sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Memórias póstumas da escravidão


Memórias póstumas da escravidão
Eduardo de Assis Duarte UFMG

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres.
A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
Machado de Assis, 1906
O conto “Pai contra mãe” explicita de forma inequívoca o lugar de enunciação em que se coloca Machado de Assis quanto aos temas do negro, da escravidão e das relações interétnicas presentes na sociedade brasileira de seu tempo. A crueldade inerente no submetimento dos cativos é exposta na descrição dos aparelhos e, em seguida, na ficcionalização de um dos ofícios criados pelo regime. A história vivida pelo casal formado por Cândido Neves e Clara ressalta o contexto de violência sistêmica instituída pelo trabalho forçado, que contamina toda a sociedade e afeta tanto negros quanto brancos.
Publicado em 1906 no volume Relíquias da casa velha, o texto contribui para a constituição de uma memória do escravismo, que tantos insistiam em apagar. No início dos tempos republicanos, a “mancha negra” que toldava a imagem harmoniosa do passado colonial e dos governos imperiais brasileiros precisava ser extirpada, nem que para tanto se queimassem os arquivos do tráfico.
Ao trazer à tona o assunto tabu logo na abertura das Relíquias, o conto de Machado ganha sentido político de resgate e acerto de contas. Identificado a seus irmãos afro-descendentes, o autor estabelece um contra-discurso ao pensamento hegemônico na época, cuja idéia mestra entronizava o “escravismo benigno” praticado nos trópicos pelo colonizador propenso à mestiçagem. Tal ideologia vai sendo aprimorada ao longo do século XX e prima por deturpar a verdade histórica ao tentar recobrir os mais de 300 anos de escravidão com o mito da democracia racial, que substitui a violência pela tolerância e o rebaixamento do Outro pela mestiçagem.
Para além dos aparelhos de tortura e das “profissões” geradas pelo regime, ganha relevo nessa recuperação crítica do escravismo o fato de que ela se faz presente na obra machadiana desde os primeiros escritos. No caso dos romances, pode-se constatar que, de Ressurreição e A mão e a luva a Dom Casmurro e Memorial de Aires, a relação entre senhores e cativos está presente, dissimulada muitas vezes sob formas as mais diversas de expressão. A escravidão permanece como sombra a demarcar espaços e compor perfis dramáticos, fazendo-se visível muito mais em suas implicações e conseqüências do que em seu detalhamento cru enquanto modo de produção. Escritor de narrativas urbanas, Machado tem como alvo a elite de seu tempo, leitora de jornais e folhetins. Sua ficção, apesar de aparentemente afastada do mundo do trabalho forçado, toca na ferida no que esta possui de mais sensível: a incapacidade dos senhores em gerar condições políticas e, mesmo, lideranças que garantam a continuidade do regime.
Desde seus começos, o romance machadiano representa a decadência da classe senhorial alvejando-a no tem de mais expressivo: o pater famílias. Ao contrário da edificação romântica presente nos textos de José de Alencar e tantos outros – a criar homens fortes e corajosos, senhores “de baraço e cutelo” como D. Antônio de Mariz, patriarca dos heróis fundadores da nacionalidade –, Machado constrói um mundo em que não há mais lugar para tais arroubos. Já seu primeiro romance, Ressurreição, organiza-se a partir das relações entre uma viúva e um herdeiro.
Com efeito, Lívia e Félix estão longe de cumprir qualquer papel de comando, por menor que seja, no sistema produtivo escravista. Beneficiários do regime, vivem do capital acumulado pelos que os antecederam e se revelam incapazes de superar o cômodo parasitismo que marca sua trajetória de herdeiros. O preço a pagar não é pequeno: individualista e inseguro, o jovem médico sem pai nem clientes se frustra no amor e, por sua vez, não deixa filhos, antecipando a esterilidade que marca Estêvão, Brás Cubas, Rubião e tantos outros anti-heróis machadianos. Já Lívia mostrase mais forte que o amado e o recusa em nome do orgulho ferido, preferindo a solidão a um casamento desprovido de confiança e mútuo respeito. Também ela inaugura uma galeria de mulheres decididas no plano pessoal e amoroso, mas distantes das matriarcas do mundo rural, que comandavam com pulso de ferro o empreendimento deixado pelos esposos, ao mesmo tempo em que preparavam os filhos para o exercício da autoridade coercitiva necessária à manutenção do sistema.
A figura do patriarca está ausente também em A mão e a luva (1874). Esse vazio dá lugar à emergência de um “poder feminino” exercido, sobretudo, nos instantes cruciais em que se decide o futuro da organização e do capital familiar. Mulher e patrimônio se confundem e, na falta do pai, compete à vontade feminina decidir pela incorporação do elemento exógeno: a baronesa viúva perde também a filha e adota a afilhada de origem humilde como herdeira. Esta protagoniza um
sutil e dissimulado embate com a lógica senhorial ao não aceitar o casamento de conveniência, que manteria os bens dentro do círculo familiar. Ambiciosa e “senhora de sua vontade” (p. 93), Guiomar rejeita “reduzir-se a simples serva” (p. 85) e, calculadamente, decide por outro homem. Já a baronesa se afasta do papel de senhora autoritária e acata a escolha da filha adotiva, num procedimento inusitado frente aos parâmetros do paternalismo então vigente.
Em Helena (1876), por sua vez, a morte do senhor tanto deflagra quanto subjaz aos acontecimentos, operando como elo e princípio estruturante.
O esgarçamento do poder coercitivo evidencia-se na dificuldade encontrada pelo herdeiro em encarnar na íntegra os métodos do pai. E é justamente esse instante de transição na governança familiar que emoldura o protagonismo da agregada, sujeito externo, vindo de um não-lugar social, e detentor de um discurso muitas vezes dissonante frente à ordem instituída. Identificada ao pajem, Helena aproximase dele na dissimulação e na operação transgressora que tensiona e sustenta a narrativa. Agregada e escravo quebram com o princípio básico do paternalismo, entendido com “política de domínio na qual a vontade senhorial é inviolável” (CHALHOUB, 2003, p. 47). Na fala de sua protagonista, o texto machadiano questiona a doxa patriarcal e põe-se a discutir valores como o da liberdade do indivíduo, num momento em que a campanha abolicionista ainda não ganhara fôlego no país.
Iaiá Garcia (1878) destoa do clima existente nos romances anteriores, pois não se situa nos espaços marcados pela acumulação de capital proveniente da mão de obra escravizada. Seu mundo é predominantemente o da pequena burguesia urbana, onde ganha relevo o relacionamento amigável e não-coercitivo existente entre Luís Garcia e o escravo africano recebido em herança e, ato contínuo, alforriado. Raimundo passa a agregado e nessa condição desfruta da intimidade familiar e do carinho de Iaiá e de seu pai, ele próprio um dependente diante de personagens como Valéria, representante do estrato social economicamente mais elevado.
Deste modo, os quatro romances iniciais têm em comum a ausência do senhor de escravos moldado nos padrões da colônia. Este surge nos textos enquanto memória, em alusões esparsas, como elemento ligado a um tempo ido, algo como uma página virada naquela organização social. Essa ausência indica certo “empoderamento” das mulheres, ao mesmo em que opera como alegoria da crise do estamento senhorial e do próprio modo de produção escravista. Mas a falta do pater famílias não significa evidentemente que o paternalismo enquanto ideologia esteja superado. Ele se faz presente tanto em Estácio, quanto em Félix ou Luís Alves. Mais que isto, deixa suas marcas nos discursos das viúvas e mesmo de agregadas com Guiomar e Helena. A novidade é que não pauta o discurso do narrador onisciente, nem a axiologia subjacente às narrativas. Ao contrário, as tramas se empenham justamente em explorar as determinações paternalistas para, através delas, tensionar os enredos e fazer a crítica do discurso senhorial. Confrontado à alteridade, o poder dos herdeiros tem no Outro insubmisso um permanente desafio e é desta relação agonística que Machado retira o encanto de suas narrativas.
Algo semelhante ocorre em Dom Casmurro. Criado entre os zelos maternos e as bajulações do agregado, Bentinho é inscrito como antípoda do progenitor, cujo falecimento marca a ruptura com a vida rural e o redirecionamento do capital deixado à viúva e ao filho. Toda a juventude do herdeiro é marcada por esta falta, a ponto de levá-lo a devanear a presença de uma autoridade masculina maior, encarnada em ninguém menos que o Imperador D. Pedro II, na famosa cena em que este intercede junto D. Glória para livrar o jovem do seminário.
Incapaz de se impor por sua própria vontade e personalidade, Bento deseja um Pai que o proteja da promessa materna e lhe prescreva um futuro sem os rigores da vida eclesiástica. Essa tibieza em assumir-se como senhor de seu destino marcao em praticamente toda a narrativa e não deixa de trazer em seu bojo certa “nostalgia” de um mundo em que a vontade senhorial reinava absoluta. Mais tarde, já velho, impaciente, e acompanhado de suas memórias e rancores, Bento é
transformado em Dom Casmurro e, nessa nova configuração, opera como duplo destronante de tantos outros senhores presentes no romance oitocentista brasileiro.
Numa perspectiva comparatista vê-se, com efeito, que Machado faz de Dom Casmurro uma paródia de Dom Antônio de Mariz... e, nessa linha, o famoso pessimismo ganha corpo e põe-se a destronar todo um modo de vida calcado no absolutismo senhorial.
Como se vê, tais romances expressam uma atitude frente à escravidão que não passa pelo cotidiano das senzalas ou dos quilombos, nem mesmo os urbanos, sabidamente existentes em plena corte na década de 1880.
Conseqüentemente, fica distante da heroicização do negro e de uma possível epopéia da abolição, que outros tentaram concretizar mais tarde, como Afonso Schmidt, com o seu A marcha, romance da abolição. A “onda negra” das fugas e revoltas; ou das alforrias “em massa” e “incondicionais”, conforme o escritor alude em crônica de Bons Dias (2007, p. 50), na antevéspera da Lei Áurea, não é contemplada. O posicionamento machadiano se expressa segundo toda uma poética dissimuladora. O mundo do trabalho escravo surge não em si mesmo, mas nas conseqüências, pelo viés do rebaixamento irônico e pessimista da classe senhorial. Se o leitor não encontra nos textos um herói negro, constata que este também não existe entre os membros da elite retratada pelo autor. A rarefação épica é anti-heroicizante por natureza e atinge em cheio os personagens que estamos pontuando. E o senhor, esse Outro do negro como postula Ianni (1998), não é inscrito como instituição eterna e imutável como fazia crer a ideologia
paternalista. Enquanto ser histórico, também ele se move, está em processo, mas rumo à decadência e ao desaparecimento.
As memórias póstumas da escravidão atingem um maior grau de explicitude no Memorial de Aires, cuja ação se passa em 1888 e 1889. A derrocada do barão de Santa Pia – escravocrata que tenta manter sob controle a transição para o trabalho assalariado ao alforriar seus cativos poucos dias antes do fim do regime –, dá-se em homologia com o fato histórico. É como se personagem e instituição formassem um só corpo narrativo, um signo único. A última cartada do fazendeiro é típica do plástico modus operandi das elites brasileiras, ao se adaptarem a mudanças de superfície para manter intacto o cerne do processo de exploração, o que, inclusive, explica, em parte, a longevidade do escravismo no Brasil. O romance não apenas denuncia a manobra, mas contesta de frente esse discurso ao eliminar o barão e fazer com que a herdeira doe as terras aos antigos escravos, num recado direto à recém-instalada República sobre a urgência de se fazer a reforma agrária no Brasil. E, mais uma vez, a narrativa machadiana elimina o senhor para substituí-lo por uma vontade feminina identificada ao subalterno.
Todavia, o sentido mais fortemente político da postura adotada pelo escritor ao longo dos romances desvela-se em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), publicado em folhetins pela Revista Brasileira ao longo de 1880. Como é sabido, nele o autor não apenas mata o senhor de escravos como faz dele o “defunto-autor” das desabusadas memórias com que, sob o disfarce da auto-crítica do narrador, Machado põe a nu a decadência da classe senhorial. O livro vem coroar o deslocamento do pater famílias experimentado nos quatro romances anteriores, igualmente centrados em conflitos envolvendo herdeiros pouco afeitos ao trabalho.
Seguindo a proposta de Gledson (1986), Sidney Chalhoub (2003, p. 17) considera Machado um “historiador” que, “ao contar suas histórias, escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX”. Os argumentos tanto de Gledson quanto de Chalhoub fundamentam-se na leitura do tempo inscrito nos enunciados.
Com efeito, as narrativas estão situadas no período que antecede a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, e cujas discussões assinalam a “crise do paternalismo” escravista no Brasil. Analisando Brás Cubas, acrescenta Chalhoub: “Machado cifra o significado do romance na trajetória de Brás, que é o Brasil que vivera até 1869, e então agonizara, morrera e fora entregue aos vermes em 1870 e 1871, anos de intensa movimentação política em torno da questão do ‘elemento servil’” (2003, p. 73).
Embora acatando em parte essa interpretação, de resto coerente com a cronologia inscrita nos textos, interessa-me nesse instante pensar menos no tempo dos enunciados e mais no tempo histórico de sua enunciação. Entre 1871 e 1888, o Brasil passará por uma fase que, em maior ou menor intensidade, o paternalismo escravocrata buscará de todas as formas evitar ou, pelo menos adiar, a morte anunciada pelo princípio do ventre livre. E será justamente na arena ideológica desses dezessete longos anos que os textos machadianos, valendo-se em grande medida da imprensa, irão retirar de cena os patriarcas do escravismo.
Ao martelar semanalmente nas páginas da Revista Brasileira, oito anos antes da abolição, as corrosivas memórias do cadáver insepulto de Brás Cubas, Machado estará sendo indubitavelmente o historiador e o crítico do paternalismo que se estiola. Mas, além disso, será também, senão um militante, alguém que trabalha, pela via sinuosa da ficção, para um país sem escravos. Visto unicamente do ponto de vista de sua construção formal, o romance sempre foi considerado quase uma revolução. Confrontado à ideologia paternalista fundadora do Estado-nação que permeia a ficção romântica brasileira, Memórias póstumas de Brás Cubas ganha em amplitude e está para seus antecessores assim como o “Deus está morto”, de Nietszche, para a metafísica ocidental.
Résumé: La mort du Seigneur des esclaves dans l’oeuvre de Machado de Assis. Lecture du motif que se répète de la mort du Seigneur et de la fin du règime de l’esclavage. Décadence du patriarcat et de l’esclavage.
Mots-clés: seigneurs et esclaves dans le discours de Machado de Assis, décadence de l’esclavage.
R e f e r ê n c i a s
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
_____. O negro e o Romantismo brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.
IANNI, Octávio. Literatura e consciência. Estudos Afro-asiáticos, Rio de Janeiro, n. 15, 1988.
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Eixo%20e%20a%20Roda%2016/06-Eduardo%20Duarte.pdf

Revista O Eixo e a Roda

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