quinta-feira, 30 de setembro de 2010

S. Tomás de Aquino e os Pecados Capitais

S. Tomás de Aquino e os Pecados Capitais [1]

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
IJI – Univ. do Porto
jeanlaua@usp.br

Pecados capitais: uma elaboração teológica da experiência antropológica

Em sua doutrina sobre os pecados capitais - ou vícios capitais -, Tomás repensa a experiência acumulada sobre o homem ao longo de séculos. Se o filosofar do Aquinate é sempre voltado para a experiência e para o fenômeno, mais do que em qualquer outro campo é quando trata dos vícios que seu pensamento mergulha no concreto, pois, citando o sábio (pseudo-) Dionísio, "malum autem contingit ex singularibus defectis" - para conhecer o mal é necessário voltar-se para os modos concretos em que ele ocorre. Assim, é freqüente encontrarmos nas discussões de Tomás sobre os vícios - para além da aparente estruturação escolástica - expressões de um forte empirismo como: "Contingit autem ut in pluribus..." (o que realmente acontece na maioria dos casos...).

A doutrina dos vícios capitais é fruto de um empenho de organizar a experiência antropológica cujas origens remontam a João Cassiano e Gregório Magno, que têm em comum precisamente esse voltar-se para a realidade concreta.

Cassiano - bem poderia ser escolhido o padroeiro dos jornalistas - é o homem que, em torno do ano 400, percorreu os desertos do Oriente para recolher - em "reportagens" e entrevistas - as experiências radicais vividas pelos primeiros monges; já o papa Gregório (não por acaso cognominado Magno), cuja morte em 604 marca o fim do período patrístico, é um dos maiores gênios da pastoral de todos os tempos.

Ambos tratam de fazer uma tomografia da alma humana e, no que diz respeito aos vícios, surge a doutrina dos pecados capitais, que encontra sua máxima profundidade e sua forma acabada no tratamento que lhe dá Tomás. Essa doutrina - que, como tantas outras descobertas antropológicas dos antigos, está hoje esquecida - bem poderia ajudar ao homem contemporâneo em sua desorientação moral e antropológica. Seja como for, a Igreja ainda fala em seu novo Catecismo da doutrina dos sete pecados capitais, fruto da "experiência cristã" (ponto 1866).

Os vícios capitais na enumeração de Tomás [2] são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Hoje, em lugar da vaidade, a Igreja coloca a soberba e em lugar da acídia é mais freqüente encontrarmos a preguiça na lista dos vícios capitais. Isto se deve a que a soberba é considerada por Tomás como um pecado, por assim dizer, "mega-capital", fora da série e, portanto, prefere falar em vaidade (inanis gloria, vanglória). Já a substituição da acídia pela preguiça parece realmente um empobrecimento, uma vez que, como veremos, a acídia medieval - e os pecados dela derivados - propiciam uma clave extraordinária precisamente para a compreensão do desespero do homem contemporâneo.

Assim, toda uma milenar experiência sobre o homem traduz-se em Tomás em sete vícios capitais, que arrastam atrás de si "filhas", "exércitos", em total cerca de cinqüenta outros vícios, cujos nomes podem soar a nossos ouvidos hoje como algo estranho, como é o caso da já citada "acídia". E precisamente aí encontra-se nossa dificuldade contemporânea: é-nos difícil acessar as realidades ético-antropológicas por falta de linguagem: como se tivéssemos que transmitir um jogo de futebol, mas sem poder contar com palavras como: pênalti, carrinho, grande área, cartão, impedimento etc.

Não se pense que com isto estamos afirmando que Tomás empregue uma terminologia reservada a especialistas (as dificuldades decorrem da distância cultural-lingüística e não de tecnicismos). Não! Ele se vale da linguagem comum de sua época, tão espontânea como, afinal, é para nós o léxico do futebol. Assim, quando lermos os textos de Tomás sobre os vícios capitais, o leitor não estaria longe da realidade se os retraduzisse em nossa linguagem popular [3] . Por exemplo, a filha da inveja chamada sussurratio (e que traduzimos academicamente por murmuração) é, pura e simplesmente, a fofoca de inveja.

Comecemos por indicar o que significa vício capital. S. Tomás ensina que recebem este nome por derivar-se de caput: cabeça, líder, chefe (em italiano ainda hoje há a derivação: capo, capo-Máfia); sete poderosos chefões que comandam outros vícios subordinados.

Nesse sentido, os vícios capitais são sete vícios especiais, que gozam de uma especial "liderança" [4] . O vício (e o vício capital compromete muitos aspectos da conduta) é uma restrição à autêntica liberdade e um condicionamento para agir mal.

Tomás, após analisar cada vício capital, trata das "filhas" desse vício, os maus hábitos que dele decorrem.

A soberba, um pecado supra-capital

Como dizíamos, Tomás situa a soberba fora e acima da lista dos vícios capitais.

Após afirmar o princípio básico - "todo pecado se fundamenta em algum desejo natural e o homem, ao seguir qualquer desejo natural, tende à semelhança divina, pois todo bem naturalmente desejado é uma certa semelhança com a bondade divina" -, e que o pecado é desviar-se da reta apropriação de um bem, Tomás lembra que, se a busca da própria excelência é um bem, a desordem, a distorção dessa busca é a soberba que, assim, se encontra em qualquer outro pecado: seja por recusar a superioridade de Deus que dá uma norma, norma esta recusada pelo pecado, seja pela projeção da soberba que se dá em qualquer outro pecado.

Ao acumular indevidamente riquezas, por exemplo, é a afirmação da excelência do eu - pela posse - o que se busca. Assim, a soberba, mais do que um pecado capital, é rainha e raiz de todos os pecados. "A soberba geralmente é considerada como mãe de todos os vícios e, em dependência dela, se situam os sete vícios capitais, dentre os quais a vaidade é o que lhe é mais próximo: pois esta visa manifestar a excelência pretendida pela soberba e, portanto, todas as filhas da vaidade têm afinidade com a soberba" (De Malo 9, 3, ad 1).

Uma explicação especial para a ira e a acídia

Dois dos pecados capitais requerem uma cuidadosa explicação para a boa compreensão do leitor contemporâneo são a acídia, algo mais do que a preguiça, e a ira, que nem sempre é pecado, uma vez que pode também atuar a favor da virtude.

Valemo-nos aqui do clássico de Josef Pieper Virtudes Fundamentais (Lisboa, Aster, 1960). Comecemos pela acídia - realidade mais atual do que nunca e incrivelmente esquecida! - analisada no capítulo "Concupiscência dos olhos":

ACÍDIA E CURIOSITAS (pp. 280-2):

"Há um desejo de ver que perverte o sentido original da visão e leva o próprio homem à desordem. O fim do sentido da vista é a percepção da realidade. A 'concupiscência dos olhos', porém, não quer perceber a realidade, mas ver. Agostinho diz que a avidez dos gulosos não é de saciar-se, mas de comer e saborear; e o mesmo se pode aplicar à curiositas e à 'concupiscência dos olhos'. A preocupação deste ver não é a de apreender e, fazendo-o, penetrar na verdade, mas a de se abandonar ao mundo, como diz Heidegger em seu Ser e Tempo. Tomás liga a curiositas à evagatio mentis, 'dissipação do espírito', que considera filha primogênita da acídia. E a acídia é aquela tristeza modorrenta do coração que não se julga capaz de realizar aquilo para que Deus criou o homem. Essa modorra mostra sempre sua face fúnebre, onde quer que o homem tente sacudir a ontológica e essencial nobreza de seu ser como pessoa e suas obrigações e sobretudo a nobreza de sua filiação divina: isto é, quando repudia seu verdadeiro ser! A acídia manifesta-se assim, diz Tomás, primeiramente na 'dissipação do espírito' (a sua segunda filha é o desespero e isto é muito elucidativo). A 'dissipação do espírito' manifesta-se, por sua vez, na tagarelice, na apetência indomável 'de sair da torre do espírito e derramar-se no variado', numa irrequietação interior, na inconstância da decisão e na volubilidade do caráter e, portanto, na insatisfação insaciável da curiositas.

"A perversão da inclinação natural de conhecer em curiositas pode, conseqüentemente, ser algo mais do que uma confusão inofensiva à flor do ser humano. Pode ser o sinal de sua total esterilidade e desenraizamento. Pode significar que o homem perdeu a capacidade de habitar em si próprio; que ele, na fuga de si, avesso e entediado com a aridez de um interior queimado pelo desespero, procura, com angustioso egoísmo, em mil caminhos baldados, aquele bem que só a magnânima serenidade de um coração preparado para o sacrifício, portanto senhor de si, pode alcançar: a plenitude da existência, uma vida inteiramente vivida. E porque não há realmente vida na fonte profunda de sua essência, vai mendigando, como outra vez diz Heidegger, na 'curiosidade que nada deixa inexplorado', a garantia de uma fictícia 'vida intensamente vivida'."

A AMBIVALÊNCIA DA IRA (pp. 272-3):

"É absolutamente sem razão que na linguagem corrente os conceitos de 'sentidos', 'paixão', 'concupiscência' sejam compreendidos como 'sensualidade', 'paixão má' e 'concupiscência desordenada'. Limitações como estas, de um significado originalmente muito mais amplo, esquecem o mais importante, isto é, que todos estes conceitos não possuem apenas um sentido negativo, mas que, muito pelo contrário, estão neles representadas forças das quais a natureza humana essencialmente se estrutura e vive.

A consciência comum cristã costuma, sempre que se fala de ira, ter em mente apenas o aspecto da intemperança, o elemento desordenador e negativo. Mas tanto como 'os sentidos', e a 'concupiscência', a ira pertence às máximas potencialidades da natureza humana. Essa força, isto é, irar-se, é a expressão mais clara da energia da natureza humana. Conseguir uma coisa difícil de alcançar, superar uma contrariedade: eis a função desse apetite sempre pronto a entrar em campo quando um bonum arduum, 'um bem difícil' deva ser conquistado. Daí que Tomás afirme: 'A ira foi dada aos seres dotados de vida animal para que removam os obstáculos que inibem o apetite concupiscível de tender aos seus objetivos, seja por causa da dificuldade de alcançar um bem, seja pela dificuldade de superar um mal' (I-II, 23, 1 ad 1). A ira é a força que permite atacar um mal adverso (I-II, 23, 3); a força da ira é a autêntica força de defesa e de resistência da alma (I, 81, 2).

"Portanto, condenar o apetite irascível, como se fosse intrinsecamente mau, e devesse ser 'reprimido', equivale a condenar os 'sentidos', a 'paixão' e a 'concupiscência'; nos dois casos se ultrajam as maiores energias da nossa natureza, ofende-se o Criador que, como diz a liturgia da Igreja: 'estruturou maravilhosamente a dignidade da natureza humana'."

Os pecados capitais, um por um

O De Malo - do qual apresentamos uma seleção de artigos dedicados aos vícios capitais da Inveja e da Avareza - parecem ser questões disputadas em Roma durante o ano letivo 1266-67 ou, segundo outros críticos contemporâneos, em Paris, no ano letivo 1269-70. Boa parte desse tratado é dedicada aos pecados capitais e se articula com a discussão dos mesmos na secunda parte da Summa Theologica (escrito não antes do De Malo) [5] . A quaestio disputata, como bem salienta Weisheipl, integra a própria essência da educação escolástica: "Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa" [6] . Uma quaestio disputata está dedicada a um tema - como por exemplo tal vício capital - e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema, que é discutido pelo confronto de objeções e contra-objeções, permeado de um corpus, no qual o mestre - no caso Tomás - dá a sua solução ao problema. São precisamente alguns destes corpus que oferecemos ao leitor.

S. Tomás começa - De Malo, 8, 1 - por discutir as razões pelas quais se define o conceito de vício capital e conclui que isto se dá pela articulação objetiva de finalidades: o pecado capital, pecado "capitão", impõe uma cadeia de motivações. Assim por exemplo, à avareza estão subordinadas a fraude e o engano. A análise dessa ordo de fins estabelece sete linhas fundamentais de causalidade: os sete vícios capitais.

A seguir - De Malo, 8, 2 -, discute o caso da soberba, se se trata de um pecado específico ou, pelo contrário, um pecado geral sem objeto próprio, a forma de qualquer pecado. Um pecado se especifica por seu objeto próprio: um bem definido que o pecado perverte. Assim, Tomás começa por enunciar este seu princípio ético fundamental: "todo pecado se fundamenta em algum desejo natural e o homem, ao seguir qualquer desejo natural, tende à semelhança divina, pois todo bem naturalmente desejado é uma certa semelhança com a bondade divina".

Ora, há um bem específico, "a própria excelência", distorcidamente buscado pela soberba que, assim, se constitui em pecado específico. Mas esse bem é tão amplo que, de certo modo, a soberba continua presente nos outros pecados e Tomás prefere não incluir a soberba na lista dos pecados capitais, mas, como dizíamos, considerá-la um pecado, por assim dizer, supra-capital, fora da série.

E assim - De Malo, 9, 1 -, Tomás, em lugar da soberba, prefere falar da vanglória (vã-glória) ou vaidade como pecado capital. Ao discutir os conceitos de vã e de glória, fala desta como esplendor (daí nossos adjetivos: brilhante, ilustre, esplêndido etc.). A perversão do bem da glória é precisamente a glória vã da vaidade.

Em outro artigo da questão da vaidade - De Malo, 9, 3 -, Tomás - como fará também com todos os outros vícios capitais - analisa as filhas, os sete vícios derivados da vaidade: "Sendo o fim próprio da vaidade a manifestação da própria excelência, chamam-se filhas da vaidade aqueles vícios pelos quais - direta ou indiretamente - o homem tende a manifestar a própria excelência."

O vício capital que Tomás analisa a seguir - De Malo, questão 10 - é a inveja. E começamos pelo artigo 2, em que Tomás discute - tal como o faz com os outros vícios capitais - se se trata de um pecado mortal. No artigo seguinte da questão sobre a inveja - art. 3 - apresentam-se as cinco filhas da inveja.

À acídia é dedicada a questão 11 do De Malo e começamos pelo artigo 1, que mostra que a acídia é pecado, e, em seguida, apresentamos o tratamento dado pela Summa Theologica II-II q. 35, a.4. à acídia como pecado capital e suas filhas: desespero, pusilanimidade, torpor, rancor, malícia, divagação da mente.

A questão 12 do De Malo é destinada à ira e às suas "filhas". É extremamente valiosa a reflexão do Aquinate sobre o valor positivo da ira enquanto impulso vital na busca de um bem. E há aqui uma pista para um possível antídoto aos males da acídia.

A questão 13 do De Malo discute a avareza. Uma de suas "filhas" é a traição, o que faz Tomás atentar para o fato de que Judas, que trazia as contas do grupo dos apóstolos de Cristo, traiu o Mestre porque, como diz o Evangelho, roubava da bolsa comum.

A questão 14 do De Malo contempla a gula, vício que, como os demais, é a desordem de um desejo natural, no caso, o de comer e beber.

Por fim, a luxúria. Selecionamos, além de uma passagem correspondente à questão 15 do De Malo, trechos de Summa Theologica II-II q. 153. É um sinal preocupante já ter ouvido jovens de hoje dizerem que luxúria é um apego ao luxo. A perda do conceito e da palavra denunciam, de modo patético, a perda mesma da consciência do problema.


[1] Trechos de estudo introdutório a traduções de Tomás, originalmente publicado em: Tomás de Aquino – Sobre o Ensino (De Magistro) & Os Sete Pecados Capitais, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

[2] . A classificação de Tomás difere ligeiramente das de Cassiano e Gregório.

[3] . Jocosamente, propomos um exemplo caricaturesco dessa leitura. Tomemos o seguinte trecho de Tomás: "(Como já dissemos, vício capital é aquele do qual procedem - a título de finalidade - outros vícios). Ora, acontece freqüentemente que, pelo fim da ira, isto é, por tomar vingança, se cometam muitas ações fora da ordem moral e, assim, a ira é vício capital". E agora façamos dele uma versão "popular": "Pô, vira e mexe o cara fica fulo da vida porque aprontaram feio com ele, e como ele não tá a fim de deixar barato pode acabar forçando e pisar na bola da moral. Portanto, a ira é pecado cabeça de chave".

[4] . Nos dois sentidos da palavra: líder - o primeiro lugar; e líder - aquele que dirige, leader.

[5] . Para a datação das obras de Tomás, veja-se Weisheipl, James E. Tomás de Aquino, vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994.

[6] . Op. cit., p. 235.
http://www.hottopos.com/notand10/jean.htm

Aspectos da marginalidade medieval: algumas abordagens recentes

Aspectos da marginalidade medieval: algumas abordagens recentes

José Roberto de Almeida Mello; Jônatas Batista Neto
Departamento de História — FFLCH/USP


Esta nota tem por objetivo fornecer aos leitores brasileiros informações sobre o tema acima mencionado tal como ele aparece em alguns artigos recentes, da década de 80, publicados em periódicos especializados, os quais foram objeto de discussão em seminários organizados pelos professores de História da Civilização Medieval do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no decorrer do segundo semestre de 19861.

Dois deles tratam da prostituição em cidades italianas (Veneza e Florença), um terceiro se ocupa da vagabundagem na Ile-de-France, outro versa sobre as relações entre marginalidade e heresia e o último examina o perfil do ladrão no Beowulf e nas sagas islandesas2.

A primeira observação que nos cabe fazer diz respeito à natureza das fontes utilizadas pelos autores. Em geral, trata-se de documentação oficial, cobrindo períodos relativamente curtos, analisada de forma exaustiva. Para o estudo da prostituição na Itália, foram usados respectivamente por E. Pavan e R. Trexler, a legislação criminal da República de Veneza (séc. XV) e os Registros do Ofício da Onestà florentina (1441-1523). A vagabundagem na Ile-de-France pôde ser examinada através do Registro criminal do Châtelet de Paris para os anos 1389-1392. E mesmo um autor voltado para as questões literárias, como Theodore Anderson, só não utilizou a legislação anglo-saxônica e nórdica por não encontrar nela nenhuma referência substancial ao furto, sendo pois obrigado a recorrer às fartas informações existentes nas sagas islandesas. Apenas o estudo de B. Geremek não menciona qualquer documentação em particular por tratar-se mais de um ensaio do que de pesquisa original.

Embora o objetivo que norteou as pesquisas não tenha sido idêntico, os autores acabaram por esbarrar em questões que percebemos serem comuns a espaços geográficos diferentes numa mesma época e transcender os curtos limites de tempo impostos pela documentação.

O primeiro problema que se põe é o da definição de marginalidade, que se apresenta, nesses estudos, com várias faces, como, por exemplo, a vagabundagem, a gatunagem, o desenraizamento social e a prostituição.

A vagabundagem é caracterizada por E. Cohen, com base nas teorias do sociólogo francês A. Vexliard, como sendo a condição de "quem pertence a nenhuma categoria social estabelecida". Quanto à sua origem, ela pode ser elementar (decorrente de calamidades, como peste, guerra, fome, etc.) ou estrutural (provocada pela rigidez das estruturas sociais, que excluem os que a ela não se adaptam). Para descobrir em qual delas se encaixa a vagabundagem na Ile-de-France no final do século XIV, é que a autora faz um levantamento das biografias dos acusados, contidas no registro Criminal do Châtelet.

Em geral eles pertenciam às camadas desfavorecidas da população (artesãos, "compagnons", domésticos, criados, trabalhadores agrícolas), quase sempre do sexo masculino, provenientes de Paris e circunvizinhanças.

Ao contrário da explicação tradicional dos historiadores, a Autora não encontrou como explicação para o fenômeno da vagabundagem, a fuga das devastações da guerra e a propagação da peste. Nos registros do Châtelet, a razão mais frequentemente apresentada seguida dos "motivos económicos legítimos", como a migração para Paris em busca de trabalho e melhores salários ou deslocamento imposto pela própria natureza de certas profissões (por ex., a movimentação sazonal dos trabalhadores agrícolas). A guerra também deu a sua contribuição, na medida em que se constituía numa atividade atraente para muitos indivíduos, sobretudo os mais jovens. Engajados nos exércitos como valetes, deslocavam-se eles frequentemente pelas diversas frentes de combate. Testemunho disso é o grande número de soldados mencionados nos registros. Da mesma forma a guerra fez aparecer o nobre vagabundo.

Como conclusão a Autora sugere que a mobilidade social caracterizada como vagabundagem no norte da França tenha sido conseqüência das crises económicas do século XIV, adotando portanto a posição defendida pelos sociólogos.

O artigo, apesar de sua clareza, dá margem a algumas dúvidas. Além da já mencionada questão das causas, sobre as quais a própria Autora se pronunciou com evidente cautela, fica ainda pendente a própria definição de vagabundagem, porquanto os arrolados no Registro do Châtelet não o foram exclusivamente por sua condição de vagabundos, mas por terem cometido algum crime. Dessa forma, a amostra que possuimos não serve de base para o conhecimento da amplitude do fenómeno na Ile-de-France.

E afinal o que era vagabundagem? Sobre esta questão, a definição de Vexliard acima mencionada parece não constituir uma resposta cabal, uma vez que a característica comum aos 128 acusados dos Registros do Châtelet, é a mobilidade, seja ela espontânea ou imposta pelas circunstâncias, transitória ou permanente. De qualquer forma, essa rejeição definitiva dos quadros da sociedade que é o ingrediente essencial da definição do sociólogo francês não se verifica para uma boa parte dos casos estudados. Disso a própria Autora parece ter tido consciência ao afirmar que o século XIV provocou o aparecimento de uma variada gama de fenómenos, que se pode considerar ou não como vagabundagem.

Se a vagabundagem em Paris não pode ser inteiramente assimilada à marginalidade, na Islândia do século XII, esta era o ingrediente fundamental no delineamento da figura de um tipo especial de ladrão, conhecido no Brasil como gatuno.

Roubando furtivamente, na calada da noite, o gatuno opõe-se ao assaltante que, de forma violenta ou não, mas às claras, expropria a vítima.

Gatuno é o termo que Theodore Anderson propõe para preencher uma lacuna do manuscrito do Beowulf, poema épico anglo-saxônico do século VIII. Trata-se de uma passagem de interpretação controvertida, onde a escolte do termo apropriado tem uma importância crucial. Estudiosos da obra haviam sugerido a leitura "nobre" ou "escravo" para o trecho rasurado do texto. Discordando dessa interpretação, Theodore Anderson prefere o substantivo gatuno (thief). Esse portanto, o objetivo básico do seu artigo. A pesquisa das sagas islandesas constitui aí apenas o meio encontrado para argumentar em favor de sua opção.

Tendo buscado, sem sucesso, exemplos da legislação anglo-saxônica e nórdica, que pudessem esclarecer a posição do ladrão no Beowulf, viu-se constrangido a recorrer às sagas islandesas, onde tais casos são abundantes.

Daí advem o interesse para nós dos resultados da investigação. Ela nos mostra justamente o caráter marginal do gatuno naquela sociedade. O tipo de roubo que praticava, por seu caráter furtivo e secreto, era considerado extremamente vil e aos indivíduos que o praticavam, aplicavam-se várias qualificações pejorativas, que nos mostram a similaridade de sua situação com aspectos da marginalidade levantados pelos autores dos demais artigos estudados.

O gatuno é associado inicialmente ao forasteiro, ao indivíduo sem eira nem beira, sem lar, sem família, sem vínculos com a terra, em suma, um pária. Somam-se a isso as conotações de efeminação e de bruxaria, encontrados em muitos dos relatos das sagas. Além do mais, ele é quase sempre de baixa extração social, pois o furto, ao contrário do assalto, é considerado impróprio do homem livre ou do nobre.

Aqui temos assim, novamente, o encontro da marginalidade com a criminalidade, uma criminalidade especial, é verdade, considerada mais pela falha de caráter que revela do que por seu efeito prático mas, por isso mesmo, capaz de colocar o indivíduo à margem da sociedade, tornando-o um desajustado nos moldes da definição de A. Vexliard.

Na definição do gatuno pela sociedade islandesa, encontramos portanto um elemento sexual, a alusão a um desvio de comportamento. Tal aspecto é o objeto dos estudos de Elisabeth Pavan e Richard Trexler sobre as cidades de Veneza e Florença no século XV. Aí encontramos, com certas variantes, aqueles aspectos já citados da marginalidade, ou seja a mobilidade, a criminalidade e o comportamento sexual heterodoxo.

Mobilidade. Quem mais se preocupa com ela é Trexler, ao estudar demograficamente a prostituição em Florença, tanto no que diz respeito ao recrutamento das mulheres pelo serviço da Onestà (organizado em 1403), quanto com relação aos frequentadores dos bordéis. Nota o pesquisador americano que em geral não são originários de Florença, vindos quer de outras áreas da Itália, quer das regiões transalpinas, como a Alemanha e os Países-Baixos.

Conquanto o levantamento demográfico não seja o objetivo central de Elisabeth Pavan, não deixa ela de notar a presença de um número considerável de estrangeiros em Veneza. Fala mesmo da existência de verdadeiras redes aumentando o florescente comércio prostitucional veneziano de prostituição.

Criminalidade — Não que as prostitutas fossem propriamente criminosas, embora frequentemente cometessem pequenos delitos. Ocorria, no entanto, que bastava a sua presença para que desordens eclodissem nas imediações dos prostíbulos. Mais ainda, em Veneza, elas eram muitas vezes responsáveis pela sonegação de impostos decorrentes do contrabando de vinho.

Comportamento sexual heterodoxo — A prostituição feminina não era considerada crime pela sociedade ou pelas autoridades, sendo até protegida pelo governo das duas repúblicas. A sodomia é que foi objeto de condenação e de perseguição.

Em ambas as cidades, a prostituição feminina estava intimamente relacionada com a perversão sexual, na medida em que foi estimulada pelo estado para coibir a difundida prática da sodomia. Nesse sentido, ela foi tolerada, protegida e organizada, quase perdendo o seu caráter marginal. Tal não aconteceu com o homossexualismo, que foi objeto de uma crescente repressão, especialmente em Veneza, onde o Conselho dos Dez, órgão de governo da República, chegou a criar uma comissão especial destinada a cuidar do problema, com poderes para prender, torturar e executar os culpados desse vício.

Dessa forma, na medida em que a prostituição feminina teve uma função social positiva nas duas cidades, não a podemos considerar propriamente marginal. A sodomia sim, porque considerada ofensiva a Deus e potencialmente perigosa para a segurança da cidade, tendo em vista o precedente de Sodoma e Gomorra amiúde citado pelas autoridades civis e eclesiáticas em seus pronunciamentos. Ela foi marginalizada com maior ou menor intensidade tanto em Florença quanto em Veneza, onde a repressão se tornou muito violenta no final do século XV.

O temor da sodomia foi a causa do estímulo à prostituição feminina, considerada como um antídoto a essa prática. Porém favorecer a prostituição tinha também os seus inconvenientes, tais como as algazarras, os escândalos, o mau-exemplo, a possibilidade de contaminação da população local e o estado viu-se obrigado a tomar providências para, pelo menos, circunscrever essa atividade a uma área da cidade. Foram criadas comissões como o Ofício da Onestà em Florença, órgão para o policiamento e solução de querelas surgidas nesse meio e providenciaram-se instalações para abrigar as prostitutas, como o famoso Castelleto de Veneza.

O aspecto mobilidade, que aparece no caso da prostituição italiana bem como dos fenômenos de marginalidade anteriormente expostos, também surge no estudo de B. Geremek associado à propagação das heresias. Trata-se portanto de uma abordagem que relaciona o desenraizamento social à história das idéias.

O historiador polonês ressalta a importância das vias de comunicação para a circulação do pensamento heterodoxo. Acredita que o homem que rompeu com as suas amarras sociais de origem se tornava mais aberto à recepção de idéias heréticas. É nas estradas e nos pontos de parada, tais como tavernas, forjas, moinhos, etc., que vamos reencontrar os vagantes mencionados por E. Cohen, revestidos agora de uma nova função, a de transmissores de concepções religiosas divergentes.

Como vemos, mau grado as diferenças regionais e cronológicas, o fenômeno marginalidade conserva certas características comuns. Primeiramente a mobilidade, momentânea ou permanente, já que mesmo aqueles elementos aparentemente mais estáveis, enquadrados e protegidos pelas cidades italianas, como as prostitutas, não permaneciam muito tempo num determinado local, como testemunham os registros municipais.

Depois, a exclusão dos quadros sociais, da qual o exemplo mais gritante talvez seja o do gatuno das sagas islandesas, tendo em contrapartida a aceitação temporária no caso das prostitutas de Florença e de Veneza.

Finalmente a origem social é mais ou menos comum, no sentido de que se tratam de pessoas humildes.

Sendo um tema de pesquisa de interesse relativamente recente, é natural que a marginalidade ofereça ainda um vasto campo de investigação pela frente. Assim seria desejável, por exemplo, que estudos como os de E. Pavan e R. Trexler se estendam a outras comunidades urbanas da Idade Média.

1 Além dos autores desta nota, participaram dos seminários os Profs. Drs. Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, Ivone Marques Dias, Victor Deodato da Silva, e os estudantes de graduação e de pós-graduação Paulo Eduardo Dias de Mello, Frederick James Roth e José Rivair Macedo.
2 PAVAN, Elisabeth. Police de Moeurs, Societé et Polilique à Venise à la Fin du Moyen Âge Revue Historique, p. 536, 1980; TREXLER, Richard C. "La Prostitution à Florence au XVe Siècle" (Annales ESC, 1981, 36,6); COHEN, Esther. "Le Vagabondage à Paris à la Fin du XlVe Siecle" (Le Moyen Âge, v. 88, n. 2, 1982); GEREMEK, Bronislaw. "Hérétiques et Déracinés au Bas Moyen Age (Annales ESC, v. 37, n. 1, 1982); ANDERSON, Theodore. "The Thief in Beowulf" (Speculum, v. 59, n. 3, 1984).
Revista de História - USP

Livros pequenos e grandes problemas: o feudalismo e a expansão européia medieval em textos de iniciação


Livros pequenos e grandes problemas: o feudalismo e a expansão européia medieval em textos de iniciação

Victor Deodato da Silva
Departamento de História — FFLCH-USP


Por piores que sejam em termos gerais determinadas vicissitudes, elas normalmente não deixam de apresentar aspectos particulares positivos. Publicado quando a Revista de História se encontrava com a publicação suspensa, um pequeno volume sobre a expansão militar européia na Idade Média Central (1) dificilmente teria suscitado mais do que uma curta resenha. Já examinado em conjunção com outro escrito da mesma coleção e da lavra do mesmo e competente autor, lançado algum tempo depois, desta vez versando sobre o feudalismo (2), termo que de uma certa forma engloba o conjunto de transformações sócio-institucionais que forneceram suporte à Cruzadas, em particular se consideradas na acepção ampla adotada no caso, ele suscita interessantes questões de método e interpretação que não se suporia facilmente, face às suas dimensões.

Comentando as "Indicações para leitura" no final do mais antigo dos trabalhos em exame o autor caracteriza certos itens — com elogiável dose de honestidade e realismo — como obras "de concepção semelhante à nossa, porém mais elaboradas pois, apesar de serem ambas também dirigidas a um público não especialista, trata-se nesse caso do público europeu, cujo leitor médio é de formação histórica superior ao nosso" (Cruzadas, p. 86). Num paralelo que cremos ser mais familiar, poderiamos dizer que a Coleção "Tudo é História" se configura como uma espécie de "Que sais-je?" (ou "Saber Atual", em sua edição brasileira) em miniatura, sendo que o seu item respectivo é, por sinal, evocado no mesmo passo de nossa citação.

Em outras palavras, trata-se de sínteses extremamente reduzidas — da ordem um quinto, ou talvez mesmo menos, das de "Que sais-je?" — e como tais colocando problemas consideráveis aos seus autores, no caso presente bastante bem resolvidos. Aliás, caso o editor conseguisse (infelizmente, parece que esse não é bem o caso) manter o nível dos volumes em questão para o conjunto da coleção, estaria prestando um meritório serviço à miserabilíssima cultura histórica nacional que, para desespero de seus cultores e seguindo docilmente o padrão intelectual em voga entre nós, deixa transparecer mais facilmente sintomas de regressão do que de evolução. Ao menos em termos de nível cultural médio dos interessados, embora oferecendo, cumpre admiti-lo, como compensação não negligenciável uma ampliação quantitativa do mercado consumidor graças à proliferação dos cursos superiores de História no território nacional, a tornar economicamente viáveis iniciativas como as da coleção em causa.

Dentro, em suma, da proposta da coleção — uma síntese bem sucinta dos dados disponíveis em relação a um tema histórico central — estamos diante de espécimens dignos de respeito pela segurança de seu conteúdo informativo, atualidade de sua bibliografia de apoio e clareza de exposição, propriedades aliás características do conjunto da produção de seu autor. Sob um prisma mais conjectural, estamos convictos de que essas virtudes encontrariam condições mais propícias para se destacarem caso o espaço que lhes foi oferecido fosse menos acanhado e certos detalhes de editoração, pelos quais supomos que os autores não têm qualquer carga de responsabilidade, não se configurassem como tão deprimentemente impróprios, como é o caso das ilustrações, oscilando entre um arcaísmo bem século XIX (ainda assim o aspecto que menos incongruente se revela com a seriedade do texto) e um humorismo fácil (desta vez francamente fora de propósito), em alguns casos imbricados com uma estética de estórias de quadrinhos. Seguramente atentatórias ao espírito científico, não nos parece que elas se justifiquem melhor didaticamente, ao veicular uma imagem severamente distorcida do visual medieval.

Já é tempo, porém, de deixar de lado essas exterioridades e passar ao exame do teor desses escritos, cujos conteúdos, como já ressaltamos,apresentam afinidades tão estreitas que eles acabam se configurando como complementares entre si, o que se constituiu, como também já foi dito, na razão primordial desta nossa opção pela sua abordagem conjunta.

Com efeito, para o autor feudalismo é um termo que praticamente se identifica com a sociedade europeu-ocidental entre os séculos X e XIII em suas manifestações sócio-econômicas, político-institucionais e culturais, sobretudo da Europa Ocidental entre os séculos X-XIII (reservamos para o fecho desta resenha nossas considerações sobre uma conceituação tão abrangente), enquanto as Cruzadas, por sua vez, se configuram como uma espécie de válvula de escape para os desequilíbrios e tensões dessa mesma sociedade, explicando-se a defasagem cronológica de um século a um século e meio por terem seus desajustes e disfunções tardado compreensivelmente algum tempo para se fazerem sentir.

Essa visão explica as frequentes coincidências de conteúdo e em particular passagens do mais antigo desses volumes chegam a se constituir em "trailers" de partes de outro, fenômeno que, obviamente, não deve ser visto como sintoma de carência de disponibilidade de dados informativos ou insuficiência de recursos interpretativos a conduzir à repetitividade, já que esta, quando se observa ,se constitui em conseqüência lógica da linha de abordagem adotada, a qual, por sua vez, aumenta singularmente a responsabilidade do historiador, na medida em que exige o máximo de sua erudição, dada a extrema diversidade de aspectos focalizados, cada um deles pressupondo uma formação bem específica. Nessas condições, chega a ser de admirar que, tanto quanto nos tenha sido dado detectar (mas é preciso dizer que a sorte dos autores em tais casos é que dos resenhadores se pressupõe uma gama de competência semelhante!), os lapsos sejam tão poucos, tanto mais que eles são praticamente inevitáveis, mesmo quando há uma circunscrição temática muito mais estreita do que a dos casos em questão.

Enumeremo-los. Franco Jr. estabelece um vínculo entre o deslanche do "Drang nach Osten" (2.ª metade do século XI) e a Hansa Teutônica (Cruzadas, p. 20), quando esta liga somente começou a ganhar corpo dois séculos mais tarde, apenas se constituindo formalmente já em pleno século XIV. É lógico que muitas das cidades que a compunham já se destacavam na atividade comercial e que seus interesses na matéria podem ter contribuído para a expansão alemã para o leste, mas a verdade é que, enquanto tal, a dita associação ainda não existia. Na mesma página, podemos ler que os eslavos "além de serem pagãos tinham um nome interpretado como uma predestinação a serem escravos...", o que sugere que, ao inverter os dados da questão, o autor aparentemente ignora a noção bem comprovada de que foi por essa época ou talvez um ou dois séculos antes que a palavra "servus" passou a dar lugar a "sclavus", derivada de eslavo, porque os indivíduos dessa origem já vinham então sendo sistematicamente escravizados, sendo que em algumas línguas a forma dos dois nomes é virtualmente a mesma (como em inglês: slav e slave, eslavo e escravo respectivamente). Menos inexata do que incompleta se configura a referência a Compostela e Jerusalem como os grandes centros de peregrinação (Cruzadas, p. 33), esquecendo Roma, que inclusive deu aos que se dedicaram a essa prática um dos seus designativos, romeiro e que, o quão grande pudesse ser o vulto de eventuais concorrentes, em nenhum período da Idade Média ou ulteriormente deixou de atrair em massa os penitentes.

Mais relevantes do que lapsos desse tipo, praticamente inevitáveis em trabalhos do gênero, são as simplificações e generalizações. Ainda que se deva ressaltar que, numa certa medida, também se configurem como dificilmente contornáveis num escrito de intenção didática, no caso presente elas parecem decorrer pelo menos em parte do empenho quase obsessivo em abarcar a totalidade — ou seja, tanto em seus aspectos estáticos ou estruturais, quanto nos dinâmicos ou fisiológicos — uma realidade em si mesma provavelmente menos organizada e coerente do que possa pretender o espírito humano. Em outras palavras, ao propor que "também as sociedades passam" pelo "ciclo vital" constituído por "gestação, nascimento, crescimento, reprodução, morte" (Feudalismo, p. 62), Franco Jr. talvez esteja levando um pouco mais longe do que dita a prudência o simile entre as sociedades humanas e os organismos vivos, u'a metáfora certamente sugestiva e útil para transmitir uma visão de processo histórico mas que, no final das contas, parece-nos não passar de uma metáfora e como tal deve ser considerada.

Essa concepção leva o autor a remontar às vezes longe no tempo (à procura dos ancestrais?) e não desejaríamos nos deter muito na discussão de aspectos que extrapolem significativamente das balizas cronológicas propostas (séculos X a XIII), mas por exemplo, não podemos deixar de assinalar que parece-nos exagerada simplificação da problemática religiosa do fim da Antiguidade reduzi-la a uma oposição entre Cristianismo e "paganismo clássico" (Feudalismo, p. 27), sendo que esta última expressão somente se configura como válida na medida em que a identifiquemos com os cultos cívicos ou oficiais, o que omite o caráter extremamente aberto da postura politeísta, com sua extrema regionalização de práticas e concepções religiosas, com os cultos domésticos e de iniciação (ou mistérios) contrastando fortemente com as cerimônias promovidas pelo Estado. Também o problema do colonato no mundo romano (Feudalismo, p. 12) antecede de muito à época das dificuldades de obtenção de escravos e transcende sensivelmente à simples regressão no status jurídico do trabalhador livre, fenômeno esse que, consubstanciado nas leis impondo a hereditariedade de funções aos agricultores, esteve por sua vez mais ligado à evasão da mão-de-obra rural decorrente do flagelo das requisições, do que às perturbações do comércio propriamente ditas e à decorrente queda na disponibilidade de escravos. Em relação a estas, é-nos difícil aceitar a afirmação peremptória de que "o setor mercantil" era o mais importante da Antiguidade (Cruzadas, p. 11), lugar comum generalizante merecedor de reparos já que mascara a enorme heterogeneidade econômica do Império Romano, com o ocidente — ressalvadas algumas áreas, sobretudo as de intensa colonização grega (p. ex. o sul da Itália e Sicilia ou sul da Gália) — oferecendo, em forte contraste com o leste, um panorama de urbanização bastante artificial e dependente dos estímulos do poder central. Essa política, com efeito, não pôde ser mantida duradouramente e a tendência à ruralização observada já a partir do século II nada mais representou do que um retorno à sua vocação profunda, disfarçada por algum tempo pelo fluxo de maciços recursos desviados do oriente, e pouco propícia à sustentação de setores secundários e terciários pujantes, a qual somente veio a se tornar efetivamente viável lá pelo terceiro século de nosso milênio, em circunstâncias que ora não vem ao caso esmiuçar.

Mas os maiores problemas — e são eles os que mais importam no momento — se referem ao período específico e mais particularmente à aplicação ao conjunto do espaço geográfico ocidental da etiqueta de "feudalismo". Eles começam com os mecanismos de relacionamento que estão na origem desse termo, ou seja, o contrato vassálico com o feudo como referencial, visto que, bem caracterizados na França, Catalunha, Inglaterra (mas nesta já com entorses, pois, à semelhança da Normandia, a monarquia desfrutava do monopólio das homenagens preferenciais, lige ou ligium), estados latinos orientais, Itália angevina e mais alguns outros bolsões bem esparsos, alhures eles conheciam pouca penetração. Como consequência, nessas áreas estranhas às práticas em questão, quando incidia, o vocabulário técnico que as regulamentava, na medida em que era adotado, estava sujeito a fortes alterações de significado (na Península Ibérica, por exemplo, o termo vassalidade designava relações tipicamente de clientela, via de regra não entrando em jogo o feudo).

Se em relação ao feudo e à vassalidade — que se constituem, na terminologia do autor e da qual não dissentimos, nos pontos de referência das relações horizontais — está mal caracterizada a generalidade de sua incidência pelo espaço geográfico em causa, a situação não é muito diversa no que concerne aos elementos fundamentais do relacionamento vertical, a senhoria e a servidão. Embora a detenção de grandes extensões de terra por um único personagem fosse um fenômeno bastante difundido, só na França e demais áreas por ela influenciadas instituicionalmente (basicamente coincidentes com a enumeração constante do parágrafo anterior), é que essa posse se condicionava ao compromisso de prestação de serviços próprios do contrato feudal. Como contra-partida e se constituindo em dado muito importante, os alódios, ou seja, pequenas e médias propriedades, se revelavam alhures bastante numerosos, não raro totalizando superfícies comparáveis ou mesmo superando às cobertas pelas grandes unidades agrárias (fossem elas senhoriais de tipo feudal, propriedades ou outras modalidades de posse). Da mesma forma, embora por toda parte as fórmulas de exploração dessas unidades (ou seja, nas quais a compensação dos serviços consistia na concessão de um lote para sustento dos que os prestavam) apresentassem traços básicos comuns, nem por isso se pautavam elas pelos mecanismos de dependência tão típicos, em sua regulamentação minuniciosa de serviços e taxas, do regime senhorial francês.

Mas mesmo em relação à França e às regiões por ela influenciadas institucionalmente os particularismos eram tão acentuados que um denominador comum fica muito difícil de ser apurado. O direito de bannum, tão importante para caracterizar a atomização das prerrogativas de governo e naturalmente evocado com destaque por Franco Jr. (Feudalismo, p. 51) era ignorado nas áreas que seguiam o costume normando, adaptado a um feudalismo "centralizado" e nas quais também a servidão não era praticada, o que nelas empresta — não obstante todas as afinidades que possam ser detectadas com o restante do território francês, a terra por excelência da "sociedade feudal" — uma coloração especial às relações a esta peculiares, tanto horizontal quanto verticalmente.

Nessas áreas — e mais o conjunto do oeste francês — observa-se uma outra tendência que o autor generaliza para todo o espaço geográfico ocidental, a saber, a obediência ao princípio de sucessão por primogenitura, importante em particular para explicar a expansão "feudal" (ou "Cruzadas" em suas várias frentes e acepções), na medida em que estimulava os filhos mais jovens a tentar a fortuna alhures. Incorre-se de novo então simplificação exagerada, pois tratava-se de um campo em que os mais mais imaginosos arranjos e as mais variadas soluções eram adotados, não se verificando portanto a indivisibilidade mais ou menos automática do feudo por ele alegada, norma que somente se aplicava invariavelmente às honras (ou, mais simplificadamente, os títulos tais como conde, barão, etc.) e aos feudos que eventualmente as corporificassem, ou seja, aqueles que compreendessem os locais que forneciam a denominação aos títulos correspondentes, bem como os castelos que lhes serviam de sede e outras instalações oficiais.

Raros são, portanto, os lapsos mas em contrapartida consideráveis (ou ao menos assim nos parece) as distorções de enfoque que dão o que pensar. Vê-se que os dois livrinhos suscitam problemas interessantes, embora o leitor talvez estranhe que nos detenhamos tão longamente sobre trabalhos de iniciação obviamente despretenciosos e aos quais, em decorrência, é provável que o próprio autor, compreensivelmente, não atribua excessiva importância. Nesse caso, redarguiríamos que a relevância está nas próprias questões e que elas, no fundo dizem antes respeito às tendências interpretativas recentes da historiografia francesa, a chamada "nouvelle Histoire", que refletem claramente, do que às próprias obras ora em exame, as quais, como já o ressaltamos, são exemplares dentro dos propósitos que as animam. Explicitando melhor, a propensão generalizante e simplificadora — poderíamos mesmo dizer reducionista — nelas detectada decorre de uma adesão talvez um tanto ou quanto excessivamente decidida às concepções estruturalistas.

Este não é o momento de esmiuçarmos as origens complexas dessa corrente de pensamento, aliás bastante compósita em sua constituição e que estravasa notavelmente não apenas do terreno historiográfico, mas do próprio âmbito das ciências humanas. Acentuemos, porém, que em relação à História, disciplina por excelência das transformações, ela sempre se constituiu num problema, já que o próprio vocábulo "estrutura" transmite a noção do duradouro. Mas não é só. O termo parece também associado irremediavelmente à imagem de" combinação complexa e integrada, consubstanciada no conceito de modelo — a um tal ponto que, conforme formulação célebre de Levy-Strauss, substituindo-se neste último um componente, fica todo o conjunto comprometido em sua coerência — o que gera problemas tanto de estabelecimento de limites de abrangência, quanto da atribuição de peso relativo entre as partes constituintes.

Neste passo coloca-se uma dificuldade, que poderíamos qualificar de epistemológica e que se delineia como de difícil superação. O estruturalismo, acabamos de dizê-lo, está comprometido com a noção de modelo, o qual, por sua vez, embora constituído a partir de alguns componentes ou propriedades do objeto a que se refere, de uma certa forma o antecede, constituindo-se, em escala considerável, numa espécie de construção mental artificial. Nessas condições, é lícito sustentar que quanto mais abrangente um dado modelo se configurar em relação ao objeto, tanto maior será a multiplicação das variáveis a serem manipuladas e mais problemática a sua viabilidade. Sob pena de tornarmo-nos repetitivos (3), enfatizamos mais uma vez o nosso ceticismo quanto à factibilidade dos macro-modelos sociais ou históricos, os quais — ou, mais exatamente, um dos quais — nos parecem estar subjacentes nos trabalhos em exame.

Tentemos situar um pouco mais concretamente a questão.

Organização social rigidamente diferenciadora de dependentes e senhores (bem ilustrada pela economia dominial) e marcada por uma hierarquia complexa no seio deste último grupo (que tinha nas práticas feudo-vassálicas a sua mais característica manifestação); uma economia fundada no setor primário (agricultura, pastoreio e extrações), em função do qual se articulavam os outros, e isso de uma forma tão acentuada que o setor secundário ("industrial" ou mais realísticamente artesanal) tendia a se confundir com o terciário (serviços), grande apego aos valores religiosos, com um clero numeroso e influente sustentando uma propensão doutrinária conservadora, identificando a ordem vigente com a vontade divina e encarando as propostas renovadoras como tentações demoníacas; incipíência das instituições públicas, com a ação do Estado solapada tanto pelas usurpações privadas quanto pela força das disposições consuetudinárias; um modesto mas ininterrupto crescimento demográfico, a condicionar tanto uma renovação interna, quanto uma expansão, inclusive militar, externa.

Embora outros pudessem ser evocados, esses traços gerais são suficientes para dar corpo a um modelo e o autor certamente não foi o primeiro a delineá-lo, mas provavelmente é um dos que foi mais longe nesse sentido, ao aplicar a etiqueta de feudalismo ao conjunto das tendências que vimos de enumerar. Daí certas formulações, que soam um tanto estranhas, ao menos para nossos ouvidos, como "o Feudalismo era uma sociedade de ordens" (Feudalismo, p. 33: note-se a maiúscula) ou "a fraqueza populacional do Ocidente tinha começado lentamente a se modificar com o feudalismo" (Cruzadas, p. 15), inclusive porque investem o vocábulo em questão de uma propriedade ativa, como se ele tivesse sido um sistema deliberadamente construído com todos os seus componentes conscientemente articulados e não se tratasse sobretudo de um conjunto de práticas só aos poucos consolidados e portanto, quanto mais se remonta às origens, fruto de tateamentos com pronunciados matizes de expediente e cuja plena sistematização nunca chegou a se completar. Mesmo porque pode-se dizer que, nascido de tendências centrífugas de uma fase conturbada da evolução da Cristandade, quando esta mais pôde enfim restaurar mecanismos centralizadores, estes só poderiam em última análise se desenvolver em detrimento dos particularismos que favorecem as soluções feudalizantes.

Não discordamos em princípio do postulado de que as "palavras, para o historiador, são sempre problemáticas" (Feudalismo, p. 7), mas esperamos que se perceba que está em jogo algo mais do que uma divergência terminológica, oue seja, que feudalismo no caso não passaria de uma etiqueta a designar o conjunto de tendências muito gerais detectáveis no ocidente europeu de então e em lugar da qual poderiam estar outras como sistema feudal, modo de produção feudal, civilização feudal, sociedade feudal (alternativas oferecidas pelo próprio autor, local citado). Inclusive porque em relação a estas permaneceria a mesma objeção: estar se-ia tomando o todo pela parte, pois se a idéia de uma civilização ocidental medieval encarada sob o prisma cultural ou mental se configura como relativamente defensável (ao menos em suas manifestações mais eruditas), visto que a adoção generalizada do Cristianismo de linha romana fornecia um denominador omum poderoso, já nos parece infinitamente mais problemática a idéia de uma sociedade ocidental medieval, abarcando os aspectos sócio-econômicos ou político-institucionais, pois aí os particularismos e as variações regionais ganham um tal peso que incompatibilizam uma grande, se não a maior parte da área considerada com a combinação de vassalidade com dependências servil própria ao feudalismo na sua acepção mais ampla.

É evidente que existe o precedente de Marc Bloch, que já propunha a abordagem integrada e totalizante que não deixava de lado a bem dizer nenhum aspecto das relações humanas, mas, embora La société feódale refletisse, obra de síntese que era, a insuficiência de dados sobre alguns deles, uma das características mais marcantes do seu estudo reside precisamente numa ênfase quase obsessiva com os matizamentos. Uma vez transposto para o âmbito do estruturalismo, esse tratamento dificilmente deixaria de sofrer o reflexo das concepções marxistas — lembremos que Marx é um dos mais ilustres precursores dessa corrente — e Georges Duby propôs, em relação ao período de que tratam os dois livros, um modelo de modo de produção (4). Mas, ao fazê-lo, ele tomou duas providências cautelares: evitou maiores compromissos com o feudalismo em suas manifestações mais formais (tanto no concernente às relações horizontais quanto às verticais) e escudou-se numa atitude de modéstia, alegando familiaridade sobretudo com o espaço geográfico francês, para eximir-se de estender ao conjunto do ocidente europeu a aplicação de sua proposta interpretativa. Menos prudente, Franco Jr. — cujo "approach" na matéria filia-se, ainda que sem servilismo, à mesma linha de abordagem — não hesitou em fazê-lo, incrementando a margem de vulnerabilidade que ela oferece.

Todavia, parece-nos pertinente afastar do espírito do leitor qualquer eventual suspeita de faccionismo partidário por parte de nosso autor. Em nenhum passo desses trabalhos ele denota estar extrapolando da missão intelectual de que se investiu, colocando-a a serviço de uma causa a ela extrínseca, por mais respeitável que seja. Ele não se enquadra certamente na categoria a que pertence um ex-aluno nosso — por sinal dentre os mais inteligentes e estudiosos que tivemos — que, no curso de uma discussão em classe, quando enunciávamos o princípio de que "enquanto ciência, a História justifica-se a si própria", redargüía com um ar de desprezo mal disfarçado por um sorriso irônico: "mas professor, isso é idealismo kantiano!". A nossa divergência com Franco Jr. é então epistemológica e não ideológica, porque continuamos convictos da inviabilidade dos macro-modelos sociais em virtude da inevitável multiplicação em seu interior de variáveis não raro incompatíveis entre si.

(1) — FRANCO JR., Hilário. — As Cruzadas (Col. "Tudo é História", nº 34). São Paulo, Brasiliense, 1981, 90 páginas "in-16º".
(2) — FRANCO JR., Hilário. — O Feudalismo (Col. "Tudo é História", nº 65). São Paulo, Brasiliense, 1983, 105 páginas "in-16º".
(3) — Ver a respeito V. DEODATO DA SILVA. — "Dos macro-modelos sociais em História: Georges Duby e os modos de produção da Idade Média", Anais da II Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. São Paulo, 1983, pp. 81-86 e "O modo de produção e os problemas de periodização da Idade Média", Relações Humanas (Revista do Instituto de Relações Sociais e Industriais) . São Bernardo do Campo, nº 5, 1985, pp. 143-155. Esperamos publicar ainda em breve livro que se encontra em fase final de redação, sob o título Mada de produção e trifuncionalidade social na Idade Média e na atualidade.
(4) — G. Duby. — Guerriers et paysans, VVIe.-XIIe. siècles. Prémier essor de l'économie europeéne. Paris, 1973. V. tb., do mesmo autor Les trois ordres ou l'imaginaire du jéodalisme. Paris, 1978.

Revista de História - USP

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Pão: Dize-me o que comes e eu te direi quem és


Pão: Dize-me o que comes e eu te direi quem és
Na Idade Média, a hierarquia da sociedade erarígida até na alimentação. Enquanto os nobres tinham asua disposição uma grande variedade de carnes, oscamponeses viviam à base de legumes e frutas
por Eliza Muto
Ele era uma das poucas unanimidades nas refeições da Europa medieval. Fosse na távola dos senhores ou na mesa dos camponeses, o pão estava sempre presente. Mas havia uma marcante diferença na aparência e no gosto do alimento, que variavam de acordo com o status de quem se sentava para comer. O pão branco, feito com o mais puro trigo, era reservado à alta sociedade. Macio, chegava fresquinho à mesa da aristocracia. Já o pão preto, feito com uma mistura de cereais rústicos e legumes secos (como cevada e ervilha), era o que restava aos plebeus.

A receita dos pobres era dura de engolir: a massa seca, preparada sob cinzas ou sobre uma placa de terracota aquecida, precisava ser mergulhada na água, no vinho ou em algum caldo para ser consumida mais facilmente. Esse tipo de distinção alimentar entre nobres e camponeses era comum na Idade Média, período que se estendeu do século 5 até o século 15. “A alimentação era uma questão social, marcada pelas diferenças entre as classes, especialmente a partir do século 9”, afirma Francisco José Silva Gomes, professor de História Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De acordo com as regras da época, os produtos do solo eram reservados aos camponeses. Essa camada mais baixa da sociedade, que correspondia a cerca de 90 por cento da população, tinha que cultivar as terras do senhor feudal, com a obrigação de prestar-lhe serviços e pagar-lhe diversos tributos em troca de proteção. Seus alimentos eram as leguminosas, os legumes e os cereais – com exceção do trigo, um luxo reservado às mesas dos ricos. Já as carnes, associadas à idéia de força e poder, eram praticamente exclusivas das classes dominantes.

O marco do início da Idade Média é o ano de 476, quando o Império Romano do Ocidente sucumbiu às invasões de diversos povos germânicos (como visigodos, vândalos e hunos). A mistura de culturas resultante, consolidada entre os séculos 11 e 13, ficou marcada na culinária medieval. Dos romanos, as principais heranças foram o pão, o vinho e o azeite – esses três alimentos, muito importantes na liturgia cristã, serviam de instrumentos para que a Igreja Católica pregasse sua fé.

Já os rústicos povos invasores, chamados de “bárbaros”, serviram de inspiração para as preferências (e para o comportamento) dos nobres medievais à mesa. A classe dominante tinha prazer em manter uma imagem de “selvageria”, comendo grandes porções de animais grelhados, temperados com especiarias e condimentos, preparados sem o uso de água ou recipientes. Fazendo isso, os nobres acreditavam se tornar mais fortes e viris. Para eles, comer não era a satisfação de uma necessidade fisiológica, mas um meio de reiterar, a cada refeição, a sua superioridade.

A mudança de costumes com a chegada dos germânicos incluiu também a valorização da caça, que era desprezada pelos romanos. Tentando privar os pobres do consumo da carne, a classe dominante transformou as florestas em um lugar reservado a seus exércitos particulares de caçadores. Era uma forma de manter bichos como cervos, porcos selvagens e faisões somente nas mesas da aristocracia. Mas, apesar dessa restrição, a carne às vezes aparecia no menu dos camponeses, graças à criação de animais domésticos – o cargo de guardador de porcos, por exemplo, era uma das ocupações mais valorizadas entre os camponeses da Idade Média. Assim como no caso do pão, o preparo da carne era diferente entre os camponeses e os senhores. “Enquanto os primeiros comiam, basicamente, carne cozida, acreditando assim tirar dela toda a substância possível, a nobreza preferia os assados, as carnes grelhadas diretamente sobre o fogo em grandes espetos ou grandes grelhas”, diz o historiador Massimo Montanari, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e organizador do livro História da Alimentação.

Gostinho de conchavo

O cardápio dos aristocratas era marcado pela abundância e grande variedade de carnes consumidas: desde as mais finas, como a de ganso, até as mais comuns, como a de carneiro. Os animais caçados contavam com a preferência de muitos nobres. Era o caso de Raimundo Berengário IV, marido de Petronila, a rainha de Catalunha e Aragão – territórios que hoje ficam na Espanha. Ele tinha o hábito de devorar tetrazes (aves de porte médio, comuns no hemisfério norte), assadas e inteiras. Entre suas iguarias prediletas estavam também as exóticas coxas e patas de urso.

Além das carnes, a dieta da nobreza incluía ovos e queijos diversos. Já os legumes e frutas eram vistos com profundo desprezo. Entre abril e agosto de 1189, o nobre Guillemette de Montcada visitou várias vezes o castelo de Sentmenat, na atual Espanha. O livro de despesas do local registrou que, durante os 43 dias que Montcada esteve por lá, ele chegou a comer couve e espinafre. Mas foi uma vez só. “As teorias da época consideravam alimentos de origem vegetal como de difícil digestão para os estômagos refinados da nobreza”, diz Antoni Riera-Melis, professor de História Medieval da Universidade de Barcelona.

Nas grandes festas, as refeições eram compostas de vários serviços – até seis – que, por sua vez, incluíam um grande número de pratos diferentes – até 15. Servidas em baixelas de metais preciosos, as receitas eram postas, sucessivamente, à mesa: primeiramente as sopas, seguidas de diversos pratos de assados e grelhados. Enquanto os convidados esperavam pelo próximo serviço de pratos principais, quitutes eram servidos. Munidos de uma faca – na época, o único utensílio de uso individual à mesa –, os convivas serviam-se dos pratos que estavam mais próximos. Naquelas grandes refeições, era praticamente impossível provar todas as numerosas iguarias à disposição.

Como a culinária medieval não era lá muito sofisticada, ninguém esperava pratos saborosos. Muitas vezes, a aparência dos alimentos importava mais para os nobres do que o próprio sabor: cozinheiros lançavam mão de uma ampla gama de cores para seduzir os famintos olhos da classe dominante. Ingredientes como a salsa tingiam os pratos de verde, enquanto os ovos e o açafrão deixavam as receitas douradas. “O vermelho era obtido a partir de produtos exóticos, como extrato de sândalo vermelho e uma resina de árvore chamada de sangue-de-dragão”, diz o historiador Bruno Laurioux, da Universidade Paris VIII.

Naquele mundo de aparências, qualquer ocasião era digna de transformar um jantar cotidiano em um festival gastronômico: as tradicionais datas comemorativas cristãs, as festas familiares ou os acordos políticos entre a classe dominante. Banquetes eram organizados quando indivíduos ou reinos selavam a paz, faziam alianças ou simplesmente reforçavam a continuidade de seus laços de amizade. Se o gosto da comida não era lá essas coisas, tudo bem: o importante era reunir as pessoas para comer e beber. O ato de dividir a mesa era uma reafirmação de lealdade entre os nobres.

Pobreza saudável

Diante das orgias alimentares da nobreza, pode parecer que os servos tinham uma vida miserável. Em matéria de comida, pelo menos, não era bem assim. Um estudo da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, verificou que os habitantes do norte da Europa que viveram durante a Alta Idade Média (entre os séculos 5 a 10) tinham, em média, 1,73 metro de altura. Ou seja: eram quase tão altos quanto seus descendentes de hoje – o que indica que sua dieta permitia bom desenvolvimento corporal. “Os pobres da Idade Média tinham uma alimentação muito melhor do que supúnhamos, pois era bem balanceada, à base de legumes, frutas e peixes”, explica o medievalista Ricardo da Costa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

Se os pratos das classes populares não eram requintados, pelo menos eram muito nutritivos. Nas sopas, preparadas em caldeirões pendurados numa corrente ou colocados diretamente nas brasas, havia um pouco de tudo: leguminosas como favas e ervilhas, legumes como cenoura e cebola e, quando possível, um naco de carne. Era comum o caldo ficar cozinhando durante dias: à medida que ia sendo servido, também ia sendo engrossado com novos ingredientes.

Além do pão, outro alimento de consumo diário que a elite compartilhava com os camponeses era o vinho. Na Idade Média, o consumo da bebida se estendia por toda a Europa cristã. Assim como no caso do pão, a qualidade do vinho também variava de acordo com a classe social – as melhores uvas eram, naturalmente, reservadas aos senhores. Entretanto, na região onde hoje fica a Alemanha, o vinho rivalizava em preferência com a cerveja. Na verdade, ela ainda era uma bebida densa e doce, que só muito mais tarde, com a adição do lúpulo, se tornaria o líquido claro e transparente que conhecemos. De modo geral, os habitantes da Europa medieval ingeriam grandes quantidades de bebida alcoólica. Não só pelo prazer, mas também por questões higiênicas. “A água, portadora de germes e doenças, inspirava pouca confiança”, diz Massimo Montanari. “Toda a literatura medieval revela uma profunda desconfiança a seu respeito.” Na Idade Média, era comum que o vinho fosse misturado à água. O objetivo era purificá-la. “Mais do que um sinal de bom gosto, era uma medida de prevenção sanitária”, afirma Montanari.



O peixe nosso de cada dia
Em boa partedo ano, a carne vermelhaera proibida
A voracidade carnívora dos nobres medievais não era ilimitada. Ela esbarrava nas regras da todo-poderosa Igreja Católica, que proibia o consumo de carne vermelha nos dias religiosos – e, na Idade Média, eles eram muitos. “O jejum da Quaresma, costume que se iniciara no século 4, foi prolongado para 40 dias e, além dele, havia o jejum das sextas-feiras, dia da crucifixão de Cristo”, conta o jornalista Mark Kurlansky no livro Sal: uma História do Mundo. Assim, boa parte do ano estava destinada ao consumo de animais encontrados na água, o que também incluía os mamíferos marinhos. A carne de baleia geralmente era reservada aos ricos (a parte que fazia mais sucesso entre eles era a língua). Para os camponeses sobrava o craspois: uma tira das áreas mais gordas do corpo do animal. Mas esse toicinho de baleia não era lá muito apetitoso. “Diziam que, mesmo depois de passar o dia inteiro no fogo, o craspois continuava duro e áspero”, afirma Kurlansky. Além dos cetáceos, outro habitante dos mares ganhou a simpatia dos europeus medievais: o bacalhau do Atlântico. Sua carne branca é ideal para ser salgada para conservação, já que praticamente não apresenta gordura – tecido que dificulta a fixação do sal na carne. Em tempos em que ainda não existia geladeira, essa era uma questão de grande importância. Por causa dessa característica, o bacalhau entrou no repertório da maioria das cozinhas européias – incluindo os países do sul do continente, onde não se encontrava o peixe fresco.

Como nos velhos tempos
Experimente o legítimosabor da Idade Média
Apesar de serem feitos com ingredientes bastante diferentes, os pratos comidos por nobres e plebeus tinham uma característica comum: a simplicidade. “Naquele período, em que o prazer foi muito oprimido pela religião, os pratos eram básicos, preparados com ingredientes locais, facilmente disponíveis”, afirma o chef Alessandro Nicola, professor de Gastronomia do Centro Universitário Senac, de São Paulo. Exemplo disso eram as sopas dos camponeses, receitas elementares que remetem a uma culinária de poucos recursos. Bastava juntar alguns legumes a uma carcaça de animal e cozinhar tudo por algumas horas (ou dias). O caldeirão ficava na sala, não na cozinha: reunidos em torno do fogo, os camponeses se aqueciam do rigoroso inverno europeu tomando um caldo quente. Do lado dos nobres, o faisão era uma das mais apreciadas iguarias. As aves eram perseguidas e capturadas no interior das florestas. Uma vez abatidas, eram limpas e deixadas de molho na cerveja durante dias, antes de ser assadas diretamente sobre o fogo em espetos. A mistura com a bebida não servia para dar um sabor especial à carne: era apenas um modo de conservá-la por mais tempo. A cerveja evitava que a carne apodrecesse, mas fazia com que ela fermentasse – deixando-a com um sabor intragável para os padrões atuais. A seguir, você vai ter a oportunidade de sentir um gostinho de Idade Média. Se estiver num clima camponês, escolha a sopa. Se preferir dar um ar de nobreza à sua vida, vá de faisão (não estranhe o uso de geladeira no preparo: o clima brasileiro é muito quente para que a ave fique de molho sem estragar). Qualquer que seja sua escolha, uma regra de etiqueta medieval é indispensável: nada de usar garfo.

Faisão marinado em cerveja*

Ingredientes

1 faisão limpo

70 g de aipo-rábano

200 g de cebola picada

1 colher de sopa de zimbro

10 folhas de louro

1 litro de cerveja rústica

1 colher de sopa de sal

200 g de banha de porco

2 pães italianos bem rústicos

Modo de preparo

1. Junte o aipo-rábano, a cebola, o zimbro, o louro e a cerveja. Deixe marinar por, no mínimo, 24 horas em geladeira (o ideal é chegar a 72).

2. Retire a marinada e seque bem o faisão. Reserve a marinada separada.

3. Cubra o faisão com a banha e leve-o ao forno (160ºC) até começar a dourar.

4. Regue o faisão com a marinada.

5. Continue regando a ave com a marinada e a banha derretida até assar por completo.

6. Sirva a carne quente ou morna, acompanhada de pão rústico (para passar no molho que se formou na assadeira).

*Receitas elaboradas pelo chef Alessandro Nicola e preparadas por Lucas Medina, do centro universitário Senac em São Paulo

Sopa

Ingredientes

50 g de gordura de porco picada

70 g de cebola picada

4 colheres de sopa de vinagre de maçã

300 g de repolho branco ralado

300 g de beterraba ralada

200 g de cenoura ralada

100 g de aipo-rábano ralado

1 pé de porco

3 dentes de alho descascado

3 folhas de louro

2 maçãs raladas

10 sementes de zimbro

3 litros de água

Sal a gosto

Modo de preparo

1. Derreta a gordura e refogue a cebola e o pé de porco.

2. Acrescente os demais ingredientes e cozinhe por 4 horas, sem ferver.

3. Acerte o sal e sirva.


Fome do cão
Em caso de emergência,o melhor amigo do homemacabava indo para a panela
Durante séculos, cachorros encheram a barriga dos habitantes da cidade medieval de Carrickfergus, na Irlanda do Norte. Foi o que verificou o arqueólogo Ruairi O’Baoill, responsável pelas escavações no local, que fica a cerca de 16 quilômetros da capital norte-irlandesa, Belfast. Após analisar centenas de esqueletos caninos encontrados em antigos depósitos de lixo da cidade medieval, O’Baoill descobriu que muitos ossos haviam sido talhados pelas facas de açougueiros. “A presença dessas marcas nos restos dos animais é um sinal claro de que a carcaça era processada para a alimentação”, afirmou o arqueólogo na revista irlandesa Archaeology Ireland. Mas, para a sorte dos cachorros, talvez eles não tenham sido sempre o prato do dia em Carrickfergus. Fontes históricas indicam que a carne desses animais só era consumida em situações extremas, como durante períodos de fome ou guerra prolongada – a cidade irlandesa sofreu diversos cercos e ataques durante a Idade Média. “É possível que a alta concentração de ossos caninos esteja relacionada a um ou mais episódios de conflito”, escreveu O’Baoill.

Saiba mais
Livros

História da Alimentação, Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (orgs.), Estação Liberdade, São Paulo, 1998 - Constrói uma história geral da alimentação, desde a Pré-história até os dias de hoje. Artigos assinados por historiadores relacionam a alimentação com a sociedade em várias épocas.

Sal: uma História do Mundo, Mark Kurlansky, Senac, São Paulo, 2004 - O jornalista Kurlansky conta como o sal influenciou os hábitos alimentares de diversas civilizações, fosse para temperar, fosse para conservar a comida.

Revista Aventuras na História

Paraísos Medievais – esboço para uma tipologia dos lugares de recompensa dos justos no final da Idade Média

Paulo Roberto Soares de Deus (UnB)
Este artigo tem por objetivo refletir sobre as concepções medievais acerca do Paraíso, e mais especificamente estabelecer uma tipologia mínima dos lugares que esta palavra designava na Baixa Idade Média. Esta não pretende ser definitiva, tendo em vista que ao longo do medievo a ambivalência dos símbolos era a única constante possível em suas leituras.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que o Paraíso era um símbolo, um elemento que ligava os homens a Deus, cuja descrição sempre era plena de alegorias e tinha, acima de tudo, um sentido moral e edificante. Mas isto não implica que o símbolo não possuísse existência concreta. Para os medievais toda a Criação era obra da Sabedoria Divina, assim, tudo o que havia no mundus correspondia a um sentido específico atribuído pelo Criador. A própria palavra mundus que, como substantivo, traduz-se por Universo, também podia ser lida como adjetivo e significar beleza e ordem. Toda a organização do cosmos correspondia aos desejos de Deus e a uma ordem pré-estabelecida. O Universo era percebido como uma casca fechada, finita, formada pela Terra e as demais esferas celestes, circundadas por um campo de estrelas, além do qual estava o Empíreo, lar da Substância Divina. Comparações do Universo a um ovo eram relativamente comuns nos tratados de cosmologia do período, como por exemplo na Semeiança del mundo, texto ibérico do século XIII que se define como uma cópia do Líber Mapa Mundi de Santo Isidoro, e diz: “Mundus atanto quiere dezir de toda parte mouido, por razon que se mueue; e la semeiança del mundo es em semeiança de pella et es em semeiança de ovo” (BULL & WILLIAMS, ed., 1959: 52). Dentro deste espaço apertava-se toda a Criação, todas as estrelas, planetas, continentes, ilhas, cidades, plantas e animais, todos os elementos.

“pero es departida por sus helementos; et assi como el uevo es cercado de cassco, e de dentro acerca del cassco es encerrada la albura, desi acerca del abura es la gema e e[n] medio de la iema es otro poco, asi como gota de sangre quaiada. Otrossi el mundo a essa semeiança: es cercado de toda parte del cielo e ... es encerrado purus ether, que es aquel elemento que nos llamamos fuego, assi como la albura es acerca del cassco; desende el ayre acerca del fuego segundo que es la gema acerca de la albura; desende es cercada la tierra del ayre, assi como la gota es uermida en medio de la gema” (Idem, Ibidem).

A disposição do cosmos pode ser vista em ilustrações de livros do período, como as Crônicas de Nuremberg ou no Liber Divinorum Operum de Hildegarda de Bingen.

Figura 1: Liber Divinorum Operum. Hildegarda de Bingen, século XII. A disposição dos quatro elementos, fogo, ar, água e terra

Figura 2: Das Buch der Croniken, Hartmann Schedel, Nuremberg, 1493. In-fol. BNF, Réserve des livres rares, Rés. G.505. As esferas concêntricas que formam o mundus

Tudo estava disposto em uma ordem e em um específico lugar pela Sabedoria de Deus, cada coisa com um propósito e um sentido. O mundo era como um vasto livro, que deveria ser lido e interpretado. Neste livro havia um capítulo para a Salvação e a Recompensa dos Justos, feita no Paraíso. Este precisava, pois, ocupar um espaço no cosmos. Mas sob esta palavra encontravam-se realidades distintas – sentidos distintos. A cada sentido o Paraíso adaptava-se. A cada prédica a descrição deste lugar de recompensa plasticamente transformava-se e se adequava ao significado que deveria carregar. Ao contrário do que dizia Barthes (2001: 179), o significado era o significante. Esta plasticidade, natural e esperada nos símbolos, não implica na impossibilidade de rastrear e estabelecer uma caracterização geral. Guarde-se, apenas, que esta será sempre ideal, marcará as margens do símbolo, mas nunca seu volume ou seu curso.

1. Sociedade e focos culturais na Baixa Idade Média

A Idade Média, ao longo de seus mil anos, apresentou períodos de crescimento e decadência de meios materiais, com conseqüentes variações sociais. Assim, não se pode falar em sociedade medieval, mas em sociedades que se seguiram no tempo. O alvorecer do século XII presenciou o nascimento de uma nova sociedade, no entanto e obviamente, gestada nos séculos anteriores.

Um período de crescimento demográfico e produtivo já vinha se consolidando desde meados do século X. Assim, o Ocidente finalmente começou a sair do período de decadência produtiva e populacional que se iniciou ainda no processo de desagregação do Império Romano. Com este implemento em suas capacidades, no final do século XI a postura defensiva do Ocidente também mudou, pois de agredido passou a agressor, com o início do movimento das Cruzadas.

O século XII nasceu com as Cruzadas, talvez seu evento mais dramático, mas certamente não o único de relevância à História. Neste mesmo século ocorreu o surto de urbanização medieval e o nascimento das universidades, criando ambientes onde a produção cultural foi dinamizada. Necessitava-se mais da escrita, tanto para o controle contábil das atividades mercantis e da tesouraria real como para se conhecer as obras de filósofos clássicos e padres da Igreja, estudados nos Studia Generalia. Paralelamente a esta ‘literatura profissional', a quantidade de contos e histórias de reis, magos e batalhas também aumentou, não apenas com a função de narrar a história das comunidades, mas também de divertir e educar um conjunto social que se diversificava, ampliava e ganhava relevância na criação de produtos e manifestações culturais que escapavam da oralidade plena, os leigos.

Walter Ong (1998) estabelece dois tipos básicos de oralidade. A oralidade primária, de sociedades completamente ágrafas, e a oralidade secundária, de sociedades em que as manifestações orais ocorrem submetidas às regras da escrita. No primeiro tipo de oralidade as palavras não se submetem à subjetividade, sendo percebidas como inseparáveis da realidade a que se referem – tornam-se análogas às coisas que pretendem representar. O caráter analógico do pensamento medieval foi ressaltado por Franco Jr. (2003) como padrão necessário para se entender os procedimentos de interpretação dos símbolos do período. Ainda neste tipo de oralidade, a palavra precisa ser ritualizada, caso contrário seria dominada pela subjetividade de seu pronunciador. A exigência do ritual resulta numa certa anulação do tempo. A palavra falada é sempre aqui e agora, refere-se sempre a uma atualização. O passado ainda existe, mas seus contornos tornam-se menos delineados e sua inserção no presente é muito forte. Já a oralidade secundária separa a palavra de sua enunciação vocal. O texto passa a existir em um contexto próprio, independente do falante. Do mesmo modo o tempo pode espraiar-se por limites mais amplos. Sua própria percepção muda, pois passa a reproduzir a maneira sintagmática da organização das idéias e palavras em um texto escrito – se as idéias e palavras obtêm seu sentido da seqüência em que se inserem, o próprio tempo passa a se organizar de uma maneira seqüencial. Os limites entre passado e presente tornam-se mais delineados.

Paul Zumthor (2001) considera que para a Idade Média pode-se falar em uma oralidade mista, onde formas plenamente orais conviviam com a escrita. Toda a organização do pensamento medieval passa pela tensão entre estes dois tipos de oralidade. Entendê-la como ‘mista' não implica compreender a lógica dos medievais como uma soma de elementos das duas oralidades nem como um equilíbrio entre ambas – num falso ‘caminho do meio'. Todavia, a estrutura mental dos medievais submetia-se à constante tensão entre duas maneiras diferentes de ordenar as idéias e de apresentá-las. Na oralidade mista a vocalização é inseparável dos sentidos das palavras (ZUMTHOR, 2001) – o texto escrito ainda não é plenamente autônomo, mas sua existência já sugere que a vocalização se submete a limites cada vez mais estreitos, sem a necessidade de grandes ritualizações, e também a uma lógica cada vez mais linear ou sintagmática. Nestas diferentes oralidades assentava-se a grande divisão cultural do medievo. Em grande parte da Idade Média a escrita foi um quase monopólio do clero, restando aos leigos apenas as manifestações orais. A partir do século XII, porém, dinamiza-se um processo em que os leigos começam a abandonar um padrão cultural dominado pela oralidade primária e passam a seguir modelos inseridos numa oralidade mista. Não só o padrão cultural dos leigos muda como seus produtos passam a ganhar longevidade em suportes escritos.

Tradicionalmente estabelece-se que os medievais se dividiam em duas ordens básicas, os clérigos e os leigos. Por volta do século X, contudo, com as alterações promovidas pela crescente feudalização, surgiram propostas que estabeleceram as célebres três ordens, os oratores, os bellatores e os laboratores (LE GOFF, 1985: 75-84). As diferenças entre as duas últimas, porém, diziam mais a respeito ao grau de liberdade e poder que às habilidades culturais, crenças e valores. Neste ponto, o fosso alargava-se entre aqueles que integravam o clero, e seguiam seu peculiar estilo de vida em que as letras tinham presença importante, e aqueles que não o integravam, e em que as letras tinham uma presença secundária. Havia, pois, um foco cultural letrado e outro iletrado, mas que compartilhavam o mesmo campo de cultura. É claro que as realidades idiossincráticas denunciam este esquema por seu simplismo, mas em termos gerais era esta a grande divisão cultural do medievo.

O verdadeiro fervilhar intelectual do século XII foi acompanhado por um crescimento da atividade cultural laica. A cultura letrada começou a deixar de ser um privilégio do clero. Com o enriquecimento provocado pelo comércio e o crescente fortalecimento das monarquias (ou a crescente busca por este fortalecimento), os segmentos laicos da sociedade passaram, se não a produzir mais, ao menos a apresentar seus próprios produtos culturais em suportes mais duráveis. Jacques Le Goff fala em impulso folclórico (1985: 259) para este momento em que características, representações e manifestações culturais leigas ganharam visibilidade. Para ele a cultura medieval se dividia em dois estratos básicos, a cultura clerical e as tradições folclóricas (LE GOFF, 1985: 207-219). A primeira corresponde à produção intelectual realizada no interior dos meios eclesiásticos; a segunda seria a produção de fenômenos culturais por parte dos segmentos não eruditos (portanto iletrados) da sociedade. De determinados pontos de vista, como aspectos da ideologia e da maneira de vivenciar o cotidiano, estas culturas apresentavam oposições, mas do ponto de vista religioso o cristianismo as unia (FRANCO Jr., 1996: 73). Apesar de diferentes em suas realizações, estas culturas compartilhavam um fundo comum de crenças. A preocupação com a Salvação da alma era um dos pontos de coesão.

Partindo-se do pressuposto que a escrita, a pintura e a escultura, assim como outras modalidades da produção de artefatos de cultura, estavam sob controle mais ou menos estrito do clero, a cultura folclórica define-se pela negativa, pois seria toda a produção cultural que transcorresse fora dos meios clericais, ou fora de sua tutela direta (LE GOFF, 1985: 207-219; 221-261).

O impulso folclórico marcou o século XII como uma reação da cultura laica contra a hegemonia dos padrões clericais. De certo modo, ainda marcada por elementos pagãos, a cultura folclórica teria feito reviver ou dado novo ânimo a materiais pré-cristãos. Contudo, esses elementos persistiam de uma forma quase apenas literária, pois o processo de cristianização do Ocidente, iniciado ainda na Antigüidade, já havia alterado seus significados e funções originais. A reação folclórica (termo posteriormente preferido por Le Goff) teria se constituído em uma relativa ‘paganização', ou inserção de elementos não-estritamente-cristãos das crenças populares em fenômenos culturais cristãos mais ortodoxos (LE GOFF, 1990: 19-37). Quase um processo inverso à cristianização de lendas pagãs por parte dos clérigos ocorrida nos séculos anteriores, num esforço de facilitar a conversão. A reação não tinha, todavia, um caráter de planejamento, constituindo-se no surgimento natural de um novo padrão de construção cultural.

O fortalecimento dos segmentos laicos da sociedade medieval e os novos padrões culturais desenvolvidos neste processo trouxeram consigo alterações na espiritualidade. A Salvação sempre foi a grande dúvida e o grande sonho da cristandade medieval, mas esta foi por muito tempo entendida como coletiva; um povo – o povo escolhido – seria salvo, e este povo obviamente deveria ser constituído pelos seguidores do cristianismo. Todavia, nem todos os cristãos teriam sua Salvação assegurada. Todos os homens e mulheres são culpados pelo Pecado Original, que mesmo redimido por Cristo em Seu sacrifício na cruz, nunca deixou de fazer parte da natureza humana, assim, era muito fácil perder o caminho para o Reino dos Céus, bastava ao homem cair em tentação e dar vazão a seus desejos, naturalmente pecaminosos. A Salvação era garantida quase exclusivamente aos que possuíam uma vida beatífica, a saber, os clérigos, já que o ascetismo era o caminho a ser seguido por quem buscasse o Paraíso (ZIERER, 2002: §4). A vida dos leigos era marcada pela angústia da iminente Condenação – o que se amplia com a Reforma religiosa do século XII, quando a Igreja delimitou mais rigidamente suas fronteiras com o saeculum, provocando em retorno uma laicização da sociedade. Os maiores espaços sociais conseguidos pelos leigos se refletiram na busca de novos e maiores espaços religiosos, que deveriam caber na vida mundana dos não-clérigos. No século XII buscavam-se novos ambientes de atuação religiosa, cada vez mais próximos do mundano (BOLTON, 1986; VAUCHEZ, 1995). A preocupação com a Salvação crescia.

A dúvida se o destino do indivíduo seria o Céu com suas delícias paradisíacas ou a danação no fogo do Inferno não abandonava a mente do crente, do mesmo modo a lembrança do Pecado Original, o crime que marcou a origem da humanidade, e suas conseqüências, sendo a mais grave a própria perda da condição edênica de pureza e quase perfeição. Com a Queda, as portas do Céu se fecharam aos homens, e se abriram as do Inferno. Mas Cristo trouxe a mudança. Com sua morte na cruz o Paraíso foi reaberto. “[Jesus] abriu-nos a entrada do Paraíso, donde Adão fôra expulso...”, Santo Atanásio (Expositio Fidei. 1: Patr. Gr., t. 25: 201, apud. Delumeau, 1998: 40), “Deus abriu-nos hoje [dia da crucificação] o Paraíso fechado há mais de cinco mil anos”, João Crisóstomo (De cruce et ladrone. Patr. Gr., t. 49: 401, apud. Delumeau, idem).


Figura 3: A ilha do Paraíso Terrestre no mapa-múndi de Hereford, final do século XIII. Cópia facsimile, Wychwood Editions. Vê-se Adão e Eva diante da árvore do conhecimento, falando com a serpente. Fora do paraíso, logo abaixo e à direita, vê-se um anjo com uma espada ameaçando o Primeiro Casal que, em atitude submissa, afasta-se. O paraíso está em uma ilha, é cercado por muros e uma parede de fogo – o retorno parece impossível.

Entretanto, dúvidas se punham: qual seria o momento do Julgamento? Mesmo sendo a Salvação coletiva, o Julgamento também o seria? Em Lucas, cap. 23 ver. 43, Jesus promete ao ladrão que estava sendo crucificado a seu lado “hoje estarás comigo no Paraíso”, o acesso ao Céu seria, portanto, imediato. Mas em Mateus, cap. 25, ver. 31-32-46, está escrito “Quando o Filho do Homem vier em sua glória [...] serão reunidas em sua presença todas as nações, e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos [...] e irão estes [os pecadores] para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (itálicos conforme edição consultada da Bíblia), então a bem-aventurança só seria conseguida com a Segunda Vinda de Cristo. Aqui se abriu uma possibilidade para interpretações diversas, mas a predominante foi a que diferenciou o Paraíso ‘Reino de Deus' (a vida eterna de S. Mateus), criado apenas para os justos depois do Julgamento Final, do Paraíso ‘lugar de espera', reaberto por Cristo na cruz. Entretanto, essa posição, apesar de predominante, não era consensual, alguns autores não faziam esta diferença, vendo nos dois Paraísos apenas um, como João Damasceno (Homilia III: Patr. Gr., t. 96, cf. Delumeau, idem). Estes textos foram produzidos entre os séculos V e VIII, em grego e latim, baseando-se nas concepções anteriores e servindo de base para as reflexões teológicas posteriores.

De qualquer modo, os tratados religiosos, escritos em latim, estavam por demais afastados da população em geral. Como ficavam os indivíduos leigos e iletrados, inseguros de seu destino no pós-morte? Era necessário, então, recorrer à sabedoria popular, ou seja, ao conjunto das tradições pré-cristãs, aos mitos e sagas contadas geração após geração (GUREVICH, 1982). No entanto, estas histórias haviam passado por uma reelaboração feita pelo pensamento cristão da Alta Idade Média, uma vez que foram usadas conscientemente pelo clero com finalidade de catequese ao se buscar similaridades formais em que os dogmas cristãos pudessem encontrar espaço (LE GOFF, 1994: 142). As imagens criadas a partir destas histórias (ou mitos) agora pertenciam a um sistema de pensamento eminentemente cristão, em que pese as diferenças entre o cristianismo letrado e o iletrado (BROWN, 1999).

Esse processo foi explorado por Le Goff que o dividiu em três fases (1985: 213-214), a destruição, que era a atitude básica do clero em relação aos temas propriamente folclóricos, a obliteração, que era a substituição dos elementos folclóricos por clericais, e finalmente a desnaturação, que era a mudança de significado dos temas folclóricos e sua nova leitura definitivamente cristã. Exemplos deste processo podem ser vistos na Cruz de São Patrício, que incorpora um elemento solar, assim como a data de 25 de Dezembro, ou na carta do papa Gregório Magno ao abade Melito, de 601, inserida por Beda na História Eclesiástica das Gentes dos Anglos (STEVENSON, ed., 1964: 79-80). Nesta carta o papa recomenda que os templos pagãos não sejam destruídos, apenas as imagens de deuses em seu interior, que deve ser aspergido com água benta pois “é necessário que se convertam do culto aos demônios para o culto ao verdadeiro Deus” [necesse est ut a cultu daemonum in obsequium veri Dei debeat commutari]. Assim, para a difusão das idéias essenciais da religião cristã foi necessária a manutenção de elementos formais de crenças não cristãs. Nas narrativas de viagens e visões do Além se encontram as características do Paraíso e os significados que formam o significante. Estas são permeadas por elementos de diversas origens, mas que se articulam em um todo coerente capaz de aproximar tradições tão diferentes como a letrada cultura do clero e a iletrada cultura das massas camponesas – pertencem ao mesmo campo, mas articulam-se de maneiras diferentes.

2. Narrativas, visões e o Além

Um dos mais populares gêneros da literatura medieval, justamente porque se utilizava largamente da herança pré-cristã, eram as histórias de viagem e visões do Além. Jacques Le Goff organizou um “esboço para uma história sociocultural das viagens ao Além” (1994: 142), onde caracteriza os séculos VII a X como de filtragem e cristianização destas histórias, e os X a XII como a revanche, quando os leigos se utilizaram destas histórias cristianizadas e as coloriram com elementos para satisfação de necessidades mais mundanas que a conversão, como a mera diversão ou a transmissão de mensagens morais, não de fundo puramente religioso, mas ligadas à sociedade cavaleiresca e a valores como a fidelidade e a coragem.

Mas não devemos, contudo, crer que a cristandade só utilizou estas histórias por inspiração de narrativas pagãs, desde sempre os cristãos possuíram histórias para glorificar seus mártires, levantar o moral e passar ensinamentos. Uma das mais antigas visões é a Narrativa de Zózimo, escrita no século III. O eremita Zózimo jejuou por quarenta anos no deserto e pediu para que Deus o permitisse ver a vida dos bem-aventurados, ou seja, daqueles que desfrutam dos prazeres do Paraíso. Foi levado por um anjo até as margens de um rio, cujas águas lhe falaram que nenhum homem pode atravessá-las, e uma nuvem lhe repetiu o mesmo, afirmando que nem mesmo a luz do sol por ali podia seguir. Zózimo ajoelhou-se e rezou. Como resposta à sua súplica, uma árvore se curvou e o levou para o outro lado. Na outra margem encontrou um homem despido que disse ser um dos abençoados e o levou ao encontro dos outros, que lhe contaram seu modo de vida, sem pecado. Zózimo voltou à sua caverna e após viver mais trinta e seis anos os anjos de Deus o levaram “como aos bem-aventurados” (Cf. tradução de ROBERTS & DONALDSON, 1951).

Outra história do século III narra a visão que Víbia Perpétua teve em sonho. A mártir foi uma cristã que viveu em Cartago até o dia 7 de Março do ano 203, quando foi martirizada com 21 ou 22 anos de idade. Antes de sua morte, no entanto, descreveu a seu pai uma visão. Em um espaço sem limites claros, viu diante de si uma escada de bronze que se erguia até o céu e levava a um grande jardim. A escada era ladeada por lâminas de todo o tipo e subi-la deveria ser feito com cuidado. Abaixo da escada havia um enorme dragão, que ameaçava os que caíam. Após subir a escada, evitando ser mordida pelo dragão, Perpétua viu um homem em roupas de pastor sentado em um trono e havia a seu redor milhares de pessoas que vestiam branco e rendiam graças a Deus (Cf. tradução inglesa de W. H. Shewring, reimpressa por Sara MAITLAND, 1996).

Além destas visões, poucas foram produzidas nos séculos iniciais do cristianismo. Após o século III há quase uma estagnação quanto a este tipo de literatura, que só reaparece depois do século VII, nas obras de Beda e São Bonifácio (PATCH, 1956: 40 e ss.). Contudo, este período de estagnação não foi estático, pois correspondeu ao momento de conformação e mistura dos elementos cristãos e pré-cristãos do Ocidente, formadores de um novo substrato que, por sua vez, originou os relatos escritos posteriores e a nova geografia do Além – uma geografia originalmente medieval. Apesar disso, Le Goff considera ter havido uma “aparente estagnação da reflexão sobre o Além”, que se estenderia até o início do século XII (1993: 121-125). Ao fazer esta afirmativa, o medievalista francês estava pensando em seu objeto de estudo àquela altura, o Purgatório, que não identifica nos relatos acerca do Outro Mundo daquela época, por ele caracterizada como produtora de uma série quase ininterrupta de viagens e visões do Além, mas “destinada a um novo auditório com mais apetência por pitoresco do que por esclarecimentos” (Idem: 122). É, todavia, este mesmo autor quem chama a atenção para que naquele período “se pode seguir a constituição de um material imaginário, vê-lo enriquecer-se ou decantar-se” (Idem, ibidem). Constitui-se, assim, naquele momento, um núcleo duro de elementos que se repetiram em todos os relatos visionários acerca do Paraíso: o clima sempre agradável, árvores opulentas, um ou mais rios, uma fragrância deliciosa no ar, uma barreira que o aparta do mundo, um jardim e ... a morte. O paraíso não é para os vivos, apesar de ser para os homens.

Os mortos devem, contudo, esperar uma permissão pois as delícias do Éden não se destinam a todos os homens. A entrada no jardim das delícias só é permitida aos que a merecem. Mas uma dúvida persiste: quando ocorre o julgamento, logo após a morte do indivíduo ou só com a Parusia? De acordo com Philippe Ariès (1985), a partir de estudos das representações iconográficas da Alta Idade Média sobre o fim dos tempos, a idéia de julgamento individual não existiria, pois todos os cristãos seriam salvos, cabendo a punição eterna apenas aos pagãos. O Julgamento individual só passaria a ter importância a partir das representações posteriores ao século XII, quando a noção de indivíduo, como ser para si e apartado de sua comunidade, teria se formado e a biografia passado a se ligar à idéia do Julgamento.


Figura 4: Os portões de Jerusalém Celeste, para onde se encaminham os Salvos, após o Julgamento Final quando se levantam de seus caixões. O cortejo é guiado por um anjo. Vê-se os portões abertos, um alto muro, mas não se vê o interior. Mapa-múndi de Hereford, facsimile, Wychwood Editions.

Aron Gurevich (1982) considera que a perspectiva de Ariès é parcial, pois teria privilegiado como fontes os “teóricos da teologia” (Idem: 158), o que lhe permitiria contemplar apenas o segmento erudito da sociedade, faltando-lhes analisar as crenças populares. Um caminho para um estudo que levasse em conta essas crenças foi seguido, ainda segundo Gurevich, por Hughes Neveux ao comparar as respostas dadas por habitantes de Montaillou à Inquisição concernentes a suas concepções do destino humano após a morte (no fim do século XIII/início do XIV) com as manifestações correspondentes encontradas na Legenda Dourada, escrita por Jacopo de Varazze em meados do século XIII. Compilação de histórias escritas em diversas épocas, a obra de Varazze teria o mérito de não as misturar e não as modificar pois teria sido fiel às suas fontes, o que permitiria uma visão de conjunto das concepções medievais acerca do Além (NEVEUX, 1979: 248-249). A confrontação destas duas fontes permitiu a Neveux encontrar um “fundo comum de crenças” (Idem: 257) acerca do imediato pós-morte na Idade Média, que seriam: 1) a biografia do indivíduo não termina com o seu passamento, se prolongando por um Outro Mundo; 2) com a morte a alma padece de sofrimentos pois atacada por demônios; esses sofrimentos só podem ser evitados pela Salvação, ou entrada no Paraíso, definida negativamente, pois seria a ausência dos problemas terrestres e do sofrimento provocado por demônios, mas deixa em aberto a questão de quando o julgamento que garante a salvação se processa.


Figura 5: Combate entre anjo e demônio pela alma de um morto. Mss. latino 9471, f. 159, BNF. In: DUBY, Georges. Ano 1000 – ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1997.

Hughes Neveux defende a existência de duas tradições quanto à definição do que é Salvação: o Repouso e a Assunção. A primeira se definiria como um sono ou uma espera inerte até a Segunda Vinda de Cristo, exemplificada dentro da Legenda Dourada pela história de uma mulher que, não querendo contar seu pecado a ninguém, dada sua gravidade, recebe conselho de Sancto Johanne Eleemosinario (São João, Esmoler, na tradução de Hilário Franco Jr.) para o escrever em um bilhete e lacrá-lo para que só ele o leia. Ela o faz imediatamente, mas o santo morre deixando-a desesperada imaginando que outro leria sobre seu pecado. A mulher visita sua tumba onde suplica e chora até que São João lhe aparece e diz onde guardou o bilhete para que ela possa recuperá-lo, não sem antes recriminá-la por tê-lo tirado de seu repouso dizendo-lhe “por que nos incomoda tanto e não permite a mim ou aos santos que se encontram comigo que repousemos?” (na tradução francesa de Neveux, idem: 254, a tradução brasileira de Franco Jr., 2003: 204, diz “por que nos importunar assim e não nos deixar repousar, eu e os santos que estão comigo?).

Na segunda tradição, as almas seriam levadas por anjos que as protegeriam do assalto de demônios que as quereriam para si. Para a corroborar esta tradição existe a história narrada por Beda (Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, Livro V, cap. XIII), de um leigo que, nunca tendo confessado ou se arrependido de seus pecados, caiu doente. Em seu leito foi visitado pelo rei Conrado, seu amigo, que o exortava a se arrepender e confessar, mas o doente, com terríveis dores, se recusava. Não queria que acreditassem que o faria apenas por medo da morte. Beda afirma que esta aparente bravura já era resultado de uma atuação do demônio. Quando de uma segunda visita, o rei viu seu amigo ainda mais debilitado e choroso, afirmando que agora via toda a extensão de seus pecados e que nada mais poderia ser feito por ele. Diante de tal quadro o rei pergunta qual o sentido daquele desespero, ao que o homem responde ter sido visitado por dois belos jovens de branco, um se pôs aos pés da cama e o outro atrás. Um deles lhe deu um pequeno e curioso livro para ler. Nele estavam contidas as suas boas ações, que eram poucas e de pouca monta. Quando terminou de ler, eles recuperaram o livro e permaneceram em silêncio. Neste mesmo instante, com barulho e estardalhaço, entraram no quarto vários demônios, o mais assustador de todos, aparentemente o chefe, tomou um livro de grande tamanho e inacreditável peso, deu-o a um dos seus para que o entregasse ao homem para ler. Era o livro de seus pecados. Não só as más ações que cometeu, mas mesmo seus pensamentos estavam escritos em letras negras. O chefe dos demônios se dirigiu rispidamente aos dois homens de branco perguntando o que faziam lá, pois o leigo era deles. Os dois homens concordaram, afirmando que ele deveria ser levado e acrescido ao número dos condenados. Depois disto desapareceram. Dois demônios espetaram-lhe tridentes em sua cabeça e nos pés, que agora doíam de maneira inacreditável. Naquele mesmo dia o homem morreu.

Histórias como estas duas eram contadas e repetidas ao redor de fogueiras e em púlpitos, tinham a função de divertir a comunidade e educá-la. Por meio delas, e dos exempla, as verdades do cristianismo eram transmitidas à população leiga. Portanto, estas histórias refletem as concepções populares medievais acerca do pós-morte, uma vez que se constituíam em intermediários culturais (Gurevich, 1985; 1988). A partir delas se percebe que, apesar de certa ambigüidade, o destino individual é decidido logo após sua morte, pois, do mesmo modo que o leigo recebeu sua merecida punição, poderia ter ganho o Paraíso caso o livro de suas virtudes tivesse sido maior que o de seus pecados. A entrada no paraíso é tão imediata quanto a entrada no Inferno. Lembremos Zózimo, que tão logo faleceu foi levado por anjos para a terra dos bem-aventurados, ou da promessa contida na Visão de Perpétua.

Mas qual a relação entre o Paraíso alcançado após a morte e o Paraíso de onde foram expulsos Adão e Eva? A que Paraíso se referem as visões e as viagens? É ainda Hughes Neveux que identifica três temas: o Palácio, o Jardim, e a Jerusalém Celeste, todos insistindo no “prazer de um paraíso conhecido como um lugar de delícias” (op. cit.: 256) e oposto ao Inferno, um lugar de tormentos. A identificação daquele lugar de delícias com o antigo lar de Adão e Eva foi feita por poucos autores medievais (DELUMEAU, 1998: 41 e ss.). O paraíso aberto aos mortos não se encontrava neste mundo, diferentemente do Jardim do Éden, antes de tudo um Paraíso terrestre. Perpétua viu uma escada que a levaria à companhia de Cristo nos Céus; em uma outra história muito popular na Idade Média, a Visio Pauli (ou o ‘Apocalipse de Paulo'), São Paulo fio elevado ao terceiro céu (CAROZZI, 1994: 186-263) para ver as delícias que aguardam os Santos após a morte. Julião de Toledo, no século VII, distingue dois paraísos, um terrestre e outro celeste, esse último equivalendo ao seio de Abraão, ou seja, ao lugar de descanso dos justos. Dante Alighieri na Divina Comédia, obra literária por muitos críticos considerada uma síntese de todo o pensamento medieval, adota a mesma diferença entre um paraíso terrestre e um paraíso celeste, no primeiro, teriam vivido Adão e Eva e estaria vazio, e no segundo os justos compartilhariam da presença de Deus. Apesar de próximos esses dois paraísos estariam separados.


Figura 6: Dante segurando exemplar de sua Commedia. Vê-se à sua direita o Inferno, para onde se encaminham os Danados. Atrás está o Monte Purgatório, no topo do qual o Paraíso Terrestre – nele se vêem duas figuras, uma masculina e outra feminina. Acima estão as esferas que Dante percorre no Paraíso Celeste. Afresco de Domenico Di Michelino, 1460. Museo dell'Opera del Duomo, Florença.

A Bíblia abre e encerra-se com o Paraíso. O primeiro é o Jardim do Éden, o último a Jerusalém Celeste. Estas duas representações refletiriam as diferentes sociedades que lhes deram vida literária. O primeiro nasceu nas sociedades agrárias do Oriente Médio e o último na civilização greco-romana (FRANCO Jr., 1992: 113). Na Idade Média estes dois paraísos inseriram-se num debate marcado por diferentes concepções de tempo. De um lado o tempo cíclico, da cultura popular medieval, de outro um tempo linear, mais palatável aos letrados (Idem: 114). Os iletrados tendiam, segundo Franco Jr. (op. cit.), a acreditar que o Paraíso do Fim dos Tempos era igual ao do Princípio. Como exemplo podemos tomar o Paraíso descrito na Viagem de São Brandão. Nesta famosa história, o santo irlandês que viveu na segunda metade do século V partiu de sua ilha e, após sete anos, alcançou a Terra Repromissionis Sanctorum, a terra de recompensa [contrapartida] dos santos. Sua primeira versão escrita data do século X, tendo sido traduzida em diversas línguas vernáculas. Na narrativa, quando Brandão chega ao Paraíso, sua entrada foi inicialmente barrada, mas após algumas orações seu acesso foi permitido. Após caminhar pelo Paraíso por um determinado tempo sem encontrar mais ninguém além de sua guia, é informado que daquele ponto em diante não poderão mais seguir pois sua matéria bruta não suportaria a sutileza do ambiente destinado aos justos no pós-morte. O lugar físico do Éden é idêntico ao lugar de recompensa. A separação é interna, talvez já um efeito da racionalização emprestada pelo texto escrito. Infelizmente, o único meio de acessar as concepções iletradas do período é por meio dos textos escritos pelos clérigos ou sob seu padrão cultural. Gurevich (1988) considera que, apesar das alterações promovidas pelo clero nas concepções populares, sua busca de comunicação com a massa iletrada garantia a inserção de elementos das concepções destes em seus textos. Para se conhecer as concepções populares do medievo acerco do Paraíso deve-se buscar estes textos e decantar os elementos estritamente clericais. Como a viagem de são Brandão tornou-se obra de grande popularidade – conhecem-se mais de cem manuscritos da narrativa, entre latim e vernáculo – certamente compartilhava com seus leitores muitos elementos da compreensão popular do que era o Paraíso.

A concepção dos letrados apresentava uma separação mais clara entre o Éden e o lugar de recompensa, vide a Commedia de Dante. O poeta florentino, após sair da ‘floresta escura', atravessa com a ajuda de Virgílio o Inferno, o Purgatório e chega ao Paraíso. Nos últimos cantos do Purgatório, Dante alcança o Éden, separado por uma muralha de fogo, que atravessa com a ajuda de um anjo (canto XXVII) e por um rio, que atravessa com a ajuda de uma dama (canto XXVIII). Lá vê uma procissão maravilhosa (canto XXIX) que antecede a chega de Beatriz (canto XXX). Virgílio desaparece e, após se purificar nos rios Letes e Eunoé, Dante é levado por Beatriz ao Paraíso Celeste, cuja direção é clara, a mesma das estrelas. O Jardim do Éden era, como em Brandão, a entrada para o lugar de recompensa dos justos, mas sua separação era muito mais clara. O letramento passou a se tornar mais comum ao fim da Idade Média com o avanço de modalidades mistas de oralidade, com isso, naquele momento o Paraíso passou por uma racionalização que reforçava os elementos de linearidade temporal de sua concepção, como conseqüência da consolidação de maneiras cada vez mais sintagmáticas de ordenar as idéias e apresentá-las.

3. Os três Paraísos

O jardim plantado por Deus no Éden foi o lar de Adão e Eva até sua expulsão. Em sua porta foi colocado um anjo que, com uma espada de fogo, não permitia e entrada de ninguém. Esse mesmo lugar se encontrava sobre a terra, assim o atestavam várias histórias, entre elas, a das conquistas de Alexandre e a Viagem de São Brandão (JEAN, 1994). As diversas modalidades de literatura concordavam com isso, incluindo aqui até os textos escolásticos. São Tomás de Aquino, na questão 102 da primeira parte da Suma Teológica afirma possuir o Paraíso Terrestre duas naturezas, uma alegórica e outra material.

A narrativa do Gênesis na Bíblia dá as características do Paraíso Terrestre, e coloca sua criação se dando ao mesmo tempo que a criação do Universo. Já o Paraíso Celeste possui uma outra data de nascimento, a crucificação de Cristo. O Homem só pôde voltar ao convívio divino no Além após o sacrifício de Jesus Cristo. A partir deste evento o Paraíso Celeste passaria a participar da História, e, apesar de sua extrema proximidade com Deus, o tempo ainda é um de seus elementos constitutivos. Este lugar está em constante processo de mutação, quer seja pelas almas que lhe acessam quer seja pelos eventos que lhe ocorrem internamente como as músicas e as graças rendidas a Deus por seus habitantes.

A eternidade e o tempo, para Santo Agostinho, são duas entidades opostas, não compreensíveis em si mesmas, mas apenas em contraposição uma a outra (1984: 338-358). O tempo é para o homem, pois implica na possibilidade de movimento e mudança. A eternidade é divina, pois resultado de Sua perfeita, eterna e imutável essência. Para o completo retorno a Deus, fim último da humanidade, é necessário que o tempo se desfaça, retornando a eternidade. Entre os medievais, alguns acreditavam na existência de um intervalo antes deste momento – eram os milenaristas, possuidores de uma específica visão da Salvação, que pode ser resumida na crença de um tempo intermediário entre a segunda vinda de Cristo e o retorno à eternidade – este Milênio de felicidade terrena, porém, assemelhava-se mais à utopia que ao mito (RACINE, 1985).

Num exercício de racionalização não muito caro aos medievais, que aceitavam a ambivalência dos símbolos com menos impaciência que os modernos, podemos estabelecer a existência de três paraísos no pensamento baixo-medieval. O primeiro deles era o lugar onde viveram Adão e Eva – o Paraíso Terrestre; o segundo, o lugar onde os Justos aguardam o Julgamento Final – o Paraíso Celeste; e o terceiro a Jerusalém Celeste, que com ou sem sua ante-sala, o Milênio, seria o lugar da eterna felicidade, atingida quando da Segunda Vinda do messias e do retorno à Eternidade. Estes diferentes tipos de Paraíso misturavam-se e separavam-se de maneiras variadas, pois a ambigüidade sempre se manteve, como em todo bom símbolo que pretende captar as mais variadas projeções de desejos e ansiedades de seus leitores.

O primeiro dos Paraísos tinha a topografia mais consagrada, pois extraído diretamente do relato do Gênesis, com suas plantas, animais e rios, e que se coadunava bem com os acréscimos folclórico/populares de formas de recompensa e prazer. O segundo e o terceiro já eram menos claros em seus contornos, pois mais espiritualizados e vinculados aos produtos da cultura clerical/letrada. O primeiro estava no passado do Homem, marcando o início da História, o segundo a acompanhava e o terceiro a encerraria.

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Revista Marabilia