domingo, 17 de janeiro de 2010

Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem (parte 2)


Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem

Luiz Lima Vailati*
Doutorando/USP

IMPRESSÕES GERAIS

Vejamos primeiro quais eram as impressões mais imediatas e marcantes que exerciam os ritos funerários infantis sobre esses autores. Quando acontecia a esses viajantes presenciarem tanto funerais de adultos como os de crianças, a surpresa que em geral esse espetáculo dava lugar era várias vezes ampliada pelo contraste desconcertante que isso propiciava. Com efeito, sobre os gestos que compunham as práticas fúnebres infantis tomadas em conjunto, a primeira coisa que ocorria a eles era que a morte da criança comportava um comportamento que lhe era próprio e que a distinguia em definitivo dos cerimoniais fúnebres de adultos. Não é outro o motivo que levou o pastor metodista Daniel Kidder, em meados da década de 1830, a ser enfático na afirmação de que, ao se fazer um paralelo entre os funerais de adultos e os de crianças, "o contraste é maior do que se possa imaginar"7.

Primeiramente, o que para esses estrangeiros parecia marcar essa distinção era o aspecto comemorativo que tinham os enterros de criança. Esta característica fez com que estes fossem percebidos por parte dos viajantes como festas apenas e não um cerimonial cujo ritual específico contava com elementos comuns a outras manifestações festivas. Em linhas gerais, essa experiência se lhes afigurava sob o seguinte esquema: morte de adulto/cerimonial circunspecto/tristeza X morte de criança/cerimonial festivo/júbilo. Como Kidder, essa impressão é recorrente em inúmeros outros viajantes. O inglês John Candler, que passou por aqui em 1852, escreveu que esses cerimoniais muito se pareciam com festivais, assinalando neles a ausência do luto, os toques de sinos feitos singularmente — "as if for joy", conforme imaginou — e amigos distribuindo congratulações aos parentes do defunto8. Ao pastor metodista John Luccock teria chamado a atenção o fato de se manisfestar "entre os parentes mais distantes, maior complacência que pesar e, mesmo na mãe, nenhuma dor profunda, nada que ao menos pudesse distinguir dos outros acompanhantes"9. A mesma observação é ponderada por Ferdinand Denis, que esteve no Rio de Janeiro durante a década de 183010. De fato, mais do que qualquer outra coisa, são os "yeux secs" dos participantes desses funerais que causam perplexidade ao francês M. J. Arago, em 183911. Somando-se à visão que enfocava esses costumes fúnebres como produto de uma mistura de superstições de origens as mais diversas, a morte da criança, para alguns deles, dizia mais: ela testemunhava, de maneira inequívoca, o fraco sentimento familiar, em particular o de maternidade, de que sofria a sociedade brasileira. Não é por outras razões que se escandalizara J. Luccock, segundo o qual, em virtude dessa situação, o futuro do Império estaria para sempre comprometido12.

Eles, certamente, não foram obtusos por completo ao conceber como tais os funerais infantis. O erro está em considerar as manifestações constituintes dos enterros dos "inocentes" como derivadas de um certo desprezo pela criança que tornaria possível a comemoração de seu falecimento. Nos funerais infantis, a despeito do que acreditaram esses estrangeiros, havia bastante lugar para a expressão inequívoca de afeto e consideração para com a criança morta. E disso nos dão conta as próprias narrativas de viagem. Na segunda década do XIX, Maria Grahan, ao falar da Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, instituição de acolhimento de crianças abandonadas, acrescenta que ali apareciam também "crianças mortas, a fim de que sejam decentemente enterradas". Sobre bebês mortos que era comum encontrarem-se nas rodas (dispositivos onde eram depositadas as crianças para que a casa os recebesse) igualmente nos informa Daniel Kidder13. De fato, esta prática não só patenteia a existência de uma preocupação com o que seria feito desses "inocentes", como também sobre a extensão social deste costume, que atinge, por sinal, até aqueles que, devido à suas carências materiais, não deixa de ser surpreendente a demonstração de tal desassossego. Confirmando também essa disposição entre os menos abastados temos o caso das escravas libertas, que como observara Daniel Kidder, comumente empregavam parte considerável de seu parco pecúlio na tentativa de garantir um enterro para seus pequeninos que estivesse em conformidade com o que se esperava desse tipo de evento14. Os cuidados com os rituais fúnebres infantis eram, a partir do que essas práticas nos permitem entrever, um dever ao qual ninguém parece se furtar. Não foi Arago (um dos denunciantes da alegria gerada pela morte da criança entre os brasileiros) ele próprio surpreendido pelo fato de estarem damas afoita e repetidamente a beijar o rosto da criança cujo funeral ele presenciara15? Para além de qualquer menosprezo do qual a criança podia ser vítima nesta sociedade, o que está na base deste comportamento é uma determinada concepção de morte e de infância que imprimia uma certa positividade a um evento certamente traumático.

Não é surpreendente que entre os mais bem situados financeiramente — ou que assim quisessem ser tomados por — esse desvelo tivesse se traduzido em grande pompa. De fato, a outra característica desses enterros de "anjo" que marcava a experiência desses estrangeiros era o investimento exagerado. Tal era o dispêndio (material e simbólico) invertido nessas cerimônias, que não poucas vezes chocavam aqueles que estiveram de passagem por aqui no correr do século dezenove. "Procissão triunfal", é como define Kidder sobre um dos funerais que assiste16. O marinheiro americano Charles Samuel Stuart é mais enfático: do enterro que testemunha, recorda não só como "splendid" mas também, "the only spectacle of interest I met"17. De tal forma esse investimento hiperbólico alimentou a imaginação destes europeus que alguns como Dabadie (cujos exageros preconceituosos lhe granjearam a antipatia de G. Freyre), afirmavam ser comum, no Brasil, pessoas se arruinarem para enterrar seus familiares com uma "pompa real". Ele acrescentava que, muitas vezes pelo luxo empregado se tinha em conta que um certo funeral era de um príncipe, ao menos de um senador, quando na verdade o defunto se tratava de uma criança de "origem modesta"18.

Sem dúvida, a liberalidade de que a morte da criança era objeto perante as autoridades episcopais deve ter fomentado a utilização dos funerais infantis como suporte privilegiado de uma manifestação ostentatória tão comum entre as elites tradicionais no Brasil. Como já foi há muito apontado por estudiosos como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, as distinções sociais no Brasil, na ausência de signos estáveis e perenes — tais como gozavam a nobreza européia — costumaram-se assentar no amplo uso de recursos materiais de natureza supérflua, sendo as festas e cerimônias religiosas as ocasiões propícias a dar lugar a essas expressões tão adequadas a uma sensibilidade barroca19. Nos casos dos funerais, a Igreja tridentina tentará a todo custo se opor a estas tendências, atitude revelada numa legislação fúnebre inclinada a limitar tais exageros. Quando se observa que o cerimonial mortuário infantil era deixado de lado por parte das autoridades religiosas, às quais parecia pouco importar a forma como era realizado, não é surpreendente que as elites coloniais se aproveitassem dessa ocasião para, mais do que em qualquer outra, colocar o espetáculo a serviço da manutenção de representações cuja função era dar conta da reprodução da hierarquia social. Resta lembrar, não obstante, que o caráter espetacular dos funerais infantis dizia respeito também a uma certa concepção não só do que era a criança como também sobre a natureza da fé, que deveria se exprimir o mais visivelmente possível. Temos aqui, por conseguinte, um bom exemplo de como a religião dos viajantes, principalmente os de origem protestante, de caráter mais introspectivo, os impedia de ter uma compreensão mais ampla do fenômeno funerário no Brasil.

Revista Brasileira de Historia

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