sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A centralização política e o autoritarismo em Angola


A centralização política e o autoritarismo em Angola

Rodrigo de Souza Pain
Doutor do Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA /UFRRJ); Especialista em História da África pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA /UCAM); Bacharel e licenciado em Ciências Sociais e História pela PUC-RIO; Membro do Centro Angolano de Altos Estudos Internacionais (CAAEI). Endereço eletrônico para contato: rodrigo.pain@gmail.com

Introdução

A história recente angolana foi marcada por um longo conflito armado, não proporcionando o desenvolvimento de uma cultura do diálogo com a desconfiança representando um pilar importante nas relações entre pessoas e instituições. As dificuldades que os angolanos enfrentam – principalmente no que diz respeito às restrições de sua atuação, à dificuldade de inserção da sociedade civil[*1] na formulação de políticas públicas, e no desenvolvimento de parcerias junto ao governo – demonstram, em grande medida, a especificidade dos países que passaram por processos de colonização e autoritarismo.

Destarte, os atores não-estatais angolanos vêm se empenhando em direção à valorização da democratização e da sociedade civil enquanto agente transformador do espaço social através de ações fundamentais, não empreendidas até então.

O autoritarismo pelo qual passou a sociedade angolana durante a colonização, comandada pelo Estado colonial português de Salazar e, posteriormente, pelo governo de Partido Único marxista e leninista, está na primeira parte do artigo. A seguir, apresentaremos o papel da sociedade civil na II República em Angola (1992), que trouxe o multipartidarismo, a economia de mercado, e proporcionou maior participação social no país. Por fim, apontaremos os desafios dessa sociedade civil, como a promoção do desenvolvimento social, a busca pela democratização e a descentralização política e administrativa, e a importância da criação de parcerias entre o governo e a sociedade em termos de políticas públicas.

A Sociedade angolana e a construção da paz e do desenvolvimento

A sociedade civil angolana tem uma história que é anterior ao dia da independência do país. Não se pode conceber o onze de novembro de mil novecentos e setenta e cinco como sendo o marco da história do surgimento da sociedade civil organizada em Angola.

O africanista Nelson Pestana não considera nem o nacionalismo moderno angolano surgido com os movimentos de libertação nacional nos anos 1950/60, que conduziu a luta armada como ponto de partida da conformação da sociedade angolana. Para ele, existe uma “história antiga” dessa sociedade que tem ligação imediata com a história do movimento associativo angolano, cujas origens podem ser situadas em meados do século XIX, nas associações culturais e nos movimentos cooperativos e mutualistas que davam corpo à afirmação do direito de cidadania dos africanos nos anos 1930, que se prolongaram ao longo de todo o século XX (PESTANA, 2004. p. 03).

Sobre o associativismo angolano, em meados do século XIX, Freudenthal aponta que, através da imprensa (que surge com significativo impacto na elite da Angola colonial no final do século XIX), as elites participaram das críticas formuladas à administração colonial, reivindicando direitos, denunciando abusos e desencadeando o temor e o ódio dos colonos, cujos interesses estavam em contradição com as disposições legais, nomeadamente no que dizia respeito à imposição do trabalho obrigatório e às duras condições desse trabalho (FREUDENTHAL, 1988. p. 19). Essas elites fizeram ouvir a sua voz através da imprensa, não só em Angola, mas também em Lisboa, reforçando assim as bases de sua identidade.

A trajetória mais recente da sociedade civil angolana surge com o “renascer” desse movimento associativo, com a reafirmação da sua autonomia, da sua legitimidade e de sua intervenção no espaço público, depois que os movimentos de libertação abandonaram esse espaço criado no contexto colonial e se assumiram como partidos-nação, caso que não se restringiu apenas à Angola, mas a muitos movimentos de libertação de outros países colonizados (PESTANA, 2004. p. 03).

Além disso, faz-se necessário afirmar que a configuração do espaço público em Angola foi comandada pelo Estado desde a época colonial[*2]. Desta maneira, os severos limites impostos à participação de atores não-estatais impediram a construção social de uma cultura do diálogo e ignoraram a contribuição de mecanismos promotores de coesão social, particularmente de normas sociais complementares à racionalidade do Estado e do mercado (ELSTER apud ABREU, 2006. p. 28).

O regime português foi um órgão de repressão sistêmica na Metrópole e em suas colônias, concedendo poucos direitos cívicos aos seus próprios cidadãos e, praticamente, nenhum direito válido aos autóctones africanos (DAVIDSON, 2000. p. 184). As alternativas em termos de política ou de método nunca foram temas de debates no seio deste império, mas sim, uma provocação para a polícia política colonial.

Assim, não era significativa a participação da sociedade civil no contexto colonial. Manifestações fizeram-se presentes, principalmente através dos movimentos de libertação nacional, mas, no entanto, a conjuntura autoritária dificultava qualquer tentativa de participação por parte da população.

Já no período posterior à Independência (1975), a aceitação do Estado-nação pós-colonial na África significou a aceitação da partilha e das práticas morais e políticas da administração colonial nas suas dimensões institucionais (DAVIDSON, 2000. p. 161). Isto aponta uma característica importante da Angola: a de que a situação da sociedade civil após a independência consolidou-se com características muito parecidas com o período português, principalmente naquilo que diz respeito ao autoritarismo, marcante naquele momento.

Em relação às análises sobre a “sociedade civil” angolana no período de vigência do sistema de Partido Único na Angola (pós-independência, 1975-1991), podemos constatar reflexões geralmente reducionistas, compelidas em negar qualquer existência de uma autonomia latente, ou exclusivamente legitimadoras, transformando as organizações de massas criadas pelo próprio governo do MPLA (Movimento Popular para Libertação de Angola) – a Organização das Mulheres Angolanas, União Nacional dos Trabalhadores de Angola (UNTA) – em pseudo-representantes dessa “sociedade civil”.

Outro elemento importante a se considerar na busca da compreensão do despertar da sociedade civil angolana é a própria guerra civil, que, nas duas primeiras décadas após a independência, inibiu o desenvolvimento de organizações autônomas atuando no espaço público. Desta forma, toda a tentativa de autonomização da sociedade civil foi também esmagada pela guerra, na medida em que a deslegitimação do poder do Estado não reforçou o poder da sociedade civil. Ao contrário, reforçou um outro poder, armado e de natureza totalitária que, em contrapartida, deu novo fôlego à máquina estatal quando a rejeição ao poder armado contribuiu, para bem ou para mal, para o seu reforço e para o conseqüente enfraquecimento das organizações autônomas.[*3]

Toda essa configuração da história política de Angola é importante para entendermos porque seu espaço público não pode ser concebido como neutro. Esse espaço tem a sua própria história – traumática – que influencia fortemente a capacidade dos angolanos de se organizarem e falarem publicamente (COMERFORD, 2005. p. 03). Munslow (apud COMERFOR, 2005. p. 03) afirma que “durante o domínio colonial reprimiram-se as organizações africanas independentes (...) No meio das fileiras do MPLA, a tentativa de golpe de Estado de Nito Alves[*4] em maio de 1977 teve enormes ramificações para impedir o futuro crescimento da sociedade civil em Angola”.[*5]

Todo o trauma de longos anos de guerra mergulhou a sociedade em uma espécie de “cultura da violência e do medo”, que se reflete na falta de participação, na omissão e na submissão por parte dos angolanos em determinadas situações.

Ainda assim, na conjuntura do Partido Único, o espaço literário angolano, representado na figura da União dos Escritores Angolanos (UEA) – nascida num clima, ao mesmo tempo, de lutas internas no seio do poder político e da ânsia pela (re)estruturação do campo literário e cultural autônomo –, foi o ambiente em que se pôde desfrutar de uma relativa autonomia naquilo que dizia respeito ao controle do espaço público por parte do Estado[*6], constituindo-se como uma fonte de legitimidade independente (PESTANA, 2004. p. 10).

Esta instituição teve caráter fundamental, pois ela liderou este esforço de (re) estruturação do campo literário, definindo-se como uma organização de intelectuais que defendia a revolução, ao mesmo tempo em que reclamava a legitimidade de representar todos os escritores angolanos, pretensão reveladora de uma contradição nos próprios termos e que esconde mal o espírito confederador que ela pretendia desempenhar.

A União dos Escritores Angolanos era o lugar onde evoluía esta contradição entre “autonomia literária” e “controle político”. Ao mesmo tempo em que proporcionou uma relativa autonomia do espaço literário face ao controle do Partido Único e do Estado, permitiu esforços redobrados das elites políticas com vistas à instrumentalização política da literatura e dos escritores[*7] (PESTANA, 2004. p. 11).

Fim do partido único e a busca pela participação social em Angola

Mudanças significativas ocorreram com a transição da República Popular de Angola – de partido único, inspiração socialista e economia planificada – para a República de Angola, em 1991. A passagem para o Estado multipartidário democrático de direito trouxe enormes mudanças no quadro jurídico do país, criando leis importantes, como a Lei das Associações (com seu funcionamento independente do Estado), a Lei dos Partidos Políticos Independentes, a Lei do Direito à Greve, a Lei de Liberdade de Imprensa, entre outras.

A simples observação das designações deste pacote de leis revela como era a ocupação do espaço público pelo Estado durante a Primeira República. A socióloga Cesaltina Abreu (2006. p. 34) aponta, por outro lado, a falta de regulamentação ou a regulamentação tardia dessas leis, observável nas datas de suas respectivas aprovações, que gerou desentendimentos nas suas interpretações.[*8]

Em 1994, três anos após o nascimento da República de Angola, o ativista social angolano Fernando Pacheco (1994. p. 07) afirmava já existir uma sociedade civil no país “como a expressão de forças sociais e econômicas formais e não formais que já demonstravam capacidade de assegurar, pelo menos, a sobrevivência das cidadãs e dos cidadãos”.

Dessa maneira, Pacheco (2004) não tinha dúvida de que existia uma afirmação de sociedade civil angolana, que era constituída por forças sociais (associações informais, redes de parentesco, indivíduos dotados de espírito empreendedor) resultantes de um processo de urbanização recente, forças que já estavam em rápida e permanente transformação porque tinham acesso às diferentes modernidades, não isoladas, e também estavam em permanente contato com o mundo através dos meios de comunicação e das linhas aéreas internacionais; estabeleciam laços múltiplos entre si, construindo redes de autênticos contra-poderes, traduzidos em fatos conhecidos como a organização dos mercados, o estabelecimento de taxas de câmbio, as ações de reivindicações, entre outros (PACHECO, 1994. p. 07).

Em 1996, é criada a Fundação Eduardo dos Santos (FESA), uma instituição com o nome e o patronato do Presidente da República (José Eduardo dos Santos). Organização que diz inspirar-se em instituições similares existentes nos grandes países democráticos e pretender consolidar, como estas, os objetivos de progresso social, cultural e científico em Angola[*9]. A FESA aparece, mais claramente, como uma instituição na qual o Presidente da República intervém como pessoa privada e cujos fundos não são os seus, mas sim os de grandes sociedades internacionais e nacionais[*10].

Essa Fundação pode ser analisada, num primeiro nível, de acordo com Christine Messiant, como um produto e uma coroação do sistema geral de dominação clientelista, além de ser, também, um sinal de tentativa de reforço do poder presidencial[*11]. Basicamente, esta Fundação “retém” dinheiro público que não é seu[*12] para realçar a imagem pessoal de benfeitor do seu “fundador e patrono”, que intervém nisso como pessoa privada, mas que é, também, como não deixa de lembrar a Fundação, “o Presidente da República de Angola e do MPLA, o partido majoritário no poder”, ou seja, Estado.

Para tal, a FESA, como “Estado” angolano, atua na gestão estratégica do petróleo do país, rivalizando com os interesses econômicos estrangeiros e as empresas estatais.

O Presidente angolano “recanaliza”, em direção à sua própria pessoa, uma parte dessas benesses e as redistribui durante a “semana da FESA”[*13], que dá lugar a muita publicidade, votos de felicidades e agradecimentos. A Fundação não funciona apenas com fundos privados. Dentre as realizações ostensivamente inauguradas, algumas provêm do próprio Estado[*14].

A FESA colabora com o “Estado” e os ministérios ou as administrações locais intervêm em complemento da “ação do governo”. Além disso, a FESA apóia também uma série de outras organizações da sociedade civil. Algumas surgem na semana da Fundação. Apóia ainda a Associação de Apoio às Mulheres Rurais, na qual a primeira dama é igualmente presidente. Ela co-financia, com diversos Ministérios, esta organização econômica e apadrinha, ainda em associação com vários Ministérios, aquela fundação de proteção à natureza. Ainda financia ou co-financia e apóia, ocasionalmente, um certo número de associações nacionais, locais e de ordens profissionais (engenheiros, advogados, etc). (Messiant, 1999. p.10)

A FESA, portanto, é uma evidência da privatização do Estado e centralização do poder angolano em relação àquele e da desagregação deste mesmo Estado. Com ela “o Engenheiro José Eduardo dos Santos” assume, de alguma maneira, a “liderança” da sociedade civil angolana, e, sintomaticamente, na posição de “Patrono”, utilizando trunfos incomparáveis de um Presidente da República.

Desta maneira, para além das ações da FESA, a dificuldade em participar do processo político se fazia presente em função do contexto de guerra. No entanto, esses elementos não foram inibidores às manifestações contrárias ao Estado angolano e ao seu papel no conflito armado.

Na afirmação de Comerford, isso fica mais claro. Para ele, o período após o Protocolo de Lusaka (1994)[*15] data o início daquilo que se tornou um engajamento significativo de paz pelas organizações da sociedade civil de Angola na forma de promoção dos direitos humanos (COMERFORD, 2005. p. 145). Iniciativas vindas dessa sociedade rumo a uma paz duradoura, tornaram-se presentes com o fracasso de Lusaka[*16].

Assim, ONGs internacionais e nacionais, igrejas, movimentos comunitários, associações culturais e profissionais, entre outras, solicitaram ao governo angolano e à UNITA que agissem juridicamente, e dentro do quadro constitucional, em defesa dos direitos humanos dos cidadãos angolanos comuns. Este discurso, que partiu do seio da sociedade para as partes integrantes na guerra, constituiu um apelo pela lei e pela ordem. Isto inverte o argumento fundamental segundo o qual o Estado é que vive a solicitar dos cidadãos o respeito à lei e à ordem. Nesse momento, a sociedade civil é quem está a pedir ao Estado angolano e à UNITA que procedam desta forma (COMERFORD, 2005. p.153).

Com a retomada da guerra, em 1998, uma série de documentos é produzida pela sociedade civil. Comerford aponta três importantes documentos: o primeiro, de 1999, chamado “Manifesto para a paz em Angola”, assinado por cento e vinte pessoas incluindo jornalistas, sociólogos, docentes universitários, advogados, músicos, deputados, entre outros. O segundo, o documento de abril de 1999, pertencente a GARP (Grupo Angolano de Reflexão e Paz), que incluía entre os seus membros pessoas ligadas ao campo religioso, ao meio político e aos meios de comunicação. No documento, citavam que “ninguém tem o direito de falar em nome do povo para fazer a guerra civil, seja esta com o argumento de defesa ou resistência. O povo não foi consultado”. Interessante notar que os autores de ambos os movimentos sentiram-se discursando para um grupo mais amplo do que o da sociedade civil ou de atores da esfera pública, falando em nome do povo angolano para aqueles que fizeram a guerra em seu nome (COMEFORD, 2005. p. 153-155). O terceiro foi um apelo feito em 2000, pela MPD (Mulheres Pela Democracia), ONG de mulheres profissionais, como advogadas, jornalistas, empresárias, entre outras, formadas no exterior, com bolsas financiadas pelo governo. Esse documento se aproxima dos outros dois, mas é elaborado a partir da perspectiva das mulheres angolanas. Por isso, transmite-nos o sentimento de tristeza que essas mulheres, como esposas e mães, sofreram ao perder esposos e filhos durante o conflito.

O que vale em todos os documentos, segundo Comerford, é a explicitação de um reconhecimento crescente de que a sociedade civil tinha um papel fundamental na resolução do conflito. Isto refletiu em um sentimento coletivo de que “o problema é nosso”, ausente no passado na busca pela paz (2005. p. 155).

Isso envolve uma série de características específicas da sociedade angolana que devem ser levadas em consideração. Cesaltina Abreu chama-nos a atenção para o fato de que a sociedade civil na África é um campo muito mais contraditório do que pretende o discurso ocidental dominante, pois este privilegia de forma simplista os conflitos entre Estado e sociedade, romantizando a sociedade civil como um baluarte da democracia. As formas de relacionamento de indivíduos e grupos da sociedade civil com o Estado variam da acusação, quando os seus interesses são postos em questão, à aliança e à cooperação, quando para tal têm oportunidades e vantagens. A maioria dos grupos e organizações da sociedade civil na África é dependente da comunidade internacional, tanto para efeitos de financiamento, quanto para a aprovação de seus programas de ação, acabando por incorporar, acriticamente, conceitos e práticas sem a necessária reflexão quanto à sua adequação ao contexto no qual vão ser aplicados (ABREU, 2006. p. 117).

Outro fator fundamental a ser levado em consideração é a dificuldade existente na comunicação entre o governo e a sociedade civil naquilo que se refere ao planejamento de políticas públicas. Embora oficialmente se considere que os novos instrumentos legais (como as novas Leis) tenham sido produzidos em ambientes de consulta entre o Estado e a sociedade, e organizações civis tenham se mobilizado para participar efetivamente dessas consultas, as experiências com os processos de preparação e aprovação do Regulamento das Associações, da Lei de Terras, da Lei do Investimento Estrangeiro, e da própria Lei Constitucional, entre outros, demonstram que as instituições do legislativo e do executivo angolano continuam pouco abertas ao debate de idéias e à incorporação das visões e expectativas de atores não-estatais (ABREU, 2006. p. 34).

Além disso, no próprio bojo da sociedade civil angolana, existe a sensação de que está na própria estrutura do Estado a dificuldade de desenvolver a maior participação das organizações na construção de políticas. O Orçamento Geral do Estado (OGE) de Angola, por exemplo, não repassa nenhum financiamento para o Município, muito menos para a Comuna[*17]. O poder de centralização fica restrito ao Governador da Província (sempre nomeado pelo Presidente da República), que tem muita dificuldade em dialogar com essas organizações. Muitas instituições que trabalham principalmente nas Organizações de Base, com o poder local, também não conseguem ter acesso ao Governador da Província[*18]. O excesso de centralização política e administrativa em Angola é mais um fator que dificulta a participação da sociedade civil e não contribui para a democratização do país.

Dessa maneira, entendemos que, em nível local, existe uma significativa participação e colaboração de grupos e organizações no que tange o diálogo em alguns Conselhos e Fóruns. No entanto, existe uma grande dificuldade quando se trata de poderes do Estado, principalmente nas autoridades que detêm os recursos.

De acordo com Pacheco (2004. p. 79), é freqüente, ainda hoje, atribuir todos os malefícios da vida política, social e econômica ao período fascista-colonial português e ao leninismo (do Partido Único do MPLA), o que, segundo ele, não é verdadeiro. Tanto as práticas fascistas (como o culto ao chefe, por exemplo), como as leninistas (submissão à direção centralizadora), são também complementadas pela matriz cultural Bantu, na qual, tradicionalmente, líderes e chefes não têm o costume de prestarem contas aos liderados[*19], no sentido de dar satisfação, apresentar resultados de uma ação de que se é incumbido, o que hoje têm efeitos perniciosos na sociedade.

Ademais, é importante saber qual será o papel da sociedade civil organizada após as eleições legislativas realizadas em setembro. Não se pode negar a completa desorganização das eleições na capital (que tem a maior parte do eleitorado). O próprio reconhecimento foi a continuação das eleições em Luanda no dia seguinte. Nas províncias, as poucas informações que chegam dão conta de diversas intimidações, muita desorganização (com o abandono dos membros das mesas, e falta de boletins), com o absoluto controle do partido do governo em várias regiões, e a ausência de urnas em áreas tradicionalmente contrárias ao MPLA.

Essa exorbitante vitória causou estranheza em alguns especialistas, mesmo aqueles que culparam a desunião dos partidos de oposição como reflexo do resultado nas urnas, e certo constrangimento para aqueles que viam nas eleições uma chance de maior pluralismo político e equilíbrio no poder legislativo angolano.

Porém, ao analisar mais friamente a conjuntura política interna angolana, percebemos os grandes trunfos que o MPLA tem no cenário político nacional. A hegemonia do aparato estatal (que certamente gerou essa desproporção de recursos financeiros entre o MPLA e os outros partidos), o controle do sistema eleitoral (e aí incluo a Comissão Nacional Eleitoral), e o domínio dos meios de comunicação no país. Deste último, chamo atenção às inúmeras matérias favoráveis, seja pela Televisão Pública Angolana, Jornal de Angola e Rádio Nacional de Angola, as iniciativas do governo e do MPLA.

Portanto, a sociedade civil angolana enfrenta grandes desafios e inúmeras dificuldades. É fundamental fiscalizar as ações do governo, buscar parcerias com as diversas esferas do aparato governamental, lutar pela transparência, fortalecer o combate à pobreza em seus diversos domínios e promover a participação social nessa Angola tão rica em recursos naturais, mas tão pobre em desenvolvimento humano.

Considerações finais

São grandes os desafios da sociedade civil organizada nesse contexto de paz. A busca pela democratização e pelo fortalecimento das frágeis instituições democráticas parece-nos os elementos mais importantes para este feito. Para isso, torna-se fundamental a valorização das culturas angolanas. A sociedade civil angolana deve pautar-se na busca de políticas que respeitem os variados aspectos de sua cultura, para que não seja forjada uma organização civil artificial, e baseada em valores ocidentais, distanciando-se das realidades daquela região.

O governo, por sua vez, deve buscar um maior apoio da sociedade angolana para desenvolver melhor sua política. Com baixíssimo índice de desenvolvimento humano, o governo angolano não consegue promover uma assistência mínima para sua população. Por isso, é fundamental a parceria com a sociedade civil, que, muitas vezes, tem um maior conhecimento da região ou do contexto do que o próprio governo.

Acredito que a melhoria das condições de sobrevivência da população e o combate à pobreza no país só acontecerão como resultado de um trabalho conjunto entre o governo e a sociedade civil, sendo fundamental superar todos os constrangimentos que ainda persistem, como o autoritarismo e a centralização política e administrativa.

Referências Bibliográficas:

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PESTANA, Nelson. As dinâmicas da sociedade civil em Angola. Centro de Estudos africanos. Lisboa: ISCTE, 2004.
PUTNAM, Robert. Making democracy work: civic traditions in modern Italy. Princeton University Press, 1993.

Angola está dividida em 18 Províncias, 164 Municípios e 578 Comunas. Um Governador chefia cada Província e administradores chefiam os níveis inferiores do poder autárquico. O Presidente nomeia todos estes funcionários. Apenas o Governador da Província recebe parte do Orçamento Geral do Estado, o que demonstra grande centralização política e financeira.

Revista Histórica

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