quinta-feira, 30 de abril de 2009

Salvem os porcos!


Manual do tempo do Império alertava o país para um problema urgente: os suínos estavam ameaçados de extinção
Fabiano Vilaça

“O porco é o animal que simboliza a falta de asseio, mas porventura é menos asseado do que o cavalo, o cão e outros animais? Certamente que não; se estes animais andam limpos é porque têm quem os trate, quem os lave”. O autor desta frase não estava preocupado apenas em limpar a imagem do porco. Sua missão era maior e mais urgente: salvar os rebanhos de suínos do Brasil.

Isso mesmo. Houve um tempo em que a carne de porco perigava desaparecer da mesa dos brasileiros. Esta constatação levou Joaquim Antônio d’Azevedo, presidente da Seção de Melhoramento das Raças Animais da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, a escrever um Manual do tratamento dos porcos.

Publicado em 1861, o impresso encontra-se na Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional (apesar da classificação como obra rara) e traz um diagnóstico pessimista sobre a situação dos suínos no Brasil no século XIX. As primeiras palavras não deixam dúvida quanto à gravidade do problema: “A degeneração da raça suína é bem conhecida de todas as pessoas (...) e o clamor contra este mal é geral”. O esforço para afastar de vez a ameaça de desabastecimento da carne de porco precisava unir as diferentes esferas, do governo imperial às províncias. “A criação, a multiplicação e o aperfeiçoamento da raça suína” inspiravam cuidados, pois a carne do porco ocupava lugar de destaque no cardápio das populações urbanas e rurais, alertava o autor do Manual.

As soluções para a crise que se avizinhava não partiram do gabinete dos políticos do Império. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi criada em 1827 para promover todos os ramos da produção. Segundo a historiadora Lúcia Guimarães no Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), o órgão tinha grande prestígio junto aos altos escalões do governo. Deve ter sido graças a este prestígio que a legação brasileira em Londres teve que se mobilizar para comprar alguns porcos da “bela raça inglesa Berkshire” e enviá-los ao Brasil. Ao contrário dos nossos, os suínos vindos da Corte de St. James eram fruto de cruzamentos perfeitos, que lhes garantiam grande vantagem na engorda. Eram pretos ou brancos, de “pernas curtas, formas arredondadas, cabeça pequena, focinho pontagudo (sic), orelhas direitas e longas”. Um bijou! A operação de salvamento dos suínos nacionais ganhou também a adesão pública de representantes da elite imperial, como D. Maria Henriqueta Carneiro Leão Leme, a marquesa de Paraná, e Antônio Clemente Pinto, o barão de Nova Friburgo, dono de várias fazendas na província do Rio de Janeiro e uma das maiores fortunas da época.

Mas de que adiantaria importar suínos de “boa estirpe” se os criadores brasileiros ignoravam as técnicas de criação e de cruzamento dos porcos? O Manual se preocupava em mudar esse quadro, e também em acabar com o “desleixo e a falta de instrução” dos criadores. Para isso, além do diagnóstico do caos em que viviam os rebanhos, Joaquim Antônio d’Azevedo indicou vários meios para “evitar a completa degeneração e desaparecimento” dos nossos suínos. Era preciso variar a comida, misturando sal e carvão, dar alimentos crus e cozidos para estimular o crescimento dos animais e lavar as vasilhas a cada troca de comida. A limpeza dos chiqueiros era fundamental. Nada de porcas paridas e leitões chafurdando na lama e na sujeira.

Hoje, as técnicas de criação evoluíram, a carne suína segue firme (e gorda) na dieta brasileira e os porcos vagam livres em diversos rincões. Nada parece lembrar o tempo em que alguns indivíduos se preocuparam com o futuro da raça. Se no século XIX existisse uma lista de animais ameaçados de extinção, os porcos, quem diria, estariam nela. E ocupando um lugar de destaque.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

A alegria do povo


Esnobadas pelos críticos, que as viam como produtos de má qualidade, as chanchadas conquistaram o coração do brasileiro excluído, que encontrava no cinema seu universo cultural
Flávia Cesarino Costa

Nenhum outro gênero cinematográfico foi tão popular no Brasil quanto a chanchada. Este gênero de comédia, tipicamente nacional, misturava música e Carnaval, entremeando números cantados e bailados num enredo feito de peripécias, sem grande sentido. Na sua melhor fase, abordava a vida de quem morava na periferia do sistema econômico. A trajetória dos artistas, na vida real, era freqüentemente parecida com a dos personagens que encarnavam: marginais, artistas de circo, gente de origem rural ou humilde que consegue a ascensão social pelo talento ou por um golpe de sorte. Tem origem exatamente nessa formação popular a atuação criativa e até carismática de muitos atores, que sabiam tirar partido do humor circense e da improvisação que eram a sua marca.

Na década de 1950, período do apogeu das chanchadas, o Brasil começava a se industrializar. O desenvolvimentismo aparecia como a grande proposta para tirar o país do atraso, registrando-se uma intensa migração de pessoas do campo em direção às cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, em busca de trabalho. O que tornava as chanchadas bem aceitas pelo público era justamente aquilo que irritava a crítica, incluindo-se aí a “alienação” das histórias e personagens. O termo chanchada, por si só, tem origem pejorativa. O crítico Sérgio Augusto explica que a palavra vem da Espanha, onde significava “porcaria, peça teatral sem valor, destinada a apenas produzir gargalhadas”, já que chancho quer dizer porco em castelhano. Já outro importante pesquisador do tema, João Luiz Vieira, afirma que o termo deriva da palavra italiana cianciata: “um discurso sem sentido, uma espécie de arremedo vulgar, argumento falso”.

Ao contrário da pressão de certos críticos por enredos politicamente “engajados”, as chanchadas celebram apenas a malandragem e o “se virar para viver”. Os enredos tratam em geral de personagens recém-chegados de um ambiente rural – portadores de valores tradicionais ligados à honra pessoal, à família, à vizinhança – ou que têm subempregos urbanos – camelôs, manicures, porteiros, desocupados, biscateiros, doceiras, todos aspirantes a uma ascensão social que os inclua no verdadeiro sistema industrial moderno. Dentro disso, o tema recorrente é a realização desse objetivo através de um “lance de sorte”: uma herança, um achado, um objeto valioso, um segredo, um prêmio que aparece no caminho do protagonista por obra do acaso.


A história das chanchadas divide-se em duas fases. A primeira cobre a década de 1930 e vai até meados dos anos 1940. É então dominada pelas produções da Cinédia e da Sonofilmes, que tinham uma série de números musicais entremeados por roteiros de estrutura elementar, com esquetes de teatro de revista. Em geral a história se passava nos bastidores de um teatro ou rádio, o que justificava os números musicais. Era como se o espectador estivesse ouvindo rádio, mas sentado na platéia de um cinema. A música apresentada tinha estreita ligação com serestas, sambas e marchinhas de Carnaval. A segunda fase da chanchada, que vai do início dos anos 1940 até 1962, é dominada pelo estilo das produções da Atlântida. As narrativas tornam-se mais complexas, obrigando os números musicais a se enquadrarem num enredo em que entram mocinhos, heróis e vilões.

O filme Coisas nossas (1931), dirigido por Wallace Downey, trazia a estrutura dos filmes musicais norte-americanos. Os maiores sucessos dessa fase foram Alô, alô, Brasil (1935) e Alô, alô, Carnaval (1936), ambos produzidos associadamente pela Cinédia e por Downey. Consolidaram a presença do rádio no cinema brasileiro não apenas pela referência explícita do “alô” nos seus títulos, mas principalmente pelo elenco, formado pelas estrelas da época. O primeiro, Alô, alô, Brasil, trazia Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, o Bando da Lua e Aurora Miranda, cantando a depois famosa marchinha Cidade maravilhosa, além de gozadíssimas piadas dos comediantes Mesquitinha e Barbosa Jr. O filme também consolidava o chamado “filme carnavalesco”, que entrava em cartaz pouco antes do Carnaval, trazendo os lançamentos musicais, e ficava em cartaz até quando houvesse público.

É a Atlântida que vai dominar a segunda fase das chanchadas. Seu primeiro filme, Moleque Tião (1943), dirigido por José Carlos Burle e estrelado por Grande Otelo, inaugura uma linha de filmes com preocupações sociais que não eram lançados no Carnaval e obtinham – coisa rara – algum elogio da crítica. Mas os verdadeiros sucessos da companhia serão as comédias carnavalescas. Em 1946 a Atlântica lança Segura esta mulher, que ultrapassa todos os recordes de bilheteria. Mas o sucesso do público crescia na direção contrária da aprovação dos críticos, que atacavam a pressa com que se faziam esses filmes, o mau gosto, a improvisação, as letras grosseiras e maliciosas das músicas, as atuações vulgares, as paródias fáceis e os cenários ruins, tudo o que, afinal, o público parecia aprovar com paixão.


Em 1947, Luís Severiano Ribeiro Jr., poderoso empresário de distribuição e exibição de filmes, tornou-se o maior acionista da Atlântida, iniciando a primeira e única experiência duradoura de produção de filmes para o mercado. A chanchada vai se voltando para a pequena crônica do cotidiano e folclore do Rio de Janeiro, com seus personagens de classe média, seus aluguéis atrasados, moradores de pensão, desocupados, vigaristas, otários, carreiristas, sonhadores, sogras e esposas rabugentas, custo de vida alto, problemas urbanos, mas tudo ainda entremeado a muitas cenas musicais. Destacam-se no período, como os mais criativos, os diretores José Carlos Burle, Carlos Manga e Watson Macedo. Este último deixou a Atlântida em 1952 para fundar sua própria companhia.

Foi Carnaval no fogo (1949, de Watson Macedo) que deu o modelo das chanchadas dos anos seguintes. Ele introduziu o triângulo galã-mocinha-vilão, auxiliados por eventuais personagens cômicos como o malandro, a mulher sexy e a dona de casa megera, numa estrutura que seria redundantemente reproduzida no esquema industrial de Ribeiro Jr. O filme formou o primeiro par romântico da Atlântida, Anselmo Duarte e Eliana Macedo, consagrou a dupla cômica Oscarito e Grande Otelo, e introduziu atores que seriam os eternos vilões das chanchadas, caso de José Lewgoy, criando as primeiras estrelas exclusivamente cinematográficas com as quais o público se identificava. Na revista mensal Cinelândia, era possível encontrar reportagens, entrevistas e curiosidades sobre esses carismáticos atores.

Na década de 1950, intensificam-se as paródias, que procuram imitar o original norte-americano de forma cômica. As paródias são geralmente grosseiras, com elementos de humor e ridículo, mas no caso do cinema brasileiro elas são também uma forma de autocrítica que reconhece haver uma relação de dominação do estrangeiro, contra a qual nos sentimos impotentes. Assim é o genial Carnaval Atlântida (de José Carlos Burle, 1952), cuja narrativa gira exatamente sobre a impossibilidade de copiarmos os padrões de qualidade do chamado “cinema de estúdio” realizado nos Estados Unidos.


O personagem central é um diretor de cinema que quer filmar um épico sobre Helena de Tróia, contratando para isso a assessoria de um douto professor encarnado por Oscarito. Diante das dificuldades materiais, o diretor é convencido de que o melhor é fazer um filme menos sério, já que o povo quer mesmo é se divertir. Ridiculariza-se a cultura de elite como afetada diante da naturalidade da cultura popular, pelo contraste entre os gestos artificiais dos atores do épico e a postura irreverente e malandra dos serventes do estúdio, que sambam com suas vassouras. Carnaval Atlântida foi considerado por alguns críticos um filme-manifesto, que defendia a paródia como a única resposta subdesenvolvida possível em prol de um cinema verdadeiramente brasileiro.

Nem Sansão nem Dalila (de Carlos Manga, 1954) é importante porque, apesar de ser uma paródia declarada de Sansão e Dalila (1949), filme americano dirigido por Cecil B. de Mille, é também uma alegoria política e didática sobre o Brasil. Dessa vez, Oscarito encarna o engraxate de barbearia Horácio, que vai parar em Gaza e consegue obter a peruca de Sansão. Devido à força que adquire com a peruca, é declarado governante e começa a tomar medidas populistas que desagradam comerciantes, líderes religiosos e líderes militares, que, roubando sua peruca, o removem do poder. Há referências ao presidente Vargas, à euforia consumista e aos problemas urbanos.

Aí já se delineia a estrutura clássica que separa o grupo dos incluídos na sorte – o protagonista e seus amigos e associados – do grupo dos excluídos – em que ficam os vilões que procuram roubar ou tirar vantagem de algum lance de sorte. Só que os incluídos são justamente os pilantras, malandros e aproveitadores “do bem”, que lutam pela sobrevivência não por serem maus, mas porque estão fora do projeto modernizador dos anos 1950. Encurralados nos labirintos da burocracia, saudosos de suas origens rurais, gregários por natureza, os personagens desses filmes têm dificuldades de assimilar os padrões individualistas da sociedade industrial.


Conforme afirmou muito bem o estudioso Miguel Chaia, a chanchada “trata dos simplórios que não entram no jogo desenvolvimentista”. Além de divertidos, esses filmes, se vistos com olhos críticos, servem hoje para entender melhor o Brasil do século XX.

Flávia Cesarino Costa é pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), realiza estágio de pós-doutorado no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e é autora de O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação (Azougue, 2005).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Axé carioca


Misto de conquistador, curandeiro e pai-de-santo, o líder negro Juca Rosa criou em um ritual próprio, atraindo uma legião de seguidores no Rio de Janeiro do século XIX
Gabriela dos Reis Sampaio

José Sebastião da Rosa, mais conhecido como Juca Rosa, foi um dos mais importantes e afamados líderes religiosos negros que o Rio de Janeiro conheceu. Nascido em 1833, filho de mãe africana, trabalhou como alfaiate e cocheiro antes de se tornar o grande Pai Quibombo, como também era chamado. Na década de 1860, vivendo no centro da Corte, na rua Senhor dos Passos, quase esquina com a rua do Núncio, Rosa liderava uma misteriosa seita, que agregava diversos adeptos. Além dos negros, dos trabalhadores escravos, livres e libertos e dos capoeiras, figuravam também, entre seus seguidores, políticos, ricos comerciantes, membros das elites econômicas brancas e letradas. Graças ao prestígio que adquiriu, Rosa estabeleceu relações com pessoas importantes da sociedade e suas cerimônias reuniam membros das mais diferentes origens sociais, que se deslocavam até sua casa em busca de seus preciosos – e caros – conselhos e prodigiosas curas. Por caminhos muito particulares, Juca Rosa tornou-se figura notória na sociedade carioca do período.

Não se tratava de um mero feiticeiro ou rezador, apenas mais um entre tantos e tão variados praticantes de diferentes religiões e artes de cura que habitavam a Corte, concorrendo com os médicos científicos na disputa por pacientes. Afinal, no Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais diversas artes de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império. Embora proibidas por lei e arduamente combatidas por grupos de médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam presentes com bastante força no cotidiano dos mais distintos setores sociais. Mas Juca Rosa, que concentrava as atividades de líder religioso e curandeiro, era um caso especial: seu nome tornou-se sinônimo de líder religioso afro-brasileiro, ou “feiticeiro negro”, como diziam as publicações da época, e associado a práticas supersticiosas de pessoas ignorantes.

Entretanto, uma denúncia anônima que o acusava de envolvimento sexual com várias mulheres, dirigida ao segundo delegado de polícia da Corte, interrompeu suas atividades, levando-o à prisão. Quando o julgamento de Rosa foi iniciado, em 5 de julho de 1871, ele já estava preso havia quase oito meses, sendo processado pelo crime de estelionato. Em seguida, passou a figurar nos periódicos tradicionais e nos pequenos jornais humorísticos, em publicações avulsas, e até mesmo em uma peça de teatro; virou notícia até em jornais de outras capitais, como Belém e Salvador. Todos eles enfatizavam o escândalo de seu envolvimento não apenas com prostitutas, costureiras, mulheres pobres e negras, mas também com senhoras brancas e casadas, provenientes de famílias influentes na vida política da Corte – uma de suas amantes seria, segundo especulações da imprensa, a esposa de um importante político, possivelmente o autor da denúncia. Tudo isso contribuía para a caracterização de Rosa como um monstro imoral e cruel. No entanto, as senhoras, que eram a maioria de seus seguidores, reconheciam o líder como um “homem de atrativos”, sempre bem vestido, usando correntes, anéis e outras jóias.


Os jornais estampavam notícias dizendo que Rosa cometia “práticas sacrílegas”, apelando ora para a religião, ora para “ridículas e estúpidas feitiçarias”; que teria “uma posição importante em um círculo de mulheres”, pobres vítimas, que o buscavam para “conservar fiel algum amante ou o próprio marido, ou fazê-los voltar a antigos sentimentos amorosos”, ou mesmo quando desejavam “fortuna para qualquer empresa ou fim, ou mal de um inimigo”. Eram poucos os noticiários da época que defendiam o líder negro. Mas o periódico ilustrado O Lobisomem, com humor peculiar, imaginou uma conversa entre mãe e filha:

— Mamãe, que história é esta que se vende a dois vinténs? Dizem que é lição aos pais do mau exemplo das mães!

— São cães que ladram à lua, são invejosos, que queres! Já chamam malvado a um homem que era amigo das mulheres.


Várias das filiadas, ou “filhas” de Juca Rosa compareceram para prestar depoimentos durante o processo, e forneceram diversas informações sobre a associação religiosa do Pai Quibombo. De acordo com os depoimentos, as “filhas” o procuravam por livre e espontânea vontade, na maioria das vezes para resolverem problemas amorosos. Várias testemunhas confirmaram sua crença no poderio de Rosa, acreditando que ele conseguiria da sorte tudo o que desejasse. As seguidoras se filiavam à sua associação ou “mesa” por meio de um cerimonial que envolvia diversos rituais, música e dança, e um juramento de fidelidade ao “chefe das macumbas” do Rio de Janeiro. A macumba em questão não era mais que um instrumento musical de pau riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado nas noites de festa comandadas por Juca. As filiadas também reconheciam que, após o juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de curas e conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como poderia também castigar os homens que as tratassem mal – muitos dos quais também participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Estes castigos viriam em diferentes formas: desde “bolos na cabeça” (um murro com os dedos em nó), ruína financeira ou perda da virilidade, fazendo com que “não prestassem para mulher alguma”, até a morte.


Pai Quibombo foi julgado por estelionato, e não por exercer a feitiçaria, já que no Código Criminal do Império não havia nenhuma lei proibindo essa atividade. As depoentes do processo confirmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além disso, para trabalhos ou serviços extras, Rosa cobrava à parte. Uma consulta podia custar até de 60 mil réis na década de 1860, preço bastante elevado para a época – equivalente a uma consulta a um médico de renome. Várias das filiadas, em sua maioria pobres, residindo em áreas de prostituição, enfrentavam dificuldades para sobreviver e se sacrificavam para manter em dia as contas com o Pai: faziam dívidas, vendiam objetos que não lhes pertenciam e vários outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa.

Emília Carolina Mascarenhas, por exemplo, costureira de 28 anos, disse que procurou Rosa pela primeira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem então vivia; e ouvira dizer “que Rosa tinha tanto poder como Deus”. Pagou 50 mil réis para que ele iniciasse o “trabalho necessário para o fim que ela tinha em vista”. Já Leopoldina Fernandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca de Juca para “conservar a estima de um moço” por quem tinha “profunda afeição”, pois soube que Rosa “tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se pedia”. Acabou se filiando à associação, pagando uma mensalidade de 60 mil réis e aceitando Rosa como “senhor de seu corpo e espírito”.

Denunciava-se também a proteção que Rosa auferia de poderosos figurões da sociedade, os quais teriam ligações com o misterioso Pai Quibombo. Em uma sociedade organizada com base na escravidão e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o debate surgido em torno do julgamento de um líder religioso afro-descendente, que adquiriu fama e prestígio em plena capital do Império, tomou grandes dimensões por ter ocorrido em um momento político decisivo: os anos 1870 e 1871, em que fervilhavam as discussões em torno da futura Lei do Ventre Livre, e os destinos que se daria ao país após o fim do trabalho escravo. Esses debates deixavam evidente o que se pensava em relação aos negros nos meios intelectualizados do Brasil. A raça negra era, nesse contexto, considerada inferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e muitas vezes perigosa; discutia-se muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas, como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação.


Para muitos, Juca Rosa fazia parte dessa “escória”. Para outros, era considerado feiticeiro poderoso, podendo curar males do espírito e do corpo. Fabricava e vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patuá feito para evitar feitiços ou proteger contra malefícios, usado junto ao corpo, num colar ao pescoço. Serviam para proteção contra “qualquer outro feiticeiro que lhe fizesse qualquer mal”, e também para “dar felicidade”, “dar fortuna” e “livrar de quebranto”, como afirmou um seguidor seu.

Mas grande parte da clientela de Pai Quibombo o procurava em busca de curas. Juca afirmou em seu depoimento que embora “não fosse deus”, tinha respostas para males físicos, como dores e ossos quebrados. A forma como tratava as moléstias unia procedimentos rituais, manipulação de forças sobrenaturais e também remédios feitos de ervas e líquidos, juntamente com rezas e acendimento de velas para “Senhora Santa Ana” e “Senhor do Bonfim”, santos que cultuava. Quanto à acusação de receber dinheiro de diversas mulheres, Rosa declarou que elas o faziam por serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes relações com as diversas filiadas, negando apenas que as tivesse deflorado. Quando perguntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de medicamento, raízes, pandeiros e até tranças de cabelos, explicou: “num caso de enfermidade ou de dificuldade no decorrer da vida sobre eles derrama o sangue de um galo; esse ato, na sua crença, agradava aos espíritos ou às almas e era praticado por ele em auxílio a qualquer de seus amigos que por enfermo infeliz a ele recorriam”.

Sem dúvida, as atividades de Juca Rosa se assemelhavam a várias práticas religiosas afro-brasileiras. Mas não é possível explicar tais rituais como mera continuidade de atividades religiosas de regiões da África, nem do candomblé que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia várias viagens com o objetivo de “se limpar”. Certamente, em terras baianas, Rosa consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar algumas de suas práticas.


Da mesma maneira, a associação de Rosa também não pode ser classificada como algo idêntico ao Candomblé ou a Umbanda que se conhece hoje, ainda que se possa identificar algumas íntimas semelhanças, como o sacrifício de animais ou cerimônias envolvendo canto, dança e transe espiritual. Estavam ali, na associação de Juca Rosa, alguns dos primórdios do que seria o candomblé carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridades suas, especialmente seu relacionamento com diversas mulheres.

Os rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como próprios do Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão. Uma religião que tinha elementos católicos e elementos de diferentes culturas africanas, sem ser nem católica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também por brancos, pobres e ricos. Relacionava-se a objetivos imediatos, de sobrevivência em um ambiente racista e hostil. No entanto, esse não era seu único propósito, pois as pessoas também freqüentavam a casa de Rosa em busca de mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferência; de companheiros e amigos entre pares; de curas para doenças ou infortúnios, ou simplesmente por fé encarnada na figura carismática de José Sebastião da Rosa.

Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisão, apesar de ter contratado um famoso advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador d. Pedro II. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu, teria se tornado “guarda da municipalidade”, segundo relatos de memorialistas. Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um “novo Juca Rosa” aparecia e sacudia a cidade.

GABRIELA DOS REIS SAMPAIO É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA), DOUTORA EM HISTÓRA SOCIAL PELA UNICAMP, COM A TESE “A HISTÓRIA DO FEITICEIRO JUCA ROSA: CULTURA E RELAÇÕES SOCIAIS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL” (PRÊMIO CARIOCA DE MONOGRAFIA –
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA E PRÊMIO SÍLVIO ROMERO – MUSEU
NACIONAL DO FOLCLORE/FUNARTE, AMBOS EM 2000). É AUTORA TAMBÉM DE NAS TRINCHEIRAS DA CURA: AS DIFERENTES MEDICINAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL. (UNICAMP, 2001)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Orixás, forças de Olorum


Na tradição iorubá, os orixás são entidades sobrenaturais, forças da natureza emanadas de Olorum, uma das divindades da criação. Guiam a consciência dos vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade. No Brasil, as religiões que cultuam os orixás jeje-iorubanos recebem os nomes regionais de candomblé (Rio de Janeiro), xangô (Pernambuco e Alagoas), tambor de mina (Maranhão e Pará) e batuque (Rio Grande do Sul). Os principais orixás cultuados no Brasil são:

Oxalá
Nome brasileiro do orixá Obatalá, emanação direta de Olorum. É o criador da humanidade e sua função é dar forma aos humanos ainda no ventre materno. Sua cor é o branco, seu símbolo o cajado e seu dia é sexta-feira.

Iemanjá
Grande orixá feminino das águas, reverenciada no Brasil como mãe de todos os orixás. Sua festa é no dia 2 de fevereiro, mas é muito homenageada na noite de 31 de dezembro nas praias do Rio de Janeiro, principalmente. Um de seus símbolos é um colar de contas cristalinas como água. Seu dia é sábado e sua cor é o azul.


Oxum
Orixá feminino das águas doces, da riqueza, da beleza e do amor. Participou da criação como provedora das águas doces. Seus principais símbolos são os seixos rolados e sua cor é o amarelo. Por causa de sua beleza, foi desejada por todos os orixás e fez vários maridos e amantes entre eles, complicando a genealogia dos orixás iorubanos. Seu dia também é sábado.

Oxóssi
Orixá da caça e dos caçadores, participou da criação ensinando aos homens a caça e a pesca. Desbravador de caminhos, é o guia de Ogum na remoção dos obstáculos ao crescimento espiritual e na indicação de atalhos para se atingir os objetivos. Tem por símbolo o arco e flecha. Sua cor é o verde e seu dia é quinta-feira.

Ogum
Orixá do ferro, patrono de todos que usam instrumentos de trabalho feitos desse metal. Participou da criação provendo as montanhas e os minerais. Seu símbolo é a espada, com a qual abre os caminhos do desconhecido, contribuindo para o avanço da humanidade. No Brasil, é ressaltado seu lado guerreiro. Sua cor é o anil ou o vermelho. Seu dia pode ser terça ou quinta-feira.

Iansã
Orixá feminino também conhecida como Oyá, Iansã ganhou esse nome após esquartejar e ter sido esquartejada por Ogum. Esposa de Xangô, suas cores são o vermelho e o branco. Seu dia é a quarta-feira e seu símbolo o raio, pois seu domínio são os temporais.


Xangô
Poderoso orixá, senhor do raio e do trovão. Participou da criação controlando a atmosfera. É neto de Ogum e foi rei – alaafin – da cidade de Oyó, sendo deificado após sua morte. Seu símbolo é o machado de duas lâminas, as quartas-feiras lhe pertencem e suas cores são o vermelho e o branco.

Exu
Também chamado Elegbara, “o dono da força”, não é um orixá, mas a síntese do princípio dinâmico que rege o universo. É o porta-voz dos orixás, o grande mensageiro, responsável por entregar aos homens as dádivas dos orixás, sejam espirituais ou materiais. Protetor dos cumpridores de seus deveres, por outro lado pune aqueles que ofendem os orixás ou falham no cumprimento de obrigações. Seu dia é segunda-feira, suas cores são o preto e o vermelho e seu símbolo é o tridente.

Revista de História da Biblioteca Nacional

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A utopia de Montenegro

Cercada de escravidão, fazenda de café de imigrante português adotou o trabalho assalariado e regras democráticas
Ana Silvia Volpi Scott e Oswaldo Mário Serra Truzzi

A favor do trabalho livre e assalariado! Num tempo em que a maioria dos cafezais paulistas ainda utilizava mão-de-obra escrava, o comendador Montenegro fez diferente. Recrutou imigrantes e com eles fundou uma colônia que oferecia direitos inéditos a seus trabalhadores.

O português João Elisário de Carvalho Montenegro nasceu no município de Lousã, próximo a Coimbra, e chegou ao Brasil com cerca de 18 anos, radicando-se no Rio de Janeiro no início da década de 1840. Ele vinha de uma família de posses. Seu pai era um médico de prestígio em Portugal, mas envolveu-se em lutas políticas que lhe renderam perseguições e considerável perda de patrimônio. Diante disso, o jovem Montenegro decidiu tentar a sorte do outro lado do Atlântico.

Inicialmente dedicou-se ao comércio, trabalhando como caixeiro-viajante. Sua trajetória foi um sucesso: o negócio prosperou e o tornou conhecido como “rei dos viajantes”. Em 1867, resolveu investir seu capital na compra de uma propriedade em Pinhal, interior de São Paulo, e pôr em prática suas idéias sobre a melhor maneira de se administrar uma lavoura de café. Batizou a fazenda com o nome de sua cidade natal e começou a inovar já na contratação dos empregados.

O Núcleo Colonial da Nova Lousã adotou um sistema de recrutamento muito original. Aproveitando-se de sua condição de imigrante, o próprio Montenegro ia selecionar famílias de conterrâneos dispostas a vir para o Brasil trabalhar na fazenda. O procedimento teve rápida repercussão. Jornais da época não tardaram a creditar a este sistema grande parte do clima de boas relações que reinava na colônia e do sucesso alcançado pelo estabelecimento de Montenegro.

De fato, o ambiente era bem diferente daquele encontrado na maioria das fazendas que também utilizavam trabalhadores europeus. Nestas predominavam a desconfiança, os enganos, o desrespeito aos contratos e, muitas vezes, a violência. Uma fonte constante de conflitos era a coexistência de dois sistemas dentro da mesma propriedade – o trabalho escravo e o trabalho livre. Em 1872, por exemplo, no município de Mogi Mirim (ao qual pertencia Pinhal), a população escrava chegava a mais de cinco mil indivíduos, quase um quarto do total de habitantes.

O tradicional sistema escravista havia sofrido um duro golpe em 1850, quando a Lei Eusébio de Queiróz proibiu a importação de escravos da África, decretando o fim do tráfico negreiro. Ao mesmo tempo, a expansão da produção cafeeira demandava uma quantidade crescente de braços para as fazendas que se espalhavam pelo interior da província de São Paulo. A situação gerou discussões sobre alternativas à mão-de-obra escrava, e começaram a surgir experiências de emprego de trabalhadores livres. A principal opção que se abriu aos cafeicultores era a importação de mão-de-obra européia. Esta população costumava estar disposta a se deslocar para a América em função das grandes dificuldades pelas quais passava o Velho Mundo.

Na transição do regime escravista para o de empregados livres, era comum que negros cativos e colonos europeus convivessem lado a lado nas fazendas paulistas. Montenegro enxergava aí um problema que inibia a imigração em massa para o Brasil, pois a utilização dos dois sistemas sempre daria lugar a argumentos de que os colonos eram “tratados como escravos”.

Além de utilizar somente trabalhadores livres, o sistema implantado na Nova Lousã apresentava outra grande novidade em relação aos cafeicultores paulistas: pagava salários mensais. O comum naquela época era o chamado “sistema de parceria”. Idealizado pelo senador Vergueiro (1778-1859), baseava-se em um contrato que destinava à família do colono um certo número de pés de café para o cultivo e uma determinada área de exploração para subsistência. A remuneração era proporcional ao montante de gêneros produzido pela família, descontadas as despesas de transporte, adiantamentos e recursos para a instalação inicial. Vergueiro adotou este sistema na Fazenda Ibicaba, de sua propriedade, localizada no município de Limeira. De lá, a prática se espalhou por São Paulo.

O sistema de parceria tinha claras desvantagens. A principal era a incerteza dos colonos quanto ao lucro que teriam. Geadas, pragas e outros problemas podiam afetar os cafezais e comprometer a produção. Sem falar no clima de desconfiança quanto à lisura dos fazendeiros – afinal, não havia como conferir as condições de negociação e o preço de venda obtido. Montenegro passava ao largo dessas tensões garantindo aos seus colonos o pagamento de salários fixos.

Por fim, a experiência alternativa do comendador adotou mecanismos inéditos para regular e disciplinar direitos, deveres e a convivência entre os colonos. Os regulamentos eram a base do bem-estar e do ambiente harmonioso no interior da propriedade. Em agosto de 1872, uma assembléia de empregados da casa criou o Regulamento Administrativo e Policial da colônia. Enquanto a imensa maioria das fazendas paulistas regulava suas relações de trabalho pela chibata e pelo despotismo absoluto de seus proprietários, Montenegro propôs que da assembléia participassem, com direito a voto, todos os empregados da colônia, homens e mulheres. Com o curioso detalhe de que as mulheres podiam votar mais cedo: aos 16 anos; os homens, só aos 18. As reuniões podiam ser convocadas pelo proprietário ou por iniciativa de metade mais um dos empregados da fazenda. E as medidas eram decididas em votações secretas.

O regulamento previa a aplicação de multas aos empregados que desobedecessem às normas. As mais pesadas visavam coibir a prática de qualquer tipo de violência, para assegurar um relacionamento pacífico entre os colonos. Uma vez multado, o empregado ainda poderia recorrer em assembléia, caso se sentisse injustiçado. O montante arrecadado com as multas, em vez de favorecer o fazendeiro, era revertido para uma caixa de beneficência, cujos fundos seriam aplicados em favor dos colonos que por motivo de doença tivessem que voltar a Portugal.

O modelo prosperava. A fazenda tinha 80 moradores em 1872. Sete anos depois, a população chegava a 124 colonos. Todas essas iniciativas colocavam a Nova Lousã em uma situação que contrastava profundamente com a das outras fazendas de café. A colônia era uma exceção que despertava sentimentos e reações contraditórios tanto no governo como entre os fazendeiros.
Os abolicionistas em geral viam a experiência com muito bons olhos, e utilizavam a fazenda do comendador como modelo a ser seguido. Em julho de 1875, sob o título de “O melhor meio de atrair imigrantes”, a Província de São Paulo publicou:

Hoje devem descer para Santos, com destino a Portugal, alguns colonos da Nova Lousã, propriedade do sr. Comendador J. E. de Carvalho Monte-Negro, os quais, estando terminado o prazo do contrato e tendo feito economias, voltam à terra da pátria satisfeitos, senão ricos, ao menos com meios de viverem sem privações e talvez em tal ou qual abundância. Entre esses colonos há mulheres e até famílias completas. Este fato, honroso para o diretor daquela colônia, já tão conhecida entre nós, é uma excelente recomendação para ele continuar a merecer a confiança dos seus compatriotas. Relativamente à imigração de Portugal, esta volta dos colonos da Nova Lousã deve merecer muita influência em favor de nosso país e especialmente da província de S. Paulo. Se de outras colônias partissem para a Europa colonos felizes e satisfeitos como estes, depois de terminados os seus contratos, outra seria a corrente de imigração européa para cá. Registremos solenemente o fato e fique ele como um bom exemplo a ser seguido.

Mas havia também os céticos, que duvidavam que a aplicação do sistema em larga escala fosse viável. O governo, entre curioso e admirado, era reticente em relação ao que acontecia na propriedade de Montenegro. O relatório de um comissário do governo imperial, enviado para conhecer a colônia em 1870, afirmava que a iniciativa era digna de simpatia e interesse, mas argumentava que era muito cedo para concluir se os resultados alcançados deviam-se apenas às excelentes relações mantidas com os empregados ou se às regras que regulavam estas relações. “A Nova Lousã é antes uma família do que uma colônia, e separa-se dos outros estabelecimentos análogos da província por este lado, tanto como pelo sistema de trabalho que adotou. É por certo uma tentativa digna de todo o interesse e simpatia, e o seu proprietário já tem feito muito. É cedo, porém, para decidir se os resultados que tem alcançado são devidos às excelentes relações que mantém com os empregados ou se às regras que regulam essas relações”, registra o documento.

Oito anos depois, o próprio imperador D. Pedro II visitou a Nova Lousã. Apesar do evidente interesse, o governo não chegou a estimular a continuidade do projeto. Pelo contrário: em várias ocasiões, Montenegro se queixou do descumprimento, por parte do poder público, de contratos firmados para subsidiar a vinda de imigrantes. Faltava todo tipo de crédito para a fazenda, o que o obrigava a vender antecipadamente a colheita de café a preços pouco compensadores.

Duas décadas depois de implantado, o sistema salarial proposto por Montenegro ainda tinha pouca aceitação na província de São Paulo, e não inspirou seguidores. Prevaleceu o sistema de parceria, que mais tarde evoluiu para a empreitada (na qual os colonos eram contratados para realizar tarefas específicas, como preparação do terreno, plantio ou colheita). Após a abolição, em 1888, generalizou-se um sistema de remuneração misto, conhecido como contrato de colono, que combinava salários anuais pelo trato do cafezal, pagamentos pelo volume de café colhido, por tarefas, diárias e alguns benefícios não-monetários.

Diante das dificuldades financeiras, Montenegro vendeu sua propriedade três meses antes do fim oficial da escravidão.

Ana Silvia Volpi Scott é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e autora do livro Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX) (Guimarães: NEPS - Universidade do Minho, 1999).

Oswaldo Mário Serra Truzzi é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Café e Indústria – São Carlos, 1850-1950 (Imprensa Oficial e EdUFSCar, 2007).

Saiba Mais - Livros:

FREITAS, S. M. Presença Portuguesa em São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

LOBO, E. M. L. Imigração portuguesa no Brasil. Hucitec, 2001.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Araribóia - Ilustríssimo chefe indígena

Aliado dos portugueses na conquista do Rio de Janeiro, o índio Araribóia foi enobrecido, ganhou benesses e virou motivo de orgulho para seus descendentes
Maria Regina Celestino de Almeida

Frente a frente com um representante do rei, o índio cometeu uma descortesia: sentou-se sobre as pernas cruzadas. O ato foi imediatamente repreendido, mas em vez de se penitenciar, o índio decidiu confrontar a autoridade. “Não sem cólera e arrogância”, respondeu o seguinte: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não retornarei mais à tua corte”.

O episódio, verídico ou não, foi relatado por frei Vicente de Salvador e teria ocorrido em 1575, quando o novo governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, foi recebido por personalidades locais. Entre os presentes àquela importante recepção estava o líder indígena temiminó conhecido como Araribóia.

A forma altiva e orgulhosa como respondeu à reprimenda do governador é reveladora da posição que este indígena ocupava diante das autoridades portuguesas. Araribóia demonstra consciência sobre seu papel na defesa da terra e como intermediário entre duas culturas diferentes. Por isso portou-se como um grande chefe ofendido com outro que não lhe prestara o devido respeito. E sua ameaça – “não retornarei mais à sua corte” – não se concretizou. Como um dos principais responsáveis pela conquista da Baía de Guanabara, e pela conseqüente fundação do Rio de Janeiro, Araribóia continuou gozando de grande prestígio entre os portugueses.

Antes que os portugueses se lançassem na guerra pela ocupação da Guanabara, os índios que ocupavam a região hoje conhecida como Ilha do Governador eram chamados de maracajás (“índios do Gato”, em tupi), liderados por Maracajaguaçu (o “Grande Gato”). Viviam em guerra com os vizinhos tamoios. Sentindo-se ameaçados, solicitaram aos portugueses quatro embarcações, a fim de fugirem para a capitania do Espírito Santo, onde se estabeleceram em 1555. Em terras capixabas, surgem as primeiras menções aos temiminós liderados por Araribóia, grupo que talvez tenha se originado de uma dissidência dos maracajás. O que se sabe é que, ao chegarem ao Espírito Santo, alguns desses índios provenientes do Rio se embrenharam pelo sertão e só seriam aldeados em 1562, com um novo chefe. Este já seria Araribóia.

A aliança com os portugueses era estratégica para os grupos indígenas. Para muitos deles, era conveniente ingressar em aldeias estabelecidas pelas autoridades coloniais – isso significava segurança, algo cada vez mais difícil de ser alcançado nos sertões onde guerras, massacres e escravizações eram freqüentes. Tornavam-se índios aldeados e súditos cristãos do rei. Apesar dessa situação subalterna, sujeita ao trabalho compulsório, tinham algumas vantagens, diante do caos da colonização. A legislação estabelecia, por exemplo, a doação de terras e o direito de não serem escravizados.

No Espírito Santo, a parceria com os temiminós rendeu a Portugal importantes ações de defesa do território. Os índios destacaram-se na luta contra outras tribos hostis e contra piratas na costa. Tanto que, em 1564, Araribóia e seus liderados juntam-se a Estácio de Sá (1520-1567) em investidas contra os franceses, com o objetivo de fundar a povoação do Rio de Janeiro. “Acompanhava a frota um índio, de nome Arary-boia – que ficou registrado na história do tempo como Martim Afonso Araribóia – e que era amigo dos portugueses desde a época em que a terra de Piratininga fora desbravada. Agora, fizera companhia a Estácio para o ajudar a estabelecer-se na terra dos Tamoios”, relata o padre José de Anchieta (1534-1597).
Além de manterem a aliança com os portugueses, para os temiminós a volta para o Rio de Janeiro era uma oportunidade que tinham de combater seus antigos inimigos, os tamoios, reconquistando o território que haviam abandonado.

Em 1565, com a expulsão dos franceses, deu-se a fundação da cidade do Rio de Janeiro. E o papel de Araribóia na conquista foi devidamente reconhecido. Três anos depois, foi-lhe dado o direito de escolher uma parte das terras da “banda d’além”, ou seja, do outro lado da Baía, para se estabelecer com sua gente. Recebida na forma de sesmaria, a área passou a abrigar a aldeia de São Lourenço, origem da cidade de Niterói (ou “águas escondidas”, na língua indígena), oficialmente criada em 1573.
Os portugueses tinham o hábito de valorizar os líderes nativos que os apoiavam. Os chefes indígenas recebiam concessão de favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio. Araribóia foi batizado de Martim Afonso de Sousa, agraciado com o Hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo, e recebeu uma tença (pensão) de 12 mil-réis. Para completar, recebeu o posto de capitão-mor da aldeia de São Lourenço e tornou-se proprietário de casas na Rua Direita (atual 1 de Março), onde residiam os notáveis do Rio de Janeiro, incluindo o governador. Seu casamento foi realizado com grande pompa, digna dos altos mandatários do Reino.

A morte de Araribóia é um assunto controverso. Dizem que morreu afogado, mas é possível também que tenha sido vítima de uma epidemia. O fato é que seu prestígio sobreviveu, estendendo-se às gerações posteriores. O cargo hereditário de capitão-mor da aldeia de São Lourenço passou a ser ocupado por seus descendentes. Estes sempre faziam questão de mencionar Araribóia em petições encaminhadas ao rei, identificando-se pelo nome de batismo e pela aldeia em que moravam. As autoridades, por sua vez, reconheciam e valorizavam a prestigiosa memória de Araribóia, contribuindo para perpetuá-la. O governador Salvador Correa de Sá e Benevides (1637-1642), ao conferir a Brás de Souza o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, declarou que o nomeava “visto ser descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo… e gozará de todas as honras e proeminências que tem e gozaram os mais Capitães seus antecessores”. Os grandes feitos do líder temiminó e de seus seguidores eram trunfos devidamente ressaltados nesses documentos.

Durante o século XIX, com o argumento de que os índios já estavam civilizados e deveriam ser assimilados como cidadãos do Império, todas as aldeias foram extintas e suas terras incorporadas ao patrimônio dos municípios. Foi o que aconteceu com a aldeia de São Lourenço em 1866. Ainda assim, a imagem de Araribóia, construída por índios e portugueses em relações de alianças e conflitos, deixou raízes que resistiram aos séculos. Apesar das imensas diferenças que separavam o Araribóia do século XVI e seus descendentes dos séculos seguintes, percebe-se a identificação entre eles pelo sentimento de pertencer à aldeia e liderar um grupo étnico e social específico – os índios aldeados de São Lourenço, com direito à terra coletiva e à vida comunitária. José Cardoso de Souza (1782-1837), considerado o último capitão-mor da aldeia de São Lourenço, ainda em 1820 protestava judicialmente contra particulares que esbulhavam terrenos dos índios.

No século seguinte, a nobre memória de Araribóia continuava viva e forte em Niterói. Em 1930, um dos membros da Comissão Glorificadora a Araribóia era José Luiz de Araribóia Cardoso, arquivista e zelador da Igreja de São Lourenço dos Índios, que com orgulho afirmava sua ascendência indígena. Para José Luiz, Araribóia fora mais do que o fundador de Niterói e do Rio de Janeiro. Cabia ao índio o mérito de ter inaugurado “a nacionalidade brasileira”.

Mais de quatro décadas depois, na comemoração oficial dos 400 anos de Niterói, em 22 de novembro de 1973, coube ao prefeito partir o bolo, oferecendo em seguida o primeiro pedaço a uma das mulheres presentes. Sem saber, estava homenageando o precursor do município. Foi o que Gilda Rodrigues tratou de informar a Iohana Freitas, Marilia dos Santos e Tarso Vicente, alunos do curso de História Oral da UFF, em entrevista realizada em fevereiro de 2003, pois era descendente do grande Araribóia.

Como entender a persistência dessa memória, manifestada por Gilda e José Luiz – e também pelos inúmeros grupos emergentes no Nordeste, por longo tempo confundidos com a massa da população, que aparecem agora reivindicando a identidade indígena e buscando suas origens nas aldeias coloniais?

Os índios insistem em continuar existindo e impõem aos historiadores e antropólogos a tarefa de rever conceitos e teorias, reinterpretar documentos e contar uma outra história sobre sua presença e atuação na América portuguesa. Afinal, a História do Brasil nos ensina que os índios perderam suas culturas, identidades étnicas e quaisquer possibilidades de resistir e atuar na colônia, diluídos entre os escravos e a população pobre.

A trajetória dos temiminós revela uma realidade bem diferente. Em vez de desaparecerem, reelaboraram culturas, memórias e identidades que lhes permitiram sobreviver por três séculos como índios da aldeia de São Lourenço. Esta identidade, sugerida ou imposta pelos colonizadores, foi por eles apropriada e amplamente utilizada, como demonstram as petições dos líderes que enfatizam a procedência do grupo a partir do estabelecimento da aldeia e da doação de terras. Esses documentos são mais uma evidência de que os índios da Colônia não desapareceram, nem deixaram de ser agentes da História.

MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA é professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro Metamorfoses Indígenas: identidades e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro (Arquivo Nacional 2003).

Saiba Mais - Livros:

Knauss, Paulo. “Herói da Cidade – imagem indígena e mitologia política”. In: Knauss, Paulo (coord). Sorriso da Cidade. Imagens Urbanas e história política de Niterói. Niterói: Fundação de Arte de Niterói, 2003.

MENDONÇA, Paulo Knauss. O Rio de Janeiro da Pacificação. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1991.

MONTEIRO, John. Negros da Terra – Índios e Bandeirantes, Origens de São Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

POMPA, Cristina. Religião como Tradução: Missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. Bauru, SP: EDUSC, 2003.

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios – Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

As duas pontas da vida

Correspondência completa de Machado acompanha suas transformações ao longo do tempo
Sergio Paulo Rouanet

Em carta de 21 de abril de 1908, escrita poucos meses antes de sua morte, Machado de Assis autorizava o amigo José Veríssimo a recolher e publicar sua correspondência. A permissão, no entanto, foi dada com um ceticismo tipicamente machadiano: “Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns... O tempo decorrido e a leitura que fizer da correspondência lhe mostrará que é melhor deixá-la esquecida e calada”.

Obviamente, a posteridade discordou de Machado de Assis nesse ponto, e muitas cartas foram sendo publicadas ao longo dos anos, despertando sempre o interesse de leitores e biógrafos.

A Editora Jackson fez um trabalho pioneiro nessa área, reunindo várias correspondências de e para Machado de Assis, mas segundo um critério altamente seletivo, que deixava de fora inúmeras cartas e a maioria dos correspondentes. A Nova Aguilar teve o mérito inestimável de publicar novas cartas de Machado, mas excluiu a correspondência passiva, o que tem a desvantagem de privar o fluxo epistolar de sua dimensão dialógica. Além desses dois epistolários gerais, foram também publicadas, em livros, jornais e revistas, cartas com interlocutores específicos, como Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Joaquim Serra, Miguel de Novaes, Mario de Alencar e Magalhães de Azeredo. O problema é que o privilégio concedido à relação isolada com um interlocutor faz com que se perca a visão de conjunto de um Machado múltiplo, que mantinha, simultaneamente, relações epistolares com muitos outros correspondentes, revelando-se assim ao leitor sob aspectos mais variados do que se lêssemos apenas as cartas trocadas com um determinado missivista. Finalmente, várias cartas foram transcritas em biografias, como Vida e obra de Machado de Assis, de R. Magalhães Júnior, o que tem o inconveniente de que a correspondências passam a ser interpretadas segundo o enfoque específico do biógrafo, impedindo seus autores de falarem por si mesmos.

Por tudo isso, pareceu à Academia Brasileira de Letras que uma das melhores maneiras de homenagear Machado de Assis por ocasião do centenário de sua morte seria publicar, por ordem cronológica, a correspondência completa do nosso maior escritor, tanto a ativa quanto a passiva, tanto a já publicada quanto a inédita. Ainda é cedo para se fazer uma avaliação do que essas cartas possam trazer de novo do ponto de vista da obra de Machado, mas podemos dizer desde já que elas são extremamente interessantes do ponto de vista biográfico. Em particular, as cartas da mocidade, sobretudo as recebidas, contribuem para desconstruir a imagem de Machado como um homem ensimesmado, casmurro, frio nas relações humanas. Elas revelam, ao contrário, um jovem boêmio, namorador, com quem os amigos se abriam e a quem faziam confidências amorosas, no tom ultra-romântico de uma juventude que fizera seu aprendizado literário lendo Musset e Álvares de Azevedo. É só nas cartas da maturidade que vai se consolidando a figura do funcionário sisudo e respeitável. Nelas se vê a transformação do Machadinho em Machado de Assis. Depois da morte de Carolina, em 1904, as cartas mostram o homem desesperado, niilista, que os biógrafos nos habituaram a ver atrás do escritor.

A mediação entre o primeiro Machado e o último é feita por Salvador de Mendonça, um dos seus correspondentes da juventude e o destinatário da que talvez seja sua última carta, escrita três semanas antes da morte. Neste sentido, pode-se dizer que Machado conseguiu, pela correspondência, “atar as duas pontas de sua vida”, objetivo que o destino recusou a Dom Casmurro, incapaz de reencontrar no Engenho Novo o adolescente de Matacavalos.

A ABL fez bem em ignorar o pessimismo do seu primeiro presidente, para quem sua correspondência deveria permanecer “esquecida e calada”: mais do que nunca ela merece ser lembrada e ouvida.

Sergio Paulo Rouanet é diplomata, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de Riso e Melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis (Companhia das Letras, 2007).

Cartas reunidas

O projeto dedicado a reunir e publicar a correspondência de Machado, conduzido pela ABL, vem sendo realizado por iniciativa do ex-presidente da casa, Marcos Vilaça, com total apoio do atual, Cícero Sandroni. A equipe coordenada por Sergio Paulo Rouanet percorreu o acervo da ABL e os arquivos de outras instituições, como a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa, a Fundação Getulio Vargas e o Ministério das Relações Exteriores. O projeto ainda teve a colaboração de particulares. As pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleutério ficaram responsáveis pela reunião e pela transcrição de todas as cartas. Segundo Rouanet, uma das novidades dessa edição é o fato de dispor de centenas de notas, com dados sobre inúmeras personagens e sobre episódios da vida política e cultural do Brasil, mencionados nas cartas, mas hoje praticamente desconhecidos. O primeiro volume, de 1860 a 1879, sairá este ano. As cartas seguintes, de 1880 a 1908, deverão ser publicadas em 2009.

Os três Machados

Boêmia juventude


“Machadinho, tenho muita precisão de falar contigo, e, como és um boêmio, incerto em toda a parte, ouso pedir-te que me procures na Praça [do Comércio], hoje, sem falta; melhor seria que lá chegasses antes de começares os teus trabalhos. Entra naquele soberbo edifício, atravessa-o impávido, e encaracola-te por uma escada de caracol que hás-de encontrar adiante do nariz. [...]
Espera-te sem falta, o teu do Coração,
F. X. de Novais”

(Rio de Janeiro, 14 de julho de 1865).
[Faustino Xavier de Novais era poeta e irmão de Carolina, futura esposa de Machado]

Sábia maturidade

“Recebi a carta de Vossa Excelência e o 1.º número da Revista Amazônica. Na carta, manifesta o receio de que a tentativa não corresponda à intenção, e que a Revista não se possa fundar. Não importa; a simples tentativa é já uma honra para Vossa Excelência, para os seus colaboradores e para a Província do Pará, que assim nos dá uma lição à Corte.
Há alguns dias [...] disse esta verdade de La Palisse: que não há revistas, sem um público de revistas. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores necessária para essa espécie de publicações. [...]
Esta linguagem não é a mais própria para saudar o aparecimento de uma nova tentativa; mas sei que falo a um espírito prático, sabedor das dificuldades, e resoluto a vencê-las ou diminuí-las, ao menos. E realmente a Revista Amazônica pode fazer muito; acho-a bem feita e séria. Pela minha parte, desde que possa enviar-lhe alguma coisa, fá-lo-ei, agradecendo assim a fineza que me fez, convidando-me para seu colaborador”

(A José Veríssimo, Rio de Janeiro, 19 de abril de 1883).

Solitária velhice

“[...] Daqui a pouco a casa Garnier publicará um livro meu [Memorial de Aires], e é o último. A idade não me dá tempo nem força de começar outro. [...] Completei no dia 21 sessenta e nove anos; entro na ordem dos septuagenários. Admira-me como pude viver até hoje, mormente depois do grande golpe que recebi e no meio da solidão em que fiquei, por mais que amigos busquem temperá-la de carinhos [...]”

(A Joaquim Nabuco, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1908)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Machado de Assis - As agruras de um escritor

Machado ganhava pouco com sua produção literária e precisava de outras fontes de renda para pagar as despesas

1864-1872

Em 1864, aos 25 anos, a venda para a Editora Garnier (foto) dos direitos autorais de Crisálidas, seu primeiro livro de versos, rende a Machado 150 réis por exemplar.

Cinco anos depois, em 1869, novo contrato com a mesma editora, pelos direitos do segundo livro de versos, Falenas, e do primeiro de contos, Contos Fluminenses, prevê um valor só um pouco maior: 200 réis por exemplar. No mesmo ano, a venda dos direitos do primeiro romance, Ressurreição, e de outro livro de contos, Histórias da meia-noite, sempre pela Garnier, é feita de outra forma, num pacote fechado: 400$000 (400 mil-réis) por edição.

A que correspondia essa quantia? Machado acabava de casar-se com Carolina, em novembro de 1869, e o dinheiro de editora serviria para pagar só alguns meses de aluguel da casa, na Rua dos Andradas, 116, centro da cidade. Evidentemente, não dava para viver só da publicação de livros. O escritor tinha que se virar em várias atividades. Naqueles anos, era redator da Semana Illustrada e do Diário do Rio de Janeiro, colaborava com outras revistas, como o Jornal das Famílias, e desde 1867 atuava como ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.

1873-1880

A segurança financeira só seria possível com um emprego estável. E ele veio quando Machado ingressou no funcionalismo público, em 1873. Nomeado primeiro oficial da 2ª Seção da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, passou a receber um salário de 4:000$000 (4 contos de réis, isto é, 4 milhões de réis) anuais. Não era muita coisa, mas dava para pagar o aluguel e outras despesas com certa folga. Em poucos anos, o casal muda três vezes de residência: primeiro para a Rua Santa Luzia, 54, depois para o segundo andar da Rua da Lapa, 96, e finalmente para a Rua das Laranjeiras, 4, afastando-se progressivamente do centro da cidade.

E se em 1876 a venda dos direitos do novo romance, Helena, não lhe rende mais do que 600 mil-réis, uma promoção torna Machado chefe de seção na mesma Secretaria de Estado. Dois anos depois, novo endereço para Carolina e seu marido: Rua do Catete, 206.

1881-1889

Na década de 1880, período da publicação de Memórias Póstumas e de outras coletâneas de contos, Machado se torna oficial de gabinete do ministro da Agricultura.

O casal pode agora mudar-se para uma casa mais confortável, na Rua Cosme Velho, 18, com um aluguel de 130 mil-réis por mês. Machado colabora com a revista A Estação e com o jornal Gazeta de Notícias, mas o pulo-do-gato acontece de novo dentro do serviço público: em março de 1889, beirando os 50 anos, é promovido a diretor geral da Diretoria do Comércio, com um salário anual de 8 contos de réis. Nada comparável aos vencimentos que a nova República garante ao presidente provisório (120 contos por mês!), mas o suficiente para uma vida tranqüila.

Casa-trabalho, trabalho-casa: todo dia, lá pelas 10 da manhã, Machado vai de bonde para o Ministério, atrás do Largo do Paço, e sai por volta das 16 horas, sem deixar de passar pela Livraria Garnier, na Rua do Ouvidor, para uma conversa com amigos e colegas.

1890-1899

Nestes primeiros anos republicanos, Garnier não altera muito os valores pagos a Machado pelos direitos sobre suas obras: 600 mil-réis pela primeira edição de Quincas Borba; 250 mil-réis pela segunda edição do mesmo livro, para a segunda de Iaiá Garcia e para a terceira edição de Memórias Póstumas.

O verdadeiro ganha-pão do escritor, que a esta altura da vida já é reconhecido e aclamado primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, continua sendo o funcionalismo: no Ministério (que agora se chama da Indústria, Viação e Obras Públicas), ele é diretor geral da Viação.

É dessa época o seu primeiro testamento. Lavrado em 30 de julho de 1898, nele Machado nomeia como sua herdeira a esposa Carolina e lista suas posses pecuniárias. São elas: sete apólices de um empréstimo de 1895, de um conto de réis cada; uma apólice da dívida pública, também de um conto de réis; cinco ações da Gazeta de Notícias, no valor de 200 mil-réis cada; e 3:079$663 na Caixa Econômica, caderneta nº 14.304.

No emprego, as coisas desandaram no início de 1898. Por conta de uma reforma “técnica” do Ministério, foi posto em disponibilidade. Como não era engenheiro, perdeu o cargo e ficou encostado em casa, recebendo sem trabalhar. Mas não durou muito essa injustiça com o funcionário-padrão. Em outubro, o novo ministro, Severino Vieira, o chama para ser seu secretário. E ele permaneceria no cargo com os ministros seguintes.

Em 1899 publica Dom Casmurro. Mas sua grande negociação com a Garnier é a venda da “propriedade inteira e perfeita” de toda a sua obra, pela quantia de 8 contos de réis. Era o valor de duas passagens de navio para a Europa. Mas Machado não gastava o dinheiro com viagens, preferindo as apólices da dívida pública.

1900-1908

Em 1902, Machado volta para a sua antiga repartição, desta vez com o cargo de diretor geral de Contabilidade. Comparados com o salário fixo e garantido pela máquina pública, os rendimentos que suas obras lhe proporcionam continuam escassos: 1 conto e meio por Esaú e Jacó e outro tanto para os contos de Relíquias de casa velha. Fica viúvo em 1904, e o aluguel da casa sobe de 150 para 200 mil-réis. Um bom terno custava na época 80 mil-réis; um quilo de queijo, 6 mil, e o de manteiga, 3.500 réis.

No dia 12 de outubro de 1905, inutiliza o testamento anterior e declara sua herdeira Laura, filha de sua sobrinha e comadre Sara Braga da Costa. No segundo testamento, Machado declara possuir doze apólices gerais da dívida pública, de um conto de réis cada, depositadas no London and Brazilian Bank Ltd., além de “algum dinheiro numa conta corrente do mesmo banco” e “certa quantia” em caderneta da Caixa Econômica.

Após sua morte, será esse dinheiro que o inventariante – o compadre major Bonifácio, pai de Laura – usará para fechar as contas que o escritor deixara penduradas em armazéns, açougues e farmácias: devia 19 mil-réis pelo consumo de dois meses de gás, 43 mil de leite no Grande Estábulo das Vacas, 30 mil em remédios da Pharmacia Laranjeiras e 18 mil em biscoitos e água de Vichy no Armazém de Molhados da Rua do Ouvidor. Sem esquecer os salários de suas duas empregadas, Jovita e Carolina: 110 mil- réis cada, correspondentes aos últimos dois meses de trabalho.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

O acionista

Assembléias, dividendos, especulação, câmbio... Um atento Machado acompanhou as mudanças econômicas na passagem da Monarquia para a República
Gustavo Franco

Machado de Assis escreveu crônicas semanais durante mais de 40 anos. Seu comentário sobre nossa História se estende para todas as direções, inclusive a economia. Especialmente na década de 1890, diversas vezes os leitores se depararam com uma mesma observação – “a semana foi toda finanças” –, após a qual, as crises e os pacotes econômicos misturavam-se, à moda inconfundível de Machado, com as outras ocorrências da semana, efemérides políticas, literárias e faits divers.

As crônicas “econômicas” de Machado, uma vez dispostas em seqüência, revelam um curioso enredo, que é também um enigma: o inesperado e duradouro interesse do cronista pelos assuntos pertinentes a acionistas, assembléias, deliberações, crônicos problemas de quórum (!) e, principalmente, dividendos.

Deste enredo desponta um “quase personagem”: o acionista. Ele aparece pela primeira vez em 1883 e se despede em 1900, e sua identidade é a chave para se compreender a mensagem de Machado sobre a economia da época. Não era como o acionista atual, pois totalmente desinteressado do que hoje chamamos de “governança corporativa”. Tampouco se incomoda em receber dividendos sobre lucros fictícios, como aconteceu com o Banco do Brasil no período posterior a 1890. O acionista de Machado se parece mais com o que hoje se designa “rentista”, ou seja, alguém que vivia de rendas de escravos, de terras, de casas, de créditos, e de valores. São múltiplas formas de afastamento do trabalho, e ócio elegante, como relata Raymundo Faoro, mediante renda “certa, periódica, obtida sem canseiras e riscos”. O que incluía, por certo, “o fazendeiro, na cidade, que vive de renda, liberto da torturada atividade das plantações e da disciplina dos escravos”.

No “capitalismo político” próprio do Império – onde, nas palavras de Mauá, tudo é “essencialmente oficial”, onde “tudo gira, move-se, quieta-se, vive, ou morre, no bafejo governamental” –, é lícito pensar que, de uma forma ou de outra, todas as rendas acabavam dependendo do Estado, inclusive o dividendo do Banco do Brasil.

O próprio Machado declarou-se acionista do Banco do Brasil algumas vezes. A mais explícita numa “crônica em verso”, de fevereiro de 1888, em que Malvólio, personagem shakespeariano bufo que assina o texto, declara, no início de uma detalhada descrição (em verso!) de uma assembléia de acionistas do Banco do Brasil encarregada de reformar seus estatutos:

Eu, acionista do banco
Do Brasil, que nunca saio,
Que nunca daqui me arranco,
Inda que me caia um raio,

E no final, a propósito dos novos diretores eleitos, arremata:

Para mim tudo é mestre
Conquanto que haja, certinho,
No fim de cada semestre
O meu dividendozinho

Machado falava por alegorias: sentia-se “acionista do Império”, ou “sócio do Imperador”. Era como se a condição de dono de empresa (ou seja, acionista) fosse indistinguível da do proprietário de títulos públicos de renda fixa, líquida e certa, como, aliás, era o seu caso. Era como dizer que as empresas eram todas estatais e nosso capitalismo, uma “idéia fora do lugar”, para usar a expressão consagrada de Roberto Schwarz.

Com as mudanças deflagradas pela abolição, a preguiçosa rotina do acionista imperial é destruída pelo furacão modernizador da República. As inovações no terreno da moeda, e os bancos de emissão a alimentar projetos grandiosos, retiram do acionista o tédio e também qualquer noção de segurança. Nada mais bem achado que o cronista afirmar que 17 de janeiro de 1890 tinha sido “o primeiro dia da Criação”. Naquela data, entraram em vigor a lei de reforma bancária e a nova lei societária, ambas de Ruy Barbosa, compondo o primeiro “pacote econômico” da República.

O fato é que o desmoronamento do Império decide o impasse de tantos anos a favor do “papelismo”, os heterodoxos da época. Mas o início dos novos bancos de emissão da República mistura altos desígnios, inovação doutrinária e a mais rasteira improvisação, e mesmo doses de mercantilismo e malversação. A torrente de papel- moeda parece replicar a triste experiência de John Law (1671-1729) na França, o mais rocambolesco de todos os pânicos financeiros, o que, aliás, não escapa a uma evocação do cronista: “Grande Law! Tu tiveste o teu dia de celebridade, depois viraste embromador; e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos”.

O acionista não desaparece durante o turbilhão de euforia e crise da Bolsa de Valores. Está alerta para os novos acontecimentos, e canalha como Brás Cubas ao recomendar as debêntures de uma estrada de ferro já falida a um amigo chacareiro, e como o benfeitor vigarista que concede alforria ao escravo Pancrácio na véspera da abolição. Em muitas crônicas, e também mais adiante em Esaú e Jacó (1904), vamos encontrá-lo a refletir com imenso cuidado sobre a guerra santa no terreno da política. As acusações eram pesadas para ambos os lados: por que as rendas decorrentes de privilégios, aí incluído o aluguel de escravos, seriam mais legítimas que os “ágios” apropriados pelos empresários do Encilhamento? O fato é que as imoralidades do Império, mais contidas ou assimiladas ou ocultas, não serviam como álibi para as da República, e Machado, naturalmente avesso a polêmicas, parecia dividido.

Apesar de desancar os excessos da especulação e das novas fortunas, Machado trata de outros aspectos da vida econômica da jovem República com indícios claros de fascinação. Na mesma crônica em que avacalha John Law, ele exalta o novo bonde elétrico e, no terreno da renovação urbana, concorda com a demolição do cortiço conhecido como “Cabeça do Porco” pelo prefeito Barata Ribeiro (1843-1910). Ainda mais interessante é a analogia que o cronista costura entre o grande cortiço e o Banco do Brasil que, a bem dizer, também estava condenado. “Chovem assuntos modernos”, deslumbra-se o cronista.

Seu olhar sobre o “bota-abaixo” no câmbio não poderia deixar de ser ambíguo, hesitante ou oblíquo, numa clara indicação da destruição de um passado ordenado e acolhedor, tanto mais distante e irrecuperável quanto mais o câmbio se afastava dos 27 pence por mil-réis, a paridade de 1846. No começo, o afundamento do câmbio parece-lhe um “fastio”, pois se era devido ao excesso de emissões ou à balança de comércio, que diferença fazia, contanto que voltasse? A decadência da moeda atinge o ápice em 1896, com o câmbio a 8 pence, um “algarismo que eu presumia nunca ver nas tabelas cambiais”. Era a indicação de que não havia mais retorno.

O saneamento das finanças públicas vai evoluindo lenta e dolorosamente ao longo dos últimos anos do século XIX, ao sabor de tensões em torno da liquidação do Banco do Brasil (a essa altura conhecido como Banco da República), que efetivamente ocorre em 1900. O acionista parece compreender alguns aspectos singulares deste novo mundo: percebe que não só o seu “dividendo” não virá, como também que ainda vão lhe tirar algum. Começa a comportar-se como um acionista moderno, na medida em que enxerga também o lado do passivo: em vez de lucros fictícios, prejuízos reais, decorrentes do mecanismo da inflação, que lhe subtrai poder de compra, ou pela postergação do pagamento dos juros das apólices, que de fato o vitimou a partir de 1898. Sim, a moratória daquele ano alcança os títulos do cronista, que nunca seriam inteiramente honrados: duas outras moratórias, em 1914 e 1931, e mais uma “renegociação” em 1943, resultariam em pagamentos de juros e amortizações em novos títulos, e em descontos, estendendo tanto seu prazo que, já no pós-guerra, a inflação faria o trabalho derradeiro de reduzi-los a valores irrisórios. Como investidor, Machado foi um extraordinário literato.

A breve retomada da crônica – interrompida em 1897 – em novembro de 1900, flagra o acionista em momento de nostalgia pelo fim do Banco Rural e Hipotecário, que tinha iniciado suas atividades nos anos 1860, e, mais significativamente, pela morte do ex-escravo João, sineiro da Igreja da Glória desde 1853. Conta o cronista que João repicara os sinos para batizados e casamentos, gabinetes e guerras. De modo comovente e oblíquo, Machado ocupa o lugar do sineiro e recua 30 anos para contar de um acionista, “lento, aborrecido ou zangado”, que vai a uma assembléia do Banco Rural e Hipotecário. Ali o cronista ouve o que diz ser um princípio eterno: “O acionista é um substantivo masculino que exprime (...) credor de dividendos (...) que a diretoria administre, vá, mas que lhe tome o tempo em prestar-lhe contas, é demais. Preste dividendos, são as contas vivas”.

O percurso do acionista chega ao fim. Depois de uma longa aventura pelos riscos da modernidade, ele retorna ao porto de onde foi tragado pelo destino para enfrentar as mudanças iniciadas pela abolição. Continua rentista como no início, mas seu olhar tem maior alcance, uma vez que se enxerga sócio não mais do imperador, mas das finanças públicas. E elas se tornaram “públicas” de um jeito que nunca foram, pois agora trazem riscos para os “sócios” do Estado, os detentores de apólices. Estes, trinta anos depois, continuam preguiçosos e indispostos com os “divisores” (a administração). Nada parece ter mudado; o capitalismo republicano continua muito parecido com o do Império. O pessimismo machadiano com o “barro humano”, especialmente aquele empregado na política e na economia, encontra aí uma de suas mais interessantes manifestações.

Gustavo Franco é economista e organizador do livro A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista (Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2008).

Saiba Mais - Livros:

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana vol. 356, 1976.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo, Machado de Assis. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1990.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Enigmas no tabuleiro

Aficionado por xadrez, Machado cita o jogo em várias obras e o incorpora à sua personalidade
Cláudio de Souza Soares

Sobram apenas quatro peões e um distante cavalo escoltando o rei preto. Os inimigos preparam o xeque: bispo, rainha, cavalo e outros quatro peões, sem falar no rei branco. Diante dessas peças restantes no tabuleiro, vem o desafio: “Brancas jogam. Mate em dois lances”.


Este foi o primeiro problema enxadrístico elaborado por um brasileiro, publicado na revista Ilustração Brasileira em 15 de junho de 1877. Seu autor: Joaquim Maria Machado de Assis.

Três anos depois, a Revista Musical e de Belas-Artes anunciou o primeiro torneio de xadrez disputado no Brasil. Participariam seis dos melhores amadores da Corte. Cada um jogaria quatro partidas com o outro e, no fim, quem obtivesse o maior número de vitórias seria considerado o vencedor. A pontuação do xadrez é simples: vitória, um ponto, empate, meio ponto. Após as primeiras rodadas do torneio, foi divulgado um resultado parcial. Machado de Assis liderava com seis pontos, seguido de Arthur Napoleão (cinco e meio), Caldas Vianna (quatro e meio), Charles Pradez (quatro), Joaquim Navarro (um) e Vitorino Palhares (um). Mais à frente, o escritor apareceria em terceiro, ultrapassado por Arthur Napoleão e João Caldas Vianna.

Terminar atrás apenas daqueles dois não era nenhuma desonra. João Caldas Vianna Neto (1862-1931) foi o primeiro grande enxadrista brasileiro, idealizador da “Variante Rio de Janeiro” na “Abertura Ruy Lopez”. O maestro Arthur Napoleão (1843-1925), que aos 16 anos enfrentara o campeão mundial de xadrez Paul-Charles Morphy em partida amistosa realizada no New York Chess Club, lutou incansavelmente pela divulgação e pelo desenvolvimento do xadrez no Brasil.

A cronologia do enxadrista Machado de Assis coincide com a presença de Arthur Napoleão na Corte, a partir de 1866. As duas paixões em comum – a música e o xadrez – aproximaram o escritor e o maestro. Foi sob a influência de Napoleão que Machado se iniciou nos segredos do tabuleiro, do qual passou a ser um aficionado, fazendo do xadrez um sedativo espiritual e um salutar instrumento de convivência social.

Sua intensa dedicação ao jogo nos leva a uma pergunta inevitável: o xadrez ajudaria a explicar o gênio de Machado de Assis? Não faltam precedentes na literatura para justificar essa hipótese. O escritor russo-americano Vladimir Nabokov considerava a criação de um romance semelhante à composição de um problema enxadrístico. Para o novelista russo Ivan Turgueniev, o xadrez era “uma necessidade tão imperiosa quanto a literatura”. Ao longo da História, o interesse pelo “jogo imortal” acompanha muitos dos que abraçam o ofício das letras. A lista inclui, entre outros, William Shakespeare, Goethe, Lewis Carroll, Charles Dickens, Arthur Conan Doyle, Rudyard Kipling, Herman Melville, George Orwell, Stephan Zweig, Dostoievski, Ibsen, Edgar Allan Poe, Bernard Shaw, Tolstoi, Balzac e Guimarães Rosa. Gosto que, é claro, não se limita aos escritores. O xadrez está nas mais nobres biografias, do astrônomo Galileu Galilei aos filósofos Spinoza e Diderot, do químico Mendeleiev, inventor da tabela periódica, aos compositores Beethoven e Chopin.

Se Miguel de Cervantes percebia o xadrez como algo semelhante à vida, Machado de Assis, no conto “Antes que cases” (1875), discorda do escritor espanhol: “A vida não é um jogo de xadrez”. Mais tarde, em Iaiá Garcia (1878), parece voltar atrás quando atribui à personagem principal duas virtudes – “vista pronta e paciência beneditina” –, e assim as descreve: “qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”.

Não chega a ser surpresa constatar que o xadrez seduziu Machado de Assis, um autor que centrou seu interesse na sondagem psicológica e, como poucos, buscou compreender os mecanismos que comandam as ações humanas. Fossem elas de natureza espiritual ou decorrentes da influência que o meio social exerce sobre cada indivíduo, tudo era temperado com profunda reflexão.

A discrição e a obstinação de Machado eram características de um grande enxadrista. Quanto mais sua obra se afirma, mais ele se torna um homem retraído, calado, metido consigo. Em 1880, época de sua mais intensa atividade enxadrística, ele publica, originalmente como folhetim, o romance que para muitos é o divisor de águas em sua carreira: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em 1904, no romance Esaú e Jacó, o autor explica seu método de criação, comparando a narrativa a um jogo de xadrez: “Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos”. “Trebelho” é como se chama qualquer peça do jogo de xadrez. A “troca de serviços” entre o enxadrista e suas peças volta e meia fazia aparecer, explícito, o jogo que seduzia o autor – mencionado também em contos (“Questão de vaidade”, “Astúcias de marido”, “História de uma lágrima”, “Rui de Leão”, “Qual dos dois”, “Quem boa cama faz”), em diversas crônicas e na novela A Cartomante (1884).

Machado de Assis era problemista desde a década de 1870. Publicou vários de seus desafios e enigmas em revistas, além de manter rica correspondência com as seções especializadas dos periódicos da época e ocupar posição destacada nos círculos enxadrísticos do tempo do Império. Em 1868, já freqüentava o Club Fluminense para dedicar-se ao jogo. Anos mais tarde, passou a praticar seu “querido xadrez” no Grêmio de Xadrez, que funcionava em cima do Club Politécnico, na Rua da Constituição, 47. O interesse se prolongou por anos a fio, como revela sua correspondência com o embaixador Joaquim Nabuco. Em 1883, Nabuco lhe enviou de Londres recortes de jornais com descrições de partidas, atendendo a um pedido do escritor, que assim agradeceu: “Antes de falar do livro, agradeço muito suas lembranças de amizade, que de quando em quando recebo. A última, um retalho de jornal, acerca da partida de xadrez, foi-me mandada a casa pelo Hilário”.

Em vários números da revista Ilustração Brasileira e da Revista Musical e de Belas-Artes, Machado é citado como solucionista de problemas de xadrez. Arthur Napoleão, que redigiu seções especializadas em algumas revistas e no Jornal do Commercio, publicou, em 1898, Caissana Brasileira, uma coleção de 500 problemas enxadrísticos seus e de outros autores. Entre eles, aquele problema publicado por Machado de Assis em junho de 1877. A respeito desse “enigma machadiano”, o maestro registrou o seguinte comentário: “Como o poeta francês Alfred de Musset, Machado de Assis compôs um bonito 2 lances”.

Alfred de Musset (1810-1857), o “Poeta Romântico do Xadrez”, foi uma das referências literárias de Machado, e parece ter sido também uma de suas referências como enxadrista. Em 1848, Musset tornou-se membro assíduo do famoso Café de la Régence, em Paris. Centro mundial do xadrez, o Café era o lugar preferido da intelectualidade parisiense. O xadrez do século XIX inspirava-se no sentimento romântico: os jogos eram francos e suicidas. Conta-se que, no momento em que irrompeu a Revolução de 1848, em 24 de fevereiro, Musset estava no Café de la Régence, no meio de uma partida. Os tiros começavam a ser ouvidos das ruas, mas foram ignorados pelo poeta, que continuou contemplando o tabuleiro.

Anos mais tarde, provavelmente inspirado por essa história a respeito de Musset, Machado escreveu em crônica de 1° de junho de 1877 para a Ilustração Brasileira:

Conta-se que no Café da Regência, em Paris, onde se joga o xadrez, dois adversários tinham encetado uma partida, quando entrou um freguês às 9 horas e meia e falou a um dos jogadores:
– Como tens passado, Janjão?
O jogador não lhe respondeu; mas, à meia-noite, acabada a partida, ergueu a cabeça e disse placidamente:
– Assim, assim. E tu?
O outro estava, desde as onze, entre os lençóis.

Além dessa incrível capacidade de concentração desenvolvida por seus praticantes, o xadrez tem a fama de estimular outros talentos humanos. Entre eles, o da memorização visual. Um pitoresco relato mostra como este dom assumiu em Machado um caráter todo especial, invadindo o terreno da ficção. Quem conta é o escritor Medeiros e Albuquerque (1867-1934):

Certo dia, Machado me chamou na rua para contar-me este fato: disse-me que, na véspera, à tarde, quando voltava para casa, vira no Largo da Carioca um sujeito que ele conhecia. Conhecia; mas não sabia de onde. Rodou em torno do sujeito, fazendo um grande esforço de memória para lembrar-se de onde o vira, até que, de súbito, achou: Ah! É o Raposo do Medeiros! Eu tinha publicado, dias antes, na Revista Brasileira, um conto – “As calças do Raposo”. Lendo-o, Machado de Assis evocara um certo tipo para o meu Raposo.

Ou seja: Machado era capaz de evocar um personagem com tanta nitidez que julgava encontrá-lo na vida real!

Para a mente de um romancista-enxadrista, a associação do jogo com a literatura soa natural. A leitura de um livro é apenas uma das possibilidades que o arranjo de suas jogadas, ou histórias, pode conter. Esse é o princípio da combinatória. Esse é o princípio do jogo que Machado propõe aos seus leitores.

Enquanto um livro de Machado de Assis for exumado de uma estante e lido, é porque a partida continua. Estamos em xeque. O próximo movimento de Machado de Assis é um enigma. A ressaca no olhar inesgotável de Capitu é apenas um deles. Pistas essenciais para o estudo da obra do grande escritor brasileiro poderão ser descobertas nos labirintos do tabuleiro, no contínuo movimento de suas peças? Como ele próprio nos aconselha em Iaiá Garcia, será preciso “manter a vista pronta e a paciência beneditina”, pois aqui (e assim é a própria vida) jogamos xadrez.

Cláudio de Souza Soares é enxadrista, analista de sistemas e autor do artigo "Machado de Assis, o enxadrista" (Revista Brasileira, Nº 55, Academia Brasileira de Letras, 2008).


Saiba Mais - Livros:

CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
DOYLE, Plínio. “Machado de Assis, jogador de xadrez”. Rio de Janeiro: Boletim da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, nº 1, setembro de 1958.
MATHIAS, Herculano Gomes. “Machado de Assis e o jogo de xadrez”. Rio de Janeiro: Anais do Museu Histórico Nacional, vol. XIII, 1964.
SHENK, David. O Jogo Imortal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

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Machado de Assis - Tem alguém aí?


Diante dos poucos e indiferentes leitores que tinha, Machado resolveu provocá-los em sua ficção
Hélio de Seixas Guimarães

“Atingir os pontos nevrálgicos do leitor”. Este parece ser um dos principais objetivos da obra de Machado de Assis, conforme disse um dos seus grandes intérpretes, Augusto Meyer, ainda na década de 1930. O diálogo direto com quem lê é, de fato, uma obsessão machadiana, e atravessa praticamente toda a sua obra, da crônica ao teatro, do conto ao romance. Mas é principalmente nos romances que o leitor ocupa um lugar central e dramático.

A colocação do leitor como problema crucial da escrita coincide com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881. O romance que alterou os rumos da literatura produzida no Brasil, colocando-a num outro patamar de qualidade, começa, não por acaso, com o célebre prólogo “Ao leitor”. Não se trata de um prólogo como outros, assinado pelo autor Machado de Assis, ou pelas iniciais M. A., que antecedem o início da narração ficcional. Esse prólogo já aparece integrado à ficção e vem assinado por Brás Cubas, narrador e personagem principal do romance. A partir dali, o leitor torna-se figura fundamental e matéria constitutiva da ficção de Machado de Assis.

Essa nova disposição (ou será indisposição?) em relação ao leitor fica clara nas palavras iniciais do romance:

AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. [...]

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

BRÁS CUBAS.

Inaugura-se aqui, com a ameaça do piparote, a agressividade extrema no trato com os interlocutores. Estes não só serão contrariados em suas expectativas, como já acontecia nos romances anteriores, mas freqüentemente chamados de obtusos, teimosos, afoitos, sensaborões, caluniadores etc. Machado renovava o romance brasileiro introduzindo em sua prosa o leitor malicioso, imprestável, preguiçoso, impaciente... No conjunto, essa galeria formava um público de qualidade duvidosa e numericamente exíguo, o que também representava uma inovação no plano ficcional.

Ao perguntar quantos seriam – Cinqüenta? Vinte? Dez? Cinco? –, Brás Cubas (e quem sabe o próprio Machado?) chamava a atenção para uma questão crônica na literatura brasileira: o público reduzido e a falta do hábito da leitura. A situação desfavorável à ampla circulação das letras havia muito era intuída pelos escritores, que em cartas, crônicas e artigos reclamavam da pouca repercussão dos seus livros. Muitas vezes atribuíam isso à indiferença do público, que preferia os livros estrangeiros, sobretudo os franceses. Em certa medida tinham razão, pois a elite era capaz de ler também em francês. Entre um livro francês e um livro brasileiro que quase sempre tinha na França o seu modelo, muita gente não vacilava e preferia ir direto ao modelo.
Mas o problema não se resumia ao gosto pelo livro francês. Tinha causas mais estruturais que por muito tempo permaneceram desconhecidas, já que não havia dados e informações que dessem uma dimensão real do que ocorria. Foi justamente enquanto Machado produzia sua obra que se revelou que mais de 80% da população brasileira não sabia ler. Isso se deu com o primeiro recenseamento geral do Império, feito em 1872, mas cujos resultados só seriam divulgados em agosto de 1876, quando Machado já publicava seu terceiro romance, Helena, e quatro anos antes da publicação das Memórias póstumas, aos pedaços, na Revista Brasileira.

O censo indicava que somente 16% da população brasileira era alfabetizada. A porcentagem tornou-se ainda menor em 1890, quando se apurou que 14,8% da população sabia ler e escrever. Ainda segundo o censo de 1872, apenas 12 mil pessoas freqüentavam a educação secundária e havia oito mil bacharéis no país, número ínfimo diante dos quase 10 milhões de habitantes.

Os números caíram como um raio sobre o público letrado. De Norte a Sul, as reações misturavam indignação e surpresa, resumidas na seguinte frase: “Somos um povo de analfabetos!” O próprio Machado escreveu uma crônica sobre os resultados do censo, questionando a representatividade das leis e dos discursos num país em que a esmagadora maioria da população estava excluída de qualquer processo que envolvesse uma relação direta com a palavra escrita.

Nesse panorama verdadeiramente desolador, quantos seriam os possíveis leitores de um romance? E qual seria a qualidade deles?

Basta verificar o modo como a obra de Machado de Assis circulou e foi recebida para se ter uma idéia das respostas possíveis a essas perguntas.

Não resta dúvida de que Machado foi um escritor festejado por seus contemporâneos antes mesmo de publicar Memórias póstumas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), hoje amplamente reconhecidos como suas obras-primas. Já nas décadas de 1860 e 1870, quando ainda não estreara como romancista, Machado era muito respeitado como crítico, poeta e autor de teatro. Por outro lado, sua obra não atendia às expectativas do tempo e não se adequava aos modelos literários mais prestigiosos daquele momento.

A princípio, foi entendida como um grande capítulo de negativas, faltando a ela colorido de linguagem, movimentação de enredo, descrições de paisagens locais, comprometimento com as questões brasileiras etc. Essas eram opiniões generalizadas entre os homens mais inteligentes e informados do tempo, como Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo. De maneiras diferentes, todos expressaram desconforto com a obra, que não sabiam como classificar.

Tudo indica, portanto, que, além de mal compreendido, Machado foi também pouco lido. Para além dos críticos literários, não sabemos quase nada sobre o modo como sua obra teria sido lida por gente comum. Até hoje não veio à luz nenhuma carta de leitor ou leitora comum endereçada a Machado ou qualquer correspondência publicada nas seções de cartas das dezenas de jornais e revistas em que publicou boa parte da sua obra ao longo de toda a vida.

A primeira versão de Quincas Borba, por exemplo, foi publicada num jornal de modas voltado para o público feminino, chamado A Estação. A publicação do romance durou cinco anos e foi toda acidentada, com várias interrupções. Apesar disso, estranhamente não há registro de reclamações ou pedidos de esclarecimento sobre essas interrupções. Helena, que foi dos romances mais populares de Machado, teve uma primeira edição de 1.500 exemplares e só chegou à segunda edição em 1905, depois de 29 anos!

Vale lembrar que Machado não era um entre vários grandes escritores em atividade, mas o grande escritor brasileiro, uma espécie de chefe da literatura nacional, que havia muito ocupava os lugares mais proeminentes da vida cultural brasileira.

Claro que havia a publicação em jornais e revistas, e que os livros, então muito caros, passavam de mão em mão. Mas quantos poderiam formar esse público silencioso, que não deixou marcas de sua existência? É isso que Machado, por meio de Brás Cubas, parece perguntar a si mesmo e a seus leitores no famoso prólogo.

E a resposta não parece ter sido muito animadora.

Memórias póstumas de Brás Cubas foi recebido com um silêncio quase sepulcral. Apenas três notas e três pequenos artigos saudaram a publicação do romance. Um tom de perplexidade perpassa as indagações dos críticos: Será um romance? Um livro de filosofia mundana? Uma autobiografia?

O próprio Machado parece ter esmorecido logo depois da publicação desse livro, a ponto de se queixar em carta ao cunhado, Miguel de Novais. Na resposta, datada de julho de 1882, o cunhado tentava animá-lo:

“Parece-me não ter razão para desanimar e bom é que continue a escrever sempre. Que importa que a maioria do público lhe não compreendesse o seu último livro? – há livros que são para todos e outros que são só para alguns – o seu último livro está no segundo caso e sei que foi muito apreciado por quem o compreendeu – não são, o amigo sabe-o bem, os livros de mais voga os que têm mais mérito. Não pense nem se ocupe da opinião pública quando escrever – A justiça mais tarde ou mais cedo se lhe fará, esteja certo disso”.

O notável é que Machado, em vez de tapar o sol com a peneira ou reclamar pelos cantos, como fizeram muitos escritores antes e depois dele, soube encarar a carência e o despreparo dos leitores, trazendo o problema da comunicação literária para o centro da sua ficção. Ao fazer uma literatura que coloca o leitor e a leitura como questões fundamentais, Machado nos convida à reflexão sobre as condições difíceis da produção e da difusão da literatura no Brasil, o que vale tanto para o século XIX como para os dias de hoje. Em pesquisa recente do Instituto Pró-Livro, 45% da população declara não gostar de ler, e quem lê compra em média 1,2 exemplar por ano.

Reler Machado de Assis pode nos ajudar a construir uma perspectiva histórica para a questão da leitura, que permanece como problema urgente e nevrálgico, a ser enfrentado sem subterfúgios.

HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor da USP e autor do livro Os leitores de Machado de Assis – o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (Nankin/Edusp, 2004).


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