sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Lisboa, antigo viveiro de ambições

No século XV, a capital portuguesa e seu porto atraíam exploradores e produtos exóticos de muitas partes do mundo. Mais parecia uma torre de Babel, ainda que jamais tenha perdido o ar provinciano. As marcas desse passado estão à disposição do visitante
por Anne Le Cam

© SENAI AKSOY/SHUTTERSTOCK

A Torre de Belém hoje, construção de 1520 que se tornou Patrimônio Cultural da Humanidade
Um irônico embaixador da França em Lisboa, no século XVI, usou uma metáfora para defi nir a cidade: “Sua Majestade mora em cima de sua quitanda”. De fato, o Paço da Ribeira, palácio real hoje desaparecido, dava diretamente nos cais do estuário do rio Tejo, um porto natural no qual se alinhavam até 3 mil navios vindos da África e da Ásia.

Veneza, nas franjas do Oriente bizantino, mantivera até o século XV o monopólio do comércio terrestre com a Ásia. De lá as riquezas seguiam em navios rumo a Flandres ou à Inglaterra, com escala em Lisboa. Por isso, a cidade estava familiarizada com os carregamentos exóticos: no pátio do Paço da Ribeira, amontoavam-se os fardos de algodão e as cargas de seda, especiarias e cauris (conchas usadas como moeda na África e na Ásia) e eram negociados pedras preciosas e corais.

Portugal tomou a dianteira das expedições no Atlântico por muitas razões. O país não tinha ouro nem trigo. Não tinha terras abundantes nem braços para a lavoura. O futuro de Portugal pertencia aos oceanos. O progresso da navegação e a audácia dos portugueses já os tinham levado à costa africana. Quanto mais avançavam nas expedições à África, maior era a diversidade dos produtos desembarcados em Lisboa. O mais próspero dos comércios, contudo, era o de escravos.

A febre de riqueza negligenciou a produção alimentar, pois os lucros dos mares permitiam a Lisboa importar grãos. O êxodo rural inchou a cidade, que já no século XVI era uma espécie de monstro demográfico, com cerca de 100 mil habitantes em 1551.

Em 1488, Bartolomeu Dias dobrou o cabo da Boa Esperança. Aberta a rota marítima da Ásia via o contorno da África, Lisboa suplantou Veneza e os árabes. Em 1500, Cabral chegou ao Brasil. O cultivo da cana começou em 1532, assim como a maciça deportação de negros para a América. E Lisboa cresceu ainda mais.

Mas o comércio em Portugal não era negócio de burguês, e sim dos nobres e do clero. E essa elite despendia toda a riqueza em suas terras e castelos, ao contrário da burguesia de outros Estados, que, poupadora, reinvestia o que ganhava em novas empresas.



BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL, LISBOA


Portugal sentiu que tinha um futuro quando olhou para o oceano; a torre era a fortificação que protegia seu maior patrimônio, um imenso porto natural Litografia, Vicente Urrabieta y Ortiz, c. 1850



Assim, Portugal não se desenvolveu, mas cobriu-se de ricos edifícios e obras de arte. E, em memória desse tempo áureo, os portugueses ergueram mais tarde outros marcos, que fazem o turista viajar pelo país dos séculos anteriores.

PATRIMÔNIOS
O imenso terreiro do Paço, hoje praça do Comércio, situado na Baixa de Lisboa, foi reconstruído pelo marquês de Pombal. Reúne um conjunto arquitetônico do século XVIII que se abre para o Tejo. Tudo ali se destaca: é a porta de entrada da cidade.

O bairro de Belém conserva as duas obras do estilo manuelino que se tornaram Patrimônio Cultural da Humanidade. A Torre de Belém, concluída em 1520 e várias vezes reformada, foi residência dos capitães do porto e até presídio político ao longo dos séculos. Já a construção do monastério dos Jerônimos começou em 1501 e terminou um século depois. Mescla o estilo manuelino a elementos da arte moura e do gótico espanhol.

O antigo bairro da Alfama foi relativamente poupado do grande terremoto de 1755 e tem ruas pitorescas, que abrigam a igreja de São Miguel, com trabalhos em madeira do século XVIII. Do lado externo do monastério de São Vicente de Fora, há o mausoléu da última dinastia portuguesa, os Braganças.

Dois museus merecem ser conhecidos para penetrar na alma profunda dos lusitanos. O Museu dos Azulejos, no convento Madre de Deus, mostra a moda, posterior à era dos descobrimentos, de cobrir edifícios civis e religiosos de cerâmicas. E o Museu da Marinha, construído na praia da qual partiu Vasco da Gama, permite desvendar o caso de amor dos lusitanos com o oceano.


Anne Le Cam é mestre em história medieval
Revista História Viva

Uma pequena história do comércio planetário

Há mais de cinco séculos, o mundo tenta abolir restrições ao livre trânsito de mercadorias. Foram vários os momentos de liberalização, mas também muitos os de retrocesso, com potências elaborando discursos e promovendo ideologias ao sabor de suas necessidades de momentopor Christophe Courau


Biblioteca Nacional da França, Paris / (C) Visioars / AKG Images / Latinstock


Aquarela do século XVIII mostra chineses vendendo chá a comerciante europeu


Foi preciso chegar ao século XXI, mais especificamente ao ano de 2001, para que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) aprovassem a entrada da China, com seu 1,3 bilhão de potenciais consumidores, na instituição que rege as trocas comerciais do planeta.

A OMC não é bem-vista por todos. Alguns movimentos, hoje, atribuem à maior comunidade reguladora mundial de trocas de produtos o nefasto papel de promotora do livre comércio como norma superior àquelas que regem a proteção e a independência cultural, ambiental, científica e política dos países.

De outro lado estão os que acreditam no poder da organização de permitir uma concorrência saudável e a neutralidade das negociações, assim como a elevação do nível de vida dos consumidores graças à queda dos preços de todos os bens de consumo.

Essa peleja não tem, contudo, a atualidade que aparenta. Muito antes de a globalização se tornar assunto, as nações se envolviam em disputas sobre temas comerciais, oscilando entre o liberalismo e o protecionismo, a depender do interesse de momento.

Na Idade Média, o comércio terrestre era difícil, com péssimas estradas, ameaça de roubos e pilhagens e crescente número de pedágios típicos do sistema feudal – por exemplo, chegaram a 70 entre Roanne e Nantes, cidades francesas que distam cerca de 500 km.

Assim, o primeiro grande desenvolvimento do comércio mundial se deu por mar, graças às viagens marítimas dos séculos XV e XVI e à formação dos impérios coloniais, como Espanha e Portugal.
Nessa dinâmica mundial, o mar Mediterrâneo perdeu o protagonismo nas trocas mercantis, enquanto a Inglaterra e os Países Baixos criaram poderosas estruturas comerciais. Os holandeses desenvolveram esse sistema à perfeição com a Companhia das Índias Orientais e a das Índias Ocidentais.

Essa primeira fase é definida como mercantilismo, uma doutrina de “guerra econômica” que concebia o comércio como a maior acumulação possível de metais preciosos. O Estado deveria esforçar-se para aumentar as exportações e limitar o máximo possível suas importações de bens de consumo.


Reprodução
Operários em Londres no século XIX: pioneiros da Revolução Industrial, os britânicos defenderam o fim das barreiras alfandegárias

A economia colonial foi reduzida à produção de matérias-primas e ao monopólio do transporte marítimo; os países aceitavam apenas embarcações próprias em seus portos; os bens estrangeiros tinham tarifas aduaneiras exorbitantes ou simplesmente eram proibidos.

Foi dessa forma que a Inglaterra atingiu com força o comércio dos Países Baixos com seu Ato de Navegação de 1651, que proibia quase totalmente a circulação de produtos holandeses na França.
“Apenas a força das armas é capaz de romper as barreiras do protecionismo”, assinala o historiador francês Michel Mourre (1928-1977) em seu Dicionário da história. “Como as colônias eram fechadas para outros países, a única solução para ampliar o comércio de um país era conquistar as colônias dos adversários: o primeiro império colonial francês passou às mãos da Inglaterra em 1763, da mesma forma que o Império Português na Indonésia foi anexado pelos holandeses no início do século XVII, e que os britânicos e americanos favoreceram a independência das antigas colônias espanholas na América no início do século XIX”.

A partir de 1750, houve uma reação intelectual contra o mercantilismo. Os fisiocratas, que defendiam a ordem da natureza na filosofia e o livre comércio no plano econômico, lançaram a fórmula “laissez faire, laissez passer”, símbolo do liberalismo: “deixe fazer, deixe passar”. 
Justamente nessa nova etapa da história, a Inglaterra entrava na Revolução Industrial e via o mundo abrir-se para suas manufaturas. Em 1786, foi dado um primeiro passo em direção à livre troca com o tratado de comércio franco-inglês. O acordo igualava as tarifas do vinho francês importado pela Inglaterra às do vinho português.

As taxas sobre os tecidos de algodão e lã inglesa não ultrapassavam os 12% na França, enquanto as de alguns bens de consumo não chegavam a 10%. O comércio entre França e Inglaterra triplicou em três anos, embora milhares de franceses vissem as medidas como a ruína da indústria nacional.

O período de prosperidade comercial não durou muito. Com o Bloqueio Continental, Napoleão Bonaparte retomou as políticas protecionistas. Exigiu o fechamento de todos os portos ao comércio inglês. Depois de 1815, os grandes proprietários de terra e indústrias impuseram uma tarifa alfandegária proibitiva à importação de fibras e tecidos de algodão e uma taxa de 50% sobre o ferro.
A Inglaterra, ainda sim, seguiu no caminho da liberalização do comércio. Sob pressão de militantes agrupados em campanhas de barateamento de alimentos, os britânicos aboliram as taxas de importação sobre o trigo. É verdade que em 1850 o Reino Unido respondia por 18% das trocas comerciais do mundo, como observa o estudioso da história econômica Michel Rainelli, em seu livro A organização mundial do comércio: “O país dominante tem todo o interesse no livre comércio com a finalidade de importar produtos por preços baixos e assegurar a exportação de seus produtos à maior fatia do mercado possível”.

Esse contexto perdurou até que, contra os industriais franceses, Napoleão III assinou o acordo de livre comércio com a Inglaterra, em 1860 – o primeiro na história a conter a seguinte cláusula: quando um país faz um novo acordo comercial, este beneficia também as nações que possuíam tratados com esse país. Essa disposição tornou-se uma tendência em poucos anos e regulou acordos entre outros países europeus no século XIX.


Reprodução
Wall Street, 1929: a quebra da bolsa americana levou a uma retomada do velho protecionismo alfandegário lidderada pelos EUA

Novamente, o livre comércio teve vida curta. Entre 1880 e 1913, houve um retorno geral ao protecionismo, à exceção da Grã-Bretanha, Holanda e Dinamarca. Os Estados Unidos quiseram incentivar o crescimento de suas próprias indústrias, ideia clamada de forma profética pelo presidente americano Ulysses Grant e citada no primeiro volume de A mundialização da economia, de Jacques Adda: “Durante séculos, a Inglaterra pôde beneficiar-se de um regime de proteção. Esse país reconsiderou seu sistema e adotou o livre comércio, pois o protecionismo não lhe servia mais. Então, o que sei sobre meu país me faz deduzir que daqui a dois séculos, quando os Estados Unidos terão aproveitado tudo o que puderem de um sistema de proteção, adotarão o livre comércio”.

As tarifas aduaneiras, semelhantes às que hoje conhecemos, foram instauradas em 1890. Na França, a pressão veio dos agricultores, ameaçados pelas importações provenientes dos Estados Unidos, Canadá e Rússia. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra, 12º parceiro da Alemanha em importações e exportações, permanecia como a maior potência comercial do mundo, mas nos primeiros anos do século XX a Alemanha quase a alcançou nas exportações de produtos manufaturados.

De 1880 a 1913, o comércio britânico aumentou em cerca de 100%, o americano, 189%, e o alemão, 266%, como observa o historiador Michel Mourre. No fim da guerra, não houve armistício aduaneiro. Apesar do terceiro dos 14 pontos do presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, que previa “a suspensão mais completa possível das barreiras econômicas e o estabelecimento de condições de igualdade comercial entre todas as nações”, os países nascidos do desmantelamento dos antigos impérios da Europa central pelo Tratado de Versalhes, como Iugoslávia e Polônia, se protegeram atrás de barreiras aduaneiras.

Uma conferência da Sociedade de Nações de 1927 recomendava a diminuição das tarifas alfandegárias e a abolição de cotas restritivas, mas tudo isso foi abalado pela crise de 1929, quando os americanos, seguidos dos franceses e ingleses, aumentaram os impostos aduaneiros, enquanto o sistema monetário global vinha abaixo.

“Foi preciso esperar o fim da Segunda Guerra Mundial – quando os Estados Unidos se tornaram hegemônicos – para que as nações se preocupassem com o restabelecimento do sistema econômico mundial e a ideia de cooperação internacional ganhasse espaço”, explica Rainelli.



(C) Andy Clarck / Reuters / Latinstock
Protestos em Seatlle contra a reunião da OMC em 1999: instituições hoje criticadas já foram consideradas a salvação para crises do passado

As grandes instituições, hoje criticadas, nasceram naquele momento. Em julho de 1944, em Bretton Woods, um centro de convenções de New Hampshire a alguns quilômetros da fronteira canadense, 44 nações criaram o Fundo Monetário Internacional (FMI), encarregado de zelar pelas moedas. O Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird, atual Banco Mundial) tinha como incumbência financiar as economias devastadas pela guerra.

Então, começou-se a projetar o que seria a Organização Internacional do Comércio, integrada às Nações Unidas: 23 países se reuniram em Genebra em outubro de 1947 e estabeleceram um acordo geral sobre as tarifas aduaneiras e o comércio mundial (o Gatt, na sigla em inglês). Em 38 artigos, o documento reduziu os obstáculos às trocas internacionais.

Regras de “boa conduta” foram então decretadas. O dumping e as cotas de exportação foram condenados. As subvenções, regulamentadas. Os serviços e os produtos agrícolas e têxteis, entre outros, ganharam regimes especiais. Em casos de desacordo, especialistas passaram a propor arbitragens, em geral acatadas.

O Gatt organizou ciclos de negociações. O primeiro round, em Genebra, em 1947, resultou em 45 mil reduções tarifárias. Em Annecy, entre abril e agosto de 1949, 13 países chegaram a um novo acordo com outras 5 mil reduções. Em Torquay, Inglaterra, de setembro de 1950 a abril de 1951, 38 nações reduziram os impostos alfandegários em 25% se comparados aos de 1948.

E assim se seguiram novas liberações, com um número cada vez maior de países. Até que no dia 1o de janeiro de 1995, o Gatt foi substituído pela OMC.

Bretton Woods e a engenharia da crise

Fundo Monetário Internacional, Washington
O encontro: as potências ocidentais lançaram as bases de órgãos como o FMI e o Banco Mundial

Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, em julho de 1944, a aliança de países em guerra contra Alemanha, Itália e Japão se reuniu na pequena cidade de Bretton Woods, nos Estados Unidos, para tentar dar novo rumo às suas economias, desorganizadas pela sucessão de conflitos e crises da primeira metade do século XX.

Até então, os países trabalhavam com o padrão-ouro, já mitigado desde a Primeira Guerra, mas ainda válido para as instituições financeiras, em associação com políticas cambiais. Em Bretton Woods, o desafio era criar instituições internacionais que regulassem esses sistemas, com regras comuns aos 44 países participantes do encontro, todas negociadas.

Um dos muitos aspectos diferenciados dos acordos firmados foi justamente restringir, na prática, a soberania das nações envolvidas – nunca antes tantas diferentes nacionalidades haviam se mostrado dispostas a sofrer, voluntariamente, alguma forma de controle.

Sob a inspiração das ideias do economista John Maynard Keynes, a conferência teve uma segunda marca: a liderança dos Estados Unidos, já muito clara em todo o mundo, como resultado dos negócios gerados pela guerra e do senso de oportunidade dos americanos, enquanto a Europa era destroçada nos confrontos com o nazismo.

Bretton Woods não teve resultados práticos tão ambiciosos quanto as ideias lá apresentadas, que influenciariam toda a economia do século XX e uma parte do século XXI – a busca de pleno emprego, de crescimento contínuo, de reconstrução e de relações internacionais orquestradas por órgãos multilaterais, visando objetivos comuns. Tudo por medo da repetição do quadro de depressão pós-crise de 1929.

Mas desse colóquio resultaram organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e um esboço da futura Organização Mundial do Comércio (OMC), depois de apenas três semanas de debates – embora muitas negociações tenham se travado nos meses anteriores, preparatórios da conferência.

A genialidade de Keynes se deve, entre muitas outras coisas, a seu senso de oportunidade. Ele se dedicou a formular um conjunto de medidas de reconstrução no pós-guerra ainda durante o conflito, vinculando políticas e reformas institucionais internas dos países que lutavam contra o eixo nazifascista a organismos reguladores globais, capazes de direcionar o desenvolvimento a um conjunto de objetivos ao qual nação alguma do bloco capitalista poderia se opor, sob risco de perder oportunidades de negócios e cair no isolamento em termos de comércio e transações financeiras – ou ficar sem apoio e ajuda em caso de crises de liquidez e outras relacionadas ao delicado momento vivido pelo mundo na década de 1940.

Seu plano original sofreu transformações e reduções, como fruto da delicada negociação. E o cenário político de desigualdade de força dos países envolvidos – os Estados Unidos foram líderes absolutos nesse processo – deixou cicatrizes e desigualdades. De tempos em tempos, como nos atuais, o mundo questiona estatutos, prescrições, dinâmicas, legitimidade, representatividade e interesses das instituições mundiais, que carecem de independência, políticas claras e capacidade de formulação para além dos receituários do século XX, em geral contracionistas.

Christophe Courau é historiador e jornalista.

Revista História Viva

domingo, 18 de novembro de 2012

Notícias História Viva

Grupo acha primeiras lanças do mundo

REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE "CIÊNCIA+SAÚDE"


Vestígios encontrados num sítio arqueológico sul-africano indicam que, 500 mil anos atrás, ancestrais do homem já tinham desenvolvido a tecnologia arquetípica dos caçadores pré-históricos -lanças com pontas de pedra.

Ou seja, nessa época remota, a ideia aparentemente simples de unir um pedaço de pedra trabalhado a um cabo de madeira já tinha emergido, o que significou o primeiro passo para formas revolucionárias de hardware: machados, martelos e enxadas (essas bem mais tarde), por exemplo.

A descoberta está descrita na edição de hoje da revista especializada "Science", em artigo cuja autora principal é Jayne Wilkins, da Universidade de Toronto (Canadá).
Editoria de Arte/Folhapress 



Além da análise detalhada dos artefatos originais, Wilkins e companhia fizeram até um pouco de arqueologia experimental. Criaram réplicas das pontas de pedra para ver se elas davam mesmo boas extremidades de lança, o que de fato parece ocorrer.

Da mão ao cabo

A sacada de adicionar um cabo à pedra trabalhada pode parecer óbvia, mas demorou um tempo surpreendentemente longo para iluminar a caixa craniana dos hominídeos, como é conhecida a linhagem humana (dos ancestrais mais remotos até hoje).

Embora os primeiros exemplares de ferramentas de pedra -basicamente seixos com pontas afiadas- tenham surgido há mais de 2 milhões de anos, por muito tempo elas parecem ter sido usadas com as mãos nuas.

Eram coisas como raspadores, perfuradores e os chamados machados de mão (que provavelmente não cortavam árvore nenhuma, apesar do nome).

Acredita-se que esses hominídeos mais primitivos dependessem relativamente pouco da caça. Sua principal fonte de proteína e gordura animal teriam sido carcaças de grandes mamíferos abatidos por predadores do topo da cadeia alimentar, como leões e dentes-de-sabre.

Antes da descoberta na África do Sul, uma das pistas mais antigas do momento em que os hominídeos passaram a assumir um papel mais ativo na busca por grandes presas tinha 400 mil anos -lanças inteiramente de madeira achadas na Alemanha.

Wilkins e seus colegas acharam as mais de 200 pontas de lança, com tamanho médio de 7 cm no sítio arqueológico de Kathu Pan 1, no interior da África do Sul. A primeira suspeita sobre o uso dos artefatos veio do padrão de fragmentação nas extremidades deles, que sugeria a trombada contra um alvo.

Encaixe

Dois outros indícios sugeriam o uso em lanças. O mais crucial era a remoção de lascas de pedra no local onde, teoricamente, o cabo ficaria -provavelmente para facilitar a fixação da madeira.

Além disso, sabe-se que instrumentos de pedra que são usados para cortar coisas, e não para perfurá-las, apresentam um padrão típico de desgaste quando são usados por muito tempo.

Eles vão ficando menos e menos simétricos conforme vão sendo afiados -um lado fica maior que o outro, em resumo. E esse tipo de assimetria não foi identificado nas prováveis pontas de lança.

O último teste, desta vez experimental, envolveu colocar pequenos cabos em réplicas das pontas de pedra, presos a elas com resina de acácia (árvore comum na savana africana) e tendão de animais, uma técnica provavelmente próxima da que estava sendo usada no passado.

Essas pontas foram acopladas a bestas (a arma de origem medieval, da "família" dos arcos, disparada com um gatilho), que permitiam regular com precisão a força do golpe. E se mostraram capazes de penetrar com eficiência carcaças de gazela, sofrendo poucos danos.

A aposta dos cientistas, a julgar pela idade dos vestígios, é que seus criadores tenham sido da espécie Homo heidelbergensis. Eram hominídeos de cérebro já avantajado, considerados os ancestrais tanto do Homo sapiens quanto dos neandertais.
Folha de São Folha

Anita, a heroína de dois continentes

A saga da companheira de Giuseppe Garibaldi, uma mulher movida pela paixão e pela aventura

MILU LEITE

O primeiro encontro de Giuseppe e Anita /
Ilustração de Edoardo Matania

O ano de 2011 é dedicado a comemorações na Itália, e o nome da brasileira Anita Garibaldi tem sido mencionado em inúmeros eventos que, se não ocorrem diretamente em sua homenagem, não lhe furtam o merecido destaque na história do Risorgimento, movimento que culminou com a unificação daquele país 150 anos atrás. Anita é amada pelos italianos na mesma medida em que é venerado ali seu companheiro de lutas e aventuras, Giuseppe Garibaldi. O casal combateu ao longo de um ano aqueles que se opunham à ideia de uma Itália unida e forte, até o dia em que a morte derrubou definitivamente Anita, quando ela e o marido fugiam de Roma, em 4 de agosto de 1849. Antes de tornar-se heroína na Itália, porém, Anita já tinha lavrado seu nome na história do Brasil, ao participar ativamente da Guerra dos Farrapos, e da do Uruguai, onde viveu ao lado de Garibaldi por sete loucos anos.

Sendo, então, Anita e Giuseppe um casal intercontinental, nada mais apropriado que Brasil e Itália os lembrarem como símbolo das boas relações entre as duas nações durante o evento intitulado Momento Itália-Brasil, que ocorre de outubro deste ano a junho de 2012, em diversas cidades brasileiras. A declaração de apoio à iniciativa, assinada pelos presidentes dos dois países em 2010, destaca os objetivos de aprimorar as relações econômico-comerciais, tecnológicas, científicas, culturais e educacionais entre os dois povos. A programação é extensa e, como não poderia deixar de ser, inclui um espetáculo teatral sobre a heroína: Anita dei Due Mondi, trazido pela produtora Dell’Arte.

A vida de Anita Garibaldi, nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro, é um prato cheio para os escritores, já que pode não só ser narrada com dados reais como ser romanceada com doses de imaginação que vão de uma sutil pitadinha de pimenta a um sacolão de temperos. Por exemplo, determinar a data e o local de seu nascimento já demandou de todo biógrafo que vasculhou sua vida pesquisas em montanhas de papéis com declarações, suposições e deduções. Chegou-se a um consenso (não falemos em unanimidade), apesar de não haver documento de registro que comprove os seguintes dados: Anita nasceu no dia 30 de agosto de 1821, em algum ponto da extensa faixa que abarcava então a região de Laguna (apenas parte dela corresponde agora a esse município), no estado de Santa Catarina. Alguns acreditam que veio ao mundo mesmo em Laguna, outros, em Morrinhos, hoje bairro de Tubarão. Mas, como bem explica o cartunista José Custódio Rosa Filho, autor da história em quadrinhos Anita Garibaldi, o Nascimento de uma Heroína, “na época, tudo era Laguna. Menos Lages, que foi de São Paulo. Do ponto de vista atual, creio que, mesmo que tivesse nascido em Lages, ela seria, claro, catarinense”. Desnecessário dizer que tanto uma cidade quanto outra disputam o título de berço de Anita, dedicando a ela homenagens e monumentos com igual júbilo.

Contudo, se por um lado a falta de documentação a respeito do que fazia Anita (era analfabeta, portanto as poucas cartas que escreveu não foram de próprio punho) antes de conhecer Garibaldi se interpõe como dificuldade para os biógrafos, por outro o próprio Garibaldi os presenteia, em sua autobiografia, com centenas de linhas a respeito de sua companheira, e como bom romancista prepara o clima antes de introduzir os fatos. É ele quem nos conta, por exemplo, do sentimento que o devorava quando navegava, ainda só, pelas águas do sul do Brasil, em obediência aos planos de Bento Gonçalves, um dos principais articuladores da Revolução Farroupilha: “Era pois uma mulher que se me tornava necessária; só uma mulher me podia curar, uma mulher, quer dizer, o único refúgio, um anjo consolador, a estrela da tempestade. A mulher é uma divindade que nunca se implora em vão, especialmente quando se é desgraçado. Era com este incessante pensamento que, do meu camarote, a bordo do Itaparica, voltava sem cessar o meu olhar para a terra”, escreve Giuseppe nas Memórias.

A essa altura, ele não imaginava que em terra a jovem Ana, então com 18 anos e casada há quatro com o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar, seria essa mulher, embora ela já cavalgasse como uma amazona, chamando para si a atenção de muitos homens da região não apenas por sua habilidade na montaria como também, e talvez principalmente, por sua maneira de lidar com eles. De acordo com os biógrafos de Anita, ela já tinha demonstrado ser dura na queda ao menos em duas ocasiões: quando interferiu numa briga de terras de pessoas de seu povoado e quando açoitou o rosto de um rapaz que se metera com ela, com intenção de, talvez, violá-la. Por causa desse último episódio, sua família teria se mudado de casa, temendo represálias.

Tesouro valioso

O encontro entre Anita e Giuseppe é mais um terreno fértil para discordâncias e invenções. Uma vez que depoimentos e declarações foram colhidos somente muitos anos depois, as versões variam em gênero, número e grau. Em sua obra De Sonhos e Utopias... Giuseppe e Anita Garibaldi, a autora Yvonne Capuano seleciona algumas delas. Virgílio Várzea narra um encontro entre a doce e dedicada Ana que acompanhava o marido (um soldado monarquista voluntário), quando ele estava ferido num hospital para os republicanos em Laguna. Teriam ido para lá graças à interferência de Garibaldi. Alguns encontros e... a paixão entre ambos nascera de maneira arrebatadora. De acordo com essa versão, Anita teria implorado a Garibaldi que a levasse consigo quando embarcasse, e ele, depois de tentar demovê-la da ideia, teria cedido aos apelos de seu coração, àquela altura completamente tomado de amor pela jovem.

Outras versões falam de um encontro na igreja matriz, protagonizado por uma Anita impetuosa e atrevida. Todas elas, no entanto, sucumbem diante do relato de Garibaldi, que diz em suas memórias ter avistado com a luneta Anita, ainda quando estava no tombadilho do Itaparica. Ao desembarcar, conta ele, aceitou o convite para um café na casa de um homem que tinha acabado de conhecer. Ao chegar ali, defrontou-se com Anita e, apresentando-se, disse: “Tu devi essere mia”. O homem em questão, segundo alguns, era o marido de Anita. Anos mais tarde, Garibaldi diria: “Havia encontrado um tesouro proibido, mas um tesouro valioso”.

As diferentes versões a respeito do encontro se devem a muitas razões, mas talvez a mais importante esteja vinculada a um fator pouco comentado. Em um breve estudo para o Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a historiadora Cíntia Vieira Souto fala da necessidade de se dar à heroína um caráter virtuoso, recorrendo-se muitas vezes ao embelezamento de suas atitudes. “Anita Garibaldi é uma das poucas mulheres brasileiras que, antes do século 20, participaram, de forma ativa, de episódios políticos e militares da história do Brasil. Ao lado do companheiro, o italiano Giuseppe Garibaldi, atuou em algumas das batalhas decisivas da Revolução Farroupilha em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Foi a primeira mulher brasileira a ganhar um monumento público, o monumento a Garibaldi e Anita em Porto Alegre, em 1913”, ressalta Cíntia. Para gozar de tamanha honra, porém, Anita não poderia ser apenas a mulher corajosa e audaciosa que foi. Não bastaria ser apenas Anita, pois ela, apesar de lutar bravamente por seus ideais, quebrara tabus. Anita deixou o marido para fugir com Giuseppe. Não deu bola para a família, nem para a cidade toda. Simplesmente fez o que lhe deu na telha... e poucas mulheres faziam o que lhes dava na telha no século 19. E, afinal, o que era o Brasil em meados do século 19?

A Revolução Farroupilha eclodiu em 1835 na província do Rio Grande do Sul, em resposta a mais uma elevação de taxas, que penalizava os criadores de gado e os produtores de charque, obrigados a concorrer com os produtores do Uruguai e da Argentina, beneficiados por impostos mais baixos.

Os ideais republicanos já cativavam havia algum tempo parte da população da província e se propagaram ainda mais depois das medidas aplicadas pelo Império. Sendo assim, em 20 de setembro de 1835, os estancieiros dominaram a capital, Porto Alegre, sob a liderança do coronel Bento Gonçalves. Pouco a pouco, o movimento ganhou força, e as tropas imperiais foram perdendo o controle da situação. Um ano depois, foi proclamada a República Rio-Grandense e, em 1839, os revoltosos tomaram Santa Catarina e fundaram a República Juliana.

Somente em 1842 é que a revolução começou a ser debelada, graças à eficaz ação das tropas monarquistas comandadas por Luís Alves de Lima e Silva, que viria a se tornar o duque de Caxias. Dez anos depois de sua eclosão, com o movimento já bastante fraco, o então imperador dom Pedro II propôs um acordo de paz, oferecendo algumas vantagens aos revoltosos, e pôs fim ao levante.

Anita teria assistido ao desfile dos farroupilhas quando estes chegaram vitoriosos a Laguna, em 1939. Simpática aos ideais republicanos (posição contrária à do marido, defensor da monarquia), compareceu à missa em homenagem a Garibaldi e seus companheiros. A fama de Garibaldi, a essa altura com 32 anos, já corria de boca em boca. O marinheiro italiano chegara ao Brasil fugido da Itália, depois de ter decretada sua pena de morte por participação no movimento pela unificação do país. Suas proezas em mar e terra, sua astúcia e valentia já o haviam alçado à categoria de exímio combatente nos anos em que vivera como marinheiro mercante no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que se enfronhava mais e mais nas reuniões dos republicanos. No mais, sua atuação no sul também já havia lhe rendido louros, principalmente depois de ter ele levado por terra os dois lanchões necessários para a tomada de Laguna, fazendo uso de um inteligente estratagema para enganar as forças imperiais.

Construção de um mito

Era esse o Giuseppe com quem Ana Maria de Jesus Ribeiro compartilhou um café no casual encontro que mudaria radicalmente os rumos de sua vida. Em agosto de 1939, ela embarcou no Seival ao lado de Garibaldi e de dezenas de homens e não tardou a exibir seu poder de combate. Exposta a balas na proa, disparava tiros já no primeiro ataque sofrido pelos rebeldes, sobrevivendo em meio a uma dezena de mortos.

O mito Anita se construía aos poucos, com ações, é verdade, mas sobretudo sob o olhar do homem que a amava e escreveria anos depois sobre ela os poucos relatos acerca de sua bravura. Ao colher dados para redigir seu livro Anita Garibaldi – Uma Heroína Brasileira, o jornalista Paulo Markun explica que encontrou algumas dificuldades, mas que a maior “foi separar o joio do trigo. Como Anita foi adotada por Mussolini como a mãe da pátria, surgiram muitas versões fantasiosas de sua trajetória, que já é impressionante, mesmo se circunscrita ao que parece fato”.

Outros episódios de coragem são relatados pelo jornalista em seu livro, mas o mais marcante deles é o que conta a fuga de Anita de um acampamento de prisioneiros em Curitibanos para ir ao encalço de Garibaldi em Lages, 80 quilômetros adiante, primeiro a pé, depois montada num cavalo branco, enfrentando encostas perigosíssimas e as águas do furioso rio Canoas, usando uma espécie de poncho, também branco, que conseguiu pelo caminho. “Assim vestida e com seus cabelos negros despenteados pelo vento, acabou por espantar os que buscavam fugitivos, que a confundiram com uma aparição”, narra Markun em seu livro.

A República Juliana, como se sabe, não vingou. Anita e Garibaldi deixaram o exército republicano e partiram para o Uruguai. Depois de mais de 50 dias de viagem, o casal se estabeleceu em Montevidéu, agora em situação diferente: Anita como dona de casa, Garibaldi como comandante do exército e da esquadra oriental. Casaram-se no dia 26 de março de 1842, graças a uma omissão de Anita, que não revelou seu estado civil. Por essa época, já carregava nos braços o primogênito Menotti e estava grávida de Rosita, que morreria dois anos depois vítima de uma infecção.

Mas, apesar da vida mais tranquila, o casal não se afastou do debate político. Ao contrário, a residência de Anita e Garibaldi era frequentada por dissidentes estrangeiros e, principalmente, por carbonários que viviam no Uruguai mas não haviam abandonado o sonho de unificar a Itália. Garibaldi sentia renascer a vontade de realizar por seu país o que fora impedido de fazer anos antes.

No final de 1847, animado com as notícias de anistia aos rebeldes em sua terra, Garibaldi convenceu Anita a partir com os três filhos para a Itália, não sem antes prometer-lhe levar os restos da pequena Rosita consigo. Dois meses depois, Anita desembarcava com Teresita, Menotti e Ricciotti em Gênova, onde foi recebida com simpatia e deferência. Só em meados do ano seguinte conseguiu reencontrar Garibaldi, que vinha de uma viagem longa até chegar a Nice, na época pertencente ao reino da Sardenha, onde viviam sua mãe e amigos. Iniciaria então o período de batalhas e fugas pela Itália, lutando pela unificação ao lado do marido. Sobre o episódio, escreveu Garibaldi: “A minha boa Anita, apesar de meus argumentos para tentar convencê-la a permanecer, decidiu acompanhar-me. A observação de que eu teria de enfrentar uma tremenda vida de dificuldades, privações e perigos, cercado de tantos inimigos, serviu muito mais de estímulo à corajosa mulher; em vão lembrei-lhe o fato de estar grávida. Chegando à primeira casa, solicitou a uma senhora que lhe cortasse o cabelo, vestiu-se de homem e montou a cavalo”.

Anita adoeceu e morreu meses depois. O próprio Garibaldi relata os fatos em suas memórias. Conta que ela chegou deitada na carroça conduzida por ele até Mandriole e que imediatamente suplicou que trouxessem um médico. Este, ao transportá-la para a cama, dissera: “Chamaram-me apenas para atestar uma morte”. Garibaldi tomou então o pulso de sua mulher: “Já não batia. Tinha diante de mim a mãe de meus filhos, que eu tanto amava, morta!”

Não se sabe até hoje qual foi a doença que a matou. “Aparentemente, uma febre tifoide ou algo assim. As circunstâncias da morte e da autópsia, feita vários dias depois numa pequena cidadezinha italiana, dificultam uma conclusão mais precisa. Seguramente, não foi enforcada por Garibaldi, como chegaram a difundir na época”, explica Markun.

Mulher de seu tempo

A tragédia de Anita é um dos episódios mais tristes da história dos dois países. À luz dos nossos dias, parece impensável que uma mulher grávida empunhasse armas e saísse para lutar montada num cavalo. De que tempo seria alguém assim? “Talvez ela tenha sido uma mulher do tempo dela, e nós é que acabamos adotando uma ideia falsa da mulher brasileira da época colonial que só podia ser a sinhazinha romântica, sempre às voltas com aulas de piano e bordado, ou a escrava negra, ama de leite, cobiçada pelo patrão. Uma pesquisa da historiadora Mary Del Priore mostra que havia mais do que isso no Brasil colonial: mulheres que mantinham suas casas, enquanto os maridos ganhavam a vida nas minas ou no comércio de animais”, escreve o jornalista.

O cartunista Custódio faz uma avaliação a partir de dois enfoques. “Em uma primeira conclusão, certamente ela estaria à frente de seu tempo”, diz. “Anita abandonou um casamento, provavelmente infeliz, não teve filhos enquanto estava com o primeiro marido, depois se juntou (seduzida ou não, não importa) a um homem sem parada, um aventureiro, e o seguiu obstinadamente.” Segundo Custódio, nesse aspecto ela se mostra uma mulher quase moderna, cujas escolhas são feitas à luz da própria vontade. “É a mulher que quer ser senhora do próprio destino”, resume. “Mas, por outro lado”, prossegue o cartunista, “ela poderia ser também a clássica mulher que se atira em busca do seu homem, a qualquer preço, e se contenta com qualquer migalha que o destino lhe dê em troca de estar com seu amado. Quase a Amélia da música, que ‘passava fome ao meu lado e achava bonito não ter o que comer’. Minha tendência é ficar com a primeira imagem, mas é evidente que é uma interpretação fácil para torná-la mais heroína ainda, o que é desnecessário, pois mesmo que ela fizesse tudo apenas por paixão, ainda assim teria os mesmos méritos que tem como heroína de guerra”.
Revista Problemas Brasileiros

Entre a tragédia e a sensualidade

Há cem anos nasciam Jorge Amado e Nelson Rodrigues, dois autores de sucesso

HERBERT CARVALHO

Jorge Amado (à esq.) e Nelson Rodrigues

O escritor Jorge Amado de Faria (1912-2001) colocou o Brasil e sua terra natal, a Bahia, no mapa-múndi da literatura. Seus 45 livros publicados em 70 anos de carreira foram traduzidos em meia centena de idiomas e adquiridos por mais de 60 milhões de leitores de todo o planeta – um fenômeno editorial só igualado por outro brasileiro, Paulo Coelho, em circunstâncias mercadológicas muito diversas, porém. Considerado pelo peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura em 2010, como um dos três maiores escritores latino-americanos – ao lado do mexicano Octavio Paz e do colombiano Gabriel García Márquez, também detentores do Nobel –, é autor de uma obra que constituiu uma espécie de carteira de identidade do Brasil perante estrangeiros, que o agraciaram com títulos de doutor honoris causa em universidades como a de Pádua, na Itália, e a Sorbonne, na França.

Ele próprio, entretanto, não chegou a tornar-se o primeiro autor de língua portuguesa contemplado pela academia sueca, honra que coube a José Saramago. Mesmo em seu país, apesar de membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), à qual dedicou Farda Fardão Camisola de Dormir, nunca despertou simpatias da crítica universitária, da qual sofreu dupla discriminação, pelo passado militante de esquerda e por ser autor de best-sellers, criador de personagens estigmatizados como caricaturais, estereotipados e psicologicamente vazios.

Se Jorge Amado foi repudiado pela elite intelectual como populista e a sensualidade que transborda de seus romances tornou-se alvo de críticas dos moralistas, seu coetâneo Nelson Rodrigues (1912-1980), ainda que apontado pelos críticos especializados como o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos, teve tratamento pior: era abertamente chamado de tarado em razão dos adultérios e incestos, dos homossexuais e prostitutas que transitam pelas 17 peças por ele escritas entre 1941 e 1978, até hoje montadas ininterruptamente em palcos brasileiros.

Além de um teatro que superou o panorama anterior das comediazinhas de circunstâncias ou dos dramalhões da pior tradição lusitana – abrindo caminho para a geração de dramaturgos socialmente engajados como Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri –, Nelson deixou uma obra singular de jornalista-escritor. Reunidos em livros editados pela Companhia das Letras (mesma editora que relançou a obra de Jorge Amado), os contos, as crônicas que tratavam de futebol, cultura e política e os folhetins romanescos originalmente publicados em jornais sobreviveram ao efêmero tempo jornalístico, configurando um painel do Brasil de meados do século passado e, sobretudo, do Rio de Janeiro, cidade em que ele passou quase toda a sua vida.

Romancista de prostitutas e vagabundos, como Jorge Amado se assumia, ou anjo pornográfico, na autodefinição de Nelson Rodrigues que deu título à sua biografia, escrita por Ruy Castro, ambos deixaram uma obra cuja perenidade reside na fidelidade com que retrataram o povo brasileiro, sejam marinheiros e meninos de rua soteropolitanos sejam bicheiros e suburbanos cariocas. E, por isso, seus textos foram e ainda são recordistas em adaptações para cinema e televisão. Pela mesma razão, o primeiro chegou a ter livros queimados em praça pública e o segundo amargou anos de interdição de suas peças pela censura.

Instrumentos de combate ao preconceito racial, Jubiabá, de Jorge, e Anjo Negro, de Nelson, romperam com o tabu que alijava negros dos papéis principais em textos e palcos. Situados em polos ideológicos extremos e opostos, terminaram suas vidas próximos das posições políticas um do outro: comunista ganhador do prêmio Stalin, Jorge declarou seu voto em Fernando Collor contra Lula na eleição de 1989, enquanto Nelson, o reacionário algoz das esquerdas, horrorizou-se ao constatar que um filho, preso político na ditadura, fora barbaramente torturado pelos militares que ele tanto elogiava. Antecipando-se às comemorações que neste ano serão dedicadas ao centenário da dupla, Problemas Brasileiros apresenta as trajetórias de dois artífices da riqueza e pluralidade da cultura do país.

Menino grapiúna

Primogênito do coronel João Amado e de dona Eulália Leal, Jorge Amado nasceu no cenário onde ambientaria muitos de seus romances: um latifúndio cacaueiro em Itabuna, no sul da Bahia. Ainda não completara um ano quando seu pai foi ferido numa emboscada dentro da própria fazenda, episódio evocado em Tocaia Grande, romance de 1984, um dos últimos que escreveu. Em seguida, uma epidemia de varíola obriga a família a mudar-se para a vizinha Ilhéus, onde é alfabetizado e toma contato com a dura luta pela terra e a disputa entre fazendeiros e comerciantes exportadores de cacau, universo que retratará em Gabriela, Cravo e Canela, entre outras obras. Sobre sua infância deixou o relato O Menino Grapiúna, termo usado pelos sertanejos na Bahia para designar os habitantes do litoral.

Na adolescência, segue o roteiro traçado para os filhos da elite cacaueira: colégio interno de padres jesuítas em Salvador e faculdade de direito no Rio de Janeiro. À leitura das aventuras de Alexandre Dumas e do indianismo romântico de José de Alencar soma-se a iniciação profissional como repórter policial – em 1927, quando passa ao externato e vai morar no Pelourinho – e os primeiros contatos com o candomblé, influências e experiências que marcariam sua vida e seu estilo literário. Este começa a definir-se ainda na capital baiana, onde integra a Academia dos Rebeldes, grupo de jovens que pregava uma arte moderna sem ser modernista, ou seja, comprometia-se a enfatizar um conteúdo nacionalista, mas sem ousadias formais.

A receita garante o sucesso de público e de crítica do romance de estreia, O País do Carnaval (1931), publicado na então capital da República pela Editora Schmidt, com direito a prefácio do proprietário, o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nele o escritor de apenas 18 anos denuncia a alienação e o cinismo dos intelectuais brasileiros às vésperas da revolução de 1930, antecipando em décadas a carnavalização que marca a estética brasileira.

Em 1932, dividindo um apartamento no bairro carioca de Ipanema com o poeta Raul Bopp, conhece Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida. Deste último, dublê de político e escritor, impressiona-se com A Bagaceira, obra inaugural do filão da literatura regional no Brasil, que projetaria, além do próprio Jorge Amado, autores como o alagoano Graciliano Ramos ou o gaúcho Erico Verissimo, seguidores do lema de cantar a própria aldeia para tornar-se universal. Já Rachel de Queiroz o aproxima dos comunistas e do realismo socialista, corrente resultante da revolução soviética de 1917 e liderada pelo escritor Máximo Górki. A partir daí, pede de volta ao editor e destrói os originais de Rui Barbosa nº 2 – quase cópia de O País do Carnaval –, substituindo-o por Cacau, em cuja nota introdutória faz uma pergunta sintomática: “Será um romance proletário?” Era. Assim como também seriam Suor, Mar Morto, Capitães da Areia, Terras do Sem Fim e Seara Vermelha, todos da primeira fase de sua vida e carreira.

Movido pelo projeto de escrever para grandes massas textos claros e simples, em que os oprimidos se reconhecessem como construtores do próprio destino, obtém com Cacau dois resultados: esgota a primeira edição de 2 mil exemplares em apenas 40 dias, excelente resultado ainda hoje para um novato, mas consagrador na época em que Macunaíma, de Mário de Andrade, levara oito anos para vender 700 cópias.

Estava aberto o caminho para, diferentemente do autor paulista e de todos os outros desde Machado de Assis, dispensar empregos públicos e viver do ofício de escrever. Mas terminara, ao mesmo tempo, a lua de mel com a crítica. Seus livros são acusados de maniqueístas e populistas, por destacar as qualidades dos humildes e as mazelas dos poderosos. Despertam também ódio dos reacionários, que, após a decretação do Estado Novo, em novembro de 1937, queimam milhares de exemplares em praças públicas de Salvador.

Preso várias vezes nesse período, assume a militância comunista e viaja para a Argentina em 1942, onde lança Vida de Luiz Carlos Prestes – El Caballero de la Esperanza, como parte da campanha pela anistia dos presos políticos e pela libertação do secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mais tarde, essa obra seria publicada no Brasil como O Cavaleiro da Esperança.

Buraco da fechadura

Nenhuma das peças escritas por Nelson Rodrigues é tão trágica quanto foi sua própria vida. Natural do Recife, era um dos seis filhos nascidos na capital pernambucana que o jornalista Mário Rodrigues e sua mulher, Maria Esther Falcão, tiveram antes de migrar para o Rio de Janeiro – onde o casal teria mais oito crianças –, tangidos por conflitos políticos, na época resolvidos a bala. As desgraças da família se sucedem desde o dia 27 de dezembro de 1929, quando, com 17 anos de idade, presencia um irmão mais velho ser morto a tiro dentro da redação do jornal “Crítica” por uma leitora inconformada por ter sido apontada como adúltera nas páginas da publicação.

Profundamente abalado – o filho morrera em seu lugar porque ele, proprietário e diretor responsável, estava ausente na hora fatal –, o próprio pai falece alguns meses depois, aos 44 anos, de trombose cerebral. Atacado por tuberculose aos 21 anos, Nelson arranca todos os dentes no desespero de livrar-se da febre que o consumia. Dois anos depois, um irmão menor morre também tísico. Na década de 1960, uma filha sua nasce cega e paralítica, enquanto outro irmão desaparece com esposa e filhos debaixo dos escombros de um prédio que desaba nas chuvas de verão.

A infância no subúrbio carioca de Aldeia Campista grava-lhe na memória as vizinhas que fiscalizam a vida dos outros, as solteironas ressentidas e as viúvas presentes nos partos e velórios feitos em casa, onde se cuspia em escarradeira e se tomava banho de bacia. Presenciava discussões por causa dos ciúmes que o pai tinha de sua mãe. Aos 8 anos, vence um concurso de redação escolar, mas a professora não pode ler o texto premiado, cuja história é assombrosa demais para uma criança: o marido surpreende a mulher nua e vê um vulto pulando a janela, mata a adúltera a facadas, em seguida ajoelha-se e pede perdão. A influência desse período em sua obra de ficcionista seria assim resumida por ele: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa”.

Em 1919 descobre o futebol, junto com o irmão Mário Filho – famoso jornalista esportivo que daria nome ao estádio do Maracanã –, tornando-se torcedor do Fluminense. Leitor precoce de romances considerados “pesados”, como Os Amantes de Veneza, de Michel Zevaco, abandona os estudos para dedicar-se ao trabalho de repórter policial em “A Manhã”, jornal de propriedade de seu pai. Desenvolve então a capacidade de dramatizar casos do cotidiano, especializando-se em descrever pactos de morte entre jovens namorados, comuns na época. Quando “Crítica”, o segundo jornal fundado por Mário Rodrigues, é empastelado em 1930 por ter se mantido fiel ao governo deposto de Washington Luís, já dominava a profissão que exerceria pelos 50 anos seguintes.

Em 1941, casado e procurando receita extra para incrementar o parco salário que recebia em “O Globo”, escreve a primeira peça. Montada por Rodolfo Mayer no Teatro Carlos Gomes, A Mulher sem Pecado ficou apenas duas semanas em cartaz, sem maior repercussão de público ou crítica. O contrário ocorreu, porém, com a segunda, Vestido de Noiva, elogiada calorosamente pelo poeta Manuel Bandeira antes mesmo de ser encenada. “Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. Vestido de Noiva, em outro meio, consagraria o autor. Aqui, se bem aceita, consagrará o público.” Levada ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1943 pelo polonês Ziembinski, fugitivo da guerra na Europa recém-chegado ao Brasil, ela exigia o esforço de compreensão da revolucionária estrutura narrativa em três planos – da realidade, da memória e da alucinação de Alaíde, uma das três personagens femininas centrais da peça. Ao final de duas horas, 140 mudanças de cena e 132 efeitos de luz sobre os 25 atores da companhia Os Comediantes, a ovação dos mais de 2 mil espectadores presentes na estreia colocava Vestido de Noiva no rol das obras-primas absolutas do teatro brasileiro.

Ditadura militar

Eleito deputado à Constituinte de 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Jorge Amado obtém a aprovação do projeto de lei de sua autoria que estabelece a liberdade de culto no país, para acabar com as perseguições às religiões afro-brasileiras que ele testemunhara na Bahia. Quando o registro do partido e seu mandato são cassados dois anos depois, exila-se na França, já casado com a escritora paulista Zélia Gattai. Expulsos pelo governo francês em 1950, passam a residir na Tchecoslováquia. Até 1956, quando se afasta do comunismo, abalado pelas revelações do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, viaja pelos países socialistas, experiência que destaca no livro O Mundo da Paz. Sobre o período em que foi um dos mais destacados intelectuais comunistas, ao lado do poeta chileno Pablo Neruda, promete escrever Bóris, o Vermelho, obra que, entretanto, jamais concretizará.

De volta ao Brasil em 1958, inicia longo período de afastamento da política e de ruptura com a literatura engajada, que se prolongará durante a ditadura militar (1964-1985). É quando escreve seus romances de maior sucesso, nos quais retrata a Bahia incursionando pelo realismo fantástico, com mortos que se recusam a desaparecer, como Quincas Berro d’Água e Vadinho, o malandro cínico de Dona Flor e Seus Dois Maridos. Este último, transposto por Bruno Barreto para o cinema com Sônia Braga no papel-título, atinge 10 milhões de espectadores em 1976, recorde só superado no ano passado, por Tropa de Elite 2. Em 1987 é inaugurada no Pelourinho a Fundação Casa de Jorge Amado, com o objetivo de preservar e divulgar a obra do escritor, que em 1992 lança Navegação de Cabotagem – Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei, e em 2001 morre em Salvador.

Com Nelson Rodrigues, que nunca saiu do Brasil e só agora começa a ter peças vertidas em outros idiomas, acontece o oposto: nas décadas de 1950 e 1960 é engolfado pelo turbilhão das disputas políticas. Quando, para combater os ataques de Carlos Lacerda, Getúlio Vargas banca Samuel Wainer para fundar a “Última Hora”, Nelson Rodrigues aumenta a venda do jornal com sua coluna de maior sucesso, “A Vida como Ela É”. O sotaque carioca estava presente em cada uma das 130 linhas diárias por onde desfilavam desempregados, comerciários e barnabés que moravam na zona norte da cidade, trabalhavam no centro e às vezes se divertiam na zona sul. Seu teatro também muda. Se as primeiras peças eram psicológicas ou exploravam mitos ancestrais, como Álbum de Família e Senhora dos Afogados, surgiam agora as tragédias cariocas, todas transformadas em filmes, além de exaustivamente encenadas: A Falecida, O Beijo no Asfalto, Os Sete Gatinhos, Boca de Ouro, Bonitinha, mas Ordinária e Toda Nudez Será Castigada.

Após o golpe de 1964, Nelson adere ao clima de paranoia anticomunista característico da Guerra Fria. Os principais alvos dos ataques furiosos de suas crônicas, publicadas em “O Globo”, são a esquerda católica e os “padres de passeata”, “os marxistas de galinheiro” e as feministas, com quem tinha comprado briga por ter travado com a apresentadora Hebe Camargo o seguinte diálogo: “Todas as mulheres gostam de apanhar?”, pergunta ela. “Nem todas”, responde Nelson e acrescenta: “Só as normais. As neuróticas reagem”. Outras frases suas tornaram-se antológicas, como estas: “Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro” e “Toda unanimidade é burra”.

A desilusão com o regime militar que apoiara se dá em duas etapas. Na primeira, o recrudescimento da censura após a decretação do AI-5 o leva a uma maratona por gabinetes oficiais tentando liberar suas peças. O golpe mais duro ocorre em 1972, ao constatar as torturas sofridas pelo filho Nelsinho, integrante do MR-8, organização clandestina que participava da luta armada. A partir daí sua saúde, sempre precária, deteriora-se gradativamente, até a morte no dia 21 de dezembro de 1980. Com organização e prefácio do crítico Sábato Magaldi, a Editora Nova Aguilar publica, em 1993, um volume único com seu teatro completo.
Revista Problemas Brasileiros

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Rapidinhas da História


Os argonautas, óleo do século XVI, Lourenzo Costa (Museo Cívico, Pádua, Itália)
" Navegar é preciso;  viver não é preciso ... "
O verso acima, é um dos mais famosos da língua portuguesa, esta contido em um poema de Fernando Pessoa. Ele usou o verbo navegar, em Mensagem (1934), como sinônimo de criar, experimentar.

Mas esse bem  poderia ter sido o lema  dos navegadores portugueses do século XV.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Quinhentas mil e uma noites: como o Islã promoveu a expansão árabe


Uma História dos Povos Árabes é um dos melhores painéis dos 13 séculos da região
Rodrigo Cavalcante 

Até meados do século 7, a Arábia era um rincão isolado – e imprensado – entre duas potências: o reino persa, na região onde hoje está o Irã, e o Império Bizantino, cuja sede ficava na atual Turquia. Como explicar que, pouco mais de 200 anos depois, os árabes tenham conquistado um império com ramificações na Índia, na Espanha, no norte da África e em regiões da China?

A resposta, é claro, está na força do Islã. Desde que Maomé propagara a nova religião, no século 7, os árabes passaram a governar o mais importante pedaço do planeta. Somente 600 anos depois os cristãos conseguiram retomar a hegemonia na Europa ocidental ao expulsarem violentamente os últimos focos de resistência muçulmana na Espanha e Portugal. Desde então, a cidade de Constantinopla, atual Istambul, tornou-se a divisa oriental entre o Ocidente cristão e Oriente muçulmano – a polêmica em torno da possível entrada da Turquia na União Européia é uma prova de como essa divisa permanece viva.

Em Uma História dos Povos Árabes, o inglês filho de libaneses Albert Hourani, que faleceu em 1992 (um ano depois de terminar o livro), traça um painel revelador de como os árabes muçulmanos conseguiram levar sua fé, cultura e governo para todos esses territórios. Escrito com o rigor e a moldura clássica de um professor de Oxford, onde lecionou de 1948 a 1979, o texto, que acaba de ganhar uma versão de bolso, ajuda a desfazer o emaranhado que boa parte do Ocidente continua fazendo entre a religião muçulmana e o nacionalismo dos países de língua árabe, cujos históricos conflitos com o Ocidente têm mais raízes no colonialismo europeu que no suposto choque entre religiões.

Talvez seja por isso que, apesar de ter sido escrito dez anos antes do ataque às Torres Gêmeas, o livro não perdeu sua atualidade. Afinal, Hourani vai à essência dos acontecimentos responsáveis pela escalada do fundamentalismo na região, além de explicar, com clareza e poder de síntese raro, o desenrolar do conflito árabe-israelense. E o melhor: tudo sem perder um olhar atento às manifestações culturais e artísticas da região.
REVISTA AVENTURAS NA HISTÓRIA

Nicolau Maquiavel: A realidade crua do poder


O pensador Nicolau Maquiavel aponta errosdos governos fracos e dá exemplos de como funcionamos bastidores da política. Para ele, moral, religião epoder público devem ser dissociados

Celso Masson 

Personagem-chave da diplomacia européia, o secretário do Conselho de Segurança do governo de Florença, Nicolau Maquiavel, de 32 anos, tem-se revelado um fenomenal pensador dos problemas de Estado. Suas teorias sobre a beligerância que se impõe como que por osmose no continente não param de causar polêmica. É dele, por exemplo, a idéia de que não há como proteger as próprias fronteiras sem ameaçar os vizinhos: “Se uma nação se exime de molestar as demais, será molestada por elas”, sustenta. Alguns analistas detectam nas idéias do florentino o embrião de uma nova ciência, na qual a teoria política, baseada na realidade dos fatos, existiria como disciplina autônoma, separada da moral e da religião. Outros vêem nesse polemista sem meias-palavras não mais que um oportunista. Com tanta controvérsia, suas idéias, expostas nesta entrevista, estão destinadas a alimentar discussões acaloradas por muito tempo.

História – Afinal, o que é melhor: negociar ou pegar em armas?

Maquiavel – Há duas maneiras de combater: uma, segundo as leis; a outra, pela força. A primeira forma é própria dos homens, a segunda, dos animais. Mas, como a primeira freqüentemente não basta, é preciso recorrer à segunda. Não há lei nem Constituição que possa pôr um freio à corrupção universal.

Qual é sua opinião sobre os governos que, em vez de se envolver em guerras, adotam a política da neutralidade?

De toda a minha experiência nos negócios públicos e de tudo o que li sobre história não consigo me lembrar de um só caso em que a política da neutralidade tenha sido vantajosa. Tais políticas sempre são desastrosas e levam direto à ruína.

O governante empenhado em conduzir políticas acertadas deve ter isso sempre em mente?

Não imagine nunca nenhum governo poder tomar decisões absolutamente certas; pense antes em ter de tomá-las sempre incertas, pois isso faz parte da ordem das coisas. A prudência está justamente em conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo o bom.

Muitas vezes, nessa tentativa de fazer o certo, os governantes passam por cima da Constituição. Por quê?

Em um Estado bem constituído, não se deve ser obrigado a recorrer a medidas extraordinárias; porque, se as medidas extraordinárias fazem bem no momento, seu exemplo traz um mal real. O hábito de violar a Constituição para fazer o bem autoriza, em seguida, a violá-la para disfarçar o mal.

Na prática, que o senhor conhece tão bem, é comum alterar a Constituição. Há um modo correto de fazê-lo?

Quem quiser mudar a Constituição, de maneira que essa modificação seja bem-vinda, deve salvaguardar, ao menos, a sombra das formas antigas, a fim de que o povo pouco se aperceba das mudanças, mesmo que as novas instituições sejam estranhas aos antigos; porque os homens se alimentam tanto de aparência como de realidade; muitas vezes, a aparência os impressiona mais que a realidade.

A Constituição garante a liberdade?

Em toda república existem dois partidos, o dos aristocratas e o do povo; e as leis que favorecem a liberdade resultam da luta desses partidos. Todos os legisladores que redigiram constituições sábias julgaram essencial estabelecer uma proteção à liberdade; e, conforme a maior ou menor habilidade com que essa proteção foi criada, a liberdade durou mais ou menos. As graves e naturais inimizades que existem entre as pessoas do povo e os nobres, causadas porque estes querem mandar e aqueles não querem obedecer, são os motivos de todos os males das cidades, porque dessa diversidade de humores se nutrem todas as outras coisas que perturbam as repúblicas.

Uma vez conquistada a liberdade, a quem se deve confiar sua guarda: às elites ou ao povo?

Qualquer encargo deve sempre ser confiado a quem tenha menos inclinação a fraudá-lo. Quando o povo recebe o encargo de velar pela liberdade, ele, sendo menos inclinado a invadi-la, dará melhor conta da incumbência; e, também, sendo incapaz de violá-la ele próprio, melhor impedirá que outros o façam.

Mesmo que se questione as instituições?

A quem me disser que a grita constante do povo contra o Senado, a indisposição do Senado contra o povo, as correrias nas ruas – a quem me disser que tais fatos são meios estranhos de atingir um fim conveniente responderei que esses mesmos fatos só podem assustar os que apenas os vêem e que todo Estado livre deve dar ao povo uma válvula, por assim dizer, para as suas ambições.

E quando os protestos populares geram violência?

Quem se der ao trabalho de examinar com cuidado os resultados das agitações verá que elas jamais foram causa de violências e se convencerá de que, pelo contrário, elas deram de fato origem a leis vantajosas para as liberdades públicas.

Apesar de crítico da Igreja, o senhor não vê nenhuma atuação positiva em termos de melhorar as coisas desse mundo?

Se a religião tivesse permanecido fiel aos princípios, os Estados e as repúblicas da cristandade seriam mais unidos. Não há melhor indício de seu declínio do que o fato de que os povos próximos de Roma é que são os menos religiosos. A ponto de que, se confrontarmos os princípios que presidiram a sua criação e o uso que é feito deles hoje, julgaremos próxima a hora de sua ruína ou da calamidade.

Que conselho fundamental o senhor daria a um governante?

É preciso fazer todo o mal de uma só vez a fim de que, provado em menos tempo, pareça menos amargo, e o bem pouco a pouco, a fim de que seja mais bem saboreado.

Para um governante, é preferível ser temido ou amado?

Eu respondo que é necessário ser um e outro; mas, como é bem difícil reunir as duas condições, é mais seguro se fazer temer que amar. Porque o amor se mantém por um vínculo de obrigações que, já que os homens são pérfidos, é rompido quando se ofereça ocasião de proveito particular; mas o temor se mantém por um receio de castigo, que não se abandona jamais.

Saiba mais

LivroA Mandrágora, Nicolau Maquiavel, Martin Claret, 2003, A mais genial peça do autor, que era também dramaturgo e modernizou a comédia italiana
REVISTA AVENTURAS NA  HISTÓRIA

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sala de milagres


De mechas de cabelo a tese de doutorado: vale tudo para agradecer aos céus pela graça alcançada.
José Cláudio Alves de Oliveira

Miomas in vitro, um casamento filmado em fita VHS ou em DVD, um capacete, miniaturas de carros de boi, um buquê, teses de doutorado, mechas de cabelo, um par de chuteiras de futebol, um pára-choque de automóvel. Objetos que no dia-a-dia parecem inconciliáveis podem habitar um mesmo espaço: em santuários espalhados por todo o Brasil, a diversidade de ex-votos atesta a presença da fé na vida de gente comum, com suas histórias, desejos, ambições, lutas e esperanças.

Tradicionalmente pintados ou esculpidos, os ex-votos brasileiros assumem incontáveis formatos no democrático espaço das “Salas de Milagres”. Tão democrático que pode acolher até mesmo objetos com conotação sexual, como uma escultura fálica feita em parafina flagrada no teto da Sala de Milagres da Igreja do Bomfim, em Salvador. Curioso é que essa igreja abriga um museu especialmente para os ex-votos. Fica claro que essa peça em parafina jamais seria exposta ali. Só mesmo na Sala de Milagres o agradecimento poderia vir a público (mesmo que por pouco tempo). 

E se o Brasil se distingue de qualquer outro lugar pela variedade dessas expressões de agradecimento, há um santuário que exemplifica com perfeição tamanha riqueza. A começar pelo próprio espaço que recebe os ex-votos: não é igreja ou outra construção erguida pelo homem: Bom Jesus da Lapa é um monumento natural de calcário com 30 metros de altura e três quilômetros de extensão, cercado de grutas e “águas milagrosas”. Descoberto oficialmente em 1692, é, talvez, o mais antigo destino de romarias no Brasil. Nos meses de julho, agosto e setembro, a cidade de Lapa vê sua população, de menos de 200 mil pessoas, quadruplicar devido às caravanas de fiéis que convergem para o santuário. A Sala de Milagres fica na gruta da Soledade, que tem cerca de 50 metros quadrados e é totalmente natural, apenas com alguns retoques no piso (degraus) e uma fraca iluminação elétrica. Esse espaço recebe e abriga os ex-votos que representam não somente a existência das romarias, mas a fé de pessoas que pagam ou que solicitam uma graça.

Os ex-votos são expostos por toda a sala, pelo próprio crente ou a pedido, com pouca ou nenhuma arrumação. A conservação é simples: vassoura, espanador e o descarte de objetos. Esse descarte tem dois destinos: lixo ou incineração e as doações. Os retratos e cartas vão para o lixo ou são queimados. Muletas, cadeiras de rodas e bacias são doadas a instituições de caridade. São todos objetos efêmeros, já que a cada dia, a cada hora, chegam novas “promessas”. Sua variedade é tão incontrolável que se torna impossível catalogá-los. Formas mais antigas – como os quadros produzidos pelos “riscadores de milagres” e as esculturas feitas pelos santeiros – hoje são raras. A fase é fotográfica, “cartográfica” – do universo de cartas encontradas, dos objetos orgânicos, dos objetos industrializados. Há uma rápida substituição de signos e símbolos. A cada momento um tipo é descartado, a cada instante um novo (e até então inexistente) ex-voto surge. 

É notório o potencial informativo dos ex-votos. É evidente o poder simbólico que ele traz em sua forma, seja ela artística ou não. No caso específico de Bom Jesus da Lapa, dois exemplos demonstram sua capacidade de expressar diferentes dimensões humanas – de sentimentos subjetivos até questões estruturais do país. O primeiro são os caixões funerários. Simples, decorados artesanalmente, com bilhetes e cartas, eles agradecem ao padroeiro por não terem “ido”, transmitem o sentimento diante da morte, de alguém que esteve à beira dela e se salvou. O ex-voto é o “pagamento” com aquilo que seria o símbolo do seu enterro. 

Outro exemplo são as maquetes que representam ranchos, fazendas, casas de campo e roças. Produzidas artesanalmente em madeira, pintadas ou envernizadas, chegam a incluir detalhes como gado, mato e cerca. Geralmente possuem inscrições ou um “anexo” (bilhete) que agradece pela terra conquistada, pede por um “pedaço de terra” ou até mesmo pela melhoria da lavoura no país. São pedidos e agradecimentos que nos conduzem à questão agrária, ponto crítico dos problemas brasileiros, que ocasiona injustiças e privilégios, conflitos e mortes.

Não importa o suporte: todos os ex-votos da “sala de milagre” são documentos. Exposições provocadas por todo tipo de pessoas – camponeses, trabalhadores, desempregados, turistas, estudantes, ricos e pobres. Refletem a crença, a fé e as atitudes do homem diante da vida, da doença, da morte, da ambição, da festa, de variados valores sociais, políticos e econômicos. Ao manter (e atualizar) a tradição, essas pessoas se espelham no costume de ir a um ambiente do povo rezar e fazer a desobriga. Testemunham a comunicação com entes superiores, e com isso perpetuam um rito de longa duração, no rico mundo da religião do povo. Da Grécia a.C. ao Brasil de 2009 d.C.

José Cláudio Alves de Oliveira é professor de Museologia da UFBA e coordenador do Projeto Ex-votos do Brasil.

Saiba mais - Bibliografia:
SCARANO, Julita. Fé e milagre: ex-votos pintados em madeira séculos XVIII e XIX. São Paulo: EDUSP, 2004. 128 p. il. 
VALLADARES, Clarival do Prado. Riscadores de Milagres: um estudo sobre a arte genuína. Rio de Janeiro: Sociedade Gráfica Vida Doméstica; Salvador: Superintendência de Difusão Cultural da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, 1967. 171 p. il.

Saiba Mais - Site:
Ex-votos do Brasil. Disponível em http://ex-votosdobrasil.blogspot.com
Revista de História da Biblioteca Nacional

domingo, 4 de novembro de 2012

O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte

Sueli do Rocio de Lara
Mestre em Filosofia pela Universidade Gama Filho

MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 20061.

Escrito entre dezembro de 1851 e março de 1852, publicado originalmente na revista Die Revolution, a obra em questão parte da análise concreta dos acontecimentos revolucionários na França, entre 1848 e 1851, acontecimentos esses que levaram ao golpe de estado em que Napoleão III se nomeou imperador, à semelhança de seu tio Napoleão I. Brumário é a data que corresponde ao calendário estabelecido pela Revolução Francesa e equivale a 9 de novembro do calendário gregoriano; é o mês do calendário republicano francês.

O livro é uma das obras mais importantes do marxismo, no qual se abordam teses fundamentais do materialismo histórico: teoria da luta de classes e a da revolução proletária, a doutrina do Estado e da ditadura do proletariado. É de suma importância a conclusão de Marx sobre a atitude do proletariado em relação ao Estado burguês. Também nesta obra foi desenvolvida a questão do campesinato como aliado da classe operária na revolução iminente. Explica, ainda, o papel dos partidos políticos na vida social e formula uma caracterização profunda da essência do bonapartismo.

Marx demonstra, nesse texto, o enfoque conjuntural acerca do Estado francês, assim como entrevê algumas contribuições desta importante obra para a análise do político. Observa-se que Marx aponta nela uma das características do Estado centralizado moderno: a constituição de um aparelho militar e civil (exército, burocracia). Além disso, discute como a república parlamentar se constitui como um espaço político - uma forma pura de dominação ou forma pela qual a burguesia exercia seu poder sem mediações - do qual a burguesia teve que se desfazer, tendo em vista que se constituía num momento em que as maiorias poderiam usurpar este poder. 

O método adotado por Marx ao se propor entender o Estado francês na época do 18 Brumário de Luís Bonapartese faz a partir da análise histórico-sociológica do momento vivido. Se, por um lado, o Estado pode ser visto enquanto categoria abstrata, ou seja, pela análise de uma ou de algumas determinações do fenômeno, por outro a maior quantidade de determinações se aproxima de uma construção mais concreta do mesmo Estado.

No prefácio da terceira edição, de 1885, Engels afirma:


... a grande lei da marcha da história, lei segundo a qual todas as lutas históricas que se desenvolvem quer no domínio político, religioso, filosófico, quer em outro qualquer campo ideológico são, na realidade, apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre classes sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos entre essas classes são, por sua vez, condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e de troca, que é determinado pelo precedente (MARX, 2006, p. 13).

Uma análise que coloca no centro da discussão o conflito de classes é operada pelo autor. Há de se observar a descrição de como a burguesia exerce poder sobre o proletariado e o campesinato:


A fração republicano-burguesa, que há muito se considerava a herdeira legítima da Monarquia de Julho, viu assim excedidas suas mais caras esperanças; alcançou o poder, não, porém, como sonhara, sob o governo de Louis Philippe, através de uma revolta liberal da burguesia contra o trono, e sim através de um levante do proletariado contra o capital, levante esse que foi sufocado a tiros de canhão (MARX, 2006).

Podemos dizer que temos dois segmentos dentro de uma mesma sociedade exercendo poder através de relações que servem para sustentar a dominação: o Estado, na figura de Luís Bonaparte, que faz suas artimanhas e, prevalecendo-se do seu parentesco com Napoleão Bonaparte, dá o golpe e conquista o poder sobre o povo, e a burguesia que mantém poder sobre as demais classes.

Enquanto o proletariado de Paris deleitava-se ainda ante a visão das amplas perspectivas que se abriam diante de si e se entregava a discussões sérias sobre os problemas sociais, as velhas forças da sociedade se haviam agrupado, reunido e encontrado o apoio inesperado da massa da nação: os camponeses e a pequena burguesia. As reivindicações do proletariado de Paris são consideradas devaneios utópicos, a que se deve por um paradeiro. A essa declaração da Assembléia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreição de junho, segundo o autor o acontecimento de maior envergadura na história das guerras civis da Europa. A república burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o lúmpen proletariado organizado em Guarda Móvel, os intelectuais de prestígio, o clero e a população rural. Do lado do proletariado de Paris não havia senão ele próprio. Mais de três mil insurretos foram massacrados depois da vitória e quinze mil foram deportados sem julgamento. Com essa derrota o proletariado passa para o fundo da cena revolucionária.

A história da Assembléia Nacional Constituinte a partir das jornadas de junho é a história do domínio e da desagregação da fração republicana da burguesia, da fração conhecida pelos nomes de republicanos tricolores, republicanos puros, republicanos políticos, republicanos formalistas etc.

A derrota dos insurretos de junho preparara e aplainara, indubitavelmente, o terreno sobre a qual a república burguesa podia ser fundada e edificada, mas demonstrara, ao mesmo tempo, que na Europa as questões em foco não eram apenas de "república ou monarquia". Revelara que aqui república burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras.

Contra a burguesia coligada fora formada uma coalizão de pequenos burgueses e operários, o chamado partido social democrata. A pequena burguesia percebeu que tinha sido mal recompensada depois da jornada de junho de 1848. A Montanha, posta à margem durante a ditadura dos republicanos burgueses, reconquistara, na segunda metade do período da Assembléia Constituinte, sua popularidade perdida com a luta contra Bonaparte e os ministros monarquistas.

Em meados de outubro de 1849 a Assembléia Nacional reuniu-se uma vez mais. Em primeiro de novembro Bonaparte surpreendeu-a com uma mensagem em que anunciava a demissão do ministério Barrot-Falloux e a formação de um novo ministério. Jamais alguém demitiu lacaios com tanta sem-cerimônia como Bonaparte a seus ministros, afirmou Marx.

A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen proletariado tendo à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a França resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha; Bonaparte descontou para ela esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens.

Revendo a história, percebe-se que o povo não aceitava a condição de dominado, ele lutou com suas possíveis armas pelos seus direitos de cidadão, no entanto foi vencido pela astúcia de Luís Bonaparte. Por outro lado, o isolamento dos proletários deveu-se às ações de cooptação do campesinato pelos interesses da burguesia. "A dinastia de Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o conservador" (MARX, 2006, p. 133). A cooptação deu-se não pelos camponeses que queriam consolidar sua propriedade e luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena propriedade; ou queriam derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus próprios esforços. Antes, foram aqueles que queriam ver a si próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império. "Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado" (MARX, 2006, p. 134). Os camponeses mostraram-se presos por uma velha ordem, em um isolamento embrutecedor e, devido a tal, aliaram-se ao discurso de Bonaparte.

Este livro, que completa 133 anos, mostra o esforço teórico dos revolucionários em identificar os interesses de classes em disputa no âmbito político. Tenta compreender disputas entre partidos, tendências, personalidades políticas burguesas e pequeno-burguesas e o proletariado. Disputas que se expressam no jogo das aparências e cumprem o papel de esconder, diluir, os reais interesses de grupos sociais. Esses interesses fazem parte e interferem na conjuntura, no desenvolvimento do poder e se põe a serviço dos objetivos de grupos dominantes.

O fluxo dos acontecimentos teve um grau de determinação importante na tradição, no fato de Louis Bonaparte conseguir apresentar-se aos camponeses envolto no manto do passado, mobilizando sentidos pelos quais "a tradição histórica originou nos camponeses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a eles toda a glória passada" (MARX, 2006, p. 133).

Um interesse específico que apontamos na obra é sobre a importância do plano simbólico para o desenrolar de fenômenos sociais e em específico para os processos de dominação. A meta-análise das proposições sobre o conceito de ideologia na obra de Marx e em específico nesse texto, realizada por Thompson (2002), aponta como no livro observa-se uma "concepção latente de ideologia" (2002, p. 58) que se refere a um conjunto de fenômenos apresentados não como meros epifenômenos das condições econômicas e das relações de classe, mas como "construções simbólicas que têm certo grau de autonomia e eficácia. Eles se constituem em símbolos e 'slogans', costumes e tradições que mobilizam as pessoas" (THOMPSON, 2002, p. 58) ou as prendem, empurrando-as "para frente ou constrangem-nas, de tal modo que não podemos pensar estas construções simbólicas unicamente como determinadas, ou totalmente explicadas, em termos de condições econômicas de produção". Tais fenômenos como "concepção latente de ideologia demonstram a persistência de símbolos e valores tradicionais, deste séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo". Na concepção latente, Ideologia é um sistema de representações que serve para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para o passado ao invés de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem as relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social (THOMPSON, 2002, p. 58). Tal definição traz que as relações sociais podem ser sustentadas e, assim, impedir as mudanças sociais pela difusão de construções simbólicas. Thompson chama a atenção para o que poderia ser descrito como um "processo de conservação social" dentro da sociedade de O Dezoito Brumário que pode também ser transferido para outras épocas e outras sociedades, sendo suficiente ler nas entrelinhas para entender que o discurso não é só reprodutor de desigualdades sociais, mas também produtor das mesmas.

O golpe de estado de Luís Bonaparte em dezembro de 1851 é descrito por Marx como condicionado pelo desenvolvimento das forças e relações de produção durante a monarquia burguesa. Marx não só retrata os acontecimentos como resultado de processos derivados da economia, mas também como acontecimentos ligados a imagens do passado, presos a tradições que persistem apesar da transformação contínua das condições materiais de vida. A análise de Marx, do evento de 1848 a 51, mostra o papel central das formas simbólicas que incluem a tradição, o que levou o povo de volta ao passado e impediu que eles agissem para transformar a ordem que os oprimia.

Uma tradição pode aparecer e aprisionar um povo, pode levá-lo a acreditar que o passado é seu futuro, e que o senhor é seu servo, e pode, por isso, manter uma ordem social em que a vasta maioria da população estaria sujeita às condições de exploração e dominação (THOMPSON, 2002, p. 61).

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis - Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
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