Brasileiros no poder
Bonifácio integrou uma geração de intelectuais responsável por aproximar Colônia e Metrópole em fins do século XVIII
Kenneth Maxwell
Para a minoria branca da América portuguesa, o fracasso da Inconfidência Mineira, em 1789, e a ameaça vinda de baixo, protagonizada pelos artesãos da Bahia em 1798, forneceram dois estímulos poderosos para que se chegasse a uma solução de compromisso com a Metrópole. O reconhecimento desse fato por parte dos membros influentes do governo português no decorrer da década de 1790 teve impacto profundo no desenvolvimento futuro do Brasil.
Em 1788, Luís Pinto de Sousa Coutinho tornou-se ministro das Relações Exteriores de Portugal. Ele conhecia de perto a realidade brasileira, tendo se distinguido como governador do Mato Grosso, antes de ser nomeado embaixador português em Londres. Na Inglaterra, forneceu ao historiador escocês William Robertson (1721-1793) informações sobre a América do Sul para a sua História da América (1777), uma colaboração que também prestara ao abade Raynal (1713-1796) alguns anos antes, para a sua famosa Histoire philosophique. De volta a Lisboa, Luís Pinto entrou em contato com “eruditos” brasileiros, muitos deles alunos de Domingos Vandelli, um
professor italiano trazido a Portugal pelo marquês de Pombal como parte de seu programa de reforma educacional. Em 31 de maio de 1790, Luís Pinto enviou dois jovens brasileiros e um colega português em um tour de instrução pela Europa, à custa do governo português. Os brasileiros eram Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrada e Silva.
O grupo recebeu instruções de seguir para Paris e lá tomar aulas de Física e Mineralogia. Deveriam passar dois anos em Freiburg, na Alemanha, adquirindo todos os “conhecimentos práticos”. Em seguida, os estudiosos deveriam visitar as minas da Saxônia, da Boêmia e da Hungria, e retornar a Portugal via Escandinávia e Inglaterra. Manuel Ferreira da Câmara, o líder da expedição, tinha vínculos estreitos com os envolvidos na Inconfidência Mineira. Seu irmão mais velho, José de Sá Betencourt (1755-1828), que se formara em Coimbra em 1787, foi implicado, em diversas ocasiões, no inquérito judicial sobre a conspiração, e fugiu de Minas em 1789, pelo sertão, para a Bahia.
O fato de Luís Pinto ter estendido a poderosa proteção de seu cargo a esses jovens estudiosos brasileiros, bem como seu patrocínio à visita de Manuel Ferreira e José Bonifácio ao centro das revoluções européias, coincidiu com uma série de críticas públicas às atitudes e aos pressupostos que haviam dominado a política colonial desde a queda de Pombal, em 1777. Em 1790, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1756-1812), o sucessor de Luís Pinto no ministério, publicou, sob os auspícios da Academia Científica de Lisboa, sua Memória sobre a verdadeira influência das minas dos metais preciosos na indústria das nações que possuem, especialmente a portuguesa”.
Em seu discurso, D. Rodrigo tomou partido da opinião de que as minas eram responsáveis pela decadência de Portugal, como afirmava a Encyclopédie. Estava preparando o caminho para o trabalho de Manuel Ferreira da Câmara sobre “observações físico-econômicas acerca da extração do ouro no Brasil”, no qual o jovem brasileiro fez um eloqüente apelo em favor do aperfeiçoamento dos métodos e das técnicas empregados. Ele aconselhou a criação de escolas de mineração no Brasil, para fornecer engenheiros de minas qualificados. Os trabalhos, tanto de D. Rodrigo quanto de Manuel Ferreira, sugeriam que a imposição de exigências fiscais sobre Minas Gerais, a causa principal da conjuração em Minas, havia sido um erro, e que Minas precisava não de um aumento de carga tributária, mas de reformas racionais e moderna tecnologia.
Para formular programas e implementar reformas, Luís Pinto, em 1796, passou para D. Rodrigo de Sousa Coutinho sua pasta temporária. D. Rodrigo possuía credenciais impressionantes: havia estudado no Colégio dos Nobres, estabelecido por Pombal para criar uma nobreza “virtuosa” em Portugal. Em 1779, havia visitado a França e observado o que descreveu como sua “corte parasita e imprestável” e sua “administração financeira caótica”. Mais tarde, escrevendo a sua irmã, D. Rodrigo afirmou que a França era incapaz até mesmo de reformar o seu sistema de governo.
D. Rodrigo estava certo em sua análise, mas errado em suas predições: a reforma na França veio por meio da revolução. Ele atribuía o colapso da monarquia francesa à situação fiscal. Sua posição contrária aos monopólios, à concessão da coleta de impostos a particulares, e seu fervoroso apoio a uma administração eficiente surgiram de uma crença na necessidade de reformas para evitar uma crise da mesma natureza em Portugal. Afirmava que “a boa administração da Real Fazenda contribuiria muito para a conservação dos grandes domínios ultramarinos”.
O problema imediato era a situação da mineração em Minas Gerais. Os debates teóricos e as sugestões práticas centravam-se nesse tema. Domingos Vandelli, em um memorial sobre o ouro do Brasil, queixou-se de que a formulação de políticas havia sido deixada “somente nas mãos de pessoas ignorantes de mineralogia, com graves prejuízos do estado”. A decisão quanto às vantagens ou os prejuízos das minas para Portugal ele deixou “aos sábios políticos, que sabem calcular os verdadeiros interesses das nações”. Recomendava que a experiência prática fosse levada em conta, especialmente a de estudiosos como José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara, que estiveram na Alemanha.
D. Rodrigo mobilizou uma força-tarefa de brasileiros eruditos, cujo objetivo seria fornecer informações práticas à Metrópole. José Vieira Couto e José Teixeira da Fonseca Vasconcelos receberam a incumbência de coletar informações sobre os depósitos de sal, especialmente no vale do São Francisco. João Manso Pereira deveria conduzir investigações e experimentos mineralógicos e metalúrgicos em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Joaquim Veloso Miranda foi nomeado secretário do novo governador de Minas, Bernardo José de Lorena. Veloso de Miranda recebeu instruções para prosseguir em seus estudos sobre os recursos naturais da região, em especial o salitre. José de Sá Betencourt recebeu a incumbência de investigar os depósitos de cobre e salitre em Jacobina.
No decorrer de 1798, D. Rodrigo apresentou suas idéias ao Conselho de Estado de Portugal. Afirmou que “os domínios de Sua Majestade na Europa não formam senão a capital e o centro de suas vastas possessões. Portugal reduzido a si só seria, dentro de um breve período, uma província de Espanha”. O Brasil deveria ser dividido em dois centros de poder, o Rio de Janeiro, ao sul, e o Pará, ao norte. Propunha que a tributação fosse reformada. Os impostos sobre escravos, ferro, aço, cobre, chumbo, pólvora e manufaturas metropolitanas enviadas ao interior do Brasil seriam retirados e o quinto real seria reduzido a dízimo.
Em 1801, D. Rodrigo foi indicado para presidente do Tesouro Real, onde o afilhado de Pombal teve a oportunidade de implementar as reformas que considerava importantes, e para as quais já havia projetos de legislação preparados. O decreto real de 24 de abril de 1801, “em benefício dos habitantes do Brasil”, promulgava as reformas esboçadas por Luís Pinto em 1795. O monopólio do sal foi abolido, e foram permitidas a mineração e a manufatura do ferro. Manuel Ferreira da Câmara foi nomeado intendente-geral das Minas no Brasil. Antônio Pires da Silva Ponte foi designado governador da capitania do Espírito Santo. A designação para um cargo novo e importante, subordinado apenas ao governador de Minas, de um homem cujo irmão fora seriamente implicado na tentativa de rebelião de 1789, e a nomeação para o cargo de governador no Brasil de um brasileiro cuja lealdade fora gravemente questionada em 1786 eram pouco menos que revolucionárias. E, em Portugal, o próprio José Bonifácio de Andrada e Silva tornou-se intendente das Minas e Metais.
KENNETH MAXWELL é professor do Departamento de História e diretor do programa de estudos brasileiros do Centro de Estudos Latino-Americanos (DRCLAS) da Universidade de Harvard e autor do livro A devassa da devassa. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1977 (6ª edição, 2005).
SAIBA MAIS:
MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999.
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. 8a ed. Brasília: Hucitec, 2001.
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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