo do alvo desde sua chegada ao aeroporto. "Para não chamar a atenção, os agentes mudam de identidade todo o tempo: trocam de roupa, usam bigode, peruca, óculos, maquiagem. Assumem várias feições para espreitar o lobby e os corredores do hotel", diz Klein. "Mulheres são fundamentais na missão. Se o alvo está num bar, um casal vai lá e se senta na mesa ao lado. Ou uma jovem atraente o observa no balcão."

A unidade de assassinato, Kidon, costuma ter 4 pessoas trabalhando em duplas. Operações assim têm ainda o grupo de comando (2, em geral) e uma equipe de suporte, que cuida de passagens, hotéis e aluguel de carros. A ação é monitorada por outro grupo a distância, que pode estar num país europeu ou até mesmo no céu. Isso mesmo: quando kidons eliminaram o terrorista palestino Abu Jihad numa estância em Túnis, em 1988, o grupo de controle sobrevoava a cidade em círculos num Boeing 707. A bordo estava o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que deu sinal verde para a emboscada. Outro Boeing levava equipamentos para bloquear e rastrear comunicações, e dois mais levavam combustível.

A formação dos agentes depende da especialidade. Os que fazem tarefas de escritório ficam na sede do Mossad, em Tel Aviv. Já os kidons treinam longe dali, na área restrita de uma base militar no deserto do Neguev. Eles viajam com frequência a Frankfurt, Roma e outras cidades europeias para exercícios de simulação. Os "alvos" são colaboradores locais que participam como voluntários. "Em geral, os colaboradores acham que se trata de um exercício de proteção a uma sinagoga ou escola e às vezes levam um susto quando percebem que foram roubados no meio da rua ou jogados dentro de um porta-malas", diz Gordon.

Irã, o arqui-inimigo

Não é nenhum segredo que o Irã é o atual arqui-inimigo de Israel. E um dos grandes objetivos do Mossad é impedir que a nação persa desenvolva a bomba atômica. Tal como foi feito com o Iraque. Em 1981, caças israelenses bombardearam um reator nuclear construído por Saddam Hussein usando segredos passados por informantes. Em 1990, o canadense Gerald Bull foi morto com 5 tiros em Bruxelas, quando desenvolvia para Saddam um supercanhão de 150 metros que poderia atingir Tel Aviv e cidades europeias. Hoje Saddam é passado, e os katsas estão dispostos a tudo para frear as ambições dos aiatolás. Isso inclui até as tarefas mais básicas. "O Mossad está desesperado por conseguir gente que saiba farsi, o idioma do Irã, para traduzir conversas e documentos", diz Klein.

A Divisão de Tecnologia é a que mais cresce no Mossad. O motivo é simples: nos anos 70, quando caçava o Setembro Negro, 90% das informações vinham da chamada "inteligência humana" - ou seja, a clássica rede de informantes. Hoje, a maior parte dos dados vem de mensagens de internet, celulares e computadores. Há uma verdadeira guerrilha cibernética contra o extremismo religioso, e nesse campo o Mossad não combate sozinho. Conta com a cooperação de agências como a CIA (EUA), o MI5 (Inglaterra) e o BND (Alemanha).

Aparentemente, o Mossad é o responsável pela morte de pelo menos 3 cientistas atômicos iranianos desde 2010. A vítima mais recente foi Mostafa Ahmadi Roshan. O carro em que viajava explodiu dia 10 de janeiro, depois que um motociclista colocou uma bomba magnética sob o chassi. O Irã culpou Israel e os EUA pelo ataque. Agentes do Mossad também teriam ajudado os EUA a fabricar o Stuxnet e outros vírus de computador usados pela Casa Branca para atrasar o programa nuclear iraniano.

O próprio ofício de espião mudou. Antes, o sujeito construía uma carreira no Mossad, passava por várias funções até ocupar cargos de chefia. Foi o caso de Efraim Halevy, diretor do Instituto entre 1998 e 2002, que dedicou 28 anos à espionagem. "Hoje, os contratos tendem a ser menores. A pessoa presta um serviço por 5 anos, digamos, e depois vai trabalhar em outro lugar", diz Klein.

E lá se foi o tempo em que os espiões agiam sem deixar rastros. Imagens de Gail Folliard e dos outros agentes que viajaram a Dubai, registradas nas câmeras do hotel, foram parar no YouTube. Mas o que vemos na internet são disfarces. A verdadeira identidade deles continua um mistério. Mas no futuro bancar o James Bond vai ser mais difícil. A maioria dos aeroportos europeus deverá contar com aparelhos que detectam medidas biométricas - a identificação da íris ou da retina. Segundo Rafi Eitan, isso não vai inviabilizar as atividades de inteligência no futuro. "As agências vão encontrar formas de superar as dificuldades", diz Eitan. "Já penso nisso de vez em quando, mas não quero dar ideias aos inimigos."

O que era a organização Setembro Negro

Fundação - 1970

Membros em Munique - 8 pessoas

Como agiam - Em células de 4 pessoas. Era ligada à Fatah, da OLP


A Operação no aeroporto de entebe

Reféns - 105 passageiros judeus

Baixas - 1 militar e 3 reféns

Missão - Foi a ação de resgate mais complexa e perfeita da História


O pouso do avião inimigo

Nos anos 1960, o Iraque contava com o caça soviético Mig-21, bem superior ao francês Mirage, usado pelos israelenses. O Mossad convenceu o piloto iraquiano Munir Redfa a contrabandear um Mig-21 para Tel Aviv. Ele era cristão e queria se ver livre da perseguição religiosa imposta pelo governo muçulmano. "Com o caça nas mãos, os israelenses estudaram sua performance e garantiram a vitória contra os vizinhos árabes na Guerra dos Seis Dias, em 1967", diz o pesquisador Matt Webster no livro Inside Israel's Mossad (Por dentro do Mossad, inédito no Brasil). Redfa levou a família toda para Israel, com a promessa de proteção e emprego até o fim da vida.


"Um informante é como um limão. Não esprema demais"
Aaron J. Klein trocou o posto de capitão da inteligência militar de Israel pelo jornalismo. Autor de Contra-Ataque, sobre a caçada aos terroristas da Olimpíada de Munique de 1972, ele conversou com Eduardo Szklarz
Como é a cooptação dos informantes do Mossad?
O rastreamento do informante leva anos. Em geral, a aproximação acontece fora do país inimigo e não é feita em nome de Israel. As informações são obtidas de forma gradual. É como um limão: não esprema demais para que nada de mal aconteça. É importante não pedir que a fonte se arrisque muito nem que forneça a informação importante de uma vez. O principal é que ela não seja pega pelo inimigo. O processo pode durar décadas. Em geral, a motivação é o dinheiro.
E o recrutamento dos agentes da organização?
Por meio de amigos, do Exército ou até de envio de currículo ao site do serviço secreto. No Mossad, não há só agentes que participam em missões. O treinamento é longo. Nos primeiros dias, por exemplo, os alunos saem com o supervisor, que lhes diz: "Estão vendo a varanda naquele edifício? Quero ver vocês lá em 5 minutos". Em situações assim, a pessoa deve ser convincente para fazer o dono do apartamento abrir a porta, por exemplo. Devem reagir rápido.
Quanto recebe um agente da Cesarea, a unidade responsável por missões encobertas?
Muito dinheiro. Em geral, essas pessoas trabalham por 5 anos, muitas horas por dia. A pessoa não vê a família por semanas.
Essas pessoas recebem outra identidade?
Em Israel, usam a identidade original e o nome de nascença. Quando vão a campo, recebem a identidade específica para cada missão. Podem usar até 4 ou 5 identidades num mesmo dia.
Quanto o governo de Israel investe por ano para manter o Mossad?
Essa é uma informação secreta. Mas não creio que algum primeiro-ministro de Israel tenha negado um pedido do Mossad.

Três agentes exemplares

Isser Harel, O mestre da espionagem

Nascido na Rússia em 1912, foi um dos pais da inteligência israelense. Fundou o Shin Bet, o serviço de segurança do país, e no Mossad criou a Cesarea ¿ divisão responsável por operações encobertas. Harel arquitetou o sequestro de Adolf Eichmann. Também cultivou boas relações com outras agências. Em 1956, por exemplo, entregou à CIA uma cópia do discurso secreto feito pelo líder soviético Nikita Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista. Seu apelido entre os colegas era "Isser, o Pequeno", pois media cerca de 1,60 m.

Cheryl Ben-Tov, a loira fatal

A americana Cheryl Ben-Tov (codinome Cindy) tinha 20 e poucos anos quando entrou para o Kidon, a unidade de elite do Mossad. Em 2004, foi a Londres para ¿pescar¿ Mordechai Vanunu, cientista que estava revelando à imprensa britânica os segredos do programa nuclear israelense. Cheryl seduziu Vanunu e o convidou para uma viagem romântica a Roma. Lá, 5 agentes o sequestraram e o levaram de volta a Israel, onde foi condenado por traição a 18 anos de prisão. Cheryl trabalha hoje como corretora imobiliária em Orlando, Flórida.

Eli Cohen, O espião de Damasco

Nos anos 60, o negociante sírio Kamal Amin Thabit se tornou íntimo da elite governante de seu país. Tão íntimo que virou conselheiro do ministério de defesa. Ninguém imaginava que ele se chamava Eli Cohen, era egípcio e vinha de uma família judaica ortodoxa. Cohen enviou a Tel Aviv segredos militares que seriam cruciais para a vitória de Israel na guerra de 1967. Entre eles, a localização das tropas sírias nas colinas do Golã. Em 1965, foi desmascarado quando transmitia mensagens via rádio e enforcado em praça pública.

Saiba mais
Livros
Gideon's Spies: The Secret History of Mossad, Gordon Thomas, Thomas Dunne Book, 1999.
Contra-Ataque, Aaron Klein, Ediouro, 2005.
Revista Aventuras na História 

Descoberta do ouro contribuiu para a formação dos Estados Unidos

Como uma descoberta acidental levou milhares de pessoas à Califórnia e transformou os EUA em um país continental

Carlos Bighetti

A formação dos Estados Unidos, que nasceram da reunião de 13 colônias britânicas banhadas pelo Atlântico, deve muito a dois fatores bem disparatados, que têm em comum uma incrível coincidência: a vitória militar sobre os mexicanos, que se traduziu na forma de novos territórios, e a descoberta de ouro na Califórnia. Na manhã do dia 24 de janeiro de 1848, o carpinteiro James Wilson Marshall e seus funcionários trabalhavam na construção de uma serraria no rancho de John Sutter, na região de Sierra Nevada, no centro da Califórnia. Marshall tinha de desviar um riacho para instalar a serra, movida pela força da água. Quando olhou para o leito lamacento do rio dos Americanos, algo chamou sua atenção: havia uma coisa brilhando ali, à luz do Sol. Era ouro. Naquela manhã, a Califórnia era simplesmente terra de ninguém. Uma semana depois, a guerra travada entre Estados Unidos e México chegaria ao fim - e a Califórnia (mais Arizona, Novo México, Nevada e Utah, no oeste do continente) se transformaria em território americano. O carpinteiro e o dono das terras selaram um pacto para manter segredo sobre a descoberta, que não durou muito tempo. No dia 15 de março, um jornal da cidade portuária de São Francisco, então um vilarejo, revelou a história - que incrivelmente não causou alarde. Na verdade, ouro não era algo desconhecido por ali. "Mexicanos já haviam descoberto ouro no sul da Califórnia mais de dez anos antes", diz o professor de história americana Albert Camarillo, da Universidade Stanford.


Havia nos ermos da região uma daquelas confluências de oportunidade e necessidade que, quando ocorrem, costumam mudar o curso da História. A corrida do ouro transformou-se num rastilho que mexeu com corações e mentes de americanos do leste, a parte civilizada e estável dos EUA (mas a febre também contaminou gente do mundo todo). Era tudo o que o governo americano precisava para confirmar a vocação de país continental e levar pessoas para uma região desértica e pouco habitada, que acabara de ser conquistada aos mexicanos. De certa maneira, a corrida do ouro ajudou a moldar o caráter da nação. Tome-se o exemplo de Samuel Brannan, de São Francisco. Ao saber que havia ouro na Califórnia, montou uma loja para vender bateias (as bacias em que se lava a areia para separar as pepitas de ouro), pás e picaretas. Depois, saiu correndo pelas ruas de São Francisco com uma garrafa supostamente com ouro em pó, aos berros: "Ouro! Ouro! Ouro do rio dos Americanos".

A "campanha" de Brannan antecipou o que hoje chamamos de "marketing viral" - e realmente contaminou a população. O comerciante foi o primeiro exemplo de um tipo de cidadão que se aproveitaria da corrida do ouro sem dar-se ao trabalho de garimpar para ganhar muito dinheiro. Uma bateia que ele havia comprado por 20 centavos de dólar dias antes era vendida por 15 dólares. Em 9 semanas, ele faturou 36 mil dólares (ou 1 milhão de dólares em dinheiro de hoje). Outro empreendedor que se deu bem foi um alfaiate que criou uma calça de tecido grosso com rebites, perfeita para quem encarava o pesado trabalho de mineração. Ele se chamava Jacob Davis e se associou ao imigrante alemão Levi Strauss, que acabou batizando a calça jeans em 1853.

O ouro que brotava na Califórnia era generoso. Nos primeiros meses depois da descoberta, era possível coletar as pepitas diretamente do solo. Bastava agachar e pegar. O metal precioso era encontrado em leitos de rios e em ravinas aos borbotões. O mexicano Antônio Franco Coronel, por exemplo, abandonou o emprego de professor em Los Angeles e em três dias de mineração recolheu 4,2 kg de ouro. "Quem chegou cedo se deu bem", diz Susan Lee Johnson, historiadora da Universidade de Wisconsin.

Em pouco tempo, o rancho de John Sutter foi cercado por milhares de caçadores de fortuna. Barcos que atracavam em São Francisco, a 212 km dali, eram abandonados pelos marinheiros. A própria cidade ficou praticamente vazia. Em agosto de 1848, a notícia chegou a Nova York. Em dezembro, depois de receber um pacote com pepitas, o presidente americano James Polk foi ao Congresso para anunciar o achado. Nos 5 anos que se seguiram à descoberta, 300 mil pessoas do mundo todo correram para a Califórnia e tiraram de suas entranhas 370 toneladas de minério (em dinheiro de hoje, algo como 19,4 bilhões de dólares). Para ter uma ideia da volúpia, os territórios federais americanos costumavam levar décadas para atingir 60 mil habitantes, a cifra populacional para pleitear sua admissão na União como estado. Em 1848, o território federal da Califórnia tinha 14 mil habitantes, com maioria de hispânicos e índios. Apenas dois anos depois, tornou-se estado americano. "A corrida do ouro transformou o perfil dos habitantes da Califórnia", diz o professor Camarillo.

As viagens por terra, as preferidas de quem vinha com a família do leste dos EUA, demoravam meses - não existiam ainda estradas e ferrovias (a distância entre Nova York e São Francisco, 4,1 mil km, é equivalente à do Oiapoque ao Chuí, os pontos extremos do Brasil). Gente que preferia deixar a família e partir sozinho, como o aventureiro Sheldon Shufelt, normalmente ia de navio. Ele embarcou com destino ao Panamá, fez o trajeto por terra - o canal só seria inaugurado no século seguinte - e embarcou em outro barco no Pacífico. A viagem costumava demorar 3 meses. "Deixei aqueles que amo e minha própria vida para trás", escreveu Shufelt em uma carta para seu primo em março de 1850. Ele voltou a Nova York no ano seguinte, apenas para morrer de uma doença tropical que contraiu no Panamá - e sem dinheiro. Shufelt fez parte de uma geração que se tornou conhecida como 49ers (ou forty-niners, hoje o nome do time de futebol americano de São Francisco, em referência a 1849).

As notícias sobre ouro ao alcance da mão ganharam o mundo graças aos marinheiros que aportavam em São Francisco. Logo, chineses, latinos, europeus e até australianos chegaram à região. Os acampamentos dos garimpeiros rapidamente se transformaram em cidades - e muita gente começou a ganhar dinheiro no comércio, com lojas, armazéns e bordéis para atender às necessidades dos que corriam atrás do sonho americano da fortuna rápida. Mas o ouro era um recurso finito.

Numa manobra que usava o medo da anarquia para obter vantagens econômicas, os americanos criaram leis para restringir o acesso de estrangeiros aos veios. "Em 1850, o governo do estado passou a taxar o ouro descoberto por estrangeiros", diz a historiadora Susan Lee Johnson. "Isso limitou o trabalho deles e ajudou a definir que a busca por ouro seria, a partir de então, um privilégio reservado apenas aos cidadãos americanos." O tempo fechou de vez quando milícias de americanos passaram a ameaçar os estrangeiros. O recado era claro: a Califórnia é americana e o ouro pertence aos americanos, de acordo com o professor Camarillo. Como havia muito dinheiro em jogo, os conflitos rapidamente se radicalizaram. "A busca por riqueza foi feia. Desfigurou a natureza, explorou os mexicanos, exterminou tribos indígenas e maltratou chineses", afirma Richard Slotkin, professor de estudos americanos da Universidade Wesleyan.

O avanço sobre a terra foi tão grande e rápido que em 1853 o ouro começou a escassear. Agora só se conseguia extrair o metal com bombas de sucção e esteira mecânica. O tempo do heroísmo individual havia acabado. Para Slotkin, a corrida do ouro "foi uma terrível perda de vidas e empobrecimento de pessoas, em que pouca gente fez fortuna". De fato, James Marshall, que descobriu o ouro, morreu na miséria em 1885. Sutter também não ficou milionário - ele trocou ouro por gado e ovelhas, que acabaram roubadas por garimpeiros, e faliu em 1852. Mas a corrida do ouro deixou seu legado. O dinheiro da mineração impulsionou a região e o afluxo de imigrantes tornou a Califórnia um estado viável. Hoje, o PIB do estado está entre os dez maiores do mundo. O sonho americano continua ali, na forma da indústria do cinema e da informática, que transforma atores e nerds espinhentos em milionários da noite para o dia - tal como ocorreu com alguns dos forty-niners.


O pioneiro

James Marshall tentou a vida como rancheiro na Califórnia, mas perdeu suas ovelhas e a fazenda e passou a trabalhar como carpinteiro. Apesar de ter descoberto o ouro, morreu na miséria.

Cara e coroa

Os EUA cunharam moedas de ouro por causa da abundância do metal. Esta vale para os colecionadores, hoje, cerca de 2 mil dólares

Saiba mais

LIVRO 
The Age of Gold: The California Gold Rush and the New American Dream, H.W. Brands, Anchor, 2003
 Revista Aventuras na História

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O que diz a "profecia dos papas"?

Thaís Sant'Ana

Escrita por são Malaquias, bispo irlandês do século 12, a suposta profecia afirma queFrancisco será o último papa da história. Não é exatamente uma previsão de apocalipse - apenas que o novo líder da Igreja Católica irá governar na "desolação do mundo" e que Roma será destruída.


A profecia é formada por 112 lemas em latim. Cada um descreveria, em ordem, os 112 últimos papas. Mas, como tantas outras profecias, essas frases são vagas e permitem todo tipo de interpretação - podem se referir, por exemplo, a um símbolo do país de origem do papa. Também há dúvidas sobre sua autenticidade: como só foi descoberta em1590, alguns historiadores acreditam que foi escrita nessa época e falsamente datada como sendo de 1139.


LER PARA CRER

Alguns exemplos de previsões feitas por são Malaquias

O perseguido

LEMA - "Aquila Rapax" ("Águia de rapina")

PAPA - Pio 7

PAPADO - De 1800 a 1823

A interpretação que justifica a atribuição do lema é que esse líder viveu durante o domínio militar de Napoleão Bonaparte, cujo símbolo era uma águia imperial.

O crucificado

LEMA - "Crux de Cruce" ("Cruz da cruz")

PAPA - Pio 9

PAPADO - De 1846 a 1878

As cruzes seriam metáforas para as dificuldades que enfrentou. Seu pontificado foi afetado pela Revolução Italiana (1848-1859) e ele ainda morreu enclausurado no Vaticano.

O iluminado

LEMA - "Lumen in Coeluo" ("Luz no céu")

PAPA - Leão 13

PAPADO - De 1878 a 1903

Embora tenha sido um papa rígido, era também um amante das ciências e das artes. Foi considerado um "iluminado" por estar à frente de seu tempo.

O estrelado

LEMA - "Ignis Ardens" ("Estrela ardente")

PAPA - Pio 10

PAPADO - De 1903 a 1914

O lema completo é "Ignis Ardens Funatus de Littore Veniet". O escudo desse papa tinha uma estrela ("Ignis Ardens") e ele mesmo no mar de Veneza ("de Littore Veniet").

O breve

LEMA - "De Medietate Lunae" ("Pelo período de uma Lua")

PAPA - João Paulo 1º

PAPADO - 1978

O italiano morreu de um provável ataque cardíaco 33 dias após assumir o pontificado. Ou seja, ficou no cargo aproximadamente o tempo de um ciclo lunar.

O trabalhador

LEMA - "De Labore Solis Optimo" ("Pelo excelente trabalho do Sol")

PAPA - João Paulo 2º

PAPADO - De 1978 a 2005

Pode se referir ao incansável empenho de João Paulo 2: ele foi o papa que mais viajou ao redor do mundo. Ou ao fato de que nasceu e morreu em dias com eclipse solar.

O penúltimo

LEMA - "Gloria Olivae" ("Glória da oliveira")

PAPA - Bento 16

PAPADO - De 2005 a 2013

Era da Ordem de São Bento, cujo símbolo é uma oliveira. E foi o primeiro papa pertencente à Ordem dos Olivetanos, também conhecidos como beneditinos.

O desolador

LEMA - "Petrus II" ("Pedro 2º")

PAPA - Francisco

PAPADO - A partir de 2013

A profecia dizia que o sucessor de Bento 16 assumiria o nome de Pedro 2º. Ela errou: o novo papa se batizou como Francisco. E é até bom que esteja errada porque o restante do lema dizia: cTu, in desolacione suprema sede. Ecce Petrus Romanus, ultimus Dei veri Pontifex!" A tradução seria algo como: "Na suprema desolação do mundo, reinará Pedro, o Romano, o último papa do Deus verdadeiro!" Ainda segundo são Malaquias, esse papa "alimentará seu rebanho entre muitas turbulências, e então a cidade das sete colinas será destruída e o formidável juiz julgará o seu povo". A cidade seria Roma, onde fica o Vaticano.

Curiosidade: Teólogos contestam classificar o texto como "profecia", pois o termo é exclusivo para previsões que constam na Bíblia

FONTES: Valeriano dos Santos Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP, e Cássia Martins, especialista em profecias do site 2012 A Era de Ouro.
Revista Mundo Estranho

Quando o norte era escravagista

Os estados da região criticavam os sulistas por causa do trabalho forçado, mas em 1770 havia mais negros cativos em Nova York do que na Geórgia


(C) AKG/NEWSCOM/GLOW IMAGES
Trabalhadores negros num porto do rio James, Virgínia

 Anne-Claire Fauquez

O que o mercado da Filadélfia, as igrejas protestantes de Newport, as tavernas de Nova York e os armazéns de Boston tinham em comum? Todos eles eram palcos de leilão de escravos negros. Assim era o cotidiano das colônias ao norte da linha Mason-Dixon, um traçado imaginário de 400 km de comprimento, estabelecido antes da proclamação da independência, em 1776, que serviu, até o século XIX, de fronteira oficial entre o norte e o sul dos EUA.

Os presidentes Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, heróis da guerra contra os britânicos pela independência, compravam, vendiam e empregavam também mão de obra africana. Os primeiros escravos foram trazidos logo após a criação das colônias. Na Nova Inglaterra, apesar do clima severo e do solo árido, Samuel Maverick tornou-se em 1624 o primeiro proprietário de dois escravos, apenas quatro anos depois da chegada dos primeiros colonos ingleses, os pilgrims. Dois anos mais tarde, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais trouxe 11 africanos para Nova Amsterdã.

Quando os ingleses tomaram posse dessa colônia e a rebatizaram de Nova York, em 1664, os escravos representavam 20% da população da cidade. Na Pensilvânia, o colono inglês William Penn autorizou em 1684 a vinda de 150 africanos; ele mesmo possuía alguns em sua propriedade de Pennsbury e disse preferir os escravos aos serviçais brancos, pois podia conservá-los pela vida toda. Durante o século XVIII, a população negra continuou a crescer, chegando a atingir 14% em Nova York, 12% em Nova Jersey e 10% em Rhode Island.

As companhias de comércio e os proprietários de colônias incentivaram a importação oferecendo aos novos colonos dezenas de hectares para cada escravo para compensar a escassez de mão de obra. Os índios, a única força de trabalho presente no continente, foram pouco escravizados por dois motivos: porque foram dizimados pelas doenças que os europeus trouxeram para o Novo Mundo; e porque os europeus tinham a preocupação de manter relações pacíficas com as tribos. Apenas os prisioneiros de guerra vindos da Carolina do Sul e Antilhas eram empregados no norte.


COLEÇÃO PARTICULAR
Nas cidades portuárias do Norte, os escravos executavam trabalhos de construção e carga; no campo, eram empregados em pequenas e grandes lavouras

A grande maioria desses escravos não vinha diretamente da África, mas do Caribe. Geralmente eram os mais velhos ou aqueles com problemas de saúde, que não tinham sido vendidos nos mercados caribenhos ou do sul. Apesar de temidos por sua natureza rebelde e obstinada, eram apreciados por dominar o inglês, conhecer as tarefas que deveriam cumprir e ter imunidade às doenças. Nova York se distinguia pela forte presença de angolanos e congoleses – provenientes dos antigos armazéns portugueses nos quais holandeses se abasteciam – e malgaxes (nativos de Madagascar). Essa particularidade pode ser explicada pela estreita relação entre os comerciantes nova-iorquinos e alguns piratas no oceano Índico.

A imagem do escravo, sob o olhar benevolente de seu senhor, dedicando-se apenas às tarefas domésticas e ao artesanato, longe do exaustivo trabalho no campo, já foi desmentida pela história. Escavações em um cemitério africano descoberto em Nova York, em 1991, revelaram nos esqueletos numerosas deformações físicas decorrentes de atividades penosas. Eles certamente foram obrigados a puxar e a levantar objetos grandes e pesados, carregá-los na cabeça e nos ombros, e a dobrar repetidamente o tronco e os joelhos.

Nas cidades portuárias do norte, os escravos eram responsáveis por diversos trabalhos de construção e carga. A célebre Wall Street era originalmente uma simples paliçada de madeira, construída em parte pelos escravos para proteger a cidade dos ataques indígenas e ingleses. Muitos dos que trabalhavam para os artesãos, açougueiros, padeiros, sapateiros, ferreiros, e carpinteiros tiveram de se adaptar mais rapidamente a fim de dominar a língua e o ofício do senhor.

No campo, os escravos trabalhavam em uma agricultura de subsistência temporária, mais diversificada que a do sul, em pequenas fazendas onde raramente havia mais de cinco cativos. Porém, ao norte da cidade de Nova York, ao longo do rio Hudson, em Long Island, e no condado de Narragansett, ao sul de Rhode Island, existiam grandes áreas que empregavam, como na Virgínia, por volta de 20 escravos. Madeira, cereais, farinha, biscoitos, leite, frutas, legumes, peixe seco, gado e cavalos serviam ao comércio local e eram exportados para a Europa e o Caribe.


UNIVERSIDADE DE VIRGINIA
Nas Antilhas, toda a terra era usada para cultivo do açúcar e os alimentos eram importados do norte dos EUA

As colônias do norte marcaram assim a entrada no comércio triangular e participaram das trocas transatlânticas e intercoloniais. Nas Antilhas, onde toda a terra era usada para o cultivo do “ouro branco”, o açúcar, não havia espaço para plantar alimentos, que deviam ser importados do norte. O açúcar e seus derivados, como o melaço, eram enviados às refinarias na Nova Inglaterra para a produção de rum, bebida usada como moeda de troca na aquisição de novos escravos na África. A partir de 1644, ano da primeira viagem entre Boston e as Antilhas, essas transações continuaram a crescer, fazendo de Newport, Perth Amboy e Nova York os portos e mercados negreiros mais importantes das colônias americanas.

Às vésperas da proclamação da independência, dois terços dos navios americanos envolvidos no tráfico partiam de Rhode Island e 80% das exportações da Nova Inglaterra seguiam para as Antilhas britânicas. Durante a Guerra da Independência, quando os navios não puderam ser enviados para as ilhas, cerca de 15 mil escravos morreram na Jamaica, entre 1780 e 1787. O comércio era muito rentável para os habitantes da região, de mercadores, investidores, seguradores, armadores e capitães até marinheiros, para não falar de muitas profissões indiretamente dependentes desse comércio, como os fabricantes de cordas, ferreiros, carpinteiros e veleiros. As destilarias multiplicaram-se. Havia 12 em Nova York e 22 em Newport. A imprensa também se beneficiou, publicando anúncios de escravos para alugar ou de fugitivos.

A maior parte das elites do norte foi forjada na sua relação com o tráfico. Ezra Stiles, presidente da Universidade de Yale entre 1778 e 1795, era proprietário de escravos; seis prefeitos da Filadélfia eram comerciantes de escravos. Muitos fazendeiros ingleses partiram de Barbados para se estabelecer na colônia de Nova Iorque: Nathaniel e Grissel Sylvester se instalaram em Shelter Island, na ponta leste de Long Island, onde fundaram a fazenda Sylvester Manor; Lewis Morris, por sua vez, adquiriu terras em Nova Jersey e ao norte da cidade de Nova York, às quais deu o nome de Morrisania, hoje um bairro. Quando morreu, em 1691, ele deixou 66 escravos.

Essas colônias eram totalmente marcadas pela escravidão. Do desenvolvimento econômico à estrutura social, passando pela mentalidade dos colonos, que conviviam com essa realidade. Ao contrário das grandes plantações da Carolina do Sul, poucos proprietários na cidade tinham recursos para hospedar sua mão de obra em um alojamento separado. Os escravos eram obrigados a dormir na cozinha, no sótão ou no porão. Privados de intimidade, ficavam sujeitos às vontades de seus donos, que podiam vendê-los a qualquer momento, por falta de trabalho, para aproveitar a oportunidade de uma transação financeira ou para sanar uma dívida.


Reprodução
Anúncios de escravos para alugar ou de fugitivos eram comuns na impresa. Este oferece recompensa pela captura ou perdão ao escravo se ele retornar por vontade própria

À medida que a população negra crescia, as autoridades elaboraram leis para contê-la. A primeira colônia americana a reconhecer legalmente a escravidão foi Massachusetts, em 1641. Seguiram-se muitos regulamentos tendo como objetivo controlar essa população e evitar conspirações e rebeliões. Limitou-se a liberdade de circulação, os escravos foram proibidos de portar armas, eram forçados a carregar um passe quando se afastavam da casa, e a respeitar o toque de recolher. Já os habitantes da cidade foram desencorajados de comercializar bens com eles. Em 1706, o destino dos escravos nova-iorquinos foi selado quando foi decretado que o batismo não podia mudar sua condição de servo, tornando-a assim hereditária, através da mãe. Em caso de infração, as punições iam do açoitamento em praça pública a várias formas de tortura, como o pelourinho, as marcas a ferro quente, mutilação, desmembramento ou venda para o Caribe. Em 2 fevereiro de 1697, um negro condenado por assassinato foi encontrado morto na cela. A cidade decidiu, mesmo assim, infligir a punição ao cadáver. Para que essas leis funcionassem, as autoridades tentavam ganhar o apoio da população condenando brancos e negros livres que entretivessem os escravos (pois isso os incentivaria a mendigar), que os ajudassem a escapar ou lhes oferecessem hospedagem. Mas a implementação dessas leis repressivas e punitivas não foi suficiente para sufocar os impulsos de revolta por parte dos escravos.

Em 1657, um grupo de negros ajudou índios a atear fogo em um edifício em Connecticut; em 1708, no condado de Queens, um escravo índio chamado Sam assassinou a machadadas, com o auxílio de uma mulher negra, a família de seu senhor, William Hallett Jr.; em 7 de abril de 1712, 23 africanos e índios se reuniram para atear fogo a um alpendre e atrair para a armadilha os habitantes que tentavam apagá-lo. Armados com pistolas, facas e machados, eles mataram nove brancos e feriram sete. Cientes do perigo que representavam os escravos, os habitantes de Nova York sucumbiram, em 1741, à paranoia e à histeria, quando passaram a suspeitar, a partir de rumores, que uma conspiração se tramava. O caso terminou com a execução e a deportação de centenas de indivíduos. Dois anos mais tarde, Nova Jersey enfrentou a mesma crise e prendeu 30 suspeitos.

Tribunais foram especialmente criados para julgar os crimes dos escravos. As leis foram reforçadas, dirigidas por sua vez aos negros livres, cujo acesso à propriedade privada foi proibido. As sanções contra eles se tornaram mais pesadas, ameaçava-se escravizá-los novamente, por exemplo, em caso de casamento ou relação sexual com brancos. Vistos como encargos para a sociedade, que temia sua influência, suas condições de emancipação foram restringidas, exigia-se que os senhores pagassem uma caução de 200 libras esterlinas para que a cidade se encarregasse deles, o que poucos proprietários podiam pagar.

O processo de emancipação foi lento e tortuoso, pois os ideais abolicionistas atacavam a forma já instaurada de coexistência entre as duas raças. O estado de Vermont foi o primeiro a abolir a escravidão, em sua constituição de 1777, seguido por Massachusetts e New Hampshire, em 1783. Nos estados do sul da Nova Inglaterra e do centro, o processo foi gradual. Na Pensilvânia, em 1780, depois em Connecticut e Rhode Island, em 1784, a lei libertou os escravos nascidos antes dessas datas; quanto aos que nasceram depois, eles só podiam ser alforriados ao atingir uma determinada idade (24 anos para os homens e 21 para as mulheres, na Pensilvânia). Os dois últimos a legislar em favor da emancipação foram os estados de Nova York, em 1799, e Nova Jersey, em 1804, que só libertaram, e aos poucos, os escravos nascidos após a lei. No primeiro, foi preciso esperar até 1817 para que uma segunda lei alforriasse, a partir de 1827, os escravos nascidos antes de 4 de julho de 1779. Esse truque legislativo possibilitou que os senhores obtivessem uma compensação pela perda de sua propriedade. Ou até mesmo a conservassem, como mostra o caso de Caesar, um escravo da família Nicoll-Sill, de Bethlehem, no condado de Albany. Nascido em 1737, ele morreu em 1852 com a idade de 115 anos, sem saber da existência da lei de 1817 e, assim, serviu seu senhor por seis gerações.


VERMONT HISTORICAL SOCIETY
Primeira página da Constituição de Vermont, 1777: o estado foi o primeiro a decretar o fim da escravidão

Em 1810 havia ainda 27 mil escravos nos estados livres, principalmente em Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia. Se, por um lado, as cidades assistiram ao aumento da população negra livre, a escravidão permaneceu firmemente enraizada no campo. Houve também uma mudança nas tarefas atribuídas aos negros, que perderam o controle do trabalho qualificado e foram relegados a tarefas domésticas ou não qualificadas.

Apesar de no norte a segregação não ser explicitamente codificada – no sul havia as com as chamadas Jim Crow laws, série de decretos e regulamentos promulgados no final do século XIX – lá os negros livres sofreram segregação de fato antes da Guerra de Secessão. Em A democracia na América, Alexis de Tocque-ville disse que “o preconceito racial (lhe) parece mais forte nos estados que aboliram a escravidão do que naqueles onde a escravidão ainda existe, e em nenhum lugar ele se mostra tão intolerante quanto naqueles estados onde a escravidão foi sempre desconhecida”. De fato, casamentos mistos eram desencorajados, os negros eram dissuadidos de votar ou de participar do júri em julgamentos, enquanto o desenvolvimento de escolas e igrejas segregadas era incentivado.

Essa população recém-emancipada incomodava porque usurpava o trabalho dos brancos, chegando a provocar revoltas raciais, como em 1834, na Filadélfia. Por fim, viu-se também o nascimento dos primeiros trabalhos científicos sobre a inferioridade dos negros – os de Samuel G. Morton, por exemplo, alegando uma correlação entre a capacidade intelectual de uma raça e o tamanho do crânio.

Os lados separados pela Guerra Civil foram também cúmplices, pois a mesma escravidão que permitiu ao sul tornar-se o rei do algodão ajudou o norte a crescer e a prosperar.
Revista História Viva