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domingo, 21 de agosto de 2011

Neoliberalismo e reforma trabalhista


José Dari Krein
O tema da reforma sindical e trabalhista está na agenda brasileira desde o processo de redemocratização, com o surgimento do "novo sindicalismo", mas com significados distintos em cada momento histórico, dependendo dos interesses em jogo e da correlação de forças entre os agentes sociais. Apesar das transformações ocorridas, elementos centrais da estrutura sindical herdada nos anos 1930-1940 permanecem em vigor, especialmente a unicidade sindical e as contribuições sindicais compulsórias. Essa premissa significa assumir uma posição no debate acadêmico, pois alguns autores consideram que esses aspectos são apenas formais, de modo que não caberia mais falar em corporativismo. A unicidade já não vigoraria na prática, de modo que preferem falar em modelo legislado-pluralista (CARDOSO, 1997; 2001; NORONHA, 1999). Mas a questão fica mais embaralhada a partir dos anos 1990, pois certas bandeiras são apropriadas pelos neoliberais e a elas é dado um novo significado, tais como a defesa da liberdade e da autonomia sindicais e da valorização da contratação coletiva. Além disso, especialmente após 1994, a ênfase da reforma é dada à questão trabalhista, sob a hegemonia de um discurso liberalizante e conservador, em que ela é traduzida na proposta de flexibilização dos direitos como condição para superar os problemas existentes no mercado de trabalho brasileiro.

Essa é a temática do livro de Andréia Galvão, Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil1, constituindo-se em uma referência para quem quer compreender a evolução do debate sobre o tema, bem como as mudanças na regulação do trabalho e as estratégias adotadas pelos agentes sociais. Independentemente da concordância ou não com as posições adotadas pela autora, é uma referência por apresentar um texto bem fundamentado, com consistência teórica e com uma ampla base empírica (documentos, resoluções, intervenções em debates públicos e na imprensa etc.). Contém um excepcional levantamento de informações e de posições acadêmicas dos agentes sociais sobre todas as iniciativas e debates englobando o tema da reforma sindical e trabalhista entre 1990 e 2002, especialmente em relação às alterações da estrutura sindical, da normatização da relação de emprego e do papel do Estado na sociedade e na regulação do trabalho. Apesar de a pesquisa ir até 2002, é um estudo que traz muitos elementos para compreender as dificuldades para a realização de uma reforma da estrutura sindical no Brasil, contribuindo para entender as razões que levaram à fracassada iniciativa de o Fórum Nacional do Trabalho, no governo Lula, de viabilizar uma reforma sindical no Brasil. Aliás, uma das questões que a autora propõe-se a discutir é exatamente as razões que deixaram a reforma sindical em segundo plano.

Além da quantidade e do rigor das informações que ajudam a compreender a evolução das iniciativas, o livro traz como contribuição à reflexão uma análise dos diferentes interesses e orientações dos principais agentes sociais (de empregadores e trabalhadores) em cada conjuntura concreta, evidenciando a complexidade de um "processo constituído de múltiplos pólos aglutinadores" (BOITO Jr., 2007, p. 17.). Nesse sentido, evidencia como o posicionamento dos agentes foi alterando-se nos movimentos conjunturais, em função das correlações de força. O texto mostra, ainda, como o neoliberalismo influencia não só o mundo do trabalho (desemprego, precarização, perda de direitos, adversidades à ação coletiva, mobilizações), mas também o posicionamento das entidades de representação dos trabalhadores.

Uma das principais teses do livro é que a conformação da regulação do trabalho e as mudanças no discurso e/ou na prática dos agentes sociais têm relação com os projetos (inclusive sindical) em disputa na sociedade, dada pela correlação de força entre capital e trabalho e entre frações de classe. Assim, no primeiro plano, a autora explica, especialmente quando se consolida a hegemonia neoliberal, uma agenda mais conservadora na discussão da reforma trabalhista, deixando em segundo plano a questão da reforma sindical. Ou seja, a agenda da flexibilização2 das relações de trabalho, a partir do Plano Real (1994), pautará as principais iniciativas no campo legislativo e mesmo na normatização autônoma entre capital e trabalho, por meio das negociações coletivas. "[...] A reforma trabalhista não constitui uma demanda nova, nem é prerrogativa dos neoliberais: a definição dos contornos da reforma trabalhista varia conforme o agente social considerado o contexto em questão" (GALVÃO, 2007, p. 101).

Assim, a partir principalmente de Boito Jr. (1999) e Saes (2001), a autora destaca que a consolidação do liberalismo não é meramente fruto do poder do dinheiro e da mídia, mas constitui-se como um projeto que foi impulsionado pela burguesia - com destacado papel da indústria paulista na sua consagração - e encontra respaldo junto a uma parcela de trabalhadores e de organizações sindicais. Por exemplo, o discurso da privatização e da reforma do Estado encontra respaldo em parte da sociedade, dada a baixa qualidade do serviço público, assim como a visão de que a flexibilização - que significa reduzir o custo do trabalho eliminando direitos e proteção social - pode contribuir para a geração de ocupações e acabar com "privilégios" existentes nos setores mais organizados, especialmente nas estatais e no serviço público. Esse ponto de vista é respaldado academicamente por Pastore (1994), que, utilizando como referência Reginaldo Moraes (2001), compreende o neoliberalismo como uma ideologia e um conjunto de políticas que tendem a fragilizar o Estado e a fortalecer o mercado como instrumento de organização da vida em sociedade. Mas é curioso notar que o discurso do "Estado mínimo" não é praticado em relação à imposição das reformas liberalizantes e nem para reprimir os movimentos de contestação. Muitas das reformas só se viabilizaram pelo poder dessa instituição chamada "Estado". Portanto, a ideologia neoliberal, ao convencer e atrair parte dos trabalhadores, contribui também para neutralizar as ações de resistências, apesar da existência destas, como é indicado no livro. Essa análise sobre o neoliberalismo, que constitui o tema do capítulo 1, assim como em toda a referência teórica do livro, está respaldada em uma vasta bibliografia de autores de tradição marxista.

Como destacado acima, ao mesmo tempo a autora analisa como o neoliberalismo influencia as estratégias dos diferentes agentes sociais. Por exemplo, "[...] há uma disputa permanente pelo significado e pelo alcance da lei do contrato. A lei é vista ora como espaço de resistência, ora como instrumento de controle; o contrato, como reino da liberdade e como fonte de prejuízo. Como sugerimos anteriormente, a luta de classes faz com que as classes em disputa se apoderem dos discursos de oponentes, atribuindo-lhe novos conteúdos em conjunturas distintas" (GALVÃO, 2007, p. 196).

Ao falar em conjunturas distintas, a autora destaca dois períodos distintos, antes e depois do Plano Real. No capítulo 2, analisa as iniciativas e os projetos de mudanças discutidos entre 1990 e 1995, quando houve um amplo debate com a criação de fóruns e a elaboração de propostas por parte de diferentes agentes sociais, especialmente no momento da constituição do Fórum Nacional de Relações de Trabalho e Contrato Coletivo de Trabalho e discute as razões de por que mesmo projetos tímidos - pois, na sua avaliação, não colocavam em questão o cerne da estrutura corporativista que é a unicidade sindical - não apresentam efetividade. Em síntese, destaca duas razões principais para isso:

1) em primeiro lugar, apesar de um aparente (e falso) consenso sobre a necessidade de realizar uma reforma sindical e trabalhista, as posições dos agentes apresentavam grandes diferenças de projetos entre si. No campo social do trabalho, somente a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), das instituições analisadas, tinha uma clara posição pela manutenção do sistema corporativo. As duas outras centrais (Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Força Sindical (FS)) tinham uma posição de defesa da liberdade e da autonomia sindicais e do fim das contribuições compulsórias. Mas a autora procura evidenciar as contradições (1) no próprio discurso - especialmente na discussão das propostas apresentadas pelos governantes - em diferentes conjunturas e (2) entre a prática e o discurso, em que táticas equivocadas acabam fortalecendo a estrutura oficial. Além disso, destaca a falta de consenso no interior das centrais, especialmente na CUT, que tem tendências internas constituídas. Assim, o leitor encontra uma análise crítica sobre a CUT, especialmente direcionada para a sua corrente majoritária;

2) em segundo lugar, há uma progressiva acomodação e resignação dos líderes dos trabalhadores à estrutura oficial.

No campo do capital, as posições são hesitantes e também contraditórias em relação à reforma da estrutura sindical. O discurso da liberdade sindical e do fim das contribuições é defendido somente por algumas lideranças da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), especialmente dos setores mais estruturados economicamente. Mas não há registro nem de pressão sistemática nem de apresentação de um projeto de reforma sindical. O que há de consensual no setor patronal é a necessidade de uma reforma em que prevaleça o negociado sobre o legislado, de flexibilização dos direitos trabalhistas, de posição contra qualquer "engessamento das normas de proteção ao trabalho" (idem, p. 174). Assim, a reforma pretendida é a trabalhista, em que a relação de emprego possa ser adaptada à lógica de competitividade das empresas.

A partir do Plano Real torna-se hegemônica essa visão empresarial. No capítulo 3, há uma descrição e uma análise das principais medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que ocorreram com a perspectiva de promover uma flexibilização das relações de trabalho, de reduzir a proteção social e de redefinir o papel do Estado na regulação do trabalho. É o período de consolidação do neoliberalismo no Brasil. A análise, como dito anteriormente, compreende o posicionamento dos agentes sociais, em que predominam novamente movimentos ambíguos. No campo social do trabalho, destaca a posição histórica da Força Sindical pelo seu pragmatismo, em geral apoiando reformas de flexibilização, mas às vezes desenvolvendo ações conjuntas com outras centrais contra o desemprego ou contra a substituição do tempo de serviço pelo de contribuição na reforma da Previdência Social. Em relação à CUT, a autora destaca as suas ambigüidades: por um lado, por exemplo, reconhece as iniciativas de resistência ao neoliberalismo, empreendidas no período; por outro lado, na sua visão, uma estratégia de ação propositiva no final a conduz a uma posição que privilegia a negociação institucional em detrimento das mobilizações na base. Também leva a uma redução do escopo das demandas "realistas" para aquilo que é possível ser negociado no âmbito permitido pelo contexto (ou seja, no marco aceitável pelo capital). Isso levou a CUT a aceitar, na opinião da autora, algumas medidas flexibilizadoras, apesar de manter um discurso crítico à flexibilização.

No capítulo 4, a autora enumera e discute as propostas em debate entre 1995 e 2002 na estrutura sindical, mostrando que o ímpeto pela reforma foi perdendo espaço entre os agentes sociais. Ao explicar a perenidade da estrutura oficial, Galvão destaca os seguintes fatores. Em primeiro lugar, o setor empresarial não demonstra interesse em reformar essa estrutura. Em segundo lugar, cresce a resistência contra a reforma, materializada na contraposição às propostas apresentadas pelo governo (reforma sindical de 1998 (Proposta de Emenda Constitucional n. 623) e a prevalência do negociado sobre o legislado). Com isso ganha força o argumento de que a estrutura oficial atende a "interesses materiais dos sindicatos" ao garantir condições de sua sobrevivência (idem, p. 327), em um contexto de ataque aos direitos e à organização coletiva dos trabalhadores. Assim, a autora identifica, mesmo nos grupos mais à esquerda, a prevalência de uma posição contrária a qualquer reforma, sob a justificativa de que o contexto econômico e político é desfavorável aos trabalhadores. Como o movimento sindical não apresenta nenhuma proposta de reforma fica em uma posição defensiva contra a ofensiva do governo de desarticular os direitos e as instituições públicas na área do trabalho. Portanto, cresce uma posição de defesa das salvaguardas garantidas pela estrutura atual, pois ao menos ela garante o funcionamento do sindicato. A autora também deixa entender que os trabalhadores não perceberam que a estrutura oficial pode cumprir um importante papel na dominação de classe, o que dificulta qualquer mudança. Diríamos que a autora também destaca o papel que a estrutura oficial desempenha na dominação de classe, contribuindo para a flexibilização das relações de trabalho na medida em que possibilita a sobrevivência de lideranças comprometidas com o capital e favoráveis ao seu projeto de reforma trabalhista.

Nesse sentido, a autora manifesta claramente no livro sua posição favorável à liberdade sindical, inclusive debatendo com quem defende a unicidade. Como bem destaca Armando Boito Jr., no "Prefácio", a obra traz a boa polêmica sem fazer "concessão à diplomacia acadêmica" (BOITO JR., 2007, p. 17). O leitor encontrará um texto posicionado e bem fundamentado, herdeira de uma literatura crítica à estrutura sindical corporativa, especialmente do princípio da unicidade sindical, buscando em todo momento verificar o jogo de interesses e os projetos em disputa pelos diferentes agentes sociais.

Mas algumas questões suscitadas no livro continuam em debate. Apesar da importante contribuição da autora, a discussão as resistências a reformas profundas na estrutura sindical ainda consumirá muita tinta, especialmente com a progressiva perda de adeptos, em todas as correntes sindicais, da defesa de sua reformulação. O dissenso a respeito do caráter da reforma parece aprofundar-se. Por exemplo, como garantir a sustentação financeira das entidades sindicais em um mercado de trabalho segmentado e heterogêneo, especialmente em setores mais frágeis economicamente? Quais as possibilidades de organização sindical em um país continental e com uma classe trabalhadora absolutamente heterogênea, em que se aprofunda a fragmentação e deixa de fora da base de representação das atuais instituições sindicais a maioria dos trabalhadores? Na mesma direção, qual o papel do Estado na regulação do trabalho, dadas as especificidades do mercado de trabalho brasileiro? Também há a necessidade de continuar a análise sobre o significado das diferentes estratégias sindicais no período do neoliberalismo, assim como não se apresenta como questão a análise das experiências de organização fora da estrutura sindical oficial. Enfim, está em aberto o debate sobre a natureza da crise do sindicalismo brasileiro a partir dos anos 1990, como parte de uma crise mais geral da esquerda e das formas clássicas de organização. Talvez não seja apenas uma questão ideológica, pois a fragilização e a perda de capacidade de mobilização é um fenômeno generalizado, inclusive nos agrupamentos considerados mais à esquerda do sindicalismo.

Por último, mais importante que concordar com as posições é reconhecer o mérito do trabalho acadêmico, que o livro tem de sobra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOITO JR., A. 1999. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo : Xamã
_____. 2007. Prefácio. In : GALVÃO, A. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro : Revan.
CARDOSO, A. 1997. O sindicalismo corporativo não é mais o mesmo. Novos Estudos, São Paulo, n. 48, p. 97-119, jul.
_____. 2001. Direito do trabalho e relações de classe no Brasil contemporâneo. Artigo apresentado no XXV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado entre 16 e 20 de outubro, em Caxambu (Minas Gerais). Digit.
KREIN, J. D. 2007. As tendências recentes na relação de emprego no Brasil : 1990-2005. Campinas. Tese (Doutorado em Economia Social e do Trabalho). Universidade Estadual de Campinas.
MORAES, R. 2001. Neoliberalismo : de onde vem, para onde vai ? São Paulo : Senac.
NORONHA, E. 1999. Entre a lei e a arbitrariedade : mercados e relações de trabalho no Brasil. São Paulo : LTr.
PASTORE, J. 1994. A flexibilidade do trabalho. São Paulo : LTr.
SAES, D. 2001. República do capital. São Paulo : Boitempo.

José Dari Krein (dari@eco.unicamp.br) é Doutor em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Instituto de Economia da mesma instituição.
1 O livro é uma versão revisada de sua tese de doutoramento, defendida em 2003, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
2 Em concordância com a autora, pode-se verificar que houve mais uma agenda de flexibilização do que de desregulamentação, pois a análise do conjunto das iniciativas mostra que foi a introduzido uma série de medidas que amplia o caráter flexível da relação de emprego no Brasil, tais como o Programa de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), o banco de horas, novas formas de contratação, comissões de conciliação prévias etc. É mais e não menos lei. O problema é o conteúdo dessa legislação. É verdade que houve supressão de direitos, especialmente na reforma da Previdência Social e na reforma administrativa (para servidores públicos). Mas também é um fato que, apesar da extensa legislação, nunca constituímos no país uma regulação pública do trabalho (KREIN, 2007).

Revista de Sociologia e Política

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Neoliberalismo


Neoliberalismo é um termo ao qual se referem políticas liberais adotadas por governos nacionais desde fins do século XX, inspiradas no liberalismo clássico.

Índice

1 A doutrina neoliberal

2 Governos neoliberais

3 As origens

4 A crise do liberalismo e o Estado de Bem-Estar Social

5 Liberalismo com nova roupagem: o neoliberalismo

6 Movimentos antineoliberalismo

A doutrina neoliberal

O neoliberalismo nada mais é que uma retomada, a partir dos anos 1970, do liberalismo clássico que havia sido deixado de lado no mundo ]] e outras formas de intervencionismo econômico. Muitos defensores de tal doutrina rejeitam o termo neoliberal, sendo o termo mais usado pelos críticos e principalmente pela Esquerda. Os neoliberais preferem simplesmente o termo liberal, pois seguem o liberalismo clássico.

Constatando as falhas inerentes à atividade governamental, que em última instância poderia levar a governos autocráticos, tal corrente de pensamento político que defende a instituição de um sistema de governo em que o indivíduo tenha mais importância do que o Estado (minarquia), sob o argumento de que quanto menor a participação do Estado na economia, maior é o poder dos indivíduos e mais rapidamente a sociedade pode se desenvolver e progredir, para o bem dos cidadãos. Essa assertiva é corroborada pelo fato de os países de maior desenvolvimento econômico serem aqueles em que há menor ingerência estatal na vida privada.

Tal concepção se caracteriza pela valorização da competição entre as pessoas, a permissão de todos para venderem o que produzem, num mercado mais amplo possível; a sociedade que decide o seu nível de consumo ou quanto poupa para a sua velhice; da família que se preocupa com sua a saúde escolhendo os seus próprios médicos ou os professores do seus filhos; além da competição econômica em escala mundial como elementos reguladores e promotores de eficiência.

A filosofia neoliberal acredita que a desigualdade é uma consequência da falta de liberdade que o Estado impõe, ao retirar uma percentagem considerável do vencimento sob a forma de impostos para custear o Estado. Isso acontece, por exemplo, no caso de um jovem que precisa contribuir desde o início de sua carreira para a Segurança Social. Segundo a doutrina liberal, a opção de decidir se poupa ou não para a aposentadoria futura caberia ao próprio indivíduo.

A doutrina Neoliberal prega ainda o estímulo da economia por meio da criação de empresas privadas, apoiando também a redução da tributação sobre a renda, além da respectiva carga fiscal.

Governos neoliberais

Exemplos de governos neoliberais são difíceis de serem apontados, devido ao fato de o termo ser usado de maneira pejorativa. Casos de governos amplamente classificados como neoliberais no mundo são o de Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (EUA). O governo de Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, (de 1994 a 2002), foi acusado erroneamente por uma parcela da esquerda de ter ideais neoliberais. Os liberais refutam esta afirmação, pois tal governo aumentou a carga tributária do país, tomou atitudes intervencionistas na economia, além de instituir programas assistencialistas de caráter social-democrata (tais programas foram mantidos e ampliados pelo sucessor Lula) entre outras atitudes claramente não-liberais.

O fato de Fernando Henrique Cardoso ser membro de um partido social-democrata (PSDB) e já ter declarado várias vezes que não é liberal (ou, mais explicitamente, ter se declarado um "socialista") fortalece tal posição. Por outro lado, é certo que Fernando Henrique Cardoso e as forças que o apoiaram (incluindo o conservador PFL, parte do PMDB e outros) implementaram uma política econômica com características do liberalismo econômico, como o programa de privatizações - tendo sido classificado, por este motivo, como sendo um governo "neoliberal". De qualquer modo, tais políticas pouco diferem daquelas recentemente adotadas por partidos de esquerda e centro-esquerda europeus como o Partido Trabalhista britânico (com Tony Blair e a "Terceira Via") ou o Partido Socialista francês (com Lionel Jospin).

As origens

Quando se afirma a existência de 'neoliberais', a utilização do prefixo 'neo' refere-se menos a uma nova corrente do Liberalismo e mais à aplicação, simplificada, dos preceitos liberais consagrados num contexto histórico diverso daquele no qual foram formulados (qual seja, na contemporaneidade). A denominação 'neoliberal' assemelha-se, pois, ao termo 'neoclássico' na História da Arte.

As origens do que hoje muitos chamam de neoliberalismo remetem à Escola austríaca, nos finais do século XIX com Friedrich von Hayek, considerado o propositor da sua base filosófica e econômica e Ludwig von Mises. A Escola austríaca opõe-se à política Keynesiana e ao estado de bem-estar social.

Mais recentemente, o liberalismo surgiu em 1947 com o célebre encontro entre um grupo de intelectuais liberais e conservadores em Monte Pèlerin, na Suíça, onde formaram uma sociedade de ativistas em oposição às políticas do estado de bem-estar social, por eles consideradas "coletivistas" e, em última análise, cerceadoras das liberdades individuais (ver abaixo). Essas políticas tiveram início em 1942 com a publicação na Inglaterra do Relatório Benveridge, segundo o qual, depois de vencida a guerra, a política inglesa deveria se inclinar doravante a uma programação aberta de distribuição de renda, baseada no tripé da Lei da Educação, a lei do Seguro Nacional e a Lei do Serviço Nacional de Saúde (associadas aos nomes de Butler, Beveridge e Bevan). A defesa desse programa tornou-se a bandeira com a qual o Partido Trabalhista inglês venceu as eleições de 1945, colocando em prática os princípios do estado de bem-estar social.

Para Friedrich von Hayek esse programa levaria a civilização ao colapso. Escreveu então um livro que foi considerado como o Manifesto do Neoliberalismo - "O Caminho da Servidão" (1944). Nele expôs os princípios mais gerais da doutrina (embora tenha defendido a intervenção estatal em alguns casos), assegurando que o crescente controle do estado levaria fatalmente à completa perda da liberdade, afirmando que os trabalhistas conduziriam a Grã-Bretanha pelo mesmo caminho dirigista que os nazistas haviam imposto à Alemanha. Isso serviu de mote à campanha de Winston Churchill, pelo Partido Conservador, que chegou ao ponto de dizer que os trabalhistas eram iguais aos nazistas.

A outra vertente do liberalismo surgiu nos Estados Unidos da América e concentrou-se na chamada Escola de Chicago do prof. Milton Friedman. Combatia a política de New Deal do Presidente Franklin Delano Roosevelt por ser intervencionista e pró-sindicatos. Friedman era contra qualquer regulamentação que inibisse as empresas e condenava até o salário-minimo na medida em que alterava artificialmente o valor da mão-de-obra pouco qualificada. Também opunha-se a qualquer piso salarial fixado pelas categorias sindicais, pois segundo ele terminavam por adulterar os custos produtivos, gerando alta de preços e inflação.

A crise do liberalismo e o Estado de Bem-Estar Social

O declínio do liberalismo clássico remonta ao final do século XIX quando começou a declinar lentamente. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, e a subsequente Grande Depressão, a queda foi vertiginosa. A partir daí, caiu em descrédito, ao passo que ganharam força teorias de intervenção do Estado na economia, notadamente as idéias de Keynes, implementadas no New Deal do presidente norte-americano Franklin Roosevelt.

Em 1944, os países ricos criaram os acordos de Bretton Woods e estabeleceram regras intervencionistas para a economia mundial. Entre outras medidas, surgiu o FMI. Com a adoção das metas dos acordos de Bretton Woods e a adoção de políticas keynesianas, os 30 anos seguintes foram de rápido crescimento nos países europeus e no Japão, que viveram sua Era de Ouro. A Europa renascia, devido ao financiamento conseguido por meio do Plano Marshall, e o Japão teve o período de maior progresso de sua história.

Liberalismo com nova roupagem: o neoliberalismo

Mas a partir da crise do petróleo de 1973, seguida pela onda inflacionária que surpreendeu os Estados de Bem-Estar Social e o fim da padrão dólar-ouro, o liberalismo gradativamente voltou à cena, com a alcunha de neoliberalismo.

Denunciou-se a inflação como resultado do aumento da oferta de moeda pelos bancos centrais. Responsabilizaram os impostos elevados e os tributos excessivos, juntamente com a regulamentação das atividades econômicas, como os culpados pela queda da produção.

A solução seria a redução gradativa do poder do Estado, com a diminuição dos tributos, a privatização das empresas estatais e redução do poder do Estado de impor ou "autorizar" preços. Diminuindo ou neutralizando a força dos sindicatos, haveria novas perspectivas de emprego e investimento, atraindo novamente os capitalistas de volta ao mercado e reduzindo o desemprego.

O primeiro governo ocidental democrático a se inspirar em tais princípios foi o de Margaret Thatcher na Inglaterra, a partir de 1980. Persuadindo o Parlamento da eficácia dos ideais neoliberais, aprovou leis que revogavam muitos privilégios até então concedidos aos sindicatos, privatizou empresas estatais, deu prioridade à tributação regressiva, além de estabilizar a moeda. O governo de Thatcher, conservador, serviu de modelo para muitos dos governos neoliberais do período pós-anos 1980.

Movimentos antineoliberalismo

Como contraponto ao ressurgimento do liberalismo, tanto em países ricos quanto em desenvolvimento, surgiram movimentos antiliberalismo, que por vezes se confundem com movimentos antiglobalização. Na América Latina, a emergência ao poder de políticos populistas como Hugo Chávez (Venezuela), Néstor Kirchner (Argentina) e Evo Morales (Bolívia), que retomam o discurso nacional-desenvolvimentista de meados do século XX, é vista por alguns analistas como indicativo de um esgotamento do modelo neoliberal.

sábado, 31 de outubro de 2009

O Imperialismo, Hoje



O Imperialismo, Hoje

Pablo González Casanova
Ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México


No fim do século XX, o imperialismo, que é a formação mais avançada do capitalismo, domina no mundo inteiro, com exceções como Cuba, muito pouco explicadas na teoria das alternativas.
Desde os anos 1970 e 1980, as redefinições ou reestruturações do imperialismo deram uma força especial ao processo conhecido como “globalização”. Sob esse processo se delinearam as novas formas de expansão das grandes potências, em particular dos Estados Unidos.
Na década de 1970, os Estados Unidos tomaram a ofensiva no controle mundial ao impor o dólar em vez do ouro, que até então tinha sido o referente de todas as moedas. Os Estados Unidos, juntamennte com a Europa e o Japão, formaram uma Tríade (que o primeiro país encabeçou) e com ela promoveram uma política de endividamento interno e externo dos governos que enfrentavam uma crise fiscal crescente ou uma crise na balança de pagamentos.
Suas principais vítimas foram os governos dos países dependentes, incapazes de alterar a relação de intercâmbio desfavorável, ou o sistema tributário regressivo, e coagidos ao mesmo tempo a satisfazer demandas populares mínimas para manter sua precária estabilidade. A política global de endividamento dos poderes públicos e nacionais renovou o velho método de submissão dos devedores pelos credores, e ocorreu em nível macroeconômico mundial, incluindo muitos governos das cidades metropolitanas. O processo de endividamento correspondeu ao desenvolvimento de um capitalismo tributário e à submissão financeira renovada dos países dependentes. Com taxas de juros móveis, que podiam aumentar à discrição do credor, a política de globalização impôs um sistema de renovação automática de uma dívida crescente e impagável que fez da dependência um fenômeno permanente de colonialismo financeiro, fiscal e monetário.
Desde 1973, após o golpe de Estado de Pinochet, implantou-se no Chile o neoliberalismo. Desde os anos 1980, o neoliberalismo se converteu na política oficial da Inglaterra, com Thatcher, e dos Estados Unidos, com Ronald Reagan. As forças dominantes enalteceram o neoliberalismo como uma política econômica de base científica e de aplicação universal, reafirmando e renovando a ofensiva anglo-saxã, que desde o século XVII impulsionara a Inglaterra, sob o manto do liberalismo clássico, a aproveitar as vantagens que o fato de ser o país mais industrializado lhe dava no comércio mundial.
A globalização neoliberal iniciada no fim do século XX também teve como objetivos centrais: a privatização dos recursos públicos; a desnacionalização das empresas e patrimônios dos Estados e povos; o enfraquecimento e a ruptura dos compromissos do Estado social; a “desregulagem” ou supressão dos direitos trabalhistas e da previdência social dos trabalhadores; o desamparo e a desproteção dos camponeses pobres em benefício das grandes companhias agrícolas, particularmente as dos Estados Unidos; a mercantilização de serviços antes públicos (como a educação, a saúde, a alimentação, etc.); o depauperamento crescente dos setores médios; o abandono das políticas de estímulo aos mercados internos; a instrumentação deliberada de políticas de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” com o fim de “tirar do mercado” globalizado os competidores das grandes companhias.
O neoliberalismo globalizador exportou a crise para as periferias do mundo ao mesmo tempo em que se apropriou dos mercados e meios de produção e serviços que tinham sido criados no pós-guerra, substituindo os que não fossem rentáveis e estabelecendo um neocolonialismo cada vez mais acentuado e repressivo, em que compartilhou os lucros com as oligarquias locais, civis e militares, e negociou com elas privatizações e desnacionalizações para associá-las ao processo.
A negociação, como concessão, cooptação e corrupção, adquiriu características macroeconômicas e esteve constantemente vinculada a novos fenômenos de paternalismo, de humanitarismo caritativo, de cooptação e corrupção de líderes e clientelas, fenômenos que abarcaram até mesmo as populações mais pobres e castigadas, contra as quais se preparou um novo tipo de guerra chamada de baixa intensidade, com o emprego de contingentes militares e paramilitares, e com as mais variadas formas de terrorismo de Estado por conta das “forças especiais”, encarregadas de “operações encobertas” realizadas por agências governamentais, ou por agentes subsidiados e contratados pelas mesmas. Os negócios da droga aportaram contribuições milionárias na montagem de um teatro de confusões e à perda de sentido das lutas alternativas. Também serviram para consegur a criminalização, real ou fingida, de líderes e movimentos populares, sistêmicos e anti-sistêmicos.
Nos anos 1990, a guerra econômica entre as grandes potências substituiu o projeto de governabilidade do mundo pela Trilateral. Os Estados Unidos subjugaram em poucos anos o Japão e os Tigres Asiáticos. O grande capital impôs uma política de apoio fiscal, político e militar crescente aos contribuintes mais ricos, muitos deles possuidores dos bancos e das megaempresas, amiúde também integrantes dos altos cargos públicos e das velhas e novas elites dominantes. Os privilégios para o grande capital legalizaram formalmente a apropriação de recursos públicos e privados no centro e na periferia do mundo capitalista, incluindo o direito a especulações gigantescas como a que esteve a ponto de falir o Banco da Inglaterra.
Passados pouquíssimos anos do início do processo, o complexo militar-empresarial dos Estados Unidos, expressão máxima do capitalismo organizado dominante, confirmou que suas mediações, instituições e recursos de dominação ideológica, política e econômica tinham chegado a um ponto de crise ameaçadora ao seu domínio e interesses. Isso o levou a endurecer sua política e empreender novas ações que lhe permitissem se manter na ofensiva e ampliar sua situação de privilégio.
A crise das mediações do capitalismo organizado se manifestou: em um crescente desprestigio de seu projeto de democracia de mercado; nos graves escândalos de corrupção de que foram atores os principais gerentes e proprietários das megaempresas – supostamente mais honrados do que os funcionários populistas e socialdemocratas dos governos dos Estados “minimizados”; no insuportável mal-estar de uma cidadania sem opções, aprisionada entre os mesmos programas e políticas de democratas e republicanos, e vítima da insegurança social e do desemprego em ascensão; da deterioração e da insuficiência das escolas públicas; da falta de serviços médicos e de remédios; da criminalidade generalizada em zonas urbanas e rurais. As eleições fraudulentas e elitistas em que Bush perdeu a presidência dos Estados Unidos por 500.000 votos e pouco depois a ganhou pela decisão de uma
minoria de quatro juizes a favor e três contra, foram o ponto de partida de um processo de lógica totalitária em que as mentiras não são ditas para que se acredite nelas mas, sim, para que sejam obedecidas. E como à crise de instituições e de mediações se somou o perigo de uma recessão que não cedia, os Estados Unidos levaram a Europa à guerra econômica com a qual já tinham controlado o Japão. Ao mesmo tempo, aceleraram uma ofensiva geopolítica mundial que já tinham iniciado anos antes. Com a invasão do Iraque culminaram suas intervenções na Europa Central (Kosovo), na Ásia Central (Afeganistão) e no Oriente Médio, esta última por conta de Israel, um elemento da estratégia militar do “Ocidente” cada vez mais instrumentalizado pelos
Estados Unidos. Dez anos de bombardeios contra o Iraque, apoiados pelas próprias Nações Unidas, após debilitar e empobrecer terrivelmente este país, facilitaram a ocupação de seu território e, sobretudo, de suas imensas riquezas petrolíferas. Os Estados Unidos mostraram cada vez mais estar na posição de líder da globalização neoliberal e inclusive fizeram gestos simbólicos e prepotentes que confirmaram seu caráter de “Soberano” que pode estar acima das Nações Unidas para declarar a guerra, da Suprema Corte da Justiça para violar os direitos humanos, dos acordos de Kioto para não assinar um compromisso que os obrigasse a tomar as medidas necessárias para a preservação da Terra.
A nova política globalizadora diante da crise interna e externa consistiu em dar prioridade ao neoliberalismo de guerra e à conquista de territórios, empresas e riquezas mediante o uso da força. No campo ideológico os Estados Unidos complementaram sua ideologia de luta pela democracia e pela liberdade, gravemente desprestigiada, pela ideologia de uma guerra preventiva contra o terrorismo. Adjudicaram-se o direito de definir o que seria terrorismo e de incluir na definição todos os opositores de que precisassem se desfazer, bem como de excluir dela todos os delinqüentes de que tivesse necessidade e seus próprios corpos especiais militares e paramilitares “com direito a matar” e “torturar”. A guerra não esteve incluída nos atos de terrorismo, nem o bombardeio e extermínio das populações civis, de povos, cidades e países inteiros. Pelo contrário, os Estados Unidos afirmaram empreender uma guerra do Bem contra o Mal, dispondo-se a travá-la em todas as partes do mundo e por um tempo indefinido.
Nem todos os falsos mitos da Idade Moderna foram destruídos. Muitos, como a democracia com sangue, foram impostos pela força. O governo dos Estados Unidos fingiram que tinham ido ao Iraque para impor a democracia e construir um país independente mediante a conquista. Seus enganos premeditados mostraram tanta violência quanto a que exerceram sobre a população do Iraque com o argumento de que seu verdadeiro objetivo era aprisionar Sadam Hussein, enquanto, para tanto, destruíam o país, cidade por cidade e casa por casa, e se apoderavam de seus ricos poços de petróleo.
A consternação mundial diante dessa política desumana se manifestou no desfile de milhões de pessoas nas grandes capitais do mundo. Também apareceu no desconcerto e na sensação de impotência que viveram os movimentos sociais partidários da paz e em luta por “outro mundo possível”.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se propuseram a demonstrar sua decisão de atuar sozinhos quando fosse necessário, e de associar aos seus projetos de intervenção mundial os governos dos países altamente desenvolvidos e das potências intermediárias, assim como as demais burguesias e oligarquias do mundo que se submetessem a aceitar e apoiar “os seus valores e os seus interesses”. Mediante concessões e repressões, trataram de forjar um complexo imperialista. Pelo sentido comum entenderam que a repartição do butim e das zonas de influência deveria conceder prioridade sempre aos Estados Unidos, com pequenos ajustes prévia ou posteriormente negociados.
A política de repressões e de negociações abarcou todos os atores e todas as ações. Orientada sempre pela política de privatização, incluiu a privatização das empresas de guerra e dos exércitos, e a privatização em profundidade e em extensão, incluindo a terra e o subsolo, as fontes energéticas, a água e os mares, o ar e o espaço aéreo.
Nesta etapa da globalização neoliberal, os Estados Unidos e seus complexos e redes de associados e subordinados continuaram aproveitando a crise atravessada pelos movimentos de libertação e aqueles favoráveis à democracia e ao socialismo. Os movimentos alternativos, sistêmicos e não sistêmicos, continuavam padecendo da desestruturação e alienação de ideologias e estruturas e dos fluxos de informação e ação. Embora desde os anos 1990 começasse o movimento universal por uma nova alternativa, que procurava combinar e enriquecer as experiências das lutas anteriores, a clareza de idéias e a eficiência da organização de povos, trabalhadores e cidadãos mostraramse muito ineficientes para enfrentar a terrível ofensiva. Muitos deles tinham pensado que a crise crescente do capitalismo em si mesma os favorecia. Não tinham imaginado a imensa capacidade de reação e de violência de que era capaz o capitalismo. Ou não quiseram vê-la. A “guerra preventiva de ação generalizada” não constituiu somente uma mudança profunda em comparação com a “estratégia da contenção” que tinha predominado durante a guerra fria: foi também a forma mais adequada – a curto prazo – para que o grande capital e as potências imperialistas impedissem o desenvolvimento da consciência e a organização das forças alternativas emergentes.
Nessas circunstâncias, umas contradições começaram a atropelar as outras sem que se destacassem as lutas pela libertação, pela democracia e pelo socialismo como aquelas capazes de dar um novo sentido à História. Juntamente com as grandes manifestações de protesto contra a guerra, apareceram movimentos locais e globais de uma riqueza teórica e organizativa extraordinária; mas suas lutas tenderam a limitar-se a ações de protesto, e quando muito a ações de pressão passageira, ou de lenta construção de alternativas.
Em sua maioria, continuaram a mostrar-se incapazes de diminuir o ímpeto da política neoliberal que, na paz e na guerra, está levando o mundo a uma catástrofe generalizada.
A tais movimentos, ao mesmo tempo alentadores e incipientes, somaram-se outros, de um pensamento religioso e fundamentalista, que tendem a reproduzir a situação anterior de opressão e alienação dos povos oprimidos e fanatizados. Os líderes da resistência raramente se mostraram líderes de um pensamento crítico e radical; ou, freqüentemente, o representaram em suas formulações mais autoritárias e confusas, como no caso dos maoístas do Nepal, que voltaram a agir como líderes de movimentos armados incapazes de construir um mundo alternativo. Em muitos outros casos, os movimentos guerrilheiros foram penetrados pela contra-insurgência que, com o narcotráfico e os agentes especiais, os desabilitaram a empreender a necessária revolução ético-política. Numerosas guerrilhas se transformaram em grupos de foragidos sem outra lei nem ideologia além da pilhagem e da dominação repressiva das próprias populações em que se inseriam, às quais por vezes chegavam a impor políticas clientelistas e de privilégios excludentes, étnicos ou lingüísticos. Pareciam estar feitas à imagem e semelhança dos “terroristas bestializados” pelo terrorismo de Estado. Por todas as partes, e nas mais diversas culturas, desenvolveram-se instintos autodestrutivos, individuais e coletivos, muitos deles vinculados a uma violência do desespero. No campo das lutas políticas e sociais, dos partidos e das organizações da sociedade civil, os modelos de corrupção e repressão, de conformismo e de alienação anularam diversos movimentos que, de início, indicavam uma saída aos povos.
Seus líderes foram cooptados ou corrompidos, ou simplesmente se adaptaram a um mundo controlado em que predominam as filosofias individualistas segundo as quais cada um “defende o seu”.
É verdade que, ao mesmo tempo, foram surgindo grandes movimentos como os de Chiapas no México, Seattle nos Estados Unidos, Porto Alegre no Brasil, o outro Davos na Europa, Mombay na Índia e muitos outros, que tentam unir o local e o universal e criam os novos projetos de um mundo livre, eqüitativo e independente que se aproxima da verdadeira democracia, do verdadeiro socialismo e da verdadeira libertação.
Todas as lutas mencionadas, porém,ocupam um espaço pequeno demais no tocante às necessidades da mudança sistêmica e da sobrevivência humana, ameaçada por uma guerra contra os pobres que pode terminar em guerra bacteriológica e nuclear.
Apareceram ao mesmo tempo, por conseguinte, as contradições entre o imperialismo e os países dependentes, neocoloniais e recolonizados; as contradições entre os trabalhadores e o capital, muitas delas mediatizadas e estratificadas; as contradições entre as etnias e as nações-Estado; as contradições entre as potências atômicas e nucleares e entre os próprios integrantes da comunidade imperialista, zelosos de suas zonas de influência e temerosos de perder poder e privilégios. Todas estas e muitas outras contradições se esboçaram em um imperialismo dominante mais ou menos coletivo, que tende a identificar-se com o capitalismo como sistema global. O desfecho das contradições não pareceu assegurar-se no sentido de que um sistema mais
justo e livre do que o sistema capitalista mundial pudesse ser atingido no tempo de uma geração de lutadores políticos, sociais ou revolucionários. Ainda mais, a ameaça à sobrevivência da humanidade fez com que os governantes obrigatoriamente pensassem em uma alternativa ainda mais sinistra, capaz de manter seus privilégios e seu poder: a destruição de uma parte da humanidade para a sobrevivência do resto dela. Este raciocínio levou à imposição paulatina e constante de um regime de “nazismo-cibernético”, com a eliminação de povos inteiros pelo mundo afora, à maneira de Pol-Pot, ou do equivalente aos sete milhões de judeus vitimados pelo nazismo anterior, que agora desponta no campo de concentração e eliminação em que o imperialismo e seus associados converteram a Palestina.
A imoralidade e a criminalidade doentias dos novos dirigentes do sistema, como as dos antigos nazis, combinadas com o conhecimento e o uso que fazem das tecnociências e dos sistemas auto-regulados, adaptativos e criativos, anunciam obscuramente um futuro negro para a humanidade, caso os povos das periferias, e inclusive os das metrópoles, não consigam impor a transição para um sistema de produção e democracia pós-capitalista que assegure a vida humana e a sobrevivência da espécie.
Todas as redefinições do imperialismo de hoje parecem dirigir-se à construção de um império liderado pelos Estados Unidos, seus associados e subordinados, em que é mais provável uma guerra entre as potências nucleares do que uma revolução social, ou do que uma mudança de rota em direção à socialização, democratização e independência real das nações, cidadãos e povos. Deste fato derivam, em parte, as afirmações irresponsáveis de Michael Hart e Antonio Negri no sentido de que seja necessário substituir o conceito de imperialismo pelo conceito de império e o de luta de classes pelo de uma luta da “multidão” contra o “império”. A superficialidade desta interpretação se deve em grande medida a uma conjuntura histórica em que é evidente que a construção do império mundial pelos Estados Unidos ocupou o primeiro plano da cena. Também se deve ao fato evidente de que a luta de classes original e atual tem sido fortemente mediatizada por outras lutas políticas, econômicas, ideológicas e sociais, e de que as organizações que lutaram contra o sistema de dominação e acumulação característico do Capitalismo foram mediatizadas e derrotadas, primeiramente no século XIX, depois no século XX.
No início do século XXI ainda se vive a desorganização das forças alternativas e de suas próprias organizações ou meios para alcançar o socialismo, a democracia, a libertação. O caráter relativamente desestruturado e multitudinário que as forças alternativas ainda apresentam é evidente. Mas, nem do projeto norte-americano de um Império Global, nem da crise mundial das alternativas se pode derivar que, em vez de pensar e agir contra o imperialismo, se deva pensar e agir contra o império, e que, em vez de pensar nas novas organizações da resistência e da organização do poder alternativo, se deva lutar nos termos vagos de um pensamento libertário ou neoanarquista conservador que pretenda enfrentar a multidão desorganizada ao capitalismo mais organizado de toda a História.
A origem da formulação mistificadora de Hart e Negri provém de uma lógica das disjuntivas que geralmente tem sido reacionária. Consiste em pensar que as novas características do imperialismo acabem com o imperialismo, ou que os novos aspectos da luta de classes se expressem em uma luta histórica empreendida pelas multidões – este outro termo que o pensamento conservador e elitista sempre aplicou aos povos que teme agressivamente.
A verdade é que hoje, mais do que nunca, o conceito do imperialismo como uma etapa do capitalismo e da História da humanidade continua sendo um conceito fundamental. Ao articular a História dos impérios com a História das empresas, o conceito de “imperialismo” pôs a descoberto o poder crescente das empresas monopolistas e do capital financeiro. Também reformulou a luta antiimperialista combinando a luta das nações oprimidas com a luta das classes exploradas.
Se hoje estamos assistindo à construção de um império mundial pelo complexo militar-empresarial dos Estados Unidos (e a palavra império lhes parece grata desde a rainha Vitória), tal projeto de Império corresponde às mais avançadas políticas imperialistas e capitalistas: combina a força crescente das megaempresas e das potências, em que se apoiam e de que se servem, com as novas formas de dominação e exploração dos povos e dos trabalhadores.
De fato, o projeto mencionado articula cada vez mais o imperialismo ao capitalismo, até tornar cada um deles incompreensível sem o outro. Ainda mais, permite explorar as contradições na construção do império mundial norte-americano em pugna inevitável com outros impérios dada sua crescente apropriação e dominação de territórios, recursos e populações, bem como o fato de que apareça como o beneficiário principal da nova acumulação original e ampliada de capitais, formulando problemas de insegurança às grandes potências e às potências intermediárias.
A luta contra o imperialismo e o capitalismo, encarada como uma luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo, corresponde, por sua parte, a um fenômeno alternativo de sistemas emergentes, e, tanto por suas tendências naturais como pelas que serão encaminhadas para atingir tais objetivos, pode ter um crescimento exponencial que inclua a própria população dos Estados Unidos, sem mencionar a do resto do mundo. Nesse futuro o exemplo de Cuba, longe de ser “excepcional”, tem características universais que se tornarão cada vez mais evidentes conforme se descubra nela a necessidade ético-política que todo movimento pela libertação, pela democracia e pelo socialismo deve priorizar na organização de seu pensamento e de suas ações.

Revista Tempo - UFF

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A arte de reduzir as mentes



A arte de reduzir as mentes
A força da ideologia neoliberal decorre do fato de não começar visando ao homem. Ela cria um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que os homens se transformem ao se adaptarem à mercadoria, apregoada como a única coisa real

Dany-Robert Dufour


n t
Depois de ter subjugado tudo, o capitalismo “reduz as cabeças”: parece ser esse o traço característico da chamada época “pós-moderna”
O capitalismo, que produz e devora muito, é “antropofágico”: também “come” o homem. Mas o que consome exatamente? Os corpos? Estes são usados há muito tempo e a antiga noção de “corpos produtivos” é uma prova disso1. A grande novidade é hoje a redução das mentes. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resultasse num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, e até o que é o bem ou o mal). É precisamente este traço que me parece caracterizar como propriedade específica a virada chamada de “pós-moderno”: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, dedicou-se à “redução das cabeças”.(…) A hipótese é, em suma, simples mas radical: nós assistimos, no presente, à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxiano - e vemos instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, a ser definido.

O processo de quebra simultânea do sujeito moderno e de fabricação provável de um novo sujeito é extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu perto dos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido próximo dos anos 1900 - os quais, por sua idade respeitável, pareciam afastados de qualquer execução sumária - estão em vias de desaparecer diante de nós com uma rapidez espantosa. Esses sujeitos filosóficos eram pensados como protegidos das vicissitudes da história, bem instalados em uma posição transcendental e constituindo incansáveis sujeitos de referência para pensar nosso ser-no-mundo e, na verdade, muitos pensadores continuam espontaneamente a refletir com essas formas, como se fossem eternas. Ora, esses sujeitos perdem, pouco a pouco, sua evidência. A potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história. Tornam-se fluidos. É difícil acreditar que formas tão analisadas, tão elaboradas, tão experimentadas possam desaparecer em tão pouco tempo. Entretanto, nunca se deveria esquecer que civilizações milenares podem se extinguir em alguns lustros.

Para se ater a acontecimentos recentes, é necessário lembrar que se viram tribos indígenas da floresta amazônica, que tinham atravessado os séculos e os ambientes mais hostis protegidos por práticas simbólicas solidamente arraigadas, perecerem em algumas semanas, incapazes de resistir aos choques violentos de uma outra forma de troca - a troca comercial2.

A des-simbolização do mundo
Assistimos à destruição do sujeito crítico (kantiano), do sujeito neurótico (freudiano), do sujeito marxiano e vemos instalar-se o sujeito “pós-moderno”
Essa morte programada do sujeito da modernidade não me parece estranha à mutação que se observa, há uns bons vinte anos, no capitalismo. O neoliberalismo - para chamar esse novo estado do capitalismo por seu nome - atualmente está ocupado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um referencial que avalize o absoluto ou metassocial das trocas. Para ser rápido e ir ao ponto e no essencial, poderia-se dizer que seria necessário o ouro como referência para garantir as trocas monetárias, assim como seria necessária uma garantia simbólica (a Razão, por exemplo) para permitir os discursos filosóficos. Ora, deixa-se, a partir de agora, de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas. As trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral), mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias. Em uma palavra, a troca comercial, hoje, des-simboliza o mundo. (…)

Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se aos homens que se livrem de todas as sobrecargas simbólicas que garantiam suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de modo que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental...), possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, eles devem, simplesmente, se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria.

Se o que afirma Marcel Gauchet for verdadeiro – “a esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercial3” -, então haverá um preço a pagar por essa extensão: a alteração da função simbólica.(…).

Adaptando o indivíduo à mercadoria
O neoliberalismo está empenhado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um absoluto ou metassocial das trocas
Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica. A partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em uma palavra, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.

Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo - como todas as ideologias anteriores que irromperam ao longo do século XX (o comunismo, o nazismo...) - não quer outra coisa senão a fabricação de um homem novo. Mas a grande força dessa nova ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando ao homem diretamente, por meio de programas de reeducação e de coerção. Ela se contentou com introduzir um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência: que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real4. O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” que é melhor acatar com resignação do que se opor: ele deve parecer sempre agradável, querido, desejado como se se tratasse de entertainments (televisão, publicidade...). Ainda não se analisou bem a incrível violência que se dissimula atrás dessas novas fachadas soft.(…)

O sujeito “esquizóide” da pós-modernidade
Os homens não devem se conciliar com valores simbólicos transcendentes: devem se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria
Deve-se notar que, em “fábrica de um novo sujeito”, entendo “sujeito” no sentido filosófico do termo: não falo do indivíduo no sentido sociológico, empírico ou mundano do termo, falo da forma sujeito ideal em via de se construir. Primeiramente, faço referência à forma sujeito que se construiu por volta dos anos 1800 com o aparecimento do sujeito crítico kantiano. O empirismo de Hume e seu ceticismo contra a racionalidade da metafísica clássica abalaram Kant, como se sabe, a tal ponto, que este bruscamente “despertou de (seu famoso) sono dogmático” e se viu forçado a refundar uma nova metafísica, crítica, definida nos limites da simples razão, livre do dogmatismo da transcendência e, entretanto, nada cedendo ao ceticismo empirista. Assim nascia a filosofia kantiana: baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, ela se constituiu sobre uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito. Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio. (…)

O que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadoria? Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade5”. Isto pode ser dito de modo mais claro: a dignidade não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente”, refere-se apenas à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, e é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção (deliberadamente mentirosa) da mercadoria. (…)

Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais. A figura do esquizofrênico atualizada por Deleuze na década de 1970, com as polaridades múltiplas e invertíveis de suas máquinas que manifestam desejo, é, sob esse aspecto, muito mais competitiva6. (…) Tudo acontece hoje como se o novo capitalismo tivesse entendido a lição deleuziana. De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade.

Uma aventura rumo à loucura
O novo adestramento do ser humano efetua-se, pois, em nome de um “real” (a mercadoria) que é melhor acatar com resignação do que se opor
Na des-simbolização que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico antecipando uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, nem tampouco o sujeito neurótico tomado de uma culpabilidade compulsiva; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações identitárias.

É evidente que, apesar disso, os indivíduos não se tornaram todos psicóticos. (…) De modo geral, por toda parte onde há instituições ainda vivas, isto é, onde nem tudo esteja ainda completamente desregulamentado, ou seja, esvaziado de toda substância, existe resistência a essa forma dominante. Afirmar que uma nova forma sujeito está em vias de se impor na aventura humana não significa, pois, dizer que todos os indivíduos irão sucumbir facilmente a ela. Não digo, portanto, que todos os indivíduos irão enlouquecer, digo simplesmente que, afirmando essa forma sujeito ideal, fazem-se grandes esforços para que eles se tornem loucos. Em especial mergulhando-os num “mundo sem limite7” que incentive a multiplicação de passagens à ação psicotizantes e sua instalação num estado borderline.

Como Foucault profetizara há vinte anos, o mundo tornou-se, pois, deleuziano. (…) Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas tudo indica, hoje, que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical8. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.

Construindo impérios de papel
Levanto a hipótese de que o neoliberalismo, esse novo estado do capitalismo, é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade
A essa morte programada do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano, convém acrescentar um terceiro atestado de óbito, o do sujeito marxiano.

Realmente, na economia neoliberal, o trabalho não é mais a base da produção do valor. O capital não é mais essencialmente constituído pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) originada da superprodução apropriada no processo de exploração do proletário. O capital aposta cada vez mais nas atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia genética, Internet, informação, mídia…), em que a parte do trabalho assalariado pouco ou medianamente qualificado é, às vezes, extremamente pequena.

Mas, principalmente, o capital agora faz intervir fundo a gestão das finanças em movimentos especulativos de grande amplitude. A parte da economia “real”, por exemplo, diminui proporcionalmente à financeirização da economia que se desenvolveu de maneira considerável nos últimos 25 anos, a partir do desenvolvimento dos novos mecanismos financeiros e instrumentos de gestão do capitalismo (…). Aparece, desta maneira, como um epifenômeno conquistador vindo se enxertar sobre a economia real, uma economia virtual que consiste, essencialmente, em criar muito dinheiro com quase nada, vendendo muito caro o que ainda não existe, o que já não existe ou o que pura e simplesmente não existe, correndo o risco de criar impérios de papel prontos a desabar de modo brutal (cf. os escândalos Enron, WorldCom, Tyco…). (…)

A reestruturação das mentes
Para Kant, a dignidade “não tem preço” e “não tem equivalente”: refere-se apenas à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço
Sob uma aparência bonachona e democrática, uma nova ideologia, provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que surgiram no Ocidente no século XX, está se instalando. Na verdade, não é impossível que, após o inferno do nazismo e o terror do comunismo, uma nova catástrofe histórica se manifeste. É o caso de perguntar se não se saiu de umas para cair mais facilmente em outra. Porque o ultraliberalismo, como as duas ideologias acima citadas, quer igualmente fabricar um homem novo.(…)

Entramos, pois, em um tempo novo: o do capitalismo total que não se interessa mais só pelos bens e por sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo, de fato, deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendem a cultura - em sua diversidade - e a civilização - em suas conquistas.

(Trad.: Iraci D. Poleti)

n t
1 - A noção de “corpo produtivo”, enquanto corpo biológico integrado no processo de produção, já está presente em Marx, em Le Capital in Œuvres complètes, ed. Gallimard, Paris, 1965: cf. Livre premier, Le développement de la production capitaliste, IVe section: la production de la plus-value relative, XIII: Coopération.
2 - Ver, por exemplo, La guerre de pacification en Amazonie, 90’, documentário de Yves Billon, Les Films du village, 1973.
3 - Ler, de Marcel Gauchet, La démocratie contre elle-même, ed. Gallimard, Paris, 2002.
4 - Ler, de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, L’homme sans gravité, Jouir à tout prix, ed. Denöel, Paris, 2002.
5 - Ler, de Emmanuel Kant, Fondements de la métaphysique des mœurs [1785], ed. Garnier-Flammarion, Paris, p.116.
6 - Ler, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Œdipe, capitalisme et schizophrénie, ed. Minuit, Paris, 1972.
7 - Ler, de Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite, ed. Erès, Ramonville, 1997.
8 - Cf., de Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999.

* Este texto é um trecho do livro L’art de réduire les têtes, a ser publicado no início de outubro pela editora Denoël, Paris

Le Monde Diplomatique