História Oral e Hermenêutica
JOSÉ JOACI BARBOZA
História Oral e Hermenêutica
Centro de Hermenêutica do Presente e mestrando em Ciências Humanas - UFRO
A oralidade enquanto método de investigação é utilizado desde a Antigüidade, contudo, percebemos que desde o século XVIII, quando a História começa a se constituir enquanto disciplina acadêmica, a oralidade é relegada a segundo plano em detrimento da escrita. Nesse período está se constituindo a classe social que se tornará hegemônica e assumirá o poder. E uma das características inerentes a mesma é a instituição da escola e da escrita como instrumento de dominação e consolidação da hegemonia.
Na Revolução Francesa, Jules Michelet se utiliza da História Oral para narrar a História do Povo; ele queria assegurar um caráter popular a Historiografia. Desde então até a década de quarenta do século vinte, predominou na Historiografia a fonte escrita como único instrumento digno de ser utilizado pelos historiadores. Essa prática é denominada por Gwyn Prins como o período do preconceito para com a oralidade: “Os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada” (1992: 166).
Surge no início da década de vinte uma perspectiva de mudança quando os historiadores franceses da escola dos Annales elaboram a crítica à historiografia positivista. Para os historiadores da escola dos Annales a eleição dos documentos escritos como único instrumento capaz de reter a história acabou dando a história um caráter político excludente, restrita as grandes personalidades. A critica feita pelos Annales amplia o conceito de fontes históricas e resgata o conceito de documento monumento, o que dá aos historiadores novos paradigmas e perspectivas, contudo, percebemos que essa ampliação não vai desembocar de imediato na História Oral que, irá surgir duas décadas depois nos Estados Unidos, sendo que até hoje as fontes orais ainda são pouco utilizadas na França.
A Moderna História Oral só será inventada na década de quarenta, pós Segunda guerra Mundial. É quando os sociólogos da escola de Chicago passam a utilizar “a entrevista, a observação participante e a biografia como meios privilegiados para a análise da realidade social” (Gattaz, 1996: 238). Outra condição necessária para a existência da Moderna História Oral é a invenção do gravador portátil que coincide com este período.
O adjetivo Moderna, que aparece na frente da História Oral, é utilizado para distinguir a história que tem como fonte a oralidade nas décadas de quarenta até os nossos dias, da prática antecedente. É que anteriormente o uso de equipamentos como gravador e filmadoras era impossível em virtude da inexistência dos referidos instrumentos.
A partir de então várias tendências tem surgido na História Oral, a primeira era caracterizada pelas entrevistas com membros das classes dirigentes, posteriormente surge na Inglaterra com Paul Thompson à história dos excluídos a partir de seu manual A Voz do Passado, já Alessandro Portelli não percebe a história oral como um instrumento capaz de fornecer informações sobre o passado, o que lhe interessa é a subjetividade dos narradores. Outras tendências como a psicológica e a arquivista também irão surgir, contudo, não pretendo analisar as tendências da História Oral nos últimos cinqüenta anos, o que já foi feito por vários autores, como André Castanheira Gattaz (1998) e Marieta de Morais Ferreira (1994).
No Brasil a História Oral só irá surgir a partir da década de setenta, quando a Fundação Ford em parceria com a Fundação Getulio Vargas promovem um encontro com especialistas em biblioteca e documentação. A idéia era articular um grupo que “pudesse criar uma infra-estrutura de documentação para a pesquisa na área de Ciências Sociais” (FERREIRA, 1995: 11).
Como no período do encontro o Brasil vivia em pleno regime militar e a gravação era tida como um instrumento de delação e causava muito medo nos possíveis colaboradores. A história oral só foi se desenvolver plenamente com o fim do regime militar, o que ocorreu no final da década de oitenta. Isso não implica em dizer que a história oral não tenha dado seus primeiros passos ainda na vigência do regime militar. Houve avanços tímidos, porém significativos, principalmente, quando elegem os dirigentes nacionais da década de 30 para serem entrevistados.
Acredito que no Brasil duas tendências tem predominado no cenário editorial: a primeira trabalha as fontes orais dando o mesmo tratamento dispensado às fontes escritas, ou seja, busca a partir dos textos preencher lacunas no conhecimento existente sobre um determinado tema, e por adotarem tal procedimento fragmentam as narrativas dos colaboradores com o intuito de corroborar com as hipóteses do pesquisador, a segunda é caracterizada por conferir algum tipo de tratamento às narrativas, tratamento que consiste em teatralizar e melhorar os textos, e por apresentar as entrevistas na integra como parte integrante dos resultados da pesquisa.
Nessa Segunda vertente enquadro a história oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy (1990; 1991)e Ecléa Bosi (1994), sendo que o primeiro dá um tratamento histórico as fontes orais e a segunda trabalha com a memória.
A história oral desenvolvida por Meihy, na realidade, aponta para duas perspectivas: a construção de uma história oral preocupada em transformar as narrativas em documentos históricos e outra que apesar de não ser diretamente desenvolvida pelo mesmo, apresenta em suas obras uma perspectiva textual, ou seja, não pensa em construir documentos históricos, e sim criar textos capazes de rosar no presente e estabelecer uma hermenêutica do mesmos.
É do diálogo entre a segunda perspectiva de História Oral iniciada por Meihy, a semiologia barthesiana, a analise do discurso, a poética bachelardiana associado a uma crítica ao presente e ao discurso histórico, é que será criada em meados da década de noventa, em Rondônia, a Hermenêutica do Presente, disposta a estabelecer uma guerrilha teórica com o estabelecido como forma de desnaturalizar e desobjetificar o presente, transformando-o em matéria magmática capaz de criar e recriar o estabelecido.
Na definição de Alberto Lins Caldas: “Aquilo que denominamos Hermenêutica do Presente tem se apresentado, antes de tudo, como uma leitura radical (o redimensionamento das ações, do ser, dos saberes, das existências, dos discursos), e uma das funções dessa leitura é iniciar outra reflexão e outra ação, fora de um conhecimento e um saber positivos (seu rastro é negativo, não é a contrapelo: é tosa, corte, dessecação, calcinação, dissolução) (2000: 5).
Penso que este percurso traçado ate o parágrafo anterior é necessário para demonstrar o caminho que a História Oral tem seguido desde a sua invenção na década de quarenta do século passado até o presente momento. Ele é importante porque é a partir de um desdobramento dessa História Oral que se pôde vislumbrar a interpretação desnaturalizante do presente. Hoje há quem pense que a hermenêutica que fazemos já não tem mais nenhum vínculo com a História Oral, contudo ainda é uma matéria privilegiada para a construção de textos virtualizantes.
O que caracteriza e aproxima a Hermenêutica do Presente e a História Oral é o fato de percebermos que as narrativas das experiências de vidas coloca o hermeneuta em contato com o presente, enquanto múltiplas dobras que contém o passado, já que as entrevistas se processam como um constructo permanente, que é recriada cada vez que o colaborador narra suas experiências.
Essa perspectiva difere, radicalmente, da História enquanto disciplina, na medida em que a matéria com que trabalha o historiador são as cinzas, ou os vestígios daquilo que se imagina ter existido, até mesmo porque não é da competência da História estudar o presente, no que pese as tendências atuais que prezam por uma história do presente e de caráter arquivista, já que não pode analisar os fatos em função da proximidade existente entre o historiador e o seu objeto de estudo. As entrevistas por sua vez, não colocam imediatamente o hermeneuta em contato com esse magma que é o presente, já que o presente não é um já feito e sim um em se fazendo, em construção.
Para a Hermenêutica do Presente dois conceitos são de fundamental importância: o primeiro é a de Cápsula Narrativa, que transforma o discurso do colaborador em algo construído no movimento do tempo da narrativa, ou seja, o colaborador não é um soldado da borracha ou militante partidário, mais um sujeito virtual que se constitui na medida em que narra suas experiências de vida, isso implica em uma prática onde o oralista não mais formula um questionário de perguntas do tipo: onde você nasceu? Como foi a sua infância? Etc.
O segundo conceito é o de textualização, que assegura ao oralista a possibilidade de mexer no texto para torná-lo mais compreensível para o leitor, acreditada-se que ao interferir no texto, reforça a vitalidade da virtualidade do presente e do mundo. É o momento em que o hermeneuta interage com a narrativa do colaborador, só que esse processo não se inicia com o texto escrito, pois tem início desde o momento em que é estabelecido o primeiro contato com o colaborador.
Esses dois conceitos são, por assim dizer, fundamentais para a hermenêutica do presente porque partem de pressuposto: o primeiro (cápsula), de que ao elaborar as questões para serem respondidas pelos entrevistados (colaboradores) o oralista (entrevistador) projeta no outro todas as noções de temporalidade: passado, presente e futuro; preconceitos do tipo pobre, rico, homem, mulher, negro, branco soldado da borracha, hanseniano ou petista, sem permitir que o outro se constitua, se diga como se percebe e sim como o oralista gostaria que o outro fosse, um mero objeto de pesquisa.
Quanto ao segundo conceito (transcriação) é fundamental porque reforça no imaginário do hermeneuta a noção de virtualidade, sabemos que a transcriação não é só a passagem do texto oral para o escrito, ela se dá quando planejamos entrevistar o outro, quando entrevistamos e quando operamos a mudança de código. E a virtualidade é confirmada quando levamos os textos para serem conferidos pelos colaboradores, na maioria das vezes eles nos afirmam “é isso mesmo”, “eu não acredito que podia contar toda a minha vida, embora ela esteja toda aí como aconteceu”.
São esses dois conceitos que diferenciam o trabalho que realizamos do tipo de história oral desenvolvido por Meihy. Para Meihy as entrevistas são entrevistas no sentido literal do termo, enquanto para nós não há, ao menos no primeiro momento, entrevista nenhuma, já que não elaboramos perguntas aos colaboradores, eles iniciam os seus relatos de onde bem desejam e terminam da mesma maneira, alias é isso que denominamos de Cápsula Narrativa. O segundo elemento é decorrente do primeiro, como Meihy trabalha com perguntas e resposta sente a necessidade de ocultar as perguntas nas respostas, já que as respostas contém as perguntas, esse processo é denominado de transcriação, nós entendemos esse processo de forma bastante diferenciada, ou seja, a transcriação se inicia quando estabelecemos os primeiros contatos com os colaboradores.
Para muitos críticos da Hermenêutica do Presente esse processo acaba por retirar a objetividade necessária aos textos, e confere uma certa subjetividade aos textos acadêmicos. Essa é uma questão irrelevante para os hermeneutas já que sabem que, desde Karl Popper passando por Gaston Bachelard os cientistas deveriam saber que não existe na ciência um movimento do real para o imaginário e sim um imaginário fundante, que cria e recria o que denominamos de real.
A História Oral praticada pelo Hermeneuta não tem o objetivo clássico de investigar uma área do conhecimento pouco conhecida, tampouco tem a intenção de preencher lacunas nos documentos existentes, já que o conhecimento também é visto como parte constitutiva do presente que precisa ser desnaturalizado pelo Hermeneuta.
Quando afirmo que o tipo de História Oral desenvolvido por Meihy do qual nos apropriamos e redimensionamos não é percebida e explorada por ele, aparece enquanto insinuação no Manual de História Oral, quando o mesmo admite a virtualidade da narração dos colaboradores ao afirmar:
“a questão da verdade neste ramo da história oral depende exclusivamente de quem dá o depoimento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que esteve em outro planeta, que é a encarnação de outra pessoa, não cabe duvidar. Afinal, este tipo de verdade constitui um dos eixos de nossa realidade social e, em último caso, não buscamos saber se existem (ou não) ovnis (objetos voadores não-identificado)s ou espíritos. Nossa busca implica entender a forma de organização mental dos colaboradores” (2000: 63, 64).
Aqui penetra toda a fertilidade do Hermeneuta, ou seja, ele parte do princípio de que o texto do colaborador não diz a sua história, nem tampouco a história do grupo, mas aponta para as múltiplas dimensões do presente, ou seja, sua virtualidade. Ao narrar suas experiências de vida o colaborador constrói sua história, o seu presente e redimensiona o seu futuro, pois todos os tempos estão presentes em seu discurso.
A entrevista transcriado, ou como denomina Meihy textualizada, se apresenta como qualquer texto, o que diferencia o trabalho da hermeneuta é a leitura que ele fará das entrevistas transformadas em texto, o hermeneuta não se prostra diante do texto como faz o historiador que o toma como objeto sagrado, portador de uma revelação. Outro elemento que caracteriza o trabalho do hermeneuta é a leitura ou melhor, o tempo da leitura para o hermeneuta sua leitura se dá concomitantemente com a dos demais leitores.
Para estabelecer esta leitura o hermeneuta se fundamenta em uma teoria textual que perpassa por Roland Barthes, Michel Foucault, Gaston Bachelard, e as teorias textuais contemporâneas. Desse emaranhado de autores surge a concepção de texto virtual. O texto virtual não é uma categoria diferente de texto, não é o texto escrito na rede de computadores, o texto virtual é qualquer texto, pois todo texto nos remete e nos transporta para outros textos.
Penso ser necessário estabelecer as relações desses autores e a teoria de interpretação que utilizamos para as leituras das entrevistas, sei que as bases já estão lançadas em vários escritos do Caderno de Criação, inclusive um de minha autoria, contudo, esse artigo não pretende esgotar o assunto e sim apresentar a relação existente entre a História Oral desenvolvida por Meihy e a Hermenêutica do Presente.
Quando o cientista social se defronta com seus textos, quer sejam grafados, pintados, vestígios de cerâmica ou quaisquer que sejam suas manifestações, procuram estabelecer uma verdade a partir dele, pressupõe que existe uma interpretação capaz de revelar o sentido oculto, a intenção de quem o escreveu, perpassando por quem o guardou para encontrar a revelação do texto.
O texto acaba revelando o que o pesquisador quer que ele revele, e os resultados apresentados pelo mesmo, normalmente não permitem ao leitor construir outra interpretação, já que os documentos não são apresentados na integra, e quando aparecem é para corroborar com as hipóteses do pesquisador. Não é por acaso que a História Oral tem proliferado dentro e fora dos meios universitários, já que “Uma das razões que explicam a adesão brasileira às práticas da história oral é a frustração reinante nos círculos acadêmicos, que não mais se satisfazem com os resultados anteriores” (Meihy, 2000: 46).
Ao apresentarmos o texto transcriado na integra fazemos para assegurar a polissemia textual, ou seja, desejamos que o texto continue em seu processo de transcriação, que não se encerra com a publicação do texto, mas se multiplica infinitamente a cada nova leitura, a cada contato de textos e virtualidade: dos texto escritos e dos textos leitores.
O texto final ou a interpretação é um momento específico do hermeneuta, onde ele vai além do texto, buscando os textos que perpassam a fala do colaborador, os discursos que lhe atravessam e lhe dão a formatação momentânea. É também o momento de desnaturalizar o estabelecido, já que a principal atividade do hermeneuta é guerrilhar com o estabelecido, o naturalizado e universalizado.
A virtualidade do texto não é uma característica dos textos literários, ou ao menos não é uma particularidade sua. Todo texto é permeado de vozes e de textos que se reportam a outros e enquanto tal requer um leitor virtualizante, que não se contente em decorar o texto, tampouco se satisfaça com o prazer do texto, mas que se proponha a construir outros textos, desfaça a tessitura textual.
O texto não é constituído de sentidos, o sentido não pode estar no texto se o tivesse só seria possível leituras únicas, contudo todo leitor que leu um texto ou livro mais de uma vez percebe que encontrou sentidos antes não contidos nos mesmo. Onde então estariam estes sentidos? Estariam ocultos? O leitor não dispunha de instrumentos capazes de desvelar na primeira leitura? Acreditamos que nem o primeiro, o segundo ou o milésimo sentido atribuído ao texto estava inscrito nele.
A leitura também não pode ser um exercício de descobrir a intenção do autor, como pretende muitos professores e alunos, que acreditam ser necessário descobrir o que o autor queria dizer. Para tal é feito todo um malabarismo que inclui a busca da história “contexto de produção” para perceber o que o autor poderia estar querendo afirmar, como se não fosse possível interpretar um texto de autor desconhecido.
A questão do autor é outra particularidade que precisa ser enfrentada pelo hermeneuta para que ele possa realizar uma leitura livre de amaras, já que quase sempre o autor é um empecilho para uma leitura virtualizante. A categoria autor pressupõe inicialmente a idéia de originalidade, a questão no discurso e no texto é perceber a origem do enunciado, qual a sua intenção. Se o hermeneuta percebe que o texto se inscreve em uma ordem discursiva, e que o dito já fora dito em outros momentos, não existe razão em buscar a autoridade do autor, muito menos a intenção do texto.
A questão da autoria em História Oral exige por si uma reflexão. Quando o historiador se depara com um texto ou documento atribuí posição de destaque, ele aparece citado em notas de rodapé, na bibliografia etc., é de certa maneira sacralizado. Em História Oral o texto é construído em parceria entre o Oralista e o Colaborador, e mesmo que se diga que sem a presença do Oralista o texto não existiria, sem o colaborador não haveria sequer entrevista e por conseqüência texto.
Se o texto é construído nessa relação “eu” “tu” já contém em si toda a virtualidade da junção de seres que se constituem. O outro só existe enquanto projeção, construção do interlocutor que é também construção do outro. Não existiria hermeneuta sem a existência do outro, que cria e é criado na relação dialógica, sem o outro não há diálogo nem tão pouco interpretação.
Eliminado a questão do autor e do texto enquanto referente, o hermeneuta se sente liberto das amaras existentes em textos que são considerados portadores de um segredo ou de uma revelação. O texto passa a ser instrumento de desnudamento da realidade
Penso que a relação existente entre a História Oral e a Hermenêutica do Presente ainda pode produzir inúmeros frutos, na medida em que a oralidade tem se constituído como a principal matéria com o qual os colaboradores se dizem e dizem todo presente. Os textos do “passado” também dizem o presente, não porque se encadeiem em um amaranhado de causalidades, mas porque o presente contém todo passado, já que o passado só existe enquanto discurso do presente, contudo o texto ou reminiscência de textos do passado não possibilitam o leque que a oralidade permiti.
Sei que as entrevistas têm se tornado cada vez mais em pretexto para escrevermos outros textos, dizer e criar um outro presente outras possibilidades, construir outra formatação para o mundo e para nós mesmos, porém sinto que nenhum de nós quer abrir mão da oralidade enquanto suporte necessário para tais construções.
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Primeira Versão
JOSÉ JOACI BARBOZA
História Oral e Hermenêutica
Centro de Hermenêutica do Presente e mestrando em Ciências Humanas - UFRO
A oralidade enquanto método de investigação é utilizado desde a Antigüidade, contudo, percebemos que desde o século XVIII, quando a História começa a se constituir enquanto disciplina acadêmica, a oralidade é relegada a segundo plano em detrimento da escrita. Nesse período está se constituindo a classe social que se tornará hegemônica e assumirá o poder. E uma das características inerentes a mesma é a instituição da escola e da escrita como instrumento de dominação e consolidação da hegemonia.
Na Revolução Francesa, Jules Michelet se utiliza da História Oral para narrar a História do Povo; ele queria assegurar um caráter popular a Historiografia. Desde então até a década de quarenta do século vinte, predominou na Historiografia a fonte escrita como único instrumento digno de ser utilizado pelos historiadores. Essa prática é denominada por Gwyn Prins como o período do preconceito para com a oralidade: “Os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada” (1992: 166).
Surge no início da década de vinte uma perspectiva de mudança quando os historiadores franceses da escola dos Annales elaboram a crítica à historiografia positivista. Para os historiadores da escola dos Annales a eleição dos documentos escritos como único instrumento capaz de reter a história acabou dando a história um caráter político excludente, restrita as grandes personalidades. A critica feita pelos Annales amplia o conceito de fontes históricas e resgata o conceito de documento monumento, o que dá aos historiadores novos paradigmas e perspectivas, contudo, percebemos que essa ampliação não vai desembocar de imediato na História Oral que, irá surgir duas décadas depois nos Estados Unidos, sendo que até hoje as fontes orais ainda são pouco utilizadas na França.
A Moderna História Oral só será inventada na década de quarenta, pós Segunda guerra Mundial. É quando os sociólogos da escola de Chicago passam a utilizar “a entrevista, a observação participante e a biografia como meios privilegiados para a análise da realidade social” (Gattaz, 1996: 238). Outra condição necessária para a existência da Moderna História Oral é a invenção do gravador portátil que coincide com este período.
O adjetivo Moderna, que aparece na frente da História Oral, é utilizado para distinguir a história que tem como fonte a oralidade nas décadas de quarenta até os nossos dias, da prática antecedente. É que anteriormente o uso de equipamentos como gravador e filmadoras era impossível em virtude da inexistência dos referidos instrumentos.
A partir de então várias tendências tem surgido na História Oral, a primeira era caracterizada pelas entrevistas com membros das classes dirigentes, posteriormente surge na Inglaterra com Paul Thompson à história dos excluídos a partir de seu manual A Voz do Passado, já Alessandro Portelli não percebe a história oral como um instrumento capaz de fornecer informações sobre o passado, o que lhe interessa é a subjetividade dos narradores. Outras tendências como a psicológica e a arquivista também irão surgir, contudo, não pretendo analisar as tendências da História Oral nos últimos cinqüenta anos, o que já foi feito por vários autores, como André Castanheira Gattaz (1998) e Marieta de Morais Ferreira (1994).
No Brasil a História Oral só irá surgir a partir da década de setenta, quando a Fundação Ford em parceria com a Fundação Getulio Vargas promovem um encontro com especialistas em biblioteca e documentação. A idéia era articular um grupo que “pudesse criar uma infra-estrutura de documentação para a pesquisa na área de Ciências Sociais” (FERREIRA, 1995: 11).
Como no período do encontro o Brasil vivia em pleno regime militar e a gravação era tida como um instrumento de delação e causava muito medo nos possíveis colaboradores. A história oral só foi se desenvolver plenamente com o fim do regime militar, o que ocorreu no final da década de oitenta. Isso não implica em dizer que a história oral não tenha dado seus primeiros passos ainda na vigência do regime militar. Houve avanços tímidos, porém significativos, principalmente, quando elegem os dirigentes nacionais da década de 30 para serem entrevistados.
Acredito que no Brasil duas tendências tem predominado no cenário editorial: a primeira trabalha as fontes orais dando o mesmo tratamento dispensado às fontes escritas, ou seja, busca a partir dos textos preencher lacunas no conhecimento existente sobre um determinado tema, e por adotarem tal procedimento fragmentam as narrativas dos colaboradores com o intuito de corroborar com as hipóteses do pesquisador, a segunda é caracterizada por conferir algum tipo de tratamento às narrativas, tratamento que consiste em teatralizar e melhorar os textos, e por apresentar as entrevistas na integra como parte integrante dos resultados da pesquisa.
Nessa Segunda vertente enquadro a história oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy (1990; 1991)e Ecléa Bosi (1994), sendo que o primeiro dá um tratamento histórico as fontes orais e a segunda trabalha com a memória.
A história oral desenvolvida por Meihy, na realidade, aponta para duas perspectivas: a construção de uma história oral preocupada em transformar as narrativas em documentos históricos e outra que apesar de não ser diretamente desenvolvida pelo mesmo, apresenta em suas obras uma perspectiva textual, ou seja, não pensa em construir documentos históricos, e sim criar textos capazes de rosar no presente e estabelecer uma hermenêutica do mesmos.
É do diálogo entre a segunda perspectiva de História Oral iniciada por Meihy, a semiologia barthesiana, a analise do discurso, a poética bachelardiana associado a uma crítica ao presente e ao discurso histórico, é que será criada em meados da década de noventa, em Rondônia, a Hermenêutica do Presente, disposta a estabelecer uma guerrilha teórica com o estabelecido como forma de desnaturalizar e desobjetificar o presente, transformando-o em matéria magmática capaz de criar e recriar o estabelecido.
Na definição de Alberto Lins Caldas: “Aquilo que denominamos Hermenêutica do Presente tem se apresentado, antes de tudo, como uma leitura radical (o redimensionamento das ações, do ser, dos saberes, das existências, dos discursos), e uma das funções dessa leitura é iniciar outra reflexão e outra ação, fora de um conhecimento e um saber positivos (seu rastro é negativo, não é a contrapelo: é tosa, corte, dessecação, calcinação, dissolução) (2000: 5).
Penso que este percurso traçado ate o parágrafo anterior é necessário para demonstrar o caminho que a História Oral tem seguido desde a sua invenção na década de quarenta do século passado até o presente momento. Ele é importante porque é a partir de um desdobramento dessa História Oral que se pôde vislumbrar a interpretação desnaturalizante do presente. Hoje há quem pense que a hermenêutica que fazemos já não tem mais nenhum vínculo com a História Oral, contudo ainda é uma matéria privilegiada para a construção de textos virtualizantes.
O que caracteriza e aproxima a Hermenêutica do Presente e a História Oral é o fato de percebermos que as narrativas das experiências de vidas coloca o hermeneuta em contato com o presente, enquanto múltiplas dobras que contém o passado, já que as entrevistas se processam como um constructo permanente, que é recriada cada vez que o colaborador narra suas experiências.
Essa perspectiva difere, radicalmente, da História enquanto disciplina, na medida em que a matéria com que trabalha o historiador são as cinzas, ou os vestígios daquilo que se imagina ter existido, até mesmo porque não é da competência da História estudar o presente, no que pese as tendências atuais que prezam por uma história do presente e de caráter arquivista, já que não pode analisar os fatos em função da proximidade existente entre o historiador e o seu objeto de estudo. As entrevistas por sua vez, não colocam imediatamente o hermeneuta em contato com esse magma que é o presente, já que o presente não é um já feito e sim um em se fazendo, em construção.
Para a Hermenêutica do Presente dois conceitos são de fundamental importância: o primeiro é a de Cápsula Narrativa, que transforma o discurso do colaborador em algo construído no movimento do tempo da narrativa, ou seja, o colaborador não é um soldado da borracha ou militante partidário, mais um sujeito virtual que se constitui na medida em que narra suas experiências de vida, isso implica em uma prática onde o oralista não mais formula um questionário de perguntas do tipo: onde você nasceu? Como foi a sua infância? Etc.
O segundo conceito é o de textualização, que assegura ao oralista a possibilidade de mexer no texto para torná-lo mais compreensível para o leitor, acreditada-se que ao interferir no texto, reforça a vitalidade da virtualidade do presente e do mundo. É o momento em que o hermeneuta interage com a narrativa do colaborador, só que esse processo não se inicia com o texto escrito, pois tem início desde o momento em que é estabelecido o primeiro contato com o colaborador.
Esses dois conceitos são, por assim dizer, fundamentais para a hermenêutica do presente porque partem de pressuposto: o primeiro (cápsula), de que ao elaborar as questões para serem respondidas pelos entrevistados (colaboradores) o oralista (entrevistador) projeta no outro todas as noções de temporalidade: passado, presente e futuro; preconceitos do tipo pobre, rico, homem, mulher, negro, branco soldado da borracha, hanseniano ou petista, sem permitir que o outro se constitua, se diga como se percebe e sim como o oralista gostaria que o outro fosse, um mero objeto de pesquisa.
Quanto ao segundo conceito (transcriação) é fundamental porque reforça no imaginário do hermeneuta a noção de virtualidade, sabemos que a transcriação não é só a passagem do texto oral para o escrito, ela se dá quando planejamos entrevistar o outro, quando entrevistamos e quando operamos a mudança de código. E a virtualidade é confirmada quando levamos os textos para serem conferidos pelos colaboradores, na maioria das vezes eles nos afirmam “é isso mesmo”, “eu não acredito que podia contar toda a minha vida, embora ela esteja toda aí como aconteceu”.
São esses dois conceitos que diferenciam o trabalho que realizamos do tipo de história oral desenvolvido por Meihy. Para Meihy as entrevistas são entrevistas no sentido literal do termo, enquanto para nós não há, ao menos no primeiro momento, entrevista nenhuma, já que não elaboramos perguntas aos colaboradores, eles iniciam os seus relatos de onde bem desejam e terminam da mesma maneira, alias é isso que denominamos de Cápsula Narrativa. O segundo elemento é decorrente do primeiro, como Meihy trabalha com perguntas e resposta sente a necessidade de ocultar as perguntas nas respostas, já que as respostas contém as perguntas, esse processo é denominado de transcriação, nós entendemos esse processo de forma bastante diferenciada, ou seja, a transcriação se inicia quando estabelecemos os primeiros contatos com os colaboradores.
Para muitos críticos da Hermenêutica do Presente esse processo acaba por retirar a objetividade necessária aos textos, e confere uma certa subjetividade aos textos acadêmicos. Essa é uma questão irrelevante para os hermeneutas já que sabem que, desde Karl Popper passando por Gaston Bachelard os cientistas deveriam saber que não existe na ciência um movimento do real para o imaginário e sim um imaginário fundante, que cria e recria o que denominamos de real.
A História Oral praticada pelo Hermeneuta não tem o objetivo clássico de investigar uma área do conhecimento pouco conhecida, tampouco tem a intenção de preencher lacunas nos documentos existentes, já que o conhecimento também é visto como parte constitutiva do presente que precisa ser desnaturalizado pelo Hermeneuta.
Quando afirmo que o tipo de História Oral desenvolvido por Meihy do qual nos apropriamos e redimensionamos não é percebida e explorada por ele, aparece enquanto insinuação no Manual de História Oral, quando o mesmo admite a virtualidade da narração dos colaboradores ao afirmar:
“a questão da verdade neste ramo da história oral depende exclusivamente de quem dá o depoimento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que esteve em outro planeta, que é a encarnação de outra pessoa, não cabe duvidar. Afinal, este tipo de verdade constitui um dos eixos de nossa realidade social e, em último caso, não buscamos saber se existem (ou não) ovnis (objetos voadores não-identificado)s ou espíritos. Nossa busca implica entender a forma de organização mental dos colaboradores” (2000: 63, 64).
Aqui penetra toda a fertilidade do Hermeneuta, ou seja, ele parte do princípio de que o texto do colaborador não diz a sua história, nem tampouco a história do grupo, mas aponta para as múltiplas dimensões do presente, ou seja, sua virtualidade. Ao narrar suas experiências de vida o colaborador constrói sua história, o seu presente e redimensiona o seu futuro, pois todos os tempos estão presentes em seu discurso.
A entrevista transcriado, ou como denomina Meihy textualizada, se apresenta como qualquer texto, o que diferencia o trabalho da hermeneuta é a leitura que ele fará das entrevistas transformadas em texto, o hermeneuta não se prostra diante do texto como faz o historiador que o toma como objeto sagrado, portador de uma revelação. Outro elemento que caracteriza o trabalho do hermeneuta é a leitura ou melhor, o tempo da leitura para o hermeneuta sua leitura se dá concomitantemente com a dos demais leitores.
Para estabelecer esta leitura o hermeneuta se fundamenta em uma teoria textual que perpassa por Roland Barthes, Michel Foucault, Gaston Bachelard, e as teorias textuais contemporâneas. Desse emaranhado de autores surge a concepção de texto virtual. O texto virtual não é uma categoria diferente de texto, não é o texto escrito na rede de computadores, o texto virtual é qualquer texto, pois todo texto nos remete e nos transporta para outros textos.
Penso ser necessário estabelecer as relações desses autores e a teoria de interpretação que utilizamos para as leituras das entrevistas, sei que as bases já estão lançadas em vários escritos do Caderno de Criação, inclusive um de minha autoria, contudo, esse artigo não pretende esgotar o assunto e sim apresentar a relação existente entre a História Oral desenvolvida por Meihy e a Hermenêutica do Presente.
Quando o cientista social se defronta com seus textos, quer sejam grafados, pintados, vestígios de cerâmica ou quaisquer que sejam suas manifestações, procuram estabelecer uma verdade a partir dele, pressupõe que existe uma interpretação capaz de revelar o sentido oculto, a intenção de quem o escreveu, perpassando por quem o guardou para encontrar a revelação do texto.
O texto acaba revelando o que o pesquisador quer que ele revele, e os resultados apresentados pelo mesmo, normalmente não permitem ao leitor construir outra interpretação, já que os documentos não são apresentados na integra, e quando aparecem é para corroborar com as hipóteses do pesquisador. Não é por acaso que a História Oral tem proliferado dentro e fora dos meios universitários, já que “Uma das razões que explicam a adesão brasileira às práticas da história oral é a frustração reinante nos círculos acadêmicos, que não mais se satisfazem com os resultados anteriores” (Meihy, 2000: 46).
Ao apresentarmos o texto transcriado na integra fazemos para assegurar a polissemia textual, ou seja, desejamos que o texto continue em seu processo de transcriação, que não se encerra com a publicação do texto, mas se multiplica infinitamente a cada nova leitura, a cada contato de textos e virtualidade: dos texto escritos e dos textos leitores.
O texto final ou a interpretação é um momento específico do hermeneuta, onde ele vai além do texto, buscando os textos que perpassam a fala do colaborador, os discursos que lhe atravessam e lhe dão a formatação momentânea. É também o momento de desnaturalizar o estabelecido, já que a principal atividade do hermeneuta é guerrilhar com o estabelecido, o naturalizado e universalizado.
A virtualidade do texto não é uma característica dos textos literários, ou ao menos não é uma particularidade sua. Todo texto é permeado de vozes e de textos que se reportam a outros e enquanto tal requer um leitor virtualizante, que não se contente em decorar o texto, tampouco se satisfaça com o prazer do texto, mas que se proponha a construir outros textos, desfaça a tessitura textual.
O texto não é constituído de sentidos, o sentido não pode estar no texto se o tivesse só seria possível leituras únicas, contudo todo leitor que leu um texto ou livro mais de uma vez percebe que encontrou sentidos antes não contidos nos mesmo. Onde então estariam estes sentidos? Estariam ocultos? O leitor não dispunha de instrumentos capazes de desvelar na primeira leitura? Acreditamos que nem o primeiro, o segundo ou o milésimo sentido atribuído ao texto estava inscrito nele.
A leitura também não pode ser um exercício de descobrir a intenção do autor, como pretende muitos professores e alunos, que acreditam ser necessário descobrir o que o autor queria dizer. Para tal é feito todo um malabarismo que inclui a busca da história “contexto de produção” para perceber o que o autor poderia estar querendo afirmar, como se não fosse possível interpretar um texto de autor desconhecido.
A questão do autor é outra particularidade que precisa ser enfrentada pelo hermeneuta para que ele possa realizar uma leitura livre de amaras, já que quase sempre o autor é um empecilho para uma leitura virtualizante. A categoria autor pressupõe inicialmente a idéia de originalidade, a questão no discurso e no texto é perceber a origem do enunciado, qual a sua intenção. Se o hermeneuta percebe que o texto se inscreve em uma ordem discursiva, e que o dito já fora dito em outros momentos, não existe razão em buscar a autoridade do autor, muito menos a intenção do texto.
A questão da autoria em História Oral exige por si uma reflexão. Quando o historiador se depara com um texto ou documento atribuí posição de destaque, ele aparece citado em notas de rodapé, na bibliografia etc., é de certa maneira sacralizado. Em História Oral o texto é construído em parceria entre o Oralista e o Colaborador, e mesmo que se diga que sem a presença do Oralista o texto não existiria, sem o colaborador não haveria sequer entrevista e por conseqüência texto.
Se o texto é construído nessa relação “eu” “tu” já contém em si toda a virtualidade da junção de seres que se constituem. O outro só existe enquanto projeção, construção do interlocutor que é também construção do outro. Não existiria hermeneuta sem a existência do outro, que cria e é criado na relação dialógica, sem o outro não há diálogo nem tão pouco interpretação.
Eliminado a questão do autor e do texto enquanto referente, o hermeneuta se sente liberto das amaras existentes em textos que são considerados portadores de um segredo ou de uma revelação. O texto passa a ser instrumento de desnudamento da realidade
Penso que a relação existente entre a História Oral e a Hermenêutica do Presente ainda pode produzir inúmeros frutos, na medida em que a oralidade tem se constituído como a principal matéria com o qual os colaboradores se dizem e dizem todo presente. Os textos do “passado” também dizem o presente, não porque se encadeiem em um amaranhado de causalidades, mas porque o presente contém todo passado, já que o passado só existe enquanto discurso do presente, contudo o texto ou reminiscência de textos do passado não possibilitam o leque que a oralidade permiti.
Sei que as entrevistas têm se tornado cada vez mais em pretexto para escrevermos outros textos, dizer e criar um outro presente outras possibilidades, construir outra formatação para o mundo e para nós mesmos, porém sinto que nenhum de nós quer abrir mão da oralidade enquanto suporte necessário para tais construções.
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