quarta-feira, 30 de junho de 2010

Da miséria camponesa à Revolução Francesa

Camila Moraes Monteiro
Marina Moraes dos Santos Berbereia

A força camponesa no início da revolução


O século XVIII foi marcado por inúmeras lutas de resistência por parte da população camponesa. A situação de precariedade foi o que motivou os homens do campo a se insurgirem contra seus exploradores. Os conflitos se espalharam pela França, gerando o receio em todos as ordens sociais, os camponeses então tiveram a dimensão da sua força.
Em meados de 1789, os camponeses possuíam uma parte considerável do solo francês, porém, como eram numerosos, a terra era partilhada e muitos ficavam com uma pedaço mínimo ou até mesmo com nada. No Norte da França, por exemplo, 77% da população não possuíam nem um hectare .Essa situação dificultava a subsistência desses homens, pois com a escassez de terras, não conseguiam produzir o suficiente para pagar os encargos, os impostos e se alimentarem. Dessa forma, as propriedades arrendadas eram freqüentemente invadidas, havendo inclusive reivindicações para que terras reais e do clero fossem distribuídas.

“ O número de nossas crianças nos desespera, não temos como alimentá-los, vesti-los: muitos de nós tem oito ou nove filhos.”
Habitantes de La Cauré, em um caderno de queixas.

Camponesa ceifando

A colheita para o camponês representava sua fonte de vida, seu trabalho, seu futuro. No inverno, período em que ela era comprometida, eles viviam de acordo com o estoque guardado da colheita anterior, e caso esta não tivesse sido muito proveitosa, tinha-se a certeza de tempos de fome. Além disso, os comerciantes, agindo de acordo com os grandes proprietários, direcionavam parte do que era colhido para vender em outras regiões a bons preços, o que indignava muitos camponeses. A vida desses homens era vulnerável, não apenas pelas variações climáticas que afetavam a produção dos alimentos, mas também pelas guerras que geravam o aumento de impostos, a maior exploração no campo e a devastação das terras.
A situação econômica da França de meados de 1770 até a Revolução estava se agravando, pois além do déficit do tesouro real, gastava-se mais do que era arrecadado, o apoio aos americanos na Guerra de Independência dos Estados Unidos gerou maiores gastos à monarquia. Para que o padrão de vida fosse mantido, foram aumentados os impostos e encargos senhoriais dos camponeses, entretanto, o que se arrecadava já não era suficiente para cobrir todas as despesas e a solução levantada foi a igualdade dos tributos, visto que o clero e a nobreza não contribuíam. Os privilegiados não aceitaram essa condição e então, medidas econômicas foram adotadas.

”Sire, meu rei, se tivésseis conhecimento do que se passa em França que vossa plebe sofre da maior miséria e da mais miserável pobreza.”
Camponeses de Champniers, em Angoumois ( antiga província francesa)

Camponês sustenta o clero e a nobreza – França 1789

No ano de 1787, é assinado um edito por Luiz XVI que permitia o comércio de cereais sem qualquer intervenção, estando livres inclusive os comerciantes para exportarem sem restrições. O intuito da monarquia era aumentar o cultivo e com isso recolher mais impostos, porém, no ano anterior as colheitas foram péssimas e os celeiros estavam vazios, logo, o preço dos cereais se elevou. Aqueles que os possuíam, eram por vezes obrigados a vendê-los pelo preço que a multidão achava justo, taxation populaire, pois o povo se alimentava basicamente de pão (é constituído por cereais, trigo, em particular)
O resultado desse edito foi a acentuação da fome, levando muitos camponeses à mendicância. Com o aumento do número de mendigos que vagavam pelo campo e pela cidade soma-se a migração de trabalhadores. A população estava instável, e o medo pairava principalmente no momento da colheita, por conta da pilhagem, do saque nas propriedades, pelos homens famintos. O contrabando auxiliou para o aumento da insegurança, assim como os cobradores de impostos que agiam com brutalidade, violentando por vezes a população.

“A noite ou de dia, aos pares ou em pequenos grupos sem jamais se aventurar só, eles atacam as fazendas (...). Tudo estremece a sua chegada; ameaçam os homens espancam as mulheres, quebram os móveis, abrem e derrubam os cofres, os armários e se vão levando sempre alguma rapina, quando não carregam consigo algum infeliz para o cárcere. ” Relato de um camponês francês

O historiador George Rudé, destaca que a forma típica de protestos por parte de trabalhadores eram os motins, motivados pela escassez e carência de alimentos. No ano de 1789 houve motins da fome em diversas regiões francesas, entretanto, nem todos tinham a mesma intensidade, a mesma forma. Alguns motins eram organizados para saquear depósitos, outros para destruir moinhos ou arquivos que continham títulos senhoriais, punindo assim os proprietários, ou até mesmo destruir barcos com alimentos destinados à exportação.
O historiador Georges Lefebvre, explica que a maioria das pessoas que prevaleciam nos motins não eram bandidos e criminosos, mas sim pequenos camponeses, trabalhadores sem terras e artesãos rurais que viam naquele ato uma chance de modificarem sua situação. Para Lefebvre, a fome foi a principal causa da Revolução Francesa.
Luiz XVI ordenava a repressão, mas como o exército não estava bem articulado e os soldados inferiores eram compostos pelo povo, aliaram-se à causa, dificultando a repressão. As revoltas camponesas do mês de julho de 1789 inquietaram a população, estendendo-se a várias regiões. A administração real sem recursos suficientes, se viu acuada e a instabilidade se espalhou de maneira geral. Uma atmosfera de tensão era criada. A França estava em turbulências e diante dessa instabilidade, o rei convocou os Estados Gerais, pela primeira vez desde 1614. Os Estados Gerais eram um órgão político composto pelas três ordens sociais e era convocado para aconselhar o rei em alguma decisão. O que se iniciaria como um projeto para escutar as queixas de seus súditos e organizar a administração da França, acabou se transformando em uma Revolução.
Boatos com suspeita de acontecimentos que geravam o medo na população eram espalhados, atingindo rapidamente várias regiões. A origem disso estava no fato dos camponeses ameaçarem os bens do restante da nação, de boatos da conspiração aristocrática e das sublevações espalhadas pela França, tanto urbana quanto rural. O resultado do Grande Medo foi a disseminação da idéia de armamento do povo, eles não recuaram, pelo contrário, se insurgiram, intensificando as revoltas rurais contra os nobres e o alto clero.

Rebelião camponesa - 1789

O camponês viu na convocação dos Estados Gerais, a possibilidade de melhorar sua condição de vida. Conscientes de sua força e preparados para modificar aquela vida de mendicância, desemprego e fome, os camponeses lutaram para arruinar o regime senhorial. Sem uma representação política que pudesse assegurar o controle do Estado, se aliaram à burguesia, porém, ela estava interessada somente em modificar a relação de forças do Antigo Regime e não em derrubá-lo.

Cronologia :

1776 - Início da Guerra de Independência Americana, que se estendeu até 1783. A França auxiliou essa guerra.

1786 – Tratado de Éden. A França libera a entrada de produtos industriais ingleses, levando muitos pequenos industriais e artesãos á falência.

1787- Primeira assembléia dos Notáveis contra a imposição de novos impostos e a reforma fiscal.

1789
 24 de Janeiro - Convocação dos Estados Gerais
 9 de Julho – Proclamação da Assembléia Nacional Constituinte
 14 de Julho – Tomada da Bastilha. Generalizam-se as revoltas populares na cidade e no campo. Início do Grande Medo

Bibliografia:

ANDERSON, Perry. Linhagens do estado Absolutista. 2º ed. São Paulo. Brasiliense, 1989

HOBSBWAM, Eric J. A era das revoluções. 19ª ed. Rio de Janeiro, RJ. Paz e Terra, 2004.

LEFEBVRE, Georges. O grande medo de 1789: os camponeses e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro, RJ.Editora Campus. 1979.

RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra(1730-1848). Rio de Janeiro, RJ.Editora Campus, 1991.

SOBOUL, Albert. A revolução Francesa. 5. ed. Rio de Janeiro. DIFEL, 1985.

SOBOUL, Albert. Camponeses, sans-culottes e jacobinos. Lisboa, Portugal. Seara Nova, 1974.

Núcleo de Estudos Contemporâneos - UFF

A Revolução Mexicana por Diego Rivera

Afresco de Diego Rivera sobre o tema da Revolução Mexicana de 1910

A Revolução Mexicana por Diego Rivera

No México, a Revolução de 1910 foi retratada por Diego Rivera e outros artistas que faziam parte do movimento muralista. Em vez de pintarem quadros presos em cavaletes – que depois acabariam enfeitando a parede de algum colecionador, – Rivera e seus companheiros passaram a usar as próprias paredes como suporte. Com o apoio do Ministério da Educação, pintaram murais em palácios, igrejas, pátios de prédios ministeriais, escolas, museus e Câmaras legislativas. Isto permitia que a arte fosse, sobretudo, pública.
E do que tratavam os murais?

Tendo em vista que a Revolução Mexicana tirou do poder oligarquias que governavam o país havia 35 anos, a produção cultural passou a denunciar a elite, com imagens de índios oprimidos e explorados pelo colonizador e pela Igreja Católica. Mesmo quando os murais eram feitos em palácios públicos, não havia imposição quanto ao assunto retratado. Os artistas tinham liberdade para escolher os temas.

Diego Rivera foi o expoente máximo do movimento muralista. Ele acabava de voltar da Europa, onde aprendera que grandes artistas haviam se inspirado nas tradições dos seus próprios países para criar suas obras. Assim, Rivera misturava poemas astecas a símbolos da Revolução. No mural acima, feito na parede do Teatro Insurgentes, a imagem que se destaca é a do líder revolucionário Emiliano Zapata, assassinado em 1919. Ele está segurando uma tocha – provavelmente em alusão ao fervor da Revolução – e uma espiga de milho, lembrando a classe dos camponeses menos favorecidos. À direita da pintura, há uma figura cujos traços lembram bastante os deuses da mitologia asteca.

31/08/2007

Todos prontos? Chegou a hora da Revolução

A Revolução Mexicana foi um conflito complexo, que envolveu todo o território mexicano e todas as classes sociais, dos camponeses às elites. Eclodiu como um movimento eminentemente político; afinal de contas, o estopim dos embates foi a crise gerada pela sexta reeleição de Porfírio Díaz. A oposição criou um movimento pela não- reeleição e lançou como candidato um rico fazendeiro do norte do país chamado Francisco Madero. Este movimento ganhou rapidamente o apoio popular e Díaz, para evitar maiores problemas, mandou prender seu opositor até o dia do pleito. Este conseguiu fugir para os Estados Unidos e de lá convocou a população para, no dia 20 de novembro de 1910, às 18 horas, se rebelar contra a ditadura. Podemos dizer que esta foi uma das poucas revoluções com data e hora marcadas para começar.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Notícias ao molho chilli

Notícias ao molho chilli
A cobertura da Revolução Mexicana de 1910 dividiu a imprensa: uma parte baseou suas reportagens nas informações da mídia norte-americana e outra no ponto de vista dos camponeses
Carlos Alberto Sampaio Barbosa

Há cerca de doze anos, um grupo guerrilheiro surgiu com uma ação relâmpago nas montanhas de um desconhecido estado do sul do México: Chiapas. Sua maneira original de agir, utilizando os meios de comunicação, principalmente a Internet, a crítica ao neoliberalismo e à globalização, além da figura carismática de seu porta-voz, o subcomandante Marcos, chamaram a atenção da mídia, e, como não podia deixar de ser, da imprensa brasileira. Era o nascimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN. As tensões políticas advindas dos enfrentamentos entre neozapatistas e governo federal, além dos vários assassinatos políticos ao longo daquele ano, levaram, em dezembro de 1994, a uma fuga de aproximadamente 50 milhões de dólares do país. No ano seguinte, estes acontecimentos afetaram outros países emergentes, como a Argentina e o Brasil. O fenômeno ficou conhecido como “efeito tequila” e trouxe o México para as manchetes dos nossos jornais.

Mas o México já vem chamando a atenção da imprensa brasileira há muito mais tempo. Ao longo de todo o século XX, este país, com uma rica história cultural e política, por diversos motivos fascinou e atraiu jornalistas, escritores, artistas e intelectuais. A Revolução Mexicana, que eclodiu em 1910, representou a primeira revolução social, tanto em território latino-americano quanto mundial, precedendo a própria Revolução Russa.

Na época, o jornal O Estado de S. Paulo deu um destaque considerável a este acontecimento. Quase diariamente, publicava notas sobre os desdobramentos revolucionários e chegou a imprimir algumas fotografias dos seus protagonistas. Em contrapartida, o jornal A Voz do Trabalhador, um dos mais importantes das duas primeiras décadas do século XX, criticava a cobertura dada pela imprensa “burguesa” à guerra civil mexicana. As críticas, em grande parte, parecem direcionadas aos jornais brasileiros, como O Estado de S. Paulo, e suas notícias, editadas a partir de informações provenientes da mídia norte-americana.

De fato, as notícias publicadas em O Estado de S. Paulo foram geradas a partir de jornais e revistas da época, como New York Times, New York Sun, New York Herald, Financial News, Daily Mail, Daily News e Morning Post. Esta constatação é interessante, pois denota um intercâmbio de notícias e informações entre órgãos de imprensa brasileiros e norte-americanos. Outras pequenas notas eram enviadas por agências de notícias, como a francesa Havas, a britânica Reuters e, em especial, as norte-americanas International News Service e United Press.

O jornal A Voz do Trabalhador, ao contrário de O Estado de S. Paulo, não utilizou a rede de agências internacionais de notícias. Procurou estabelecer conexões alternativas, como o intercâmbio com publicações anarquistas. Sua visão da Revolução Mexicana enfocava a situação dos camponeses e a questão da terra a partir de uma perspectiva do movimento operário brasileiro. Um dado que chama a atenção foi o anúncio da venda do jornal Regeneración, disponível para compra na redação de A Voz do Trabalhador, ao preço de 500 réis o exemplar. Este fato permite supor a existência de uma rede de distribuição do Regeneración no Brasil, assim como existia em Buenos Aires e Montevidéu. O jornal Regeneración era o órgão de propaganda do PLM (Partido Liberal Mexicano), e naquele momento estava sendo editado nos Estados Unidos.

Um trecho retirado de matéria publicada em A Voz do Trabalhador três anos após a queda de Porfírio Díaz (militar que tomou o poder no México em 1876 e se manteve no cargo por meio de sucessivas eleições até 1911) mostra o posicionamento deste jornal em relação ao tratamento dado pela grande imprensa brasileira à Revolução Mexicana: “De vez em quando os jornais burgueses publicam telegramas, recebidos por vias indiretas, noticiando uma ou outra batalha no México. Essas notícias, para quem não acompanhou o movimento desde o começo, podem levar a crer que a revolução no México é feita com impulsos espasmódicos, que o governo consegue abafar imediatamente. Puro engano. A revolução, iniciada há três anos, com a queda de Díaz, continua até hoje com a mesma intensidade e não cessará, embora apareçam ‘salvadores da situação’ como Madero e Huerta, enquanto os peões não obtiverem o que tanto sangue lhes custou: a restituição das terras que lhes foram roubadas”.

As notícias tiveram maior destaque no ano de 1913, período que coincide com a fase mais intensa da participação popular na Revolução. Assim, em um conjunto de artigos publicados ao longo desse ano, os editores do jornal expressaram uma série de posicionamentos, como a declaração de apoio aos rebeldes mexicanos; a explicação da situação política no país do ponto de vista dos revolucionários camponeses e o envio de uma carta de protesto ao presidente dos Estados Unidos, contra a detenção dos líderes do Partido Liberal Mexicano Ricardo e Enrique Flores Magón, Anselmo Figueroa e Librado Rivera.

Mas quais eram as temáticas mais recorrentes nas matérias publicadas pelo Estado de S. Paulo nesse período? Em primeiro lugar, uma parcela considerável era referente aos Estados Unidos e seus interesses econômicos e políticos no México; em segundo lugar, as notas descreviam o desenrolar dos acontecimentos internos no México; em terceiro, os diversos acontecimentos de fronteira entre México e Estados Unidos e, por fim, também mereceram destaque a mobilização de tropas e a possibilidade de intervenção norte-americana. Ou seja, predominava a perspectiva norte-americana do conflito.

O principal articulista do jornal O Estado de S. Paulo era o embaixador Oliveira Lima, que redigiu vários artigos durante sua estada em Bruxelas, na Bélgica, entre 1908 e 1912. Nessa fase, seu trabalho consistiu em atividades mais voltadas para uma diplomacia cultural, pois fez uma série de conferências em universidades européias. Nos artigos escritos para o jornal, assim como em seus livros, expressou sua opinião de que as repúblicas hispano-americanas tiveram suas histórias marcadas pelo caudilhismo, pelo militarismo, pela instabilidade política, pela debilidade econômica, política e cultural, o que facilitou o expansionismo dos Estados Unidos.

O primeiro artigo foi publicado na coluna “Coisas Estrangeiras” com o título “A situação no México”. Nele, traçava um perfil do país e de seu governante: “A morte do presidente Díaz significaria uma perturbação profunda da tranqüilidade pública do país, que, sob sua ditadura de mais de trinta anos, desenvolveu consideravelmente os seus recursos, alcançando notável grau de prosperidade e de crédito, e até a reputação de uma nação organizada, estável e progressista, tal a irradiação projetada pela paz forçada em que tem ela vivido desde que a governa a mão férrea”.

O autor destaca que foi este centralismo político que levou ao desenvolvimento econômico, à estabilidade política, e que transformou a imagem da nação. Em outro momento, ele continuou destacando os atributos e métodos políticos do presidente: “Com Dom Porfírio desaparecera um dos homens eminentes de século XIX (...). Foi este o segredo do êxito das sucessivas administrações de Díaz: nenhum quartel aos adversários em armas (...). Resta saber se com outro método teria Dom Porfírio imposto a paz e feito voltar a ordem no México (...). Chega-se a duvidar que pudessem surtir efeito processos diferentes. Não sei de história mais anarquizada e mais vergonhosa”. Embora o considerasse um “fazedor de nação”, esta interpretação não o impedia de compará-lo a outros ditadores de repúblicas latino-americanas, como veremos mais adiante.

As dificuldades de Díaz decorriam do caos político e econômico reinante durante as décadas anteriores, em especial no governo do general Antonio López de Santa Anna, com vários mandatos entre 1833 e 1855, que Oliveira Lima considerava um “truão sinistro” (uma espécie de palhaço), e completava dizendo que este agia “ora trucidando adversários, ora fazendo-se chamar de ‘Alteza Sereníssima’, ou fugindo covardemente diante dos americanos, ou tratando de negociar pedaços do território nacional e a própria independência da pátria (...) general de comédia (...)”.


A proximidade do México com os Estados Unidos também era uma das questões mais debatidas na imprensa brasileira. Qual seria a atitude dos norte-americanos com seu vizinho do sul? Além disso, os norte-americanos, nos últimos anos do século XIX e no início do XX, fizeram maciços investimentos em solo mexicano. Construíram milhares de quilômetros de estradas de ferro e interligaram esta rede às suas malhas ferroviárias. Investiram também na exploração de petróleo, carvão e minérios.

Oliveira Lima aborda estes temas em outro artigo, publicado no dia 10 de julho de 1911. Nele, desenvolveu a tese de que o país foi dominado pelos grupos econômico-financeiros norte-americanos, que possuíam investimentos de aproximadamente 900 milhões de dólares. O resultado foi o reflexo do domínio econômico no ambiente político. Lima escreveu: “Para onde quer que corra o capital, este dominará o governo”.

Esta análise da situação econômica e a inter-relação com os Estados Unidos se aproximam de interpretações mais recentes das causas da Revolução Mexicana, como a de John Hart. Para este autor, a Revolução foi um movimento de massa, de caráter nacionalista, diante da penetração imperialista norte-americana. Neste sentido, foi uma das primeiras reações contra a penetração econômica e o controle político dos Estados Unidos, comparável com outros movimentos revolucionários ocorridos no mundo nesse momento. Esses fenômenos se caracterizavam por serem reativos ao imperialismo britânico ou norte-americano, como as revoluções chinesa, iraniana e russa de 1905.

O que chamou a atenção de Oliveira Lima foi que, “com tanta ameaça de desassossego do outro lado da fronteira” e a iminência de uma guerra civil generalizada, e, ao mesmo tempo, com tantos investimentos no país, não se cogitava a anexação do México aos Estados Unidos. Essa contradição era explicada pela seguinte conclusão: intervenção sim, para proteger seus interesses, “incorporação não, porque o sistema de trabalho, que permite os referidos lucros, com muito maior certeza se manterá sob a bandeira mexicana que sob a bandeira americana (...), e enquanto puder ser conservado como uma colônia servil, não será anexada”. E, de fato, a intervenção direta aconteceu posteriormente.

Foi durante o mandato do presidente republicano William Taft que o embaixador norte-americano articulou o golpe de Estado que derrubou Francisco Madero em fevereiro de 1913, levando ao poder Victoriano Huerta, um militar que era visto como simpático aos Estados Unidos. Um ano depois, o novo presidente norte-americano, o democrata Woodrow Wilson, enviou fuzileiros navais norte-americanos para desembarcarem em Veracruz, principal porto de escoamento das exportações mexicanas. Este presidente, recém-empossado, optou pela intervenção armada como forma de influenciar na correlação de forças da guerra civil. Wilson iniciava assim uma política diferenciada em relação ao México; desejava um vizinho estável e que garantisse os investimentos americanos naquele país.

Em outro artigo, “O ocaso de um grande homem”, publicado alguns dias depois, Oliveira Lima comparou Díaz a outros “tiranos” latino-americanos, como Juan Manuel de Rosas, da Argentina, e Julián Castro, da Venezuela. Utilizou como subsídio para este artigo o livro Barbarous Mexico – An Indictment of a Cruel and Corrupt System. Este livro, publicado em 1911, foi escrito pelo jornalista norte-americano John Kenneth Turner. Incluía fotografias impressionantes, que chocaram a opinião pública norte-americana na época. Relatava as atrocidades cometidas pela polícia secreta do Estado mexicano. No artigo de Oliveira Lima, o regime de Porfírio Díaz era definido como de “caciquismo” político, dominado pelos chefes políticos locais, sustentado pela polícia rural e por um exército violento e ignorante.

A América de origem espanhola não era tão desconhecida do público brasileiro no início do século XX. Havia uma circulação de informações e idéias. Enquanto Oliveira Lima, a partir da Europa, escrevia sobre assuntos mexicanos no jornal O Estado de S. Paulo e comentava as notícias dos jornais norte-americanos e dos livros recentes publicados nos Estados Unidos, era possível comprar, em plena cidade do Rio de Janeiro, exemplares de um periódico político editado nos Estados Unidos e voltado para o público mexicano. Os acontecimentos da Revolução Mexicana romperam fronteiras e ecoaram em território brasileiro.

Carlos Alberto Sampaio Barbosa é Professor De História Da América No Departamento De História Da Faculdade De Ciências E Letras Da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis) E Autor Do Livro A Fotografia A Serviço De Clio: Uma Interpretação Da História Visual Da Revolução Mexicana 1900 – 1940. São Paulo: Editora Da Unesp, 2006.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Um lugar para as crianças


Um lugar para as crianças
Em Santa Catarina, nos anos 1930, menores abandonados ficavam sob a tutela de guardiões. Acabavam trabalhando muito e estudando pouco
Silvia Maria Fávero Arend

No programa “Casa de caboclo”, transmitido por uma rádio de Florianópolis em 1970, o locutor leu o pedido de uma ouvinte, moradora de uma localidade chamada Morro do Céu: ela pretendia “dar” uma menina de 4 anos, de “cor branca”, a uma “pessoa boa” que tivesse condições de criá-la. Explicou que era pobre, mãe de cinco filhos, e não tinha marido. Uma criança a mais implicava um encargo com o qual não poderia arcar. O apelo foi atendido: dias depois, um jovem casal foi buscar a menina e a levou para casa, alegando que precisava de uma companhia para a filha de 2 anos.

Desde o período colonial, este é um costume presente na sociedade brasileira. Mães e pais provenientes das camadas mais pobres da população costumavam transferir seus filhos para lares de parentes, vizinhos, conhecidos ou até mesmo de pessoas “estranhas”, residentes no país ou no exterior. Essas migrações interfamiliares aconteciam, com freqüência, na informalidade. As crianças eram passadas adiante sem qualquer papel ou registro oficial que documentasse o fato. Tornavam-se “crias da casa”, “agregados” ou “filhos de criação”, e não era incomum receberem tratamento diferenciado em relação aos filhos legítimos do casal adotante.

Durante muito tempo, esse costume cumpriu um papel social importante. Era uma forma de salvar crianças carentes de um mau destino. Desde o final do século XVIII, a criança tornara-se objeto de preocupação dos governantes europeus. A razão não era propriamente humanitária. É que os índices de mortalidade infanto-juvenil eram bastante elevados. Era preciso que meninos e meninas pobres chegassem à idade adulta para que pudessem compor os efetivos dos exércitos, povoar as colônias e mover as máquinas da indústria. Até então, o dever de manter as crianças vivas e saudáveis era assunto privado, da alçada exclusiva dos pais. Mas como estes muitas vezes não podiam ou não conseguiam proporcionar aos filhos os cuidados necessários, o Estado passou a intervir cada vez mais na questão.

No Brasil, políticas públicas voltadas para a infância ganharam vulto nas primeiras décadas do século XX, capitaneadas por médicos e juristas. Em 1927, foi sancionado o primeiro Código de Menores, o que levou à criação de Juizados de Menores em quatro cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife. Este fato é considerado um marco na história da infância e da juventude no Brasil. A partir do advento de uma legislação específica e de instituições encarregadas de zelar pela sua aplicação, ocorre uma mudança radical: a migração de menores deixa de ser um assunto resolvido entre famílias. Caso uma criança não tivesse ninguém que cuidasse dela, o Estado assumiria essa função.

Em Florianópolis, o Juizado de Menores foi criado em 1935 pelo governador Nereu Ramos. Este novo movimento nascia sob a bandeira dos direitos sociais implementados pelo governo de Getulio Vargas. Para as autoridades locais, era necessário regularizar principalmente a situação dos meninos e meninas que andavam “vadiando” ou mendigando pelas ruas da cidade, oferecendo, já naquela época, um espetáculo condenado por parte da população. Um conjunto de ações (que hoje seriam chamadas de programas sociais) foi então instituído, visando encaminhar essa população infanto-juvenil para melhores rumos.

Em 1936, a antiga prática de famílias mais ricas acolherem filhos de pais pobres passou a ser feita sob a fiscalização do Estado. Inicialmente, abria-se um processo chamado Auto de Abandono Administrativo de Menor, em que o pátrio poder era retirado dos pais biológicos com base no Código de Menores de 1927. Pessoas comprovadamente idôneas se comprometiam a zelar pela alimentação, pelo vestuário e pela educação da criança ou do jovem que trocava de família. Chamavam-se guardiões. Ao acolher em seus lares esses “filhos de criação”, passavam a receber mensalmente a “soldada”, um pequeno montante em dinheiro pago pelos cofres públicos.

Em geral, os guardiões eram funcionários públicos de baixo escalão, policiais militares, comerciantes, profissionais liberais ou lavradores que residiam no interior do estado de Santa Catarina. Mulheres idosas, celibatárias ou viúvas, também acolhiam em seus lares esses filhos de criação. Em algumas situações, os próprios responsáveis solicitavam ao magistrado que seu filho fosse enviado para a casa de um guardião. Mas, às vezes, a decisão ficava por conta do próprio Juizado de Menores. Eram os casos que envolviam órfãos ou pais que não tinham condições morais de criar a prole, razão pela qual deixavam as crianças soltas pelas ruas, mendigando ou praticando “alguma gatunice”. O sistema de guarda era diferente do instituto da adoção atualmente em vigor. O pátrio poder era retirado de forma provisória, e os pais biológicos podiam reaver seus filhos se quisessem. Mas, para isso, tinham de cumprir um longo trâmite burocrático.

Entre 1936 e 1940, 280 crianças e adolescentes foram transferidas pelo juiz de menores de Florianópolis para famílias de guardiões, a maioria entre 7 e 18 anos. Os lares dos guardiões eram, de tempos em tempos, inspecionados por funcionários do Juizado. Naquela época, Florianópolis tinha várias residências com grandes quintais. Os meninos e rapazes acolhidos pelos guardiões, além de auxiliarem nas tarefas de dentro da casa, costumavam ser responsáveis pelo cuidado dos animais domésticos e pelas lides nas hortas, nos pomares e jardins. Outros, sobretudo os que moravam nas casas de mulheres solitárias e de poucas posses, trabalhavam como ambulantes, vendendo amendoim torrado, doces, frutas e verduras pelas ruas do centro da cidade. As meninas, por sua vez, trabalhavam como empregadas domésticas ou babás. Algumas moças, todas identificadas nos processos como brancas, exerciam a função de dama de companhia em famílias ricas. Estas tinham mais sorte e estudavam nos melhores colégios da região, mas constituíam uma exceção à regra. Em geral, meninas e moças eram impedidas de freqüentar aulas por causa da excessiva carga de trabalho diário na residência dos guardiões. Caso demonstrassem vontade de estudar, eram desestimuladas pelos adultos que as haviam acolhido. Já os filhos de criação do sexo masculino geralmente freqüentavam mais os bancos escolares, mesmo que fosse por curtos períodos.

Às vezes chegavam ao juiz denúncias de maus-tratos, mas em nenhum desses casos a criança ou o adolescente foram transferidos para outra morada. Afinal, o castigo físico, com o objetivo de “educar” as crianças, era uma prática aceita na época. Em cartas endereçadas ao magistrado, menores reclamavam também da pouca comida e do parco vestuário recebidos dos pais de criação. Em situações extremas, crianças e jovens queixosos fugiam das casas dos guardiões e iam perambular pelas ruas.

Por essas e outras, autoridades do setor começaram a ver o sistema de guarda de menores como uma solução apenas paliativa, com aspectos positivos e negativos. O positivo é que a estada dos menores nas casas de seus guardiões garantia sua sobrevivência. O índice de mortalidade de crianças e jovens no período foi realmente baixo. Por outro lado, as famílias acolhedoras, apesar de financiadas pelo governo, dificultavam ou mesmo impediam o acesso dos filhos de criação ao saber escolar que lhes daria maiores chances de ascensão social.

Com o tempo, as dificuldades encontradas por famílias que queriam reaver os filhos antes doados acabaram afastando a população pobre desse programa de assistência, que deveria justamente beneficiá-la. Havia ainda outro problema grave: a dificuldade de encontrar famílias em Santa Catarina dispostas a acolher crianças negras e mestiças. De fato, segundo registros do Juizado de Menores, a maioria dos menores abandonados era de cor branca. Por essa razão, a criação do Abrigo de Menores de Santa Catarina, inaugurado em 1940 pelo presidente Vargas, foi saudada no período como um grande feito. Com a nova instituição, o Estado assumiria a missão de cuidar da formação dos menores do sexo masculino considerados carentes e abandonados, sem distinção de cor.

Grande parte dos menores do sexo masculino foi então transferida das casas das famílias acolhedoras para o Abrigo, enquanto meninas e moças permaneciam nos lares dos guardiões. Otimista, o juiz de menores de Florianópolis acreditava que todos os problemas de assistência à infância e à juventude em situação de risco seriam sanados. Contudo, não foi o que aconteceu. Passados 70 anos, a questão continua na ordem do dia, e agravada. O ideário dos grandes abrigos para menores foi superado. Seu desmonte associa-se a um conjunto de idéias que indica justamente a família consangüínea ou mesmo uma família substituta como as instituições mais aptas a criar o ambiente ideal de que crianças e adolescentes necessitam para sua formação.

Em outras palavras: muitos dos programas sociais apresentados atualmente como inovadores já tiveram similares em épocas remotas. Será que essas experiências passadas não podem nos servir de lição, aperfeiçoadas e adaptadas para os dias de hoje? O diálogo entre presente e passado pode fornecer contribuições importantes para equacionar este antigo e complexo problema.

SILVIA MARIA FÁVERO AREND é professora de História da Universidade do Estado de Santa Catarina e autora da tese “Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil (década de 1930)” (UFRGS, 2005).

Saiba Mais - Livros:

KUHLMANN JÚNIOR, Moisés; FREITAS, Marcos Cézar (orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

MIRANDA, Humberto; VASCONCELOS, Maria Emília (orgs.) História da Infância em Pernambuco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.

PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene (orgs.) A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Amais Livraria e Editora, 1995.

PRIORE, Mary del (org.) História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1998.

Saiba Mais - Site:

Agência de Notícias dos Direitos das Crianças (www.andi.org.br)

Revista de História da Biblioteca Nacional

Como o Diabo Gosta!


Como o Diabo Gosta!
Periódico revela as diabruras de um salão carnavalesco carioca na década de 1930
Murilo Sebe Bon Meihy

O Rei Momo, quem diria, fantasiou-se de demônio para o carnaval de 1931! As provas desse animado infortúnio podem ser consultadas na Biblioteca Nacional. Entre os periódicos da divisão de Obras Raras encontra-se um exemplar do jornal O Baeta: Pasquim Carnavalesco; um folhetim do Clube dos Tenentes do Diabo. Trata-se de uma agremiação carnavalesca fundada em 1855 sob o nome de “Sociedade Euterpe Comercial”, e que mais tarde passou a somar ao nome a designação de “Tenentes do Diabo”. A opção pela troca do nome possui inúmeras justificativas. Uma delas, expressa no exemplar analisado, sugere que uma grande confusão causada pelo incêndio de uma farmácia na rua Direita em 1861 fez o clube renascer: “ ... A Euterpe Commercial suppondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos sócios, para lá correu, e, com seu uniforme carnavalesco, auxiliando o Corpo de Bombeiros, portou-se, com maior valentia. Extincto o incêndio, levantaram-se para Ella as labaredas do prestigio. Novos sócios entraram; o enthusiasmo aviventou-se e não longe desse baptismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no chrisma de Momo o de Tenentes do Diabo.”

Parece claro que uma reunião de foliões tão ativa e entusiasmada andou “infernizando” a ordem e as autoridades policiais cariocas ao longo de sua existência. Um bom exemplo dessa relação intempestiva é o conhecido envolvimento do Clube dos Tenentes do Diabo na campanha abolicionista que ganhava força na segunda metade do século XIX. Além de emprestar sua sede para reuniões sediciosas de líderes favoráveis ao fim da escravidão, o clube teria destinado o dinheiro recolhido para a confecção de carros alegóricos e fantasias, à compra de cinco cartas de alforrias no carnaval de 1864. Os escravos que tiveram sua liberdade adquirida pelos Tenentes do Diabo passaram a morar na sede do clube, prestando pequenos serviços aos associados.

Ao longo dos anos, mesmo com o fim da escravidão no Brasil, as relações dos foliões com a polícia manteve-se “entre a cruz e a caldeirinha”. No exemplar de O Baeta, um artigo chama a atenção do leitor. Com o título de “Lasciate ogni speranza o’ voi que entrate! Rectificando uma ‘noticia encomendada’”, O Baeta publicou uma nota saída no Correio da Manhã que explicava um escândalo envolvendo o clube e dois investigadores de polícia. Em um de seus bailes pré-carnavalescos, os Tenentes do Diabo receberam a súbita visita dos policiais. Na versão dos guardas, procuravam uma mulher envolvida com cocaína; para os diretores do clube, os investigadores não passavam de “penetras” que tentavam participar do baile.

Nas palavras do artigo: “... os investigadores implicados no caso agiram perversamente, procurando deixar compromettido o grêmio carnavalesco, por uma futilidade, em que não tinham a menor dose de razão. Elles não foram à sociedade em perseguição de mulher alguma. Saltando em frente à sede (...) appareceram ali, subiram as escadas e pretenderam entrar no salão. Foram impedidos de o fazer por um dos diretores, o qual lhes pediu provassem a sua qualidade de policiaes. Isso foi o suficiente para que os investigadores se melindrassem, inventando toda aquella história de cocaína, que não passa de mera fantasia, segundo affirmam.”

Mas, as desventuras do Clube dos Tenentes do Diabo com a ordem pública pareciam dar uma pitada de enxofre ao carnaval carioca. Em outra noticia do mesmo exemplar de O Baeta, o redator narra o desfecho de uma competição nada salutar entre um de seus sócios e um integrante da agremiação Cordão do Bola Preta, pelo estandarte de ouro no quesito “desordem e arruaça”: “No ultimo baile realizado na ‘Caverna’ (nome dado a sede do Clube dos Tenentes do Diabo) desavieram-se por questões de preferências femininas, o conhecido ‘baeta’ Augusto e o ‘bolapretano’ Palmyro. Da discussão passaram às vias de facto e Palmyro, valendo-se de sua mão direita desferiu cantante bofetada em plena face do adversário. (...) Em auxilio de Augusto correu o ‘Domigos Puré’ que, prevalecendo-se de estar Palmyro deitado, pespegou no mesmo, em lugar delicado, antropophaga dentada...”

Na hierarquia militar celestial do carnaval, os Tenentes do Diabo seguem à risca as ordens de seu general.

Revista de História da Biblioteca Nacional

UMA ÁRIA PARA A HISTÓRIA DO BRASIL

por Luiz-Olyntho Telles da Silva

Uma contribuição ao Colóquio nacional sobre

A cordialidade: A crítica da ambigüidade na cultura, na política e no cotidiano

Fernand-Anne Piestre: Caïn – Museu d’Orsay

UERGS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL
UNIVERSIDADE ABERTA
13 e 20 de julho de 2005
Auditório do Memorial do Rio Grande do Sul

R e s u m o

O trabalho consiste em uma leitura de alguns pontos do capítulo 5 de Raízes do Brasil, de S. Buarque de Holanda, e de associações daí decorrentes. Desde a proposta de confronto entre família e Estado, passando pela concorrência entre os cidadãos, o conceito de cordialidade é examinado desde a Antígona de Sófocles aos dias de hoje, com uma incisão no período marcado pela segunda guerra mundial. Depois de caracterizar a cordialidade como uma característica comum a todos os povos, ensaiando seu posicionamento como uma ligação entre as pulsões de vida, amorosas, e as de morte, destruidoras (conforme descritas por Freud), o autor destaca a originalidade de S. B. de Holanda em haver reconhecido esta característica no brasileiro, condição primeira no caminho de construção de uma independência simbólica. Buscando exemplificar uma das faces desta cordialidade do brasileiro, o texto finaliza com uma breve e particular leitura da Ópera do Malandro composta por Chico Buarque de Holanda.

Es wird den Menschen offenbar nicht leicht, auf die Befriedigung dieses ihrer Aggressionsneigung zu verzichten.1
SIGMUND FREUD, Die Unbehagen in der Kultur (1930[1929])

A preocupação com a cordialidade é uma preocupação com a ética, e este Colóquio é uma sacudida em direção ao acordar, se me permitem o trocadilho. Quem nos sacode é a Profª. Kathrin Holzermayr Rosenfield, e depois de acordados não podemos permanecer na indiferença.

Isto me lembrou de um certo diálogo entre Costa-Gravas e o Prefeito de uma cidadezinha do norte francês, ao final das recentes filmagens de Le Couperet – um filme sobre o desemprego para a televisão francesa. Quem conta a história é Fernando López em La Nación: Costa-Gravas, horrorizado com as palavras ao mesmo tempo sinceras e amargas - justamente por isto terríveis – do Prefeito, dizendo que hoje Já não se pode fazer nada, teria feito o seguinte comentário: A indiferença é o principio da morte. Vejo ao redor de mim pessoas que, com a experiência, tornam-se um pouco cínicas: são os que dizem que as coisas, de qualquer modo, nunca mudam. Eu resisto e trato de fomentar esta rebeldia. – É assim que escuto a sacudida proposta da Profª. Kathrin: um anátema à indiferença. É desde aí que sua proposta faz laço social e é por isto que eu lhe agradeço o convite. Agradeço por me levar a pensar nesse conceito estranho ao campo da Psicanálise, um conceito no qual eu nunca havia me detido até então.

Estamos preocupados com a ética e ela não é a moral. Quando penso em ética penso nas conseqüências dos atos, do ethos, nossos costumes, nossa casa, nossa pele. Aquilo que fazemos tem sempre uma conseqüência, queiramos ou não, saibamos ou não!

Eu lhes propunha então o trocadilho acordar, com o duplo sentido de tirar do sono / acabar com a diferença. Pois para acordar, no sentido de despertar, nada melhor do que o teatro. Trata-se de possibilitar a um maior número possível de pessoas os instrumentos necessários para a construção da crítica; por isto o teatro.

No texto princeps de nossas discussões, eu diria o capítulo 5 de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, “O homem Cordial”2, ele começa pelo teatro, com a Antígona de Sófocles. Sua intenção é a de examinar o conflito existente entre os valores do Estado e os valores da Família. Estarão lembrados da montagem desta peça aqui em Porto Alegre por iniciativa - tanto quanto eu sei - da Profª. Kathrin, sob Direção do Luciano Alabarse sobre um texto traduzido pelo Prof. Lawrence Flores Pereira. Não é difícil imaginar uma linha de base para o nosso Colóquio sobre a cordialidade partindo daí com uma aguda incisão no período da segunda guerra mundial, assinalada pela obra de Thomas Bernhard, especialmente sua Praça dos Heróis cuja apresentação poderemos assistir já a partir de amanhã no Teatro São Pedro. É aí, na Heldenplatz, que Hitler, depois de ter pressionado em 12 de março de 1938 seus compatriotas ao Anchluss, à unificação com a Alemanha, profere em 02 de abril seu discurso triunfal sendo saudado efusivamente por uma multidão de Austríacos simpatizantes.3

Examinemos antes um pouco mais o nosso trocadilho, acordar. Ele tem a mesma etimologia da epigrafada cordialidade, ambos originam-se de cor, cordis. Interessante que para o vocábulo acordar, o nosso tradicional Aurélio - o outro Buarque de Holanda - nos dá, como primeiro sentido a conotação de Tirar do sono, despertar, chamar, enquanto a conotação de conciliar, acomodar - própria da cordialidade - irá aparecer como sua décima primeira posição. Já o inestimável Houaiss nos dá duas entradas para o vocábulo: a primeira com o sentido de fazer desaparecer diferenças e, ao contrário do Aurélio, para ele o sentido de fazer sair do sono é a sua segunda entrada. Como se pode ver, desde aqui, os acordos nunca são fáceis. Interessante é que a etimologia de acordar e de cordial remetem ao antepositivo cord, derivado também da mesma raiz latina, com o significado de coração como sede da alma, da inteligência e da sensibilidade.

Minha proposta de trabalho será então a de fazer algumas associações a partir de alguns pontos desse quinto capítulo de Sérgio Buarque de Holanda desde a minha disciplina e tentar algumas considerações.

Seu texto me parece indicar uma divisão em quatro partes: uma introdução em que esboça uma visão ideal da diferença entre a família e o Estado; depois a substituição da ordem familiar por princípios abstratos e sua conseqüente crise; a terceira parte está dedicada ao exame da persistência da estrutura familiar no estado brasileiro e, por fim, o legado daí resultante – a cordialidade, sua função e características.

Estamos em 1936, período de tensão em todo o mundo, e Raízes do Brasil começa, não por acaso, eu diria, com o confronto de nosso país com a Europa.4 Confronto será o recurso utilizado pelo autor ao longo de seu livro. No capítulo 5 ele confronta o Estado com a Família, dizendo que o primeiro não é uma ampliação do segundo. Sua utilização de uma negativa como forma retórica já no início de seu texto só faz valorizar o verbo utilizado para caracterizar a passagem da Família ao Estado, o verbo transgredir: é pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado, nos diz ele. A transgressão, definidora de uma passagem de um lugar a outro, diz também da violação de um limite, de uma invasão, por fim, de uma agressão. Seu exemplo da incompatibilidade entre os dois princípios é trágico, e o modo como ele nos conta o núcleo do enredo não é sem dubiedade, obrigando-nos a examinar a tragédia com mais atenção. Ele diz aí que Antígona, ao sepultar Polinice, contra a ordem do estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade [...] da pátria. Ora, quem aí não age, supostamente, em nome próprio, é Creonte, tio de Antígona e não seu irmão! Estamos em pleno ciclo tebano e a tragédia em exame é a tragédia da família de Édipo, de quem Antígona é, ao mesmo tempo, filha e irmã; mas Creonte é irmão da mãe de Antígona, Jocasta, e por isso o interino e claudicante Regente de Tebas. E há ainda um agravante a mais, se queremos examinar este confronto entre a Família e o Estado: não se pode esquecer que o filho de Creonte, Hemon, está noivo de Antígona e, ao saber da morte da noiva, se traspassa morrendo junto dela; a esposa de Creonte, Eurídice, por sua vez, ao saber da morte do filho também se suicida; e ao tomar conhecimento de tudo isto, Creonte também quer morrer. Note-se que é só depois de Creonte reconhecer sua funesta resolução, sua , é só depois de ele reconhecer seus desacertos - como traduz Donaldo Schüler - que o Corifeu acerta: Tudo indica que tarde reconheceste a justiça – uma frase para se pensar, eu diria.

Mais adiante, no que eu considerei a parte dois de seu texto, S. Buarque de Holanda, ainda que sem aludir diretamente á tragédia, criticará a ereção da concorrência entre os cidadãos como valor social positivo. Sim, a concorrência entre os irmãos é algo muito complicado, embora isso não queira dizer que nunca é produtivo. A própria concorrência entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ao que tudo indica, deu resultados positivos, embora a citada frase do último - criticando o valor positivo da concorrência - me faça pensar que isso não tenha sido sem um custo. O mesmo se pode dizer da concorrência entre S. Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo5, quando o último registra a inclusão de seus comentários na segunda edição de Raízes do Brasil. Mas o que me parece importante destacar é a diferença dessas citadas concorrências, das quais eu diria simbólicas, porque centradas na linguagem, de uma outra centrada no imaginário, no especular, situação da qual todos conhecemos um exemplo bem típico. Refiro-me aquele clássico duelo final dos velhos filmes de faroeste em que um diz para o outro: Este mundo é pequeno demais para nós dois. – Pois essa me parece uma frase muito verdadeira. Esse mundo no qual os eternos Etéocles e Polinices, os eternos Caim e Abel vivem, tem que ser mesmo muito pequeno. Como eles não sabem que cada um vive no seu próprio mundo, a imaginária intrusão de qualquer outro roubar-lhe-á, necessariamente, não apenas a metade do espaço, mas sim todo ele. Hesíodo dedicou-se à poesia possivelmente para escapar da briga pela divisão de terras com seu irmão Perses. Essa é uma solução muito usual: um irmão segue sendo fazendeiro, cuidando dos negócios da família, enquanto o outro vai ser doutor; são tentativas de se criar outros mundos para viver. Assim que dizer da concorrência apenas positiva ou negativa não me parece ter muito sentido. Antes de qualquer coisa precisamos saber se ela é simbólica ou imaginária e isso porque parece haver uma concorrência intrínseca ao ser humano, uma concorrência da ordem do real, como diria Lacan, uma concorrência impossível que não cessa de não se inscrever e que tem de vir à tona de um modo ou de outro, seja pelo imaginário, seja pelo simbólico, e isto em todos os níveis, sejam eles internacionais, estaduais ou familiares. Fundamentalmente, o que é preciso ter em conta é que toda esta tragédia de Antígona deriva de uma transgressão de Édipo ao cometer parricídio e incesto. A importância disso consiste no fato de mostrar que a família é constituída desde uma lei mais ampla, uma lei que diz respeito à coletividade. Assim, diria que não se pode pensar no conceito de família antes do conceito de sociedade. São interatuantes, como nos mostrou Freud e depois Lévi-Strauss, com as suas Estruturas elementares do parentesco.

Vejamos um pouco mais sobre essa concorrência. Freud a considera presente em um dos primeiros atos de civilização: o controle sobre o fogo. Esta realização extraordinária e sem precedentes (para utilizar suas próprias palavras6), a qual ele mesmo reconhece ter todas as características de uma conjetura fantástica, consistiu simplesmente na renúncia a um desejo infantil de extinguir o fogo com um jorro de urina. Como testemunhas, Freud invoca o gigante Gulliver, em Liliput, e o Gargântua de Rabelais. A visão fálica das línguas de fogo parecia insuportável e era preciso apagá-las, constituindo tal ato em uma relação homossexual. A primeira pessoa a renunciar a este desejo e a poupar o fogo pôde conduzi-lo consigo e submetê-lo ao seu próprio uso. Apagando o fogo de sua própria excitação sexual, domara a força natural do outro fogo – diz Freud. O que aparece aqui é a importância da renúncia a uma exigência pulsional. Lembrem que vencido o acordado período de governo, Etéocles, por exemplo, nega-se a renunciar ao poder em favor de Polinice resultando esta negação na conhecida tragédia. Se lembrarmos que a alternação do governo tinha sido uma estratégia para escapar da maldição paterna e evitar a guerra, podemos pensar que, uma vez no poder, Etéocles imagina que este o garantirá.

Quando Freud retoma sua teoria pulsional em O mal-estar na cultura, me parece importante registrar que ele o faz também pressionado por este mesmo clima de tensão antecedente da segunda guerra mundial. Depois de publicá-lo em 1930, concluindo-o com a esperança do triunfo de Eros sobre a pulsão de destruição, já em 31, fustigado pela então evidente ameaça de Hitler, ele acrescenta uma derradeira frase reveladora de sua dúvida sobre o resultado. Mas o que quero ressaltar é que nessa retomada do desenvolvimento de sua teoria pulsional, depois de começar dizendo com Schiller ser a fome e o amor os motores do mundo, e depois de reconhecer a importância da libido e da introdução do conceito de narcismo, Freud chega aos conceitos de pulsão de vida e de pulsão de morte, sendo que uma parte desta última é desviada no sentido do mundo externo - die Aussenwelt - como agressão e destruição. Mas ambas as pulsões, de vida e de morte, tendem a andar sempre juntas, em feixes, mescladas nas mais diferentes proporções, dificultando seu reconhecimento; apenas o sadismo, como pulsão mais visível, aquela que sempre se destaca, se desintrinca em primeiro lugar, aparece como um vínculo. Freud diz tratar-se de uma besonders starke Legierung7, uma liga particularmente forte entre as tendências amorosas e a pulsão de destruição. – Pois o que me parece é que neste vínculo também podemos situar a cordialidade, como um possível efeito de uma exigência pulsional. Podemos situá-la aí sob a égide da aufhebung hegeliana. A cordialidade, aí colocada, ao mesmo tempo em que supera a agressão, a conserva. Não seria de estranhar que a polidez fosse a forma lapidada, polida, deste diamante bruto.

Isto me parece uma coisa importante de reconhecer, que tanto a tendência ao amor como à destruição fazem parte da vida. Uma não é sem a outra. A vida precisa tanto da morte quanto a morte precisa da vida. A presença da morte nos faz valorizar a vida. Mas não é fácil explicar a um assassino, menos ainda a um suicida que seu ato louco implica em uma demanda de mais vida. É muito fácil confundir as coisas. Quem conhece o Caïn de Fernand-Anne Piestre, mais conhecido como Cormon8, esta enorme tela de sete metros de largura, hoje no Museu d’Orsay, lembra de sua figura desolada e solitária, embora a frente de uma pequena horda, fugindo da presença de Jeová - como diz Victor Hugo em La légende des siècles [1889] - deserto a fora, depois de ter se sentido preterido por Deus e culpado seu irmão por seu mal-estar.

Temos exemplos demais de atrocidades realizadas em nome do bem. Tivemos a oportunidade de escutar aqui a leitura desta impressionante crônica do Aurélio Buarque de Holanda sobre a exposição dos restos de Lampião, Maria [já não tão] Bonita e seus principais companheiros. O cronista parecia estupefato com o ar de festa desta macabra exposição. Gilberto Freyre9 nos conta da truculência dos senhores de engenho capazes de mandar assar vivas escravas negras grávidas, autorizados pelo poder patriarcal. Sabemos, porém, que isso não é coisa só dos nortistas, também temos nossos causos. Diria que entre estes os que mais atraem nossa curiosidade são os que contam das degolas nas revoluções de 1893 e 94, entre federalistas e republicanos - uma distinção que também não é das mais fáceis de entender -, e também na de 1923. Ficaram famosas as degolas de Rio Negro, em dezembro de 93, às vésperas do Natal, período de clássico - para não dizer cínico nem cordial - armistício. O interessante é que não se sabe exatamente o número dos degolados e isto por uma concorrência entre os degoladores que se jactavam de haver degolado um mais que o outro, o que faziam em meio a risadas. Entre estes degoladores, que por certo foram vários, destacou-se, contudo, Adão Latorre, muito possivelmente por ser negro, conforme a opinião do Dr. Sérgio da Costa Franco e do Dr. Blau Souza que fizeram a gentileza de me contar um pouco de suas pesquisas. Supõe-se que só ele tenha matado 300 em um mesmo dia10. Nestes episódios, com vítimas de ambos os lados, muitos dos degolados eram mercenários uruguaios que vendiam seus serviços indistintamente. Para reconhecê-los, na ausência de documentos identitários, pediasse-lhes para dizer a palavra pauzinho a qual, por dificuldades de fonação estavam impedidos de pronunciar; e quando na resposta aparecia o indefectível paussinho os daqui riam enquanto aplicavam a gravata colorada.

Mas isto não foi invenção nossa. A Bíblia conta que no confronto entre os galaaditas e os efraimitas, os primeiros usavam do mesmo recurso pedindo-lhes para se identificar pronunciando a palavra chibolet, sabendo que seu dialeto só possibilitava a pronúncia de sibolet. Na impossibilidade da contra-senha correta, os galaaditas enchiam o vau do Jordão com cadáveres efraimitas11.

Se eu lembro dessas passagens, é para dizer que o recurso da cordialidade, não me parece um privilégio brasileiro. Tenho escutado a Profª. Kathrin dizer que seus patrícios austríacos também usam o recurso da cordialidade. Pois no período antecedente a primeira guerra mundial o acordo estabelecido entre a França e a Inglaterra, com o objetivo francês de escapar do isolamento diplomático em que era mantida pela Tríplice Aliança da Alemanha, Áustria-Hungria e Itália, ficou conhecido como entente cordiale. O recurso da cordialidade parece mesmo estar para todos.

A originalidade de S. Buarque de Holanda está em dizer que o brasileiro é cordial, está em dizer que nós somos cordiais e que o coração abriga tanto o amor como o ódio. Amar bilaquianamente a terra em que se nasce não implica na adoção de nenhum catarismo.

S. Buarque de Holanda cita um sociólogo norte-americano dizendo ter se transformado o empregado em apenas um número. Pois é! E que lhes parece o fato de Costa-Gravas ter utilizado como título de seu filme o signo, penso que tenho de dizer assim – o signo couperet? Couperet se traduz ao português por cutelo, instrumento para cortar carnes em geral e, em particular, a cabeça dos condenados. Se entendermos o signo como aquilo que significa algo para alguém, temos de supor que, só por ler a palavra, as pessoas já sabem do que se trata: desnecessários pedaços de carne dourando ao sol de segunda-feira12.

Para S. Buarque de Holanda a cordialidade é uma máscara através da qual o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social, e isto é tanto mais importante quanto ele necessite desse social para libertar-se do pavor em viver consigo mesmo. Como bom americano – diz o autor – no brasileiro é a parcela social, periférica, a que mais importa. Pois lembrei de um outro estudo desta mesma época, de 1936. Trata-se de um estudo de Kurt Lewin, um Psicólogo Social nascido na Alemanha, em 1890, e que depois trabalhou por muitos anos nos Estados Unidos, até sua morte em 1947. Este texto faz uma comparação entre os alemães e os americanos, tratando em particular desta questão da distância social entre os indivíduos e me parece concordar com Buarque de Holanda.


K. Lewin caracteriza a personalidade de um e de outro como formada por cinco círculos concêntricos, dizendo que enquanto o alemão tem apenas uma camada periférica, social e quatro camadas íntimas, o americano tem quatro camadas sociais, externas e apenas uma íntima. Os testemunhos que ele arregimenta são arquitetônicos: as casas com alto muro e portão chaveado da família alemã por contraposição a casa sem muro e sem chaves nas portas (um pouco como nos contou o M.Scliar do Bom Fim de sua juventude). A conseqüência é serem os americanos aparentemente mais sociáveis e parecidos uns com os outros, mas em compensação, por ocuparem camadas superficiais, as relações se mantêm superficiais e, como diz K. Lewin, após anos de relações relativamente íntimas, os amigos rapidamente feitos se despedirão com a mesma facilidade com que o fariam ao cabo de poucas semanas de conhecimento13. Um número maior de camadas centrais, íntimas, parece ser uma maneira plástica de representar uma menor necessidade de apoiar-se nos outros, propiciando maior independência, mas o que se vê, por exemplo, no episódio da Heldenplatz, é que uma vez penetrado nessas camadas mais intimas não é difícil fazer que a hostilidade para com o vizinho se transforme em hostilidade para com uma raça em particular. Isto nos mostra que a independência que importa não basta ser imaginária, como grande parte das independências protéticas que andam por aí a depender sempre de garantias externas. A independência precisa tornar-se simbólica. Sem ela, tanto os superficiais quanto os, digamos, profundos podem ser facilmente convencidos. Quero dizer com isto, entre outras coisas, da necessidade do reconhecimento da separação do outro para o advento da independência simbólica, e que para isto não basta a cesura do cordão umbilical e nem mesmo as melhores intenções.

Para isso, o primeiro passo é o reconhecimento de nossa própria participação no processo no qual estamos envolvidos. No caso, este: os brasileiros, somos cordiais.

Na esperança de dizer com mais clareza como penso esse advento a uma independência simbólica, queria contar-lhes um caso clínico, ainda que em rápidas pinceladas. Trata-se de uma análise levada a efeito por Jacques Lacan e relatada pelo próprio analisante – Gérard Haddad14.

Haddad é um judeu tunisiano a quem o pai tinha votado à profissão médica. Nascido no período entre as duas grandes guerras, ele tem muitos conflitos com seus pais e, como conseqüência, não quer seguir a profissão escolhida pelo pai e nem a religião da família. Quando procura Lacan ele já é um Engenheiro Agrônomo com um trabalho por ele considerado interessante nas províncias subdesenvolvidas da África e o esboço de um romance embaixo do braço, além de uma neurose obsessiva tangente à loucura. Já está casado e com problemas conjugais atazanantes e, devido às suas inúmeras leituras, interessado na Psicanálise. Já tinha tido uma entrevista com Jean Paul Sartre, que o incentivara a continuar escrevendo, e também com Louis Althusser que lhe devolveu o gosto pela ação no comunismo militante. A ação central de sua análise, no meu entender, consistiu em sua reconciliação com o judaísmo. Ele, que até então jamais pensara que a shoah, o genocídio e as perseguições ao povo judeu tivessem qualquer coisa a ver com ele, termina por visitar Auschwitz e Birkenau onde conhece as valas onde a cada dia se queimavam 20.000 corpos dos filhos de sua gente. Ele descobre assim que o holocausto não foi um crime apenas contra o povo judeu e sim contra toda a humanidade. Entrementes, estuda medicina e torna-se analista vindo a ser reconhecido como um especialista no Talmude de onde tirou, através das diferentes técnicas de leitura e interpretação do mesmo, recursos para melhor qualificar a interpretação psicanalítica. – É isto! Será que consegui com este curto parágrafo dizer-lhes o que entendo por independência simbólica? Será que consigo deixar claro que ao se reconciliar com a religião familiar ele o faz desde um outro lugar que não o da dependência neurótica? Que ele o faz desde um lugar novo e original? Pois é por ter conquistado um lugar destes, novo e original, que um Dvorak é capaz de inspirar-se e compor uma sinfonia. As soluções são sempre originais e idiossincráticas.

Mas nós, brasileiros, ainda estamos ocupados com uma crítica que nos possibilite uma mais efetiva simbolização das relações do indivíduo com a lei e é neste momento que encontro esta peça do Chico, filho do Sérgio Buarque de Holanda, a Ópera do Malandro, uma ópera que põe em cena uma das faces desta cordialidade do brasileiro e que nos possibilita, se não entender, pelo menos sentir como o brasileiro enfrenta suas questões éticas.

Estarão lembrados de que esta ópera está situada justamente no período central da segunda guerra mundial. Nosso país mostra-se ambivalente, apoiando primeiro os Nazistas, em 1941, e depois os aliados, em 42. É nesta atmosfera que ele situa o enredo da peça. Aí está o malandro, gigolô de prostitutas, querendo se dar bem. Mas a mulher que ele explora, é explorada pelo grande empresário também, surgindo daí o conflito. A solução é entrar no contrabando e amaciar a lei com um presente discreto. Mas a lei reguladora é venal: como a Geni - não por acaso um travesti (na leitura do Ruy Guerra) - ela dá para qualquer um que a pague. E o empresário pode pagar mais para obter mais, quer dizer, paga para apagar o malandro, a concorrência da arraia miúda. Mas como o malandro quando cai, cai bem, trata de erguer-se com a ajuda do capital estrangeiro, internacionalizando assim sua miúda técnica de gigolô: dinheiro em troca de apoio, e assim logo sonha em abrir um banco nacional com estes estrangeiros capitais, em Minas Gerais.


Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz.15


Depois que o malandro aparece com retrato na coluna social, consolida-se através do himeneu com a filha do empresário.

E então? Tudo certo? Onde está a falha? – Pois eu diria que na lógica, por querê-la sempre matemática na ilusão de que basta juntar elementos negativos para obter um resultado positivo.

Se o malandro - que parece uma derivação do italiano malandrino, com o sentido de salteador, mas também do latim malandrĭa, uma espécie de lepra (uma lepra social, sem dúvida) – se ele toma um gole de cachaça, não paga e dá no pé, isto permite ir empurrando o problema e engordando as barrigas até lesar o Banco Do Brasil que então, complicado com os investimentos estrangeiros, inverte rapidamente o problema até chegar de volta ao garçom. E quando este vê um desempregado, um ladrão de galinhas, um malandro, vai logo gritando:


Pega ladrão / Pega ladrão

E o ladrão / Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação.16

Muito obrigado.

Notas:
1. Evidentemente, não é fácil aos homens renunciar à satisfação da inclinação para a agressão.
2. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil [1936]. São Paulo, Companhia Das Letras, 26ª ed., 1995.
3. http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Hitler

4. Embora eu tenha a informação de que este primeiro parágrafo tem uma redação oposta em sua primeira edição, não creio que isto altere o pressuposto do confronto.
5. Cassiano Ricardo, O Homem Cordial e outros pequenos estudos brasileiros. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1959.
6. Sigmund Freud, O Mal-estar na Civilização (1930[1929]). Rio de Janeiro, Imago, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI, 1974, p. 109.
7. Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur (1930[1929]). Frankfurt am Main, S. Fischer, Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX, 1974, p. 247.
8. Ver no Google.
9. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. São Paulo, Global, 50ª ed. 2005.
10. Imprescindível a leitura de um conto de Jaime Vaz Brasil, Milonga Triste Para Adão Latorre,
11. Jz 12:5-6.
12. Fernando León de Aranoa. Los lunes al sol.
13. Kurt Lewin, Problemas de Dinâmica de Grupo, São Paulo, Cultrix, 1970, p. 37.
14. Gérard Haddad, O dia em que Lacan me adotou. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2003.
15. Chico Buarque. “Ópera”. In Letra e música 1. São Paulo, Companhia das letras, 1990, p. 164.
16. Chico Buarque. “O malandro”. In Letra e música 1. São Paulo, Companhia das letras, 1990, p. 162.

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Cadê a História que estava aqui?


Cadê a História que estava aqui?
No Brasil, país ambíguo por natureza, a construção das crenças coletivas se faz por caminhos sinuosos. O resultado, muitas vezes, está longe da verdade...
Lorenzo Aldé

Futebol, mulher e religião não se discute. É o que ensina a sabedoria popular. Temas controvertidos, envoltos em paixões e idiossincrasias, melhor deixar de lado para não estragar o bate-papo de botequim. Que tal, então, conversar sobre os personagens e episódios de nossa História? Será que eles entram na roda sem maiores pinimbas?

Nem sempre. Mitos, lendas e incorreções sobre a formação e a identidade nacionais povoam o imaginário coletivo. Muitas vezes a versão se sobrepõe ao fato, seja pela disseminação de interpretações equivocadas, seja pela dificuldade de se definir, preto no branco, o que é a verdade neste país de memórias “mestiças”.

Bom exemplo é a figura de Getulio Vargas. Ditador simpatizante dos ideais fascistas ou defensor dos trabalhadores? Entre os dois extremos do mesmo personagem, é difícil equilibrar-se numa visão isenta. “É quase uma ofensa falar mal de Vargas”, comenta a professora Mariana Melo, baseada em sua experiência com turmas de um curso noturno em uma escola estadual do Rio de Janeiro. Não adianta descrever em detalhes as arbitrariedades do Estado Novo (1930-1937), a censura, a perseguição política. “Mas, professora, ele criou as leis trabalhistas”, retrucam os alunos. Para ela, uma postura compreensível: “Dentro da perspectiva dessa camada social, isso é o mais importante”, pondera a professora, dizendo ser espinhosa também a missão de mostrar aos alunos que as benesses sociais trazidas por Vargas não foram fruto de sua generosidade pessoal, mas resultado de um processo histórico quase inevitável.

Se entre adultos é complicado esclarecer contradições desse gênero, que dirá entre crianças e adolescentes. Este público está habituado a interpretar histórias que tenham vilões de um lado e heróis de outro. “Tem que ter uma definição: é bom ou é mau?”, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas particulares do Rio. Por isso, ensinar Getulio também lhe dá trabalho, assim como episódios da História mundial. “A Alemanha é a vilã da guerra, mas a Inglaterra também tinha campos de concentração. Claro que tudo depende de que lado do front o país esteve e de quem saiu vitorioso. As crianças americanas, por exemplo, dificilmente aprendem muito sobre a bomba atômica”, compara.

No Brasil, o ato bárbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espaço na sala de aula. E repercute até demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais jovens. É um dos preconceitos que prejudicam uma compreensão imparcial dos acontecimentos.

Há muitos outros. Os índios aqui eram preguiçosos (quando não “burros”), por isso não funcionaram como escravos. Já os africanos “entendiam o capitalismo” e assim “aceitavam melhor” sua condição e se misturaram harmonicamente aos portugueses. Versões que não caem do céu: estão presentes nos livros didáticos e ganham adeptos ou críticos de acordo com os ventos ideológicos de cada época. Autores hoje consagrados já sofreram patrulha e foram relegados ao esquecimento em momentos adversos às suas teses. Em trechos de Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve como os negros iam para o trabalho cantando e fala da importância da figura da ama-de-leite, o que sugere que a interação entre senhores e escravos não era tão excludente ou violenta. Por essas e outras, a obra do sociólogo foi desprezada nos anos 1960 e 70, auge do marxismo na academia, por supostamente “atenuar a luta de classes”. Relativizadas como reflexões condizentes com seu momento histórico, as contribuições de Freyre são hoje aceitas como valiosas para se entender a formação cultural do país. Até porque, se por um lado descreve a excepcional (no sentido de exceção, claro) mistura entre portugueses e negros no Brasil (diferentemente do que ocorreu, por exemplo, nas possessões inglesas e francesas na Ásia e na África), por outro também fala das torturas e castigos aos quais os escravos eram submetidos. Ambigüidades tipicamente luso-brasileiras, pois não?

Tem mais. Tiradentes: um herói nacional? Não foi. Naqueles fins do século XVIII, os insurgentes das Minas (por muito tempo tachados de inconfidentes, outra imprecisão histórica fruto da versão oficial da época) queriam a independência regional, nem pensavam em Brasil. E Pedro Álvares Cabral? “Por incrível que pareça, ainda hoje é superdimensionado”, revela Roberto Argento, outro professor de escolas particulares cariocas. A lenda do “descobrimento” acidental no caminho para as Índias, pelo visto, ainda perdura. Político? Tudo corrupto. Percepção que as autoridades atuais insistem em renovar, dia após dia, nos escândalos do noticiário. “Os alunos não acreditam que algum político, em qualquer tempo, tenha feito algo de bom. Quando aprendem sobre as práticas dos coronéis, dizem que é tudo igual até hoje”, diz Joana Ferraz de Abreu. E a participação do Brasil na Segunda Guerra desperta interesse, curiosidade? Que nada: somente risos. “Eles acham piada, desvalorizam, não acreditam que tenha sido importante. Nem quando digo que afundamos oito navios alemães e tivemos 36 afundados por eles, e que perdemos 1.040 homens”, revela a professora.

Às vezes, episódios marcantes para uma cidade ou região são vistos por seus moradores como decisivos para a História do Brasil. Em recente viagem a Recife, a professora Mariana Melo testemunhou, no discurso de vários guias turísticos, a louvação das Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), com a conseqüente expulsão dos holandeses, como marco inicial da identidade nacional. Talvez os pernambucanos não gostem de ouvir isso, mas nem mesmo no momento da Independência, quase dois séculos depois, estava bem claro o que era ser brasileiro.

Atire a primeira pedra quem não se acha no umbigo do mundo. Ou os cariocas realmente acreditam que a vinda da família real, em 1808, transformou profundamente todo o país? Pois se nem país existia! O impacto na cidade do Rio de Janeiro e seus ecos na Região Sudeste mal se fizeram sentir no Norte e no Nordeste, por exemplo. E nem o bairrismo nos salva da desinformação. Em recente vestibular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), solicitados a mencionar duas obras arquitetônicas dos tempos de D. João, a maioria dos alunos listou entre elas o Teatro Municipal. Talvez uma confusão espacial, por se localizar próximo ao prédio da Biblioteca Nacional, esta sim uma instituição nascida da Corte portuguesa. O problema é que nem o prédio da BN data daquela época. Como o Teatro Municipal, foi construído nos primeiros anos do século XX, no governo do prefeito Pereira Passos.

Se nem Carmen Miranda era brasileira, a que certeza podemos nos apegar? O futebol é inglês, a banana é asiática, nossos “reis” contemporâneos são tão díspares quanto podem ser Pelé, Roberto Carlos e Xuxa. Sem falar na cultura de massa, que há décadas afunilou os significados de Brasil para o eixo Rio-São Paulo, via tevê. Até a cana-de-açúcar, orgulho do momento na promessa dos biocombustíveis contra o aquecimento global, deve ser questionada como símbolo nacional. Não só porque também foi importada de outras possessões lusas, mas porque o glorioso Proálcool, na virada da década de 1970 para a de 1980, foi feito à custa de outro glorioso orgulho pátrio: a Mata Atlântica nordestina. Repetiremos a dose, agora para cima da Amazônia?

Ufanismos sempre devem ser vistos com desconfiança. Mas é claro que parte desses mitos merece ser encarada com bom humor. A origem saxã do nosso esporte número 1, por exemplo, é matéria de almanaque. O futebol é brasileiro e ninguém tasca! Assim como o samba, claro. Inicialmente também derivado de influência européia — a binária e “marcial” polca — foi requebrado no terreiro dos negros com tempero de maxixe até virar essa contradança inimitável pelos gringos. Ponto para a miscigenação brasileira!

Segundo o pesquisador José Miguel Wisnik, da USP, o samba é a síntese da identidade nacional. Foi a solução, ansiosamente procurada no alvorecer da República, para incorporar a incômoda figura do mestiço, até então “nem rejeitado nem admitido”. “A invenção do samba é o ‘desrecalque’ dessa figura que vem à tona para ser símbolo do Brasil”, resumiu Wisnik em encontro sobre as identidades do samba, realizado na Bahia em 2007. Em resumo: o Brasil é mulato. Terra das contradições, onde convivem ordem e desordem, democracia e jeitinho, descontração e violência, natureza e devastação, diversidade e racismo.

Talvez seja esta a nossa sina. Mas antes de naturalizar a bandeira do samba como ideal nacional, fica aqui mais uma pulga para orelhas pensantes. Segundo o antropólogo Hermano Viana, a consolidação do ritmo, entre os anos 1920 e 1930, também foi uma criação intelectual, que atendia aos interesses políticos da época. “O governo precisava impor uma centralização cultural, havia uma indústria fonográfica nascente, e o rádio despontava como o primeiro meio de comunicação de massa”, comentou no mesmo evento.

Se o mulato que dá cara ao Brasil é “inzoneiro” como na canção, basta recorrer ao dicionário para descobrirmos que se trata de um ser “enganador”. Quem sabe, em se tratando de Brasil, nosso dever como historiadores, professores ou simples cidadãos, deva ser buscar não as certezas, mas as incertezas? Elucidar não as verdades, mas os enganos? Explicar para confundir, confundir para esclarecer...

Nesta mesma edição, uma seleção de doze versões enganadoras da História nacional, baseadas em fatos e personagens reais. Parte delas, fruto de “tradições inventadas”, como o historiador Eric Hobsbawm define a prática das nações de distorcer a realidade para engrandecer seus feitos ou reforçar sua identidade. É o caso de “símbolos nacionais” como a cachaça e a feijoada, e da lenda a respeito de antigas civilizações que teriam passado pelo Brasil, como os vikings e fenícios. Outras histórias resultam apenas de confusão ou desconhecimento, como o suposto parentesco entre Oswald e Mário de Andrade e a origem do nome da cidade de Olinda.

Você está convidado a pôr suas próprias crenças à prova. E nós, da Revista de História da Biblioteca Nacional, abertos a receber, por e-mail, outras desmitificações que por acaso você conheça. Afinal, nunca é tarde para desaprender.

Revista de História da Biblioteca Nacional

sábado, 26 de junho de 2010

Mulheres degeneradas?

Mestre em compor personagens femininas, José de Alencar escandalizou os moralistas da época com suas heroínas sensuais e independentes
Valdeci Rezende Borges

O romancista e dramaturgo José de Alencar (1829-1877), que até hoje desfruta de boa popularidade, foi visto como imoral em sua época e em parte do século XX, irritando conservadores e moralistas pelas cenas, inclusive de erotismo, que produziu, especialmente em perfis de mulheres, como Lucíola, Diva e Senhora.

Logo em seu romance de estréia, Cinco Minutos (1856), e em A Viuvinha, de 1860, ele trata dos costumes urbanos e já esboça os traços femininos predominantes de sua obra com um propósito educativo. Para alguns críticos, esses livros possuem um lirismo suave. Mas para outros, como frei Pedro Sinzig (1876-1952), em seu “guia para as consciências”, Através dos romances (1915), manual de leitura de ficção, o primeiro é “bastante exaltado”, com “descrições de paixões um tanto vivas e voluptuosas”, e o segundo tem “algumas descrições muito ousadas”. Portanto, desaconselhava tais leituras.

Em Cinco minutos, Alencar oferece ao público leitor a história de Carlota, uma mulher misteriosa e singular. Incógnita, com o rosto escondido por um véu, seduziu num ônibus, à noite, um moço que não a conhecia, mantendo com ele um “contato voluptuoso”, com apertos e beijos, nas mãos e nos ombros. Fascinado com tais delícias sensuais, transgressoras das convenções sociais impostas à mulher, ele descobriu que a dama audaz tinha uma moléstia fatal, sem esperanças de salvação, o que a levava a agir de maneira desusada. Vencida a doença, tiveram uma vida conjugal feliz, incomum nos casamentos da época.
Já em A Viuvinha, a personagem Carolina é a imagem de uma mulher romântica, virgem e inocente, que fora criada nos ideais católicos. Com a força do amor ela regenera Jorge, um homem que tinha os ideais corrompidos, e que, ao ser reabilitado, transformou-se em ideal masculino.

Como dramaturgo, Alencar viu-se envolvido, em 1858, num escândalo provocado por sua proposta de “reproduzir a sociedade” da época, com seus desvios morais, por meio do retrato realista de uma mulher prostituída. Em As Asas de um Anjo, Carolina, uma moça pobre, foge de casa seduzida pelo luxo, esboçando “a vida da Madalena moderna”, filha daquela sociedade. Considerada imoral, a peça foi motivo de excitação e retirada de cartaz pela polícia. O autor se defendeu na imprensa da “acusação injusta”, pois sua intenção era produzir obras que educassem a sociedade e fizessem uma senhora rir sem corar. Para Joaquim Nabuco (1849-1910), a personagem não conhecia “o sentimento de honra” e a peça era “uma nódoa” na literatura brasileira, cabendo ao domínio da polícia pelas “cenas de um sensualismo torpe”.

Em 1862, indignado com as censuras, Alencar reagiu a elas em Lucíola, onde prossegue sua reflexão sobre a prostituição abordando o problema da mulher como um objeto comprado no mercado do desejo. Nesse perfil da cortesã, insistiu na questão da regeneração e do arrependimento da mulher perdida, denunciando a corrupção dos costumes sociais. O livro oferece duas imagens femininas opostas presentes na mesma pessoa. Trata-se da personagem Maria da Glória, que com a desagregação da família tornou-se Lúcia, “o Lúcifer social”, uma cortesã elegante, amante e viciosa, mulher espetacular que mostra uma face do mercado do prazer, animando o mundo boêmio, como nos quadros vivos da cena de strip-tease.

Gradualmente ela nega sua condição de cortesã, assumindo uma identidade nova, com base em valores morais e princípios religiosos, mas não teve seu erro esquecido ou perdoado pela sociedade. Mesmo purificada, Lucíola morreu como punição e castigo para alcançar a elevação do espírito e a redenção. Para D. Pedro II, o livro era “licenciosamente realista”. O conselheiro Lafayette Pereira (1834-1917), jurista, jornalista e político, viu o caráter da heroína como um “monstro moral”. Sinzig vetou a obra, avaliada como inconveniente porque imoral, por descrever cenas lúbricas e brutais. Para José de Alencar, “esses perfis de mulher, como diz o termo, não são tipos; mas, ao contrário, exceções, ou idiossincrasias morais, que se tornam curiosas justamente pela originalidade e aberração do viver comum. É assim que se deve entender Lúcia, Emília e Aurélia”.

Em Diva (1864), Alencar nos relata a história de Emília, seu segundo grande perfil feminino, um misto de angélico e satânico, mas exageradamente pudica, com índole caprichosa e orgulho indomável. Ousada, altiva e inteligente, abre caminho para a constituição da imagem de uma mulher moderna. Mila transgredia muitas regras morais e valores da elite ao se afastar do comum e das convenções, vistas como tirânicas e corruptoras dos indivíduos.

Por ter sido muito severa no início da infância, sua criação lhe causou sérios problemas, fazendo dela uma menina fragilizada, que compartilhava o pensamento comum. No confronto com o mundo social, porém, Emília questiona e abandona as regras impostas pela opinião pública, rompendo as barreiras do ideal feminino da época e tornando-se mais livre, ativa e igual em relação ao homem, como em sua oposição ao casamento sem amor e ao amor como jogo, dado em função de interesses econômicos, políticos e sensuais.

Mila agia de modo incomum para uma moça educada, tornando-se incompreensível para seu pretendente: era “a virgem que o severo pudor velava”, mas tinha a intenção de casar-se com quem escolhesse por amor, valorizando a amizade e a confiança na relação, não aceitando a submissão só da mulher, como era usual na época, e discutia todas essas questões com o rapaz, resistindo às suas imposições. Livrando-se das convenções morais, marcava encontros incomuns, a sós com ele, em meio à natureza, como na Floresta da Tijuca e de noite, ao luar.

Insubmissa, Emília se tornou uma nova mulher, que resistia às ameaças de tomarem sua independência e dignidade. Ao render-se ao amor, transformou-se, prometendo moldar-se, findando a existência de “senhora”, mas conservando seu caráter distinto. No entanto, a incerteza do lugar aonde o casal chegaria fica evidente no final, que não os tornava “um” só, mas os colocava lado a lado. Ela exercia sobre o rapaz seu domínio e este, após concluir que não devia “amar essa mulher”, pois “seria uma infâmia”, confessou sua impotência: “eu ainda a amava!... [...] Ela é minha mulher”.

“Vênus moderna”, Mila era uma mulher misteriosa que precisava ser decifrada. Sua inteligência diabólica, suas atitudes e idéias criticavam a sociedade. Mesmo que, no instante final, estivesse disposta a deixar de lado a condição de “senhora”, tornando-se “escrava” ao virar esposa, sua imagem forte e seu “caráter original” já estavam difusos nas mentes dos leitores. Se Rousseau (1712-1778), com seu romance Júlia ou a Nova Heloísa, contribuiu para a construção da imagem da mulher moderna, Alencar, em diálogo com ele, também o fez. Para Nabuco, “essa virgem” era “uma cortesã”, “uma loureira”. Para Singiz, Emília “é uma rapariga bastante malcriada, cujas maneiras não devem ser imitadas”, tendo o livro “inconveniências que tornam a leitura, para jovens, ao menos perigosa”.

Em Senhora, de 1875, considerado seu principal romance urbano, o terceiro perfil de mulher traçado por José de Alencar revela o orgulho e a força moral da personagem Aurélia, que corrige Fernando, um homem corrompido pela sociedade elegante e fútil, e que sacrificava sua família em nome dos gozos mundanos. Um dia, ele se negara a casar-se com ela, pois era uma menina pobre que não dispunha de riquezas para levar consigo um dote de casamento, em bens ou dinheiro. Mas quando Aurélia enriqueceu após ter recebido uma herança, com capricho e orgulho, conhecendo o mercado matrimonial, por intermédio de outra pessoa ela propôs-lhe um casamento de conveniência, com dote vultoso. Ao aceitar o contrato, ele abriu espaço para humilhações e desprezo, até que resgatou a dignidade.

Mulher inteligente, num tempo em que a inteligência era vista como um atributo masculino, Aurélia tinha pensamento analítico e princípios religiosos, e desprezava a sociedade corrompida, que combatia em nome dos “sentimentos nobres”. Era ligada aos valores morais, mas abandonava algumas convenções, como o exigido “recato feminino”. Despojada, com um comportamento visto como um dos “efeitos da emancipação das mulheres”, uma “inversão” que os costumes vinham sofrendo, ela rompia com os modelos femininos tradicionais, lutando pela “desafronta de seu amor ludibriado”, puro e inocente, e indo contra o “homem que a traficava”, em vez de aceitá-lo, como as outras mulheres.

Tal ação regenerou Fernando, que se apegou às coisas simples, tornando-se trabalhador, disciplinado e esposo dedicado. A mudança de caráter inverteu seu comportamento como marido: “o homem de coração e de honra se formara aos toques da mão de Aurélia”. Audaz, educadora, ela questionava a prática do dote de casamento que entrava em processo de desaparecimento, oferecendo às mulheres a possibilidade de serem amadas por si e sugerindo que os homens não tinham dignidade ao se venderem por dinheiro. Portanto, Sinzig, conservador, considerou o livro “extremamente exaltado”, com “amores de esposos separados”, que “não pode impressionar bem”, pois fascinava.

Havia imoralidade nesses perfis de mulheres? Para os conservadores, sim, pois transgrediam os costumes tidos como ideais e anunciavam novos tempos. Mas a eles, Alencar, progressista, respondia: “Deixe que raivem os moralistas”, talvez na esperança de que as exceções se tornassem comuns e normais.

Valdeci Rezende Borges é professor de História da Universidade Federal de Goiás e autor da tese “Histórias românticas na corte imperial: o romance urbano de José de Alencar – Rio de Janeiro, 1840-1870” (PUC/SP, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia:

DE MARCO, Valéria. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

NETO, Lira. O inimigo do Rei: uma biografia de José de Alencar. São Paulo: Globo, 2006.

PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: perfis. São Paulo: Annablume, 1999.

PONTIERI, Regina Lúcia. A voragem do olhar. São Paulo: Perspectiva, 1988.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Soldados esquecidos

Recrutados pelo exército, indígenas ajudaram o Brasil a ganhar a Guerra do Paraguai, mas nunca foram justamente recompensados pela bravura que exibiram nos campos de batalha
Rosely Batista Miranda de Almeida

Não foram só as forças armadas do Império que deram ao Brasil a vitória no maior conflito bélico jamais ocorrido na América do Sul. Pesquisas já mostraram que gente do povo, mulheres, escravos e ex-escravos também tiveram atuação marcante na Guerra do Paraguai (1864-1870). De todas essas minorias combatentes, a participação dos índios era menos conhecida. Hoje se sabe que eles atuaram no conflito como verdadeiros soldados, e foram considerados “bravos auxiliares” por oficiais do nosso exército. Existem muitos relatos sobre gestos heróicos de soldados indígenas que fazem jus aos elogios, como, por exemplo, o de grupos avançando de peito nu, numa demonstração de extrema coragem, para desalojar soldados paraguaios escondidos nas matas que eles tão bem conheciam. Ou de pelotões indígenas realizando com êxito a missão de observar os movimentos do inimigo ou de trazerem de volta aos seus destacamentos soldados desertores e escravos fugidos.

Nessas ações, não eram movidos propriamente por patriotismo ou sentimento semelhante, mas sobretudo pelos interesses dos grupos a que pertenciam. Os índios que habitavam as terras da Província de Mato Grosso, ao se tornarem soldados, queriam, antes de mais nada, ver pelas costas, fora de seu território e longe de sua vista, o soldado inimigo, que traria para o seu povo morte e destruição. Ao defenderem o exército imperial, acreditavam estar defendendo também sua gente e resguardando seu espaço. Por isso os paraguaios eram considerados inimigos comuns, deles e da nação branca. Tornaram-se soldados do Império brasileiro, em maior número, os Mbayá-Guaicuru (Kadiwéu), os Txané-Guaná (Terena, Kinikinau, Layana e Guaná), os Xamakoko, os Guató, os Kayapó e os Bororo da Campanha (assim denominados, supostamente, por habitarem os campos abertos da região pantaneira). Os territórios de todos esses grupos e nações indígenas se localizavam na parte meridional da antiga Província de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul.

Muito tempo antes da guerra, a Coroa portuguesa já tinha consciência da importância desses grupos indígenas para a defesa do território da colônia no vale do Paraguai, estimulando e atraindo nativos para povoarem aquela área de fronteira. Os Txané-Guaná (grupo Aruak) e os Mbayá-Guaicuru, vindos da região do Chaco, habitavam a bacia pantaneira (Baixo rio Paraguai) desde meados de século XVII, e foram os que tiveram maior participação no conflito. Sempre estiveram ao lado dos brasileiros. Estes e outros grupos nativos mantinham contatos regulares, desde a segunda metade do século XVIII, com os habitantes da parte sul da Província. Estiveram presentes durante a construção das primeiras unidades militares da região, a exemplo do forte de Coimbra, construído pelos portugueses em 1775 para garantir a posse das áreas conquistadas pelo avanço bandeirante. Estavam também acostumados a auxiliar militares e civis como intérpretes, remadores ou no transporte de cargas. Eram comumente recrutados em aldeamentos próximos aos novos núcleos de povoamento, como, por exemplo, o de Albuquerque.

Tais vínculos se estreitaram ainda mais na segunda metade do século XIX, a partir da fundação das missões religiosas pelo governo imperial. Em 1846, foi criada a Diretoria Geral dos Índios, na Província de Mato Grosso, como conseqüência do Decreto de 24 de julho de 1845, que oficializava o Regulamento das Missões e reprovava a política de guerra contra os índios. Conforme a determinação do governo imperial, as missões, também chamadas de “aldeias regulares”, eram estabelecimentos oficiais presentes em cada província brasileira. Cada núcleo era administrado por um diretor, religioso ou não, que estava subordinado ao diretor-geral da província. Na prática, não mudava muito a política que prevalecia desde os tempos coloniais. Esperava-se que os índios, uma vez aldeados, se tornassem dóceis e submissos aos costumes “civilizadores” do homem branco e a uma cultura que não era a deles. Era também uma porta aberta à exploração da mão-de-obra indígena por parte de autoridades e fazendeiros.

Manuscritos guardados no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso afirmam que a aproximação de índios com não-índios se dava também através do comércio. Era o caso dos Guaná, que pelo menos duas décadas antes da guerra negociavam redes, panos, cintos e suspensórios, principalmente por permutas, tanto com brasileiros como com os vizinhos paraguaios, no forte Olimpo. Atuavam também como informantes, já que depois relatavam aos brasileiros o que se passava no outro lado da fronteira. Esse tipo de atividade foi também observada por Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), militar incorporado à expedição de Mato Grosso no grupo dos engenheiros e em seguida autor do romance A Retirada da Laguna. Em 1825, antes da guerra, o presidente do Paraguai, José Gaspar Rodrigues de Francia (1776-1840) queixava-se dos índios Guaicuru, que invadiam o território de seu país para pilhagens e saques. Afirmava Francia serem os índios influenciados pelos moradores de Cuiabá, de Miranda e do forte de Coimbra. E, segundo Augusto Leverger (1802-1880), futuro presidente da Província de Mato Grosso, talvez fosse este o mais antigo motivo da indisposição dos vizinhos castelhanos contra o Império do Brasil.

A preocupação central dos governantes da Província era proteger as fronteiras de Mato Grosso. Para tanto, procuravam manter os índios próximos a elas. Sem dúvida nenhuma, esta estratégia ajudou muito o Brasil a vencer a guerra. Os índios eram exímios conhecedores da região do conflito. Por isso, eram requisitados pelos militares como guias. A partir de 1860, os Guaicuru passaram a ser enviados com freqüência para missões de reconhecimento na parte meridional da Província de Mato Grosso. Eram missões particularmente perigosas, pois eram eles que tinham de constatar ou não, de muito perto, a presença de paraguaios. Visando a guarda das fronteiras da parte meridional da província mato-grossense, o governo imperial contava com a vigilância dos Guaicuru Cavaleiros, assim denominados por serem conhecidos, desde o período colonial, como especialista na arte de montar. A narrativa sobre essa habilidade especial dos Guaicuru pode ser encontrada na obra A Retirada da Laguna.

Nela, Taunay descreve um dos momentos mais dramáticos do conflito, ocorrido em 1867. As tropas sofriam com a falta de víveres e outras dificuldades, como o desconhecimento daquela região pantanosa, as conseqüências dos incêndios provocados pelos paraguaios e a escassez de água, apesar das copiosas chuvas. Foi um período de elevada mortandade, provocada pelo inimigo e por um surto de cólera, que fez inúmeras baixas. Soldados indígenas também enfrentaram com bravura aquela situação extrema. Relata Taunay que o major José Tomás Gonçalves, comandante do 21º Batalhão de Infantaria, seguiu uma vez a cavalo, em companhia do Corpo de Caçadores e mais trinta índios, para surpreender paraguaios que se encontravam a mais de uma légua. Percebendo a disposição da coluna brasileira, os inimigos, embora com maior número de combatentes, resolveram debandar, deixando para trás arreios, cavalos e lanças. O major Gonçalves destacaria depois a atuação aguerrida dos soldados índios nesse episódio.

Por conhecerem bem os territórios da Província, diferentes grupos indígenas prestavam serviços também na abertura de trilhas e outros tipos de trabalho, como o fornecimento de lenha para os vapores que transportavam pessoas e cargas ou o sepultamento dos mortos em combate. Os Kinikinau, os Xamakoko, os Kayapó, os Terena e os Layana foram mencionados, em manuscritos relacionados ao período da guerra, como os que socorriam as forças militares com mantimentos. Os Guaicuru, os Terena, os Kinikinau e os Guaná ocuparam as frentes de batalha no episódio da Retirada da Laguna e depois em solo paraguaio.

A inimizade dos Guaicuru com os paraguaios se registra desde o período da colonização, quando expedições punitivas eram freqüentemente enviadas contra eles pelos espanhóis, inclusive com participação de grupos indígenas rivais, como os Guarani. Tais incursões estimularam e enraizaram a inimizade dos Guaicuru pelos paraguaios, mais do que com os portugueses. Quanto aos Guató, os manuscritos pesquisados não esclarecem o porquê de terem lutado inicialmente em favor dos paraguaios. Supõe-se que isso se deu pelo fato de habitarem as terras do Alto rio Paraguai, onde teriam sido aliciados pelo inimigo. Mas eles acabaram se desligando das forças paraguaias – segundo afirmaram, pelas crueldades que puderam presenciar. Tornaram-se então espiões a serviço dos brasileiros, aos quais davam conta dos movimentos do inimigo nas terras próximas ao rio São Lourenço, na Província de Mato Grosso. Os Bororo da Campanha, que viviam próximos ao Escalvado (nas imediações de Cáceres, antiga Vila Maria), prendiam e traziam de volta aos destacamentos os desertores e escravos que fugiam para a Bolívia.

Entre os índios havia voluntários, mas grande parte deles era levada à força para o campo de batalha. O que se consideraria hoje uma grave infração aos direitos individuais, era comum na época. Em geral, o recrutamento compulsório incidia sobre indígenas, negros, forros ou escravos, e homens desocupados em condições de lutar – todos representantes das camadas “inferiores” da população. A prática do recrutamento forçado não era tranqüila. Existe o registro da atitude de um velho índio Guaná chamado Braz, que teve dois filhos menores, Ricardo e José, recrutados contra a sua vontade. Ele se apresentou ao general Alexandre Manoel Albino de Carvalho, presidente da Província de Mato Grosso, em julho de l865, para exprimir suas queixas. Segundo alegou o ancião, eram Ricardo e José que o ajudavam a manter-se na velhice, e além disso um outro filho já participava da guerra, como soldado no Exército imperial. O documento não indica o resultado de suas reclamações.

Os índios voltavam dos ataques aos paraguaios carregando consigo fuzis, munições, tecidos, terçados (sabres), uniformes velhos e diplomas recebidos de oficiais brasileiros, como prova de sua presença nas fileiras da guerra. Alguns, como os Guaná, receberam até gratificação em dinheiro. Eles costumavam guardar por muito tempo os modestos prêmios que recebiam, orgulhosos de seu atos de bravuras. Em 1865, os Kadiwéu chegaram até São Salvador, pelo rio Apa, carregando armas a eles oferecidas por brasileiros, além de muitos outros objetos e mercadorias obtidos com saques e pilhagens contra instalações militares e comboios de abastecimento uruguaios. Em 1879, quase quinze anos depois, ainda eram vistos usando os velhos sabres presos à cintura.

Os cadiuéus (grupo remanescente dos Guaicuru) sustentam ainda hoje que receberam, da parte do próprio imperador D. Pedro II, a promessa formal de terem suas terras demarcadas tão logo terminasse a guerra. Eles temiam, desde o começo do conflito, que seu território pudesse ser invadido pelo inimigo e vir a tornar-se propriedade dos castelhanos paraguaios. Autores como Sílvia Carvalho, atestam que, por documento oficial, datado do século XIX, eles têm, realmente, esse direito. Contudo, o acordo nunca foi respeitado. Terminada a guerra, tornou-se comum a apropriação das terras indígenas, por fazendeiros ou militares, na região sul da Província. Tal situação tem inspirado, desde então, inúmeros conflitos entre índios e não-índios em áreas do atual Mato Grosso do Sul. Embora a vitória sobre o Paraguai se deva muito à força dos índios, estes voltaram da guerra, enfim, sobraçando apenas ninharias, ofertadas como esmolas, sem direito a honrarias ou recompensas de verdade pela bravura que exibiram nos campos de batalha.

Rosely Batista Miranda de Almeida é professora na Escola Estadual Professora Maria Hermínia Alves, em Cuiabá (MT), e autora da dissertação de mestrado “A presença indígena na Guerra com o Paraguai” (UFMT, 2007)

Saiba mais - Bibliografia:

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.

COSTA, Maria de Fátima. A história de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Kosmos, 1999.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na Província de Mato Grosso: Conflito, trama e continuidade: Editora UFMS, 1999.

Revista de História da Biblioteca Nacional