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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

“Como surgiu o sistema de castas na Índia? Ele ainda tem valor legal?”.

A hierarquia da sociedade indiana

Cláudio Costa Pinheiro, da Escola de Ciência Sociais e História da Fundação Getúlio Vargas


Embora o sistema de castas ainda esteja presente na sociedade indiana, não tem mais valor legal no país. Originalmente, as castas representavam diferentes ocupações e seus nomes designavam serviços. (foto: Flickr/ etrenard – CC BY-SA 2.0)

As castas correspondem a uma forma de identificar hierarquicamente os membros de uma sociedade a partir de grupos. Originalmente, representavam ocupações e seus nomes designavam serviços – carpinteiros, doceiros, lavadores etc. – que acabavam confirmando monopólios dessas castas sobre as atividades.

As castas são umaforma de identificar hierarquicamente os membros de uma sociedade apartir de grupos

Mas elas não representam um sistema de divisão de trabalho; pessoas de uma dadacasta podem circular entre ocupações distintas na economia. O sistema de castas é complexo, tem alto grau de endogamia.

Em textos clássicos do hinduísmo, como os cânticos do Rig Veda (2000-1000 a.C.) ou as leis de Manu (500 a.C.), já se encontramalusões à existência de quatro varnas que dividiam a sociedade: os brâmanes(sacerdotes e intelectuais), os xátrias (guerreiros, administradores e monarcas), osvaixás (comerciantes e agricultores) e os xudras (serviçais em geral). Alguns desses textos clássicos representam códigos religiosos-legais que regulamentam condutas sociais, profissionais, aspectos morais e éticos.


Os xudras incluem várias castas de ‘intocáveis’. Ocupações que lidavam com a morte, napreparação de enterros ou cremações, por exemplo, constituíram castas sobre as quais uma série de tabus proibia o contato, inclusive físico. Os quatro varnas originais dividem-se em jatis, normalmente identificadas como subcastas.


Não se devem confundir castas com classes sociais. Embora uma casta possa ser socialmente discriminada, isso não implica que seus membros sejam pobres. O inverso também é válido: membros de uma casta prestigiada podem ser desprovidos de capital financeiro.


A constituição indiana de 1950 aboliu todas as formas de discriminação, especialmente a‘intocabilidade’. Isso inaugurou políticas de discriminação positiva, chamadas ‘políticas de reserva’ (de assentos no parlamento e nas câmaras estaduais, de empregos em cargos do Estado, de vagas em universidades etc.).

O sistema de castas não tem mais valor legal na Índia, mas ainda está presente na vida cotidiana do país. Mesmo que a discriminação por casta esteja proibida, há várias formas de valorizar privilégios de castas altas, como o favorecimento em empregos.

Nascer em uma casta ainda significa quase sempre morrer nela

Nascer em uma casta ainda significa quase sempre morrer nela. A Índia, porém, tem sido sacudida pela ascensão de vários políticos de castas baixas, forçando a revisão dessa estrutura social tão hierarquicamente imóvel.

Por fim, as castas não são exclusivas do hinduísmo – existem entre muçulmanos, cristãos, sikhs e outras religiões na Índia. Além disso, são comuns a várias sociedades asiáticas e africanas.

Cláudio Costa Pinheiro
Escola de Ciência Sociais e História
Fundação Getúlio Vargas/ RJ
Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A trajetória política de Mahatma Gandhi e a Independência da Índia


Tarsila Mancebo, Shirley Vieira, Renata Moraes, Paula Gioia, e Aline Pinto Pereira

A busca pela verdade e a não-violência foram fundamentais para a emancipação política da Índia. Mahatma Gandhi, precursor de tais idéias, foi o grande articulador deste processo. Como um homem tão franzino e tão humilde pode alcançar tamanha proeza? Conforme demonstra em Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade e em A roca e o calmo pensar, Gandhi acreditava que Deus o guiara de forma que praticasse o bem. Os caminhos percorridos foram tortuosos, mas essenciais para que ele se sensibilizasse com a situação política indiana e mobilizasse o povo a lutar pela libertação do país.
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em Porbandar, em 02 de outubro de 1869. A família pertencia à casta bania (formada por mercadores e comerciantes) e não possuía muitos bens. O avô e o pai participaram ativamente da vida política do país, exercendo cargos ministeriais. Segundo relata, o pai, Kaba Gandhi, era um homem incorruptível e tornou-se conhecido pela imparcialidade. A mãe tinha grande influência sobre seus atos, era muito inteligente e observava as leis hindus com grande fervor. O pequeno Gandhi nutria por eles muita estima e respeito, o que lhe proporcionou um caráter exemplar, assim como a abominação pela mentira. Gandhi também reteve a Bíblia como a base doutrinal de suas ações. As influências intelectuais vieram principalmente dos mestres John Ruskin – glorificação do trabalho; Henry Thoreau – dever da desobediência cívica e, principalmente, Leon Tolstoi – sabedoria cristã. Tolstoi amadureceu seu espírito, contribuindo para esclarecer pensamentos ainda confusos.
O desejo de estudar Direito na Inglaterra tornou-se uma decisão familiar, que resultou na expulsão da casta, medida que Gandhi aceitou. Na Inglaterra, sofreu grande choque cultural e sentiu vergonha de se assumir como hindu. Acreditava que, para se tornar um advogado, teria de se transformar em um verdadeiro lord inglês. Neste país, a principal experiência foi o contato com diferentes religiões – esteve aberto para qualquer uma que o convencesse – o que só fortaleceu sua credulidade no hinduismo.

O retorno à Índia mostrou-se frustrante, pois sua extrema timidez, aliada ao desconhecimento das leis indianas, o deixou inseguro. Assim, não recusou a proposta de trabalho na África do Sul – onde sofreu na pele a discriminação vivida por indianos e negros, assim como as limitações impostas pela hierarquia social daquele país. Ao perceber que o problema racial sul-africano estava muito mais entranhado naquele cotidiano do que poderia imaginar, prolongou a estada na África do Sul, a fim de combater pacificamente o racismo e defender os direitos dos indianos. Foi neste contexto que percebeu a importância de se assumir enquanto indiano. Organizou a comunidade indiana local e implementou trabalhos comunitários que melhorassem as condições de vida daquele povo. Com estas ações “Deus plantou os alicerces da minha vida na África do Sul e lançou a semente da luta pela dignidade dos indianos” (Gandhi: 1999, p.133). Várias conquistas sociais e politicas foram alcançadas. Como conseqüência, fundou-se em 1894 um partido político, o Congresso Indiano de Natal.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Gandhi apoiou a participação indiana na guerra, como já o fizera em conflitos anteriores travados pelo Império Britânico – mesmo contrariando alguns companheiros. Acreditava, na época, “que o Império existia para o bem-estar do mundo” (Gandhi: 1999, p.273) e que “o erro era mais de cada funcionário britânico do que do sistema inglês” (Gandhi: 1999, p.300). Esta participação ocorreu, no entanto, no quadro dos servicos de saúde (unidades de ambulância), e ainda assim, muitos a contestaram, pois qualquer envolvimento em atividades de guerra não é condizente com o ahimsa (não-violência). Gandhi reconhecia a imoralidade da guerra, mas rebatia dizendo que a violência é inerente à vida humana. Portanto, o adepto da não-violência respeitará seu voto com fidelidade, pois a mola propulsora de suas ações, argumentava, fora a compaixão (Gandhi: 1999, p. 302). Assim, interromper a guerra ou libertar os demais da dor era uma obrigação daqueles que prezavam a não-violência.
A filosofia pacifista somada às experiências de vida no exterior contribuíram para que ele desenvolvesse um novo olhar sobre a Índia. O retorno à terra natal ocorreu ainda durante a Primeira Grande Guerra, quando sua saúde esteve fragilizada. Mesmo abatido fisicamente, Gandhi dispôs-se a conhecer os problemas dos indianos e a solucioná-los da forma mais justa possível. Atuou em prol de diversos segmentos sociais explorados no seu país, e muitas vezes empregou o jejum como um instrumento de luta, sem abster-se do diálogo e da argumentação, a fim de alcançar os objetivos propostos. Suas ações baseavam-se também na ideologia do satyagrha, que engloba os princípios da não-violência e o fim da acomodação diante da dominação sofrida pelo povo.
Desta forma, as idéias de “desobediência civil” e “não-cooperação” – pilares com os quais desafiou os colonizadores – tornaram-se perceptíveis na Índia, e também difundidas mundialmente pelos meios de comunicação. Um exemplo dessa desobediência civil está na organização do boicote aos produtos ingleses. Com ele a população indiana voltou a confeccionar suas próprias roupas, rejeitando os tecidos britânicos. O ápice de sua atuação, no entanto, se deu em 1930, quando, acompanhado por adeptos, Gandhi marchou cerca de 300 quilômetros em direção ao mar para obter sal pelo poder colonialista e que, portanto, só poderia ser obtido pelas vias britânicas. Conhecido como a Marcha do Sal, o ato simbólico também atraiu e mobilizou a atenção da imprensa internacional. Gandhi foi preso, mas a Inglaterra, pressionada pela opinião pública, o libertou e também revogou a lei do monopólio do sal.

Com o passar do tempo, o movimento de descolonização se tornou ainda mais forte, principalmente no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A Inglaterra voltava as atenções para a Europa – palco dos principais combates – e Gandhi, de acordo com seus ideais, não se aproveitou da fraqueza britânica durante este período, mesmo quando as pressões internas se tornaram cada vez maiores para que a Índia conquistasse a liberdade.
Gandhi não conseguira, entretanto, solucionar divergências entre hindus e mulçumanos. Embora quisesse unir no mesmo país os seguidores das duas religiões, ao perceber a possibilidade de uma guerra civil emergente, concordou com a criação de duas nações soberanas, que, de fato, emergiram no final da década de 1940. Os hindus concentravam-se na Índia, e seus antagonistas no Paquistão. Visando uma aproximação com os muçulmanos, Gandhi dispôs-se a visitar o Paquistão, a fim de demonstrar que todos eram filhos do mesmo Deus. Entretanto, um extremista hindu, contrariado pelas atitudes inclusivas do já então Mahatma (grande alma), assassinou o líder da Índia, em 1948.
As idéias de Gandhi, entretanto, não morreram. Estão perpetuadas, entre outras obras, em Autobiografia: Minha vida e minhas experiências com a verdade e nos pensamentos de A roca e o calmo pensar. Embora ambos os livros não analisem a independência da Índia em si, por terem sido escritos antes de sua efetivação, a partir dos registros do Mahatma Gandhi é possível perceber como a filosofia da não-violência tornou-se sua principal bandeira política. Ao demonstrar como dirigiu a vida em busca do engrandecimento espiritual, destacou-se, sobretudo, como um grande homem e não como uma figura mitológica. Ao refazer este percurso, o leitor constata que a independência da Índia, assim como também a força e o carisma de Gandhi, são conseqüências de um processo no qual o que está em curso é a conquista da tão sonhada liberdade.

Cronologia

• 1869 – Nascimetno de Gandhi e em Porbandar
• 1888-1891 – Estudos de Direito em Londres
• 1893-1914 – Período em que vive na África do Sul
• 1920 – Luta pelo boicote aos produtos ingleses
• 1930 – Campanhas de desobediência civil
• 1947 – Independência da Índia
• 1948 – Gandhi é assassinado por um extremista hindu

Glossário

Ahimsa: não-violência
Satyagrha: resistência pacífica

Bibliografia

• GANDHI, Mohandas K.. Autobiografia: Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. São Paulo: Palas Atenas, 1999.
• ____________________. A Roca e o Calmo Pensar. São Paulo: Palas Atenas, 1991.
• MARCHETTI-LECA, Pascal. “Mahatma Gandhi” In: História Viva. São Paulo: Ediouro e Segmento-Duetto, nov/2003. ano 1, nº1, pp. 22-27.
• MARTINS, Maria. Ásia Maior: Brama, Gandhi e Nehru. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1961.
• PANIKKAR, K.M. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1969. pp.145-167; 262-265; 317-335; 440-443.

Filmografia

• DVD ou VHS
Gandhi, de Ben Kingsley, KINGSLEYdirigido por RICHARD ATTENBOROUGH
Tempo: 191 minutos
Cor: Colorido
Recomendação: 14 anos

Links

http://www.timeforkids.com/TFK/magazines/story/0,6277,193501,00.html
http://www.sahistory.org.za/pages/chronology/special-chrono/gandhi.htm
web.mahatma.org.in

http://www.historia.uff.br/nec

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Devadasis as servas da deusa

Numa tradição que vem do século 9, meninas indianas são destinadas por suas famílias para servir à deusa Yellamma. Sua tarefa: atender aos desejos sexuais dos homens de suas comunidades.

Sentada na casa de sua família, na cidade indiana de Gokak, Kavita Kurbati, de 18 anos, aguarda um cliente numa tarde de quinta-feira. Suas filhas, Rakshita, de 3 anos, e Chaitra, de 1, dormem tranquilamente a seus pés. Quando Kavita chegou à puberdade, sua mãe, recorrendo a uma antiga tradição ligada à deusa hindu Yellamma, designou a filha para tornar- se uma devadasi, ou "serva da deusa". Isso significa que Kavita não pode desposar um mortal. Em vez disso, como uma forma de agradar Yellamma e trazer mais sorte para sua família, ela serve como uma "prostituta do templo", satisfazendo as necessidades sexuais dos homens de sua comunidade.

Embora sua posição como "prostituta do templo" tenha raízes numa complexa tradição religiosa praticada na Índia desde o século 9, Kavita, como uma moderna devadasi, é basicamente uma trabalhadora sexual comum. Com seus ganhos de cerca de 300 rúpias (pouco mais de US$ 6), ela sustenta a mãe, o pai, três irmãs, dois irmãos e as filhas.

Acima, Kavita Kurbati, com suas filhas, aguarda um cliente.

Seu ritual de consagração - realizado em sua própria casa e pouco parecido com os enfeitados ritos das devadasis do passado - foi uma espécie de cerimônia de casamento curta, durante a qual um muttu (colar de contas vermelhas e brancas) foi colocado ao redor de seu pescoço, simbolizando seu status de serva de Yellamma. O sacerdote que celebrou a cerimônia foi pago com presentes e dinheiro. Ele, por seu lado, usou parte do que recebeu para recompensar a intermediária que recrutou Kavita

O sacerdote teve seu pagamento, a intermediária também, a família de Kavita ganhou uma fonte de renda garantida e os homens da comunidade conseguiram acesso sexual a uma bela jovem. Mary Malappvgol, amiga de Kavita, também foi tornada devadasi e, conforme acerto com o sacerdote do templo, levada para Puna, uma cidade ao sul de Mumbai, onde ela trabalhou num bordel. A experiência de Mary é a mais recente encarnação do sistema devadasi, que agora canaliza garotas de famílias de castas mais baixas para a lucrativa indústria do sexo nas cidades indianas.

A prática de oferecer meninas a divindidades na esperança de conseguir fertilidade e prosperidade não é exclusiva da Índia. Na Itália, por exemplo, era costume oferecer uma "vestal virgem" durante a época da colheita de uvas, e as civilizações da Mesopotâmia, Babilônia, Egito, Síria e Grécia usavam moças para aplacar os deuses.

O poder da sexualidade e suas conexões com a fertilidade da terra são encontrados em muitos mitos pagãos e drávidas (o povo drávida foi um dos primeiros a habitar a Índia), e há relatos antigos sobre práticas parecidas com as das devadasis em templos budistas e jainistas. Além disso, sacerdotes de templos que se diziam representantes de divindades masculinas ocupavam lugar central no ritual de consagração das devadasis e, com freqüência, eram os primeiros a iniciar sexualmente as meninas, num rito que imitaria um "encontro sexual divino".


Acima, uma devadasi rende culto a Yellamma.

No passado, apenas as jovens mais bonitas eram escolhidas como devadasis e trabalhavam no templo, ajudando o sacerdote no culto à deusa. Assim como as gueixas japonesas, elas cantavam e dançavam, e eram sustentadas pelos homens mais ricos da comunidade, a quem serviam como parceiras sexuais. Elas frequentemente ganhavam lotes de terra de reis ou homens de castas superiores, e a elite as convidava para casamentos e outros eventos importantes. As devadasis eram reverenciadas e ocupavam uma posição de respeito na comunidade.

Quando chegaram à Índia, os britânicos, com seu olhar cristão, se horrorizaram com o sistema devadasi. Assim, durante seu domínio, a posição das devadasis foi depreciada. Embora seu simbolismo religioso e sua função sexual na sociedade permanecessem, elas não tinham mais o sustento econômico do passado.

No passado, as devadasis eram reverenciadas e ocupavam lugar de destaque na comunidade. Após a chegada dos britânicos, porém, sua posição se degradou até chegar à da prostituta sagrada

Acima, duas meninas fazem suas orações matinais na escola da Vimochana Sangha, para filhas de devadasis.

Com o tempo, sua posição se degradou até chegar à da prostituta sagrada cujos ganhos beneficiam o templo, os sacerdotes que nele trabalham e, de alguma forma, sua própria família. Uma nova versão do sistema devadasi começou a emergir, no qual a devadasi virou a engrenagem central na bemazeitada máquina econômica de Yellamma. Para esse sistema se perpetuar, suas crenças religiosas têm de ser reafirmadas sempre. Os devotos de vilas, pequenas cidades e até áreas distantes - em geral, gente pobre e inculta - têm sido encorajados a visitar o templo para cumprir os rituais de culto a Yellamma.

Os fiéis ouvem que um único dia sem novos seguidores no templo de Yellamma atrairia a ira da deusa e traria desgraças à terra. Dias auspiciosos (terças e sextas- feiras), épocas de lua cheia e festivais anuais atraem grandes levas de adeptos. Durante esses dias, as lendas ganham dramatizações que reforçam a necessidade constante de os fiéis cultuarem a deusa e lhe fazerem doações.

Uma garota pode virar devadasi por várias razões. Cabelo embaraçado (em geral consequência de má higiene), doença de pele e deficiências físicas como a cegueira são considerados cartões de visita de Yellamma. Famílias sem dinheiro para o dote da filha também tendem a fazer dela uma devadasi como meio de se livrar de seu sustento; outras, sem filhos homens, com frequência escolhem uma filha como devadasi, tornando-a o "filho" que vai sustentar a família.


Acima, jovem se banha numa área de banho comunitária durante o Yellamma Yatra, em Saundatti.

Atualmente, estima-se que haja cerca de 250 mil devadasis nas províncias de Karnataka e Maharashtra, no oeste da Índia. Assim como Kavita Kurbati, muitas sustentam famílias numerosas. Sheela Kallimani, de 18 anos, foi dedicada à deusa quando tinha 4 anos e, ao atingir a puberdade, começou a trabalhar com sexo, na casa de sua família. Jovem e bonita, ela ganha mais de US$ 20 por freguês - uma quantia obscena se comparada aos poucos dólares que a maioria das prostitutas cobra. Embora tenha chegado ao 7º ano do ensino básico e, diversamente da maioria das devadasis, seja alfabetizada, Sheela aceita sua situação. "Não quero fazer esse trabalho, mas minha família precisa de mim para isso", ela se resigna. "Eu sempre uso preservativo", avisa.

O principal evento ligado ao culto é o Yellamma Yatra, festival anual realizado em Saundatti (no norte de Karnataka) no qual meninas são ritualmente oferecidas à deusa. O Yatra começa na lua cheia no mês indiano de Magh (janeiro/fevereiro) e atrai cerca de 500 mil peregrinos.Segundo a lenda, após três meses de abstinência sexual, Yellamma tem de ser redespertada sexualmente. Mas seu marido, Yamadagni, é assassinado.

No alto, adeptos chegam para o festival. A maior parte dos fiéis da deusa tem origens sociais modestas.

Se não houver uma divindade masculina para despertá-la sexualmente, ela ficará infértil. De algum modo, porém, Yamadagni é ressuscitado e o despertar sexual de Yellamma acontece. Com seus poderes sexuais restaurados, sua capacidade de abençoar os adeptos fica mais potencializada e deve ser aprimorada.

As devadasis, suas contrapartes sexuais humanas, são dedicadas a ela em grande número e seu defloramento simboliza a reunificação de Yellamma com Yamadagni Durante o festival, os adeptos fazem promessas à deusa, que incluem doar renda, produtos agrícolas ou gado, desfilar nu, prostrar-se ou - o mais relevante - doar uma devadasi. Essa última doação implica uma complexa série de ações, tais como banho ritual, esfregar açafrão na testa da menina, pôr pulseiras verdes em seus pulsos e um muttu em seu pescoço.

Muitas devadasis de mais de 44 anos (quando são consideradas velhas para o trabalho sexual) assumem o papel de jogathi ("voluntárias"), figuras importantes na perpetuação do culto, em especial durante o festival. Elas em geral vivem no templo e ouvem as queixas e desejos dos fiéis, que depois descrevem à deusa. Também podem visitar lares de adeptos, ouvir suas necessidades e, em certos casos, agir como médiuns por meio das quais Yellamma se manifesta. Algumas devadasis mais idosas, porém, mendigam perto da entrada dos templos. Com frequência, os adeptos de Yellamma mais escolarizados tendem a achar as práticas e superstições de sua fé questionáveis. Mas romper com sua família e comunidade e converter-se a outra religião é difícil, pois, na cultura indiana, a coesão familiar é colocada acima de tudo.

Festivais anuais dedicados a Yellamma atraem grande número de adeptos, cada qual com sua promessa

Desde os anos 1940 têm sido feitas tentativas para romper o sistema devadasi, com poucos resultados positivos. Uma lei de 1982 do governo de Karnataka, que pune com multa e até cinco anos de cadeia o responsável pela conversão de uma mulher a devadasi, é de difícil aplicação, pois o processo exige evidência fotográfica do ritual de consagração. Essas cerimônias continuam a ser feitas sem problemas, à noite, nos festivais, ou nos lares das famílias das devadasis. Em 1985, o advogado B.L. Patil fundou uma organização, a Vimochana Sangha, dedicada a erradicar o sistema devadasi. Ele foi fortemente influenciado por um professor que preparava sua tese de doutorado sobre o sistema. "Visitamos o distrito de prostituição em Mumbai e lá havia uma alta porcentagem de devadasis de nossa área (norte de Karnataka), o que me causou uma profunda impressão", explica o advogado.

A Vimochana iniciou um programa de conscientização nas comunidades devadasis. Assistentes sociais visitaram esses locais e tentaram convencer as mulheres de que outros prosperavam à sua custa. Os adeptos da deusa, porém, não foram receptivos e proibiram a presença das devadasis nos encontros. Em 1990, a Vimochana fundou a primeira escola para filhos de mulheres devadasis. No primeiro ano, 50 alunos viveram e tiveram aulas na casa de Patil, na vila de Malabad.

No segundo ano, o número de crianças dobrou, e, no ano seguinte, a organização teve de alugar outras duas casas para alojar mais alunos. Por fim, graças a doações de parceiros e de um lote de terra cedido por sua esposa, Patil ergueu um edifício escolar com quartos para os alunos. As matrículas chegaram a 450, incluindo crianças de castas baixas cujas mães não eram devadasis. "Um dos impedimentos das crianças devadasis é que elas recebem apenas o sobrenome da mãe", explica o professor e conselheiro Girish Chandra. Com isso, podem ser discriminadas até mesmo ao pleitear empregos. A escola tem-se esforçado para incluir o nome do pai quando é possível identificá-lo.

Muitos dos formados na escola se tornaram enfermeiros por meio de uma escola de enfermagem fundada pela Vimochana. Outros seguiram carreira como professores, engenheiros e profissionais da computação, entre outras atividades. "O mais importante é que mais de 300 garotas estão casadas e vivendo no seio da sociedade", orgulha-se Patil. Apesar do êxito da escola, muitas famílias de alunos têm reservas sobre deixar suas filhas estudar além de certa idade. "Algumas garotas têm de se casar aos 12, 13 anos, mesmo sendo excelentes alunas", lamenta Chandra.

A Vimochana e outras organizações criaram programas para educar e reabilitar devadasis e outras trabalhadoras sexuais em Karnataka. Um dos objetivos centrais é prepará-las sobre temas de saúde, em especial a Aids. Os programas oferecem treinamento em profissões como editoração eletrônica, montagem e administração de salão de beleza, fabricação de incenso, conserto de TVs e celulares. Embora tenham relativo sucesso, esses programas enfrentam um obstáculo: em vários casos, as devadasis ganhariam mais fazendo sexo do que atuando na nova profissão.

Pesquisa: Equipe Planeta Fotos: Julia Cumes/Zuma Press/ Keystone

REVISTA PLANETA
EDIÇÃO 437

sábado, 30 de janeiro de 2010

A devoção à verdade

O líder espiritual e político indiano lança uma autobiografia
e relata sua árdua campanha em favor da independência
do território do domínio dos britânicos. A seguir, um trecho da obra

O líder popular dos indianos trabalha numa roda de fios de algodão: 'conquistar as paixões mais sutis é a parte mais difícil'

Até agora, minha vida tem sido tão pública que não existe quase nada sobre mim que as pessoas já não saibam. Mas tenho me dedicado a um esforço incessante: descrever a verdade, da forma que a vejo, e da exata maneira pela qual cheguei a ela. Com esse exercício, ganhei uma inefável paz mental. Minha experiência como um todo convenceu-me de que não há outro Deus que não a verdade. Por enquanto, porém, só consegui ver alguns relances dessa verdade, e essas dão apenas uma idéia de seu indescritível brilho, um milhão de vezes mais intenso do que o do sol, que vemos todos os dias com nossos próprios olhos.

Para ver o espírito universal da verdade de perto, uma pessoa deve ser capaz de amar até a mais perversa das criaturas como se fosse ela mesma. E um homem que aspira a isso não pode se ausentar de qualquer setor da vida. É por isso que minha devoção à verdade me levou ao campo da política. Posso dizer, sem qualquer hesitação e com toda a humildade possível, que aqueles que dizem que a religião não tem nada a ver com política não sabem o que a religião significa.

Atração e repulsão - A identificação com qualquer ser vivo é impossível sem a autopurificação. Deus não pode ser percebido por alguém que não é puro de coração. A autopurificação, portanto, deve significar a pureza em todos os aspectos da vida. E como a purificação é altamente contagiosa, quando alguém se purifica, purifica também o que está ao seu redor. O caminho para isso, porém, é duro e íngreme. Para conquistar a pureza perfeita, uma pessoa não pode ter paixão no pensamento, no discurso e nas ações; deve ficar acima das correntes de amor e ódio, atração e repulsão.

Sei que ainda não tenho essa tripla pureza, apesar de lutar de forma constante e incessante nesse sentido. É por isso que todos os elogios do mundo não me comovem; na verdade, eles me provocam. Para mim, conquistar as paixões mais sutis é mais difícil do que a conquista física do mundo pela força das armas. Desde meu retorno à Índia, convivi com as paixões que se escondiam dentro de mim. Ter descoberto essas paixões me fez sentir humilhado, mas não derrotado. As experiências que me trouxeram até aqui me deram grande alegria. Mas sei que ainda tenho um caminho difícil a atravessar. Preciso reduzir-me a zero. Se um homem não se coloca por vontade própria como último entre todas as outras criaturas, não há salvação para ele.

Mohandras Karamchand Gandhi, de 60 anos, é advogado e ativista político. Entre 1893 e 1914, morou na África do Sul, onde participou de campanhas ligadas ao movimento de direitos civis naquele país. Na volta à Índia, tornou-se figura destacada nas manifestações em benefício dos pobres e das mulheres. Trabalha há mais de uma década para reduzir as tensões religiosas e étnicas na Índia e, principalmente, pela independência do território, controlado pela Grã-Bretanha. Gandhi, apelidado de "Mahatma" ("grande alma" em hindu), usa métodos que chamaram a atenção de todo o mundo. Ao invés de estimular o conflito violento com os britânicos, usa como armas a desobediência civil e a resistência pacífica para tentar alcançar seus objetivos.

Revista Veja História

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Índia - Modernização e Tradição

A Índia tem mais de um bilhão de habitantes. Somadas, sua população e a da China compreendem 40% da humanidade: 2,4 bilhões de pessoas

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Índia: o passado do futuro


Índia: o passado do futuro
Na civilização mais antiga do mundo, ritos milenares convivem com a modernidade, graças à força da tradição oral, à religiosidade aguda e à extraordinária mitologia. Não é à toa que traços dos nômades vindos da África há 70 mil anos ainda sobrevivam no país
por Mariana Sgarioni
Virumandi é um pequeno agricultor de 30 anos que vive com sua família nas montanhas de Tamil Nadu, no sul da Índia. Como todos de seu povoado, ele se casou com uma prima de primeiro grau, repetindo um rito milenar. Mal sabia que, graças a essa tradição, estava ajudando a preservar um dos mais valiosos e antigos patrimônios genéticos de que se tem notícia. No ano passado, pesquisadores da Universidade de Madurai detectaram no DNA de Virumandi rastros dos primeiros migrantes da humanidade. Ou seja, de pessoas que viveram há incríveis 70 mil anos e que estavam entre os primeiros Homo sapiens, anteriores mesmo ao surgimento da linguagem, que só apareceu há cerca de 15 mil anos. É fascinante imaginar que milênios depois, apesar de todas as migrações, invasões, guerras e colonizações, traços de um passado tão remoto ainda se encontrem na Índia. Segundo o cineasta francês Jean-Claude Carrière, nesse país de milhares de idiomas, milhares de deuses, aromas, sabores, e de 1,1 bilhão de habitantes, o "passado não é o passado". "Aqui, ele é apenas uma das formas do presente, que o assimila e o alonga", escreveu.

Além do hábito dos moradores de Tamil Nadu de se casarem com seus primos, o país tem uma fortíssima tradição oral e um sentimento extremo de religiosidade. Esses dois aspectos se refletem numa mitologia incontida, que se multiplica constantemente em deuses e cerimônias diferentes e é responsável por manter o passado tão vivo. Os novos não destroem os antigos, mas se acumulam e se misturam. Alguns ritos continuam idênticos ao que sempre foram, geração após geração. Um exemplo são os cânticos religiosos (ou mantras), sons milenares, semelhantes aos dos pássaros, entoados até hoje da mesma maneira
como o faziam os homens antes de saberem falar. Isso tudo em um país que se tornou um dos gigantes da modernidade, pólo tecnológico, com
uma economia que cresce mais de 8% ao ano.

Pois no sangue do agricultor contemporâneo Virumandi e no de todos de seu povoado, os pesquisadores encontraram o gene M130, o mesmo que estava na composição genética dos primeiros homens que saíram da África, seguiram a costa do mar da Arábia e foram parar no sul da Índia. Pode-se dizer que todos aqueles que não são africanos têm suas origens nesses primeiros indianos que habitaram o subcontinente, que incluía, além da Índia, a região dos atuais Paquistão e Bangladesh. A fertilidade das terras locais fez com que alguns decidissem ficar, enquanto os demais continuaram migrando e povoando o mundo.

Passado arqueológico

Os que ficaram organizaram-se. Pesquisas arqueológicas feitas no vale do rio Indo, a partir do século 19, identificaram uma das primeiras civilizações do mundo, maior que as do Egito e da Mesopotâmia juntas, ocupando mais de 1,5 milhão de quilômetros quadrados de território. Indicaram, também, que essa sociedade, a civilização do vale do Indo, tinha uma estrutura bastante desenvolvida e viveu seu ápice no período aproximado entre os anos 3000 e 2000 a.C. As ruínas das cidades de Moenjodaro e Harappa, os principais sítios arqueológicos dessa população antiga, mostram, ainda, que ela era urbana, mercantil e agrícola. Dividida em bairros, cortados por ruas, formando quarteirões geometricamente exatos, Moenjodaro (ou Colina dos Mortos) é conhecida
como "cidade moderna da Antiguidade". As casas eram simples, feitas de tijolo e madeira, mas com infra-estrutura sofisticada: cisternas, salas de banho, equipamentos sanitários, andares superiores e inferiores. Havia também edifícios públicos que, de acordo com os estudiosos, devem ter servido a uma administração central, composta principalmente
por autoridades religiosas.

Essa civilização precoce, dirigida por sacerdotes, é o ponto a partir do qual se traçam as raízes do hinduísmo. Foram encontradas figuras femininas de barro que, acredita-se, representavam uma deusa-mãe, mais
tarde personificada como Kali, divindade assustadora, de identidade imprecisa, que costuma ser associada ao tempo e à morte. Outra escultura desse período é uma figura masculina, com três faces, sentada em posição de ioga e rodeada por quatro animais. É uma das mais antigas representações do deus Shiva, aquele que dança, enquanto faz o mundo se mover e as ilusões se afastarem, símbolo do princípio criativo. Pilares de pedra preta, da mesma época, também foram interpretados como o falo desse deus poderoso.

A civilização do Indo entrou em declínio a partir da invasão dos ários, ou arianos. Esse povo vivia provavelmente na Ásia Central, no planalto que hoje é o deserto de Gobi, entre o norte da China e o sul da Mongólia. Seus guerreiros eram altos e tinham a pela clara. Penetraram pelo noroeste da Índia, região do Punjab, entre 1500 e 800 a.C. Alguns desses invasores excursionaram para o oeste e se tornaram os antepassados dos gregos, celtas e latinos. Outros ficaram no vale do Indo e dominaram os habitantes locais, que, a essa altura, já eram indianos de pele escura, descendentes daqueles que tinham vindo da África. A civilização do vale do Indo (chamada dravidiana) acabou por força da presença ariana, mas a língua que ela engendrou é falada até hoje, em diversas regiões do sul da Índia.

A vez dos Vedas

A invasão ária foi determinante para o início de uma nova civilização: a védica. Ela criou os Vedas, poemas e hinos sagrados, bastante complexos, que trazem as regras, a inspiração e o sentido do hinduísmo. Toda a base do que é a cultura da Índia atual está nos Vedas, cuja autoria é atribuída ao próprio Krishna, encarnação de Vishnu, um dos três deuses mais importantes da religião (ao lado de Brahma e Shiva). Compostos em sânscrito, eles descrevem rituais politeístas e normas sociais, em que se destaca a supremacia dos sacerdotes, ou brâmanes. É lá que está também a divisão da sociedade por castas. "No sistema de castas, a vaca é considerada mais pura que os brâmanes. Não pode ser morta nem ferida e tem passe livre para circular pelas ruas, sem ser incomodada por ninguém", afirma Dwijendra Narayan Jha, professor da História da Universidade de Délhi. O sistema de castas é o calcanhar-de-Aquiles da sociedade indiana e ainda exerce forte influência na divisão de classes do país, embora o Estado moderno lute contra ele por meio de políticas públicas que buscam equiparar os direitos entre os cidadãos. Os escritos antigos dividiam as pessoas “de cor” (origem do termo casta, em sânscrito), ou seja, os não-brancos ou não-arianos, de acordo com status e distribuição do trabalho. Essa segmentação valia para sempre, o que significa que não era possível haver nenhuma mobilidade social dentro da família. Em tese, a casta de uma pessoa e de todos os seus descendentes já está definida no seu nascimento, porque, do ponto de vista da religião, cada um nasce com um carma que vai precisar cumprir para que sua próxima vida seja mais afortunada. Quem nasce numa casta alta, por exemplo, é porque teve uma vida passada espiritualmente elevada, portanto acumulou um bom carma e foi recompensado nesta vida.

Por isso, os sacerdotes (brâmanes), situados no ponto mais alto das castas, são protegidos e não devem trabalhar. Sua responsabilidade é dedicar a vida ao cultivo da espiritualidade e à transmissão de seus ensinamentos. Quem está nas castas inferiores é que deve trabalhar por eles. No livro Índia - Um Olhar Amoroso, de 2001, Carrière conta ter esbarrado, nos jardins de Bombaim (atual Mumbai), com homens usando "turbantes magníficos, tendo à sua volta finas hastes metálicas, pedaços de algodão e óleo", representantes da inusitada "casta dos
limpadores de orelhas". Mas tentar fugir de seu destino, ou de sua casta,
pode ser uma decisão de alto risco. Quem ousa (ou já ousou um dia) tentar melhorar de vida, procurando um emprego melhor ou casando com alguém de casta diferente, por exemplo, pode se tornar um pária, o pior castigo para qualquer indiano. Os párias, tradicionalmente, não tinham direito a nada, eram obrigados a fazer os trabalhos mais degradantes e sequer podiam comprar roupas - precisavam tirar as vestimentas dos cadáveres para usar. Suas casas (ou taperas) eram construídas com objetos encontrados no lixo, como louças quebradas

Buda, o iluminado

Os escritos védicos, contudo, não traziam apenas as castas. Estão lá regras de casamentos, dietas alimentares, além da complexa estrutura do politeísmo indiano. "Por que ter apenas um deus, quando se pode ter
milhões?", brinca o historiador indiano Ram Nath, ex-diretor do departamento de História na Universidade de Rajastão. Os Vedas também contêm a base da medicina ayurvédica, fundada pela civilização do Indo e praticada até hoje por cerca de 400 mil médicos em
toda a Índia. Dos Vedas saíram, ainda, os grandes épicos indianos, como o Mahabarata, com cerca de 200 mil versos em sânscrito, que conta histórias dos deuses. É um texto sagrado que contém o Bhagavad Gita, outro texto fundamental para o hinduísmo. O mesmo homeageado pela canção de Raul Seixas.

Acontece que a religião na Índia não parou nos Vedas. A confluência, sincretismo ou como se chame a mistura incrível de deuses e mitos que se vê no país ocorreu principalmente a partir do século 6 a.C. Entre 543 e 549 a.C., não se sabe ao certo, nasceu o príncipe indiano Sidarta Gautama, na região da cordilheira do Himalaia, no sul do atual Nepal. Viveu no palácio de seus pais, cercado de prazeres e protegido das dores do mundo. Até que, aos 29 anos, conduzido pelo cocheiro Chandaka, saiu pela primeira vez desse jardim paradisíaco para percorrer as ruas da cidade, e descobriu, espantado, a existência da velhice, da doença, da morte e da pobreza. Chocado com o que viu, saiu pelas estradas decidido a encontrar um meio de livrar o homem do sofrimento. O príncipe abriu mão de todas as suas riquezas, tornou-se um asceta, experimentou a iluminação e passou a divulgar os fundamentos do budismo, que, por princípio, condenava o sistema de castas vigente.

No mesmo período, Mahavira, outro líder religioso que, segundo a tradição, teria vivido entre 599 e 527 a.C, fundou o jainismo. A religião tem vários elementos comuns ao budismo e também propõe, entre outras coisas, a não-violência e um rígido regime asceta. Mas o budismo foi mais difundido globalmente. Acabou se espalhando pelo mundo, quando as tropas de Alexandre, o Grande, atingiram as fronteiras do subcontinente indiano, em 334 a.C. O monarca macedônio fundou diversas cidades na região e trouxe grande influência da cultura grega para a Índia. A miscelânea religiosa continuou. Outro propagador do budismo foi o imperador Ashoka, da dinastia Maurya. Ele governou
a Índia entre 273 e 232 a.C. e é frequentemente citado como um dos maiores imperadores da história do país. Conseguiu dar fim às disputas por territórios que provocavam grande matança na época e foi, ele próprio, um bem-sucedido conquistador. Seu império se estendia dos atuais Paquistão, Afeganistão e partes do Irã até Bengala e aos estados indianos de Assã, a leste, e de Mysore, ao sul. Mas esse guerreiro se converteu ao budismo e disseminou a religião por toda a Ásia Oriental.

Ironicamente, o budismo só não fixou raízes na própria Índia. Entre outras razões, devido a uma outra influência que viria séculos depois, resultado da invasão muçulmana. O avanço do islamismo foi outro golpe na sociedade de castas. Na verdade, as invasões ao território indiano sempre foram comuns e, na maioria das vezes, os estrangeiros acabavam absorvendo a cultura local. Com a chegada dos muçulmanos, no entanto, aconteceu o contrário. A primeira incursão muçulmana data do século 8, contra as cidades do Baluchistão, do Sind e do Panjabe, que se transformaram em estados islâmicos. No início do século 12, os turcomanos avançaram sobre o oeste e o norte da Índia. Fundaram o Sultanato de Délhi, que conseguiu proteger, por quatro séculos, a região dos ataques mongóis. Quando, finalmente, em 1600, a região foi anexada ao império mongol, que durou até meados do século 19, os mongóis, ao contrário do que se pensa, também absorveram a cultura local. Casaram com mulheres indianas e promoveram ampla integração cultural. Só tiveram de sair correndo porque, em 1857, os britânicos chegaram com tudo, sem dó nem piedade.

O sal da terra

De certa maneira, os primeiros passos da Inglaterra para a dominação sobre a Índia aconteceram graças ao chá. No início do século 17, em 1615, uma missão diplomática da Companhia Inglesa das Índias Orientais negociou um acordo que dava à empresa direitos exclusivos para estabelecer fábricas em várias cidades indianas. Em troca desse monopólio destinado ao comércio do chá, a Companhia traria ao país produtos do mercado europeu. Mas fez bem mais que isso. Abriu as brechas por onde a Índia iria deixar escapar sua autonomia política. Na altura dos anos 1850, os britânicos já controlavam quase todo o subcontinente indiano, inclusive o território correspondente aos atuais
Paquistão e Bangladesh.

A região sofreu com a dominação inglesa - e esse passado faz parte da memória recente do mundo. "Minha ambição é converter as pessoas britânicas à não-violência, e assim lhes fazer ver o mal que fizeram para a Índia. Eu não busco danificar as pessoas." Ao explicar assim seu projeto político, tão simples quanto revolucionário, Mahatma Gandhi se referia às "Leis do Sal". Elas proibiam os hindus, até o século passado, de produzirem seu próprio sal, fazendo com que tivessem de comprá-lo dos colonizadores britânicos. Na Marcha do Sal, como ficou conhecida a imensa manifestação de protesto contra esse interdito, Gandhi arrebanhou uma multidão que caminhou por 400 quilômetros, pacificamente, até a beira-mar. Era o dia 6 de abril de 1930. Depois do banho sagrado, Gandhi apanhou um punhado de sal perto do mar e o levantou nas mãos. Seu gesto foi repetido por milhares de indianos. E esse ato pacífico, mas cheio de significado, inspirou uma força brutal no movimento de libertação indiano. Seus seguidores eram o "Exército da Paz". Anos depois, em 1947, sem derramar uma gota de sangue, a desobediência civil conclamada por Gandhi conquistou a independência da Índia.

Gandhi (1869-1948) tinha suas bases profundamente enraizadas na religiosidade ancestral indiana. O que explica, em parte, o tremendo impacto de suas ações. Em quase todo o país, é possível ver representações de sua imagem - magro, envolto em panos de algodão
branco, de sandálias. Nascido em casta alta, Gandhi estudou na Inglaterra e morou muitos anos no exterior, até que retornou à Índia
em 1915, convencido da igualdade entre os seres humanos. Isso significou, na prática, ir contra o sistema de castas e a dominação britânica. Seu propósito era unir a sociedade hindu e a muçulmana na luta pacífica pela independência, baseada no uso da não-violência (princípio da satyagraha, que já estava nos preceitos antigos do budismo e do jainismo). A tática para protestar pacificamente era disseminar a desobediência civil, ou seja, a disposição irredutível de não cumprir as leis britânicas. Simples assim, embora esses desobedientes determinados tenham, muitas vezes, apanhado e morrido por não ceder. Para que o derramamento de sangue acabasse, Gandhi fez intermináveis greves de fome.

Com a independência, vieram as dores da maturidade. O Paquistão se separou, e os dois países iniciaram uma disputa sangrenta pela região da Caxemira. O Partido do Congresso, a que pertencia Mahatma Gandhi, assumiu o governo da Índia, com o líder socialista Jawaharlal Nehru como primeiro-ministro. Ele foi sucedido no posto por sua filha Indira Gandhi e por seu neto Rajiv Gandhi. Gandhi, Indira e Rajiv morreram assassinados por extremistas, um cenário bem distante da não-violência que sempre defenderam. Em seus 60 anos de vida independente, a história da Índia incluiu três guerras com o Paquistão e um conflito armado com a China. Há também relatos de testes nucleares na Caxemira, a partir da década de 1970, o que gerou reações do Paquistão e sanções econômicas aos dois países por parte dos Estados Unidos.

A Índia é hoje a maior democracia do mundo e, no ano passado, elegeu Pratibha Patil, a primeira mulher presidente do país. Sofre, contudo, com as divisões internas, que foram acirradas, nos últimos tempos, por forças islâmicas extremistas, responsáveis por ataques registrados recentemente na região.

"Mesmo com todos esses conflitos, a Índia continua sendo um microscosmo da diversidade humana, sem perder sua unidade", afirma o geneticista e pesquisador Ramsary Pitchappan, professor da Universidade de Madurai. Pode ser que as crianças indianas dos dias atuais cresçam numa superpotência emergente. Mas sabem, de ouvir contar de seus pais, que fazem parte de uma cultura milenar. E elas vão continuar contando a seus filhos e netos os segredos dessa epopeia que começou há 70 mil anos, e que está muito longe de desaparecer.

Revista Aventuras na Historia