segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

De Império a Nação


De Império a Nação
Herdeiro das tradições imperiais, Bonifácio moldou o novo país desafiando o maior dilema da época: a escravidão
Ana Rosa Cloclet da Silva

O Brasil fez-se Império antes de se fazer nação. Este é o ponto de partida para se compreender a transição do que até 1822 fora a América portuguesa para um corpo político autônomo. E as idéias de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) ilustram perfeitamente esse processo.
Ele era um legítimo herdeiro do reformismo ilustrado português. Depois de cursar as faculdades de Leis e Filosofia em Coimbra, ingressou em 1789, como sócio correspondente, na Academia Real das Ciências de Lisboa. Esta era a principal instância de reunião da intelectualidade luso-brasileira, articulando teoria e prática para sustentar a monarquia absolutista e a coesão imperial.
As idéias sobre a criação de um grande império na América portuguesa não eram novas, remontando aos cronistas lusitanos dos séculos XVI e XVII. A diferença, no início do século XVIII, é sua inspiração. Elas nascem de uma reflexão acerca da fragilidade de Portugal no jogo de poder entre as potências européias. As conquistas ultramarinas deixavam de ser vistas como meros “acessórios” de Portugal, passando a ser garantias de sua conservação – conforme instruía o estadista D. Luís da Cunha (1662-1740) –, com destaque para “as do Brasil”, desde então concebido como verdadeiro esteio da monarquia, dada a exuberância de seu potencial natural. A convicção de que “sem o Brasil, Portugal é uma insignificante potência” inspirou a Coroa portuguesa a criar um novo modelo de exploração colonial, no qual o desenvolvimento da Metrópole passava a ser concebido de modo articulado ao da Colônia.

A centralidade do Brasil no sistema imperial estava clara para José Bonifácio. Como homem público – desde 1801 ocupou diversos cargos administrativos em Portugal –, propôs políticas tanto para a Metrópole quanto para a Colônia. Defendia que ambas tinham “interesses iguais e recíprocos”, de forma que “se a Colônia se empobrece sofre a Metrópole, e vice-versa. É uma Lei da Natureza”. É a partir da lógica imperial, portanto, que busca soluções para o florescimento da nação. Já em 1797, sugeria a criação de sociedades econômicas e a reforma do ensino em várias províncias de Portugal e do Brasil. A intenção era formar uma elite pensante que, atuando junto ao rei, liderasse a modernização da sociedade e servisse de “pêndulo político ao Estado”, barrando tanto as tendências democráticas, consideradas revolucionárias – como mostrava o recente exemplo francês – quanto as despóticas.

A mudança do referencial geopolítico de José Bonifácio ocorreu em 1808, após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro. Ele apoiou a medida, convencido de que, se “o Rei não passasse ao Brasil, perdia-se de certo este ou pelo ataque dos ingleses, ou pelo levantamento dos colonos”. Pensando nos “grandes destinos” reservados ao “seu Brasil”, preocupava-se com as disputas das elites – segundo ele, formadas por homens “ignorantes, vadios, vis, intrigantes, devassos”, movidos pelo sentimento de “liberdade individual, e não (...) a pública ou política”. A principal questão a solucionar relacionava-se à situação do índio e do negro, que impedia a constituição de “uma Nação homogênea e igualmente feliz”.

Quanto aos índios, cabia ao Estado o papel de agente “civilizador”, responsável por instruí-los e emancipá-los. Para tanto, recomendava o “casamento de Portugueses e mulatos com Índios”, a atribuição de um “prêmio pecuniário a todo Cidadão Brasileiro ou branco, ou de cor, que se casar com Índia-gentia” e a domesticação dos índios bravos pelo estímulo ao comércio interno. Em todos estes casos, a intenção é integrar o índio à sociedade brasileira como “ente econômico” – fosse como “caçador”, “pastor” ou “lavrador”.

A escravidão fundava um problema político ainda mais amplo, representando uma ameaça à própria preservação da porção americana do Império. Era preciso eliminar a condição degradada dos negros, os quais, como escravos, transformavam-se em “entes vis e corrompidos”. Sob influência do publicista francês Dominique De Pradt (1759-1837) — segundo o qual as “Colônias que precisam de Pretos perdem-se pelo aumento desta povoação estranha que recebem em seu seio” —, Bonifácio temia a repetição no Brasil da sangrenta revolta de escravos que resultou na independência do Haiti (1804). Segundo ele, contribuía para isso a peculiar situação do Rio de Janeiro, referido como a “Nova Guiné”, que tinha na escravatura o “inimigo político e moral mais cruel” do Império.

Desse modo, propunha leis “regulativas” da escravidão, destinadas a abrandar o tratamento dos negros, aprimorar seus usos e costumes e, por meio do estímulo aos casamentos entre brancos, índios e negros, promover sua lenta assimilação ao corpo social. Aqui, o Estado assumiria um papel interventivo na esfera privada do poder, suavizando as relações entre senhores e escravos e distribuindo a estes últimos terras para o cultivo, e também dando educação física e moral, de forma a torná-los aptos a viver em liberdade.

Estas idéias surpreendem por vislumbrarem a miscigenação como um dos principais métodos a serem empregados no caminho da civilização. José Bonifácio acreditava na vitalidade social promovida pela “mistura de sangue” — pois “tem-se notado que a população mestiça é muito mais ativa” —, e era com tal propósito que defendia a colonização do país com imigrantes estrangeiros. Principalmente os europeus, pois assim a raça se “branquearia”, facilitando a assimilação social do liberto. Recomendava, ainda, uma especial atenção aos “Mulatos”, que, apesar de “soberbos e revoltosos”, “são muito habilidosos”.

A questão da escravidão remetia também ao problema da estrutura fundiária do país, pois permitia a existência de grandes extensões de terras com baixa produtividade, ao barrar a introdução de novas técnicas. Assim, defendia a redistribuição das terras em pequenas e médias propriedades, com a condição de que “os donos sigam novo método de cultura à européia”.

Transferido para a Corte no Rio de Janeiro em 1819, José Bonifácio reformulou seus projetos transitando progressivamente das condições da unidade imperial para as da integridade nacional. No calor dos debates que ocorreram após o regresso do rei para Portugal, em abril de 1821, redigiu as Lembranças e Apontamentos para os deputados paulistas eleitos para comporem as Cortes instaladas em Lisboa. O documento reflete a necessidade de leis conciliadoras dos interesses dos dois reinos, mas também de uma legislação particular para o Brasil.

Na sua essência, o programa paulista resgata o projeto de “Império federativo” formulado em 1796 por um de seus principais interlocutores, o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Tal modelo se justificava pela necessidade de preservação da “unidade” a partir de uma situação de “diversidade” — de natureza, clima e povos — entre as partes. A coesão projetada em 1822 fundava-se não mais numa suposta “reciprocidade de interesses” entre Metrópole e Colônia, mas na completa “paridade de direitos” entre os dois reinos, materializada na Carta Constitucional, cujas bases foram elaboradas pelas cortes lisboetas em 1821.

Com a Independência, José Bonifácio passaria a encaminhar suas reformas a partir da nova condição de ministro do Reino e Estrangeiros. Entretanto, permanecia o dilema da escravidão, que afetava tanto a política interna quanto a externa. Além de contrapor-se à imperativa criação de uma identidade nacional, a existência da escravidão chocava-se com as bases de um “Império Constitucional”: economia de livre mercado, desenvolvimento industrial e agrícola, construção do cidadão civilizado e, finalmente, o reconhecimento externo da nação soberana (condicionado à pressão inglesa pela abolição do tráfico).

Não se podia ignorar que o braço escravo era um suporte fundamental da economia nacional. A nação carecia de um tempo para sua substituição pelo imigrante, pelo índio civilizado e pelo próprio ex-cativo. Daí a preocupação de Bonifácio em redigir uma Representação sobre a Escravatura, na qual sistematiza suas impressões sobre o tema e encaminha uma proposta de “abolição gradual do tráfico”.

A representação não chegou a ser apresentada à Assembléia Constituinte, pois esta foi dissolvida em novembro de 1823, seguida pela deportação de José Bonifácio. O texto foi revisto durante seus anos de exílio em Bordéus (1823-1829) e finalmente publicado em Paris em 1825.

Nesta fase, afastado da vida pública e da terra natal, ele refletiria ainda sobre os rumos tomados pela consolidação da independência brasileira. A fragilidade do consenso político alinhavado em 1822 comprometia a integridade imperial e o projeto de Estado dinástico. Ambos, reconhecia, eram fortemente dependentes de práticas políticas arcaicas – autoritárias e centralistas – e da necessária composição com os interesses de proprietários, que inviabilizavam qualquer avanço no sentido das reformas estruturais projetadas.

A obra da Independência permanecia assim inacabada, pois mesmo com a volta do “partido brasileiro” ao poder e a abdicação de D. Pedro I em 1831, a construção de uma nação nos moldes pensados por José Bonifácio exigiria a difícil tarefa de transcender os interesses das elites, procedendo à abolição do tráfico africano, à reforma do latifúndio, à recusa da ingerência estrangeira nos negócios internos do país.

À altura de seus últimos dias, em 1838, já estava clara para Bonifácio a frustração de seu projeto. Em contraposição ao ideal de civilização única para um povo homogêneo, o que a realidade lhe apresentava era o conflito de interesses entre classes, cores e etnias, em um corpo político instável e sem direção definida. Realidade à qual aludia em seu leito de morte, quando, fixando a colcha de retalhos que cobria seu corpo, lamentava ainda uma última vez: “O que afeia estes bordados é apenas a irregularidade do desenho...”.

Ana Rosa Cloclet da Silva é doutora em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e autora dos livros Construção da Nação e Escravidão no Pensamento de José Bonifácio: 1783-1823 (Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória, 1999) e Inventando a Nação. Intelectuais ilustrados e Estadistas luso-brasileiros na Crise do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec, 2006.

SAIBA MAIS:

BARRETO, Vicente. Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

SOUSA, Octávio Tarqüínio de. História dos fundadores do Império do Brasil – José Bonifácio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1872, vol. 1.

VARELA, Alex Gonçalves. “Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português”. Análise das memórias científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819). São Paulo: Annablume, 2006.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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