quinta-feira, 31 de maio de 2012

Rapidinhas ... Vassalagem


O sistema de vassalagem foi uma das principais características do mundo medieval. A vassalagem era um ato de entrega, de lealdade e submissão, declarado espontaneamente por um cavaleiro (vassalo) a outro nobre (suserano) em cerimônia, a homenagem, que se dividia em dois atos: o juramento e a investidura.
Na ocasião, o vassalo, de joelhos, declarava ao suserano que "era seu homem" , após o que selavam um pacto com um beijo. Seguia-se então o juramento, por meio do qual o vassalo prometia ajuda financeira a seu suserano, no caso de um saque ou eventual cavaleiro em guerra (para pagar o resgate).
Em troca, no ato de investidura, o vassalo recebia um feudo, na forma de terra, pensão ou rendimento agrícola. Como se tratava de uma sociedade na qual a escrita era pouco comum, a cerimônia tinha lugar diante de outros cavaleiros, testemunhas oculares do compromisso.
Somente os cavaleiros podiam prestar vassalagem a  outro nobre ou cavaleiro.
Primeiro, porque dispunha de cavalo, armaduras e armas, bens de alto valor e acessíveis a poucos. Segundo, porque se tratava de um pacto entre iguais, entre homens  de mesmo status social.
Os camponeses jamais podiam ser vassalos porque eram servos, com liberdade parcial e status inferior.
Fonte : Ronaldo Vainfas e outros.

Histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro


João Carlos Ramos Magalhães
A origem das favelas na cidade do Rio de Janeiro remonta ao Brasil colonial. Em 1808, 30% da população carioca é expulsa de suas casas para dar moradia aos acompanhantes da família real portuguesa. Para permanecerem no centro da cidade inúmeras famílias passam a residir em habitações coletivas, cortiços, cujo número cresce após 1822, com o abandono de grandes casas, após o retorno dos portugueses com a independência.

Na segunda metade do século XIX iniciam-se fortes movimentos a favor do fim da escravidão no Brasil. Enquanto alguns escravos conseguiam comprar sua liberdade, carta de alforria, outros fugiam para quilombos. Em 1880 vários quilombos abolicionistas já haviam se estabelecido na periferia do Rio, como a chácara do Sr. Le Bron, no atual Leblon, o Quilombo da Penha, atualmente Vila Cruzeiro no "Complexo do Alemão" e o Quilombo da Serra dos Pretos Forros, que divide Jacarepaguá do Grande Méier.

A extinção do regime escravocrata em 1888, sem a criação de políticas de inserção dos ex-escravos no mercado de trabalho ou de garantias básicas de sobrevivência (alimentação, moradia e saúde), gera migrações em massa para as cidades de desempregados e subempregados que, sem condições de comprar ou alugar moradias legais, se alojam em cortiços, antigos quilombos ou constroem moradias em áreas ilegais e desvalorizadas de morros, grotas e pântanos. Com as demolições dos cortiços do Centro pelo Prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, sem indenização, seus moradores passam a ocupar os morros mais próximos.

No século XX a cidade cresce de forma acelerada e o esforço do Estado em construir habitações populares não é suficiente para acomodar o fluxo de imigrantes. Como parte dos salários não era suficiente para a compra ou aluguel de moradias formais restou a solução de morar em terrenos ilegais, por serem mais baratos, próximos aos locais de trabalho e permitirem a construção progressiva e sem regras. A população em favelas cariocas cresce a taxas superiores ao resto da cidade, mesmo com as políticas de remoção de favelas nas décadas de 20 e 60. Em 1948 o censo já registrava 139 mil pessoas vivendo em favelas (7% da população da Cidade do Rio). Esse percentual aumenta para 10,2% em 1960, 13,3% em 1970, 16% em 1990 e 18,7% em 2000, que representava 1,09 milhões de pessoas. Para alguns especialistas esse número chegava a 1,5 milhões, pois o IBGE considera apenas favelas com mais de 51 domicílios.

Além da grande dimensão, as favelas chamam a atenção por suas características urbanísticas. A construção desses territórios se dá a partir de uma adaptação contínua pelos moradores de seus barracos e dos poucos espaços públicos restantes às suas necessidades. Seus espaços resultam de uma arquitetura do acaso, de virtudes aleatórias, democráticas e não-formalistas, que permanecem em continua mutação.

Vários planos de reforma urbana para o Rio de Janeiro viam as favelas como um obstáculo ao desenvolvimento da cidade e defendiam sua remoção para áreas distantes. Nos anos 60, com a percepção da vantagem para a indústria, comércio e serviços da localização próxima da mão-de-obra barata em favelas, dos altos custos construtivos de moradias populares, e com a busca por parte da elite por uma identidade nacional, as favelas começam a ser aceitas como elementos permanentes da cidade. Nessa década, ao mesmo tempo em que são removidas algumas favelas para a construção de vias, de indústrias na zona norte e de habitações para alta renda na zona sul, já são executados os primeiros projetos de urbanização de favelas, que se ampliam após a redemocratização nos anos 80.

Formuladas sem a existência de uma teoria para a "urbanização de favelas" e muitas vezes sem considerar as soluções arquitetônicas e de engenharia que os moradores criaram para a geografia particular de cada favela, muitas intervenções geraram novos problemas, como mortes por contenções de encostas que deslizaram ou canalizações de rios e valas que transbordaram, ou foram rapidamente perdidas, como os sistemas de esgoto construídos na década de 90 no "Complexo do Alemão". Localizados abaixo das calçadas das vias abertas pela intervenção, não puderam ser mantidos após a invasão das calçadas por novas casas.

Enquanto algumas intervenções conseguiram melhorar as condições sócio-econômicas dos moradores, outras foram vistas apenas como uma forma de ampliar o controle social. Algumas obras de alargamento de ruas e becos, pavimentação, iluminação pública e abertura de acessos a pontos inacessíveis da favela foram destruídas por alguns moradores por serem interpretadas como a facilitação do acesso ao território pela polícia.

As intervenções atualmente executadas pelo Estado se beneficiam da experiência acumulada em mais de três décadas. Estas experiências afirmam a importância do conhecimento do modo de vida específico da favela que receberá a intervenção, como suas soluções de arquitetura e engenharia e as necessidades de seus moradores para a garantia do sucesso da intervenção.


João Carlos Ramos Magalhães é técnico de planejamento e pesquisa do Ipea

O Brasil (ainda) precisa planejar

Cartaz Plano Quinquenal Soviético
Carlos Lessa

A expressão “plano” esteve, assepticamente, livre de qualquer viés ideológico, até que, após a Revolução Comunista Soviética, foi utilizada como horizonte e guia político-econômico do Estado nacional. Ali teve início a formulação do I Plano Quinquenal Soviético e foi instalada uma equipe encarregada de planificar a trajetória futura da União Soviética. A partir desse momento, as expressões “plano” e “planificação” passaram a ser identificadas como o modo pelo qual o Estado socialista poderia dispensar as regras do jogo capitalista e atuar de forma organizada para a evolução da nova sociedade.

Em sentido amplo, propor fazer um plano nacional e instalar um processo de planificação marcavam uma posição de esquerda, e o debate ideológico passou a repudiar essas expressões como sínteses de uma prática hostil ao capitalismo, que buscavam a transformação e o desenvolvimento econômico de uma nova ordem social e política.

As imperfeições microeconômicas da economia de mercado já haviam sido mapeadas pela análise neoclássica. As visões teóricas de um monopólio bilateral entre as relações do capital patronal e o trabalho assalariado já insinuavam ajustes institucionais em direção ao que se denominou economia social de mercado. O receituário político-econômico da economia política clássica liberal inglesa e as derivações da teoria do equilíbrio geral neoclássico haviam feito evoluir da ideia de Estado gendarme, guardião de contratos e do livre jogo de mercado e decantado como paradigma liberal à figura do Estado mínimo, com os mais reduzidos instrumentos de atuação discriminatória. Houve um presidente chileno, Barros Lugo, que afirmou ser “muito fácil” seu cargo, pois os problemas ou eram auto-solucionáveis, ou não tinham solução e ele não tinha com o que se preocupar - e passou à história como nome de saboroso sanduíche local.

Como é sabido, as industrializações nacionais que se sucederam à Revolução Industrial no século XIX haviam recusado o corpo de princípios da economia liberal e praticado reformas institucionais, operado instrumentos discriminatórios, realizado subsídios e investimentos e ampliado, pragmaticamente, o âmbito e a profundidade das políticas públicas. Cometeram heresias e praticaram pecados mortais para o liberalismo de mercado. Contestaram, teoricamente, a capacidade da livre-economia de mercado de conduzi-los ao desenvolvimento industrial e de fortalecimento geopolítico. Assim fez a teoria da nacional economia sustentando o projeto industrializante nacional alemão; assim, o historicismo francês justificou a França de Napoleão e seu esforço de amplificação colonial. O Japão fez uma “reciclagem”, preservando o xintoísmo e atribuindo ao imperador – aceito como divino – o poder absoluto, implantador da Revolução Meiji.



A Rússia czarista aboliu a servidão e fomentou, pelo Estado, a instalação de núcleos industriais; o poder absoluto foi acionado em nome da preservação nacional russa. Entretanto, todos esses países, uma vez industrializados, abandonaram, ideologicamente, seus discursos pró- -industrialização como projeto nacional e passaram a defender, ideologicamente, os princípios da economia liberal. Chutaram, pragmaticamente, o andaime teórico anterior e, como potências, expandiram cosmicamente suas ambições geopolíticas.

A I Guerra Mundial desmoralizou o sonho da belle époque e deslocou o epicentro industrial da Inglaterra para os EUA, que se converteram em campeões do livre-mercado. A evolução da II Revolução Industrial, iniciada antes da I Guerra Mundial, foi pontilhada de desajustes monetários-fiscais que, como tremores sísmicos, antecederam o terremoto macroeconômico da Grande Crise de 1929 e mergulharam as potências nas preliminares de um segundo conflito mundial.

Do ponto de vista latinoamericano, o sonho de uma economia industrializada tinha ficado circunscrito a escassos pensadores. Entretanto, a filosofia alemã hegeliana e a economia nacional de List haviam se instalado no espaço universitário. No Brasil, houve a Escola de Recife; no Chile, com dois ou três anos de diferença, foi impresso o livro de List. Após a I Guerra Mundial, o romeno Manoilesco formulou a teoria da “indústria nascente” e de “sistema industrial”; seu livro foi impresso no Brasil em 1931 (dois anos após sua edição em romeno), por Roberto Simonsen, campeão do projeto de industrialização e liderança empresarial brasileira.

A filosofia positivista sublinhava a ideia da sociologia como o ápice da engenharia racional humana; teve enorme passagem pela América Latina, no final do século XIX e décadas iniciais do século XX. O sucesso do desenvolvimento decimonônico da economia norteamericana já havia gerado o discurso bolivariano, convocando a Iberoamérica a reproduzir a experiência das treze repúblicas.

Entretanto, foi a II Guerra Mundial que abriu caminho, na América Latina, para a ideia de planificação nacional como modo de operar a política econômica, segundo uma trajetória de crescimento e com vistas à transformação estrutural da economia nacional do país latinoamericano. Com temor da patrulha ideológica, a Cepal virou a referência crítica, a visão ricardiana do livre comércio liberal e da organização de um plano de investimentos público-privado, substituindo a expressão “planificação” pelo neologismo político-econômico “programação”.

O Brasil – que, com Getúlio Vargas, havia sido keynesiano antes de Keynes, que havia desenhado o sonho da industrialização desde matrizes positivistas até a literatura infantil de Monteiro Lobato foi quem apoiou, diplomaticamente, Prebish e a Cepal. A frustração com a não-inclusão do país no Plano Marshall leva o Brasil, nos anos 1950, a praticar, pragmaticamente, infrações frontais ao neoliberalismo, ao adotar, explicitamente, o Plano de Metas e consagrar a industrialização e a urbanização como núcleos estratégicos de um projeto nacional desenvolvimentista.

Da defesa varguista da economia do café no “terremoto” de 1929, até o projeto de Brasil-potência, o país fez crescer o PIB em torno de 7% ao ano.

Com a crise da dívida externa e a instalação do Estado de Direito da Constituição de 1988, houve um mergulho na hiperinflação e na desaceleração do crescimento. A partir de 1980, o Brasil mergulha na
mediocridade macroeconômica. Há um repúdio ao sonho da industrialização nacional e incorporamos o neologismo “globalização”, como versão atualizada do neoliberalismo, agora sob hegemonia ideológica do epicentro dos EUA. O Brasil passou a não discutir projeto nacional e afirmou que, se integrando à economia mundial, chegaria, à la Pangloss, ao melhor dos mundos possíveis.
A vitória norteamericana na Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlin, marca a hegemonia e a superimposição político- -econômica do Consenso de Washington. No Brasil, abandonamos a discussão de desenvolvimento alternativo apoiado no mercado interno e nos propusemos a ser “celeiro do mundo” (apesar da fome dos brasileiros) e fornecedores de matérias primas para as potências industrializadas e para a China em industrialização. No entanto, a crise mundial iniciada em 2008 promete vicissitudes que recolocarão o debate sobre o futuro brasileiro. Necessariamente, será a ideia de planejar a reativação de um projeto nacional brasileiro. O Estado terá de ser reformado e reequipado com instrumentos de ação discriminatória, muitos dos quais abriu mão em nome da “integração competitiva” à globalização e de uma privatização desnacionalizante do sistema produtivo.

Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). É membro do Conselho de Orientação do Ipea.

domingo, 27 de maio de 2012

O poder de persuasão do coronelismo


Na sua origem, o coronelismo consistia em um sistema de poder político que centralizava grande domínio nas mãos de uma única pessoa - geralmente um proeminente homem local, na figura de grandes proprietários de terras, industriais ou comerciantes. Prevaleceu no Brasil no período da República Velha (1889-1930).
Personagem influente no imaginário nacional por suas façanhas e malvadezas contadas na literatura e cantadas em música, presença cativa no folclore político brasileiro, o "coronel" também é sinônimo de um Brasil arcaico que ainda hoje sobrevive em várias regiões brasileiras.

A patente de "coronel" surgiu da participação na Guarda Nacional (criada em 1831 com a deposição de D.Pedro I), que assegurou a ordem interna no País durante o Império. Como apenas os mais abastados tinham condições de arcar com os custos da compra de uniformes e armas para pertencer à Guarda Nacional, o governo da Regência (1831-1840) colocou os postos militares da Guarda Nacional à venda: só não havia o posto de general porque este era prerrogativa do Exército. Com o tempo, o "coronel" passou a ser visto pela população como homem poderoso, de quem os demais eram dependentes. O "coronel" não era uma pessoa qualquer, era "o dono do lugar". Proclamada a República, a Guarda Nacional foi extinta, mas os coronéis de patentes compradas permaneceram na posse do título, do poder e das vantagens do posto.
A evolução do termo e do personagem aponta algumas identificações regionais, como o "coronel caudilho" no Sul, o "coronel de barranco" nos rios amazônicos da região Norte, o "coronel donatário" nos sertões do Nordeste e o "coronel empresário" na região Sudeste. Ainda que as características variem, a estrutura de poder permanece a mesma.
Os estudiosos costumam identificar três tipos de coronelismo: o tribal, patriarca de um clã, cujo poder se espalha por vários municípios e deriva dele pertencer a uma família tradicionalmente poderosa; o personalista, que deve tudo ao seu carisma pessoal, tem atributos que são próprios e particulares, impossíveis de serem transmitidos por herança e que geralmente desaparecem com a sua morte; e o colegiado, formado por aqueles mais estáveis, que dirigem os negócios políticos em comum acordo com outros coronéis, sem grandes desentendimentos no grupo.

Rapidinhas ... Proclamação da República no Brasil

A implantação da República no Brasil ocorreu no mesmo ano dos festejos do centenário da Revolução Francesa.
Os jacobinos republicanos brasileiros idealizavam um início de República com o povo lutando pelas ruas, mas a realidade foi bem outra: a república foi proclamada por um grupo de militares, sem participação popular, fosse de apoio aos republicanos ou de defesa da monarquia que caía. Na interpretação decepcionada de Aristides Lobo, protagonista da República, o povo teria assistido `bestializado` à instalação da nova forma de governo.
Muitos intelectuais e jornalistas procuraram demonstrar a posição neutra do povo no evento. Hoje, a participação do povo e sua compreensão sobre o momento político têm outras interpretações.
Fonte: História - Ronaldo Vainfas e ouros. Saraiva, 2010.

sábado, 12 de maio de 2012

Os bastidores do conflito entre jesuítas e colonos



Pesquisa desenvolvida para a tese de doutoramento de Joely Ungaretti Pinheiro, apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, mergulha num dos mais importantes episódios da história do Brasil, o processo de colonização, e promove um resgate minucioso dos conflitos ocorridos entre jesuítas e colonos por conta do uso da mão-de-obra escrava indígena. 

De acordo com o levantamento feito pela autora, após consulta a documentos da época arquivados no Brasil e em Portugal, a relação entre as duas partes, que sempre foi marcada pela tensão, tornou-se crítica com a promulgação do breve (espécie de decreto) do papa Urbano VIII em abril de 1639.
Senhores de São Paulo e do Maranhão expulsaram missionários
O documento ameaçava de excomunhão todo aquele que mantivesse um índio cativo. A posição da Igreja contrariou os senhores de escravos, que reagiram de forma surpreendente: hostilizaram e, no caso das capitanias de São Paulo e do Maranhão, expulsaram os religiosos.

O trabalho de Joely Pinheiro, orientado pelo professor Fernando Novais, um dos mais prestigiados historiadores nacionais, concentrou-se no período compreendido entre 1640 e 1700, no qual estava em curso o processo de colonização da América Portuguesa, dentro do Antigo Sistema Colonial. 

As áreas de conflitos estudadas pela pesquisadora correspondem aos atuais estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. À época, explica a autora, essas zonas caracterizavam-se, entre outros aspectos, pelo isolamento, falta de dinamismo da economia e quase impossibilidade da aquisição de escravos africanos, quando comparadas ao nordeste açucareiro. 

Assim, o uso da mão-de-obra compulsória do índio apresentava-se como fundamental para a sustentação das atividades produtivas. Ocorre, porém, que um dos principais argumentos utilizados pela Coroa Portuguesa para a colonização da América era converter os gentios à fé católica, obviamente com as bênçãos de Roma. 

Surge aí um primeiro paradoxo, conforme a economista. Uma vez evangelizado, o índio passaria a ser considerado cristão ou, em outras palavras, um irmão. Conseqüentemente, não poderia ser mantido como escravo. Por outro lado, o fim da escravidão acarretaria um enorme impacto para a exploração econômica da Colônia, que em última análise sustentava as obras da própria Igreja. 

A solução encontrada por Roma para o problema foi a criação das missões jesuíticas, por meio da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola. O principal objetivo dessa ordem religiosa na colônia era catequizar os gentios. “Embora tenham enfrentado o desafio de ‘catequizar sem explorar’, na América Portuguesa em particular os jesuítas participaram de um processo em que a escravidão conviveu com a servilização do índio”, destaca Joely.

As primeiras missões jesuíticas chegaram ao Brasil em 1549, portanto menos de meio século depois do “descobrimento”. Nos anos subseqüentes, de acordo com a autora do estudo, cresceu o poder político e financeiro da Companhia de Jesus no país, ao mesmo tempo em que aumentou o número de aldeias e missões voltadas ao objetivo de assegurar a liberdade dos indígenas.

“Nessa época, já se registravam conflitos entre padres e colonos em razão dos interesses divergentes entre as duas partes. Afinal, o fim da escravidão representaria uma grande perda econômica para os fazendeiros e senhores de engenho. Essa tensão, porém, ganhou contornos dramáticos após a promulgação do breve papal em 1639. Por conta da posição da Igreja, os jesuítas foram hostilizados, sofreram ameaças de morte e chegaram a ser expulsos das capitanias de São Paulo e Maranhão”, revela.
Excomunhão – Apenas para se ter uma idéia do clima que reinava na Colônia, em 1640, um ano após a divulgação do decreto do papa Urbano VIII, todas as pessoas que desembarcavam no porto de Santos eram revistadas para saber se não traziam consigo cópias do documento emitido por Roma. O decreto condenava à excomunhão os que mantivessem um índio cativo. 

“Tratava-se de uma determinação muito séria, pois a excomunhão trazia subjacente uma série de restrições de ordem social, como não poder receber os sacramentos ou casar-se na igreja”, esclarece Joely Pinheiro. 

Apesar dessa ameaça, prossegue a pesquisadora, os colonos reagiram duramente. As manifestações mais violentas foram registradas em São Paulo. “Além de serem hostilizados, os padres foram expulsos e permaneceram exilados da capitania por 13 anos. Os religiosos só puderam voltar depois de garantir que a pena imposta pelo pontífice não seria aplicada”. 

No Rio de Janeiro, de acordo com a economista, ocorreram vários tumultos e ameaças aos jesuítas, mas eles não chegaram a ser expulsos. Entretanto, para permanecer na capitania os padres também tiveram que se render às exigências dos colonos. Ao cederem a essa pressão, analisa Joely, os religiosos se viram diante de uma segunda contradição. 

Enquanto os membros das outras ordens religiosas fazem três votos no momento da ordenação (obediência, castidade e pobreza), os integrantes da Companhia de Jesus fazem quatro, sendo acrescido o voto de obediência ao papa. Assim, ao não excomungarem os patrocinadores da escravidão indígena, eles deixaram de obedecer ao chefe da Igreja. 

No Maranhão, aponta a pesquisa de Joely, os jesuítas apresentaram maior resistência aos protestos dos colonos. “Lá foram travadas longas e intensas batalhas jurídicas entre as duas partes em torno da liberdade do índio, principalmente por causa do padre Vieira. Como não poderia deixar de ser, isso acentuou as divergências e tornou o clima entre os dois lados ainda mais belicoso. O resultado desse embate é que os padres foram expulsos por duas vezes daquela capitania: uma em 1661 e outra em 1684”, relata a autora da tese.
Idas e vindas – O período tomado para análise por Joely Pinheiro foi marcado por uma série de idas e vindas em relação às leis de cativeiro indígena. Dependendo das circunstâncias e da autoridade de plantão, a legislação ora privilegiava a liberdade do índio, agradando os jesuítas e conseqüentemente Roma, ora defendia a escravidão, atendendo os interesses dos moradores da Colônia, cujas atividades produtivas geravam riquezas à Coroa Portuguesa. 

A despeito desta “queda de braço”, a economista considera que, no caso específico da América Portuguesa, a Igreja Católica soube se adaptar à realidade política, cultural e econômica em vigor. De acordo com ela, Roma e seus emissários tinham claro que a escravidão era um “mal necessário”.

Dito de outro modo, se não houvesse o uso compulsório da mão-de-obra indígena, a exploração econômica da Colônia, que ajudava a sustentar as obras da Igreja em todo o mundo, seria afetada. Por outro lado, a continuidade da escravidão apresentava-se como um impedimento à conversão dos gentios. 
Um artifício empregado para resolver esse impasse foi a “guerra justa”, cujo conceito mais amplo era admitido pela Igreja. No caso específico do índio, o princípio era aplicado para escravizá-lo, sob duas justificativas: a recusa à conversão e a prática de atos hostis contra os portugueses.
“Ocorre que, não raro, os indígenas eram atacados e escravizados sob a falsa alegação de que haviam cometido alguma violência contra os portugueses ou negado o recebimento do evangelho”, afirma Joely.  Para a realização da pesquisa, a economista recorreu a uma vasta documentação da época, como correspondências, alvarás, decretos, leis etc. A maior parte das fontes manuscritas são oriundas de arquivos portugueses: Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional da Torre do Tombo e Real Biblioteca d’Ajuda. 

No Brasil, a pesquisadora valeu-se, entre outros, de documentos pertencentes à Biblioteca Nacional, que fica no Rio de Janeiro. Uma das preocupações da autora foi tornar, na medida do possível, a grafia e a gramática do século XVII compreensíveis ao leitor da atualidade. O estudo contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo(Fapesp).
Uma razão para a colonização
“(...) Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa Santa Fé Católica, vos encomendo muito para isso se pode ter, e de minha parte lhes direi que lhes agradecerei muito terem especial cuidado de os provocar a serem cristão, e para eles mais folgarem de o ser, tratem bem todos os que forem de paz, e os favoreçam sempre, e não consintam que lhes seja feita opressão nem agravo algum, e fazendo-se façam corrigir e emendar de maneira que fiquem satisfeitos e as pessoas que lhas fizerem sejam castigadas com justiça”. 
(Regimento de Tomé de Sousa – 17/12/1548)
Jornal Unicamp

O desencadear da polêmica sobre os jesuítas e guaranis pelo Marquês de Pombal



Beatriz Helena Domingues
Este artigo é resultado parcial de pesquisa financiada por uma bolsa de International Visiting Scholar pelo Woodstock Theological Center, na Georgetown University, Washington DC, USA, em 2004.
Universidade Federal de Juiz de Fora. 

Em 1758, um ano antes da ordem de expulsão dos jesuítas do Brasil e de Portugal, foi publicado em Lisboa um livreto, naquela ocasião anônimo, intitulado Relação abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas das provincias de Portugal, e Hespanha, estabelecerão nos dominios ultramarinos das duas monarchias, cuja autoria foi depois atribuída ao Marquês de Pombal. Neste panfleto parece explícita a intenção antijesuítica do autor de justificar sua campanha de perseguição aos jesuítas, no Brasil mas também em Portugal, ante seus compatriotas portugueses, europeus e mesmo brasileiros. Entre as principais acusações contidas neste texto destacavam-se: a resistência dos jesuítas à aplicação do Tratado de Madri, celebrado entre Portugal e a Espanha para a delimitação de fronteiras na América do Sul; a oposição, no Brasil setentrional, às leis que regulavam a administração das aldeias de índios; o exercício de atividades comerciais proibidas a religiosos; a decadência dos jesuítas portugueses; a difamação do rei no estrangeiro; e a participação, pelo menos moral, dos referidos padres no atentado contra D. José e na revolta popular do Porto ocorrida em 175712. A ampla difusão do texto deste livreto nos interessa aqui, não só como uma interpretação (portuguesa) das missões guaranis, mas também por suas possíveis ressonâncias na obra da Basílio da Gama e, em menor escala, na novela de Voltaire. Ou seja, na relação entre pequenos e grandes textos no "âmbito de discurso" da Ilustração.
O panfleto bilíngüe (francês e português) está dividido em duas partes: a primeira, redigida pelo marquês, e a segunda, um apêndice com documentos que "conferiam veracidade" às razões por ele apontadas em sua argumentação a favor da expulsão dos padres e dos próprios índios das missões. O livreto contém uma avaliação altamente negativa da ação jesuítica, posteriormente rejeitada por interpretações otimistas da experiência, tais como a de Cardiel e a de uma suposta "utopia guarani nos trópicos", por Josep Perramás, em 1787. Pombal apresenta uma explicação, para um público europeu, eu diria mais especificamente português, do que vinha acontecendo nas missões jesuíticas nas regiões fronteiriças entre Portugal e Espanha na América do Sul. O argumento central é que, na medida em que os padres jesuítas desobedeciam às fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madri, não se submetendo nem à coroa portuguesa nem à espanhola, estava mais do que justificada uma ação enérgica contra um iminente levantamento dos súditos indígenas sob os auspícios da Cia, da Jesus. À medida que descreve os acontecimentos ­ a chegada dos emissários reais às aldeias, a reação ou fuga de índios desabastecendo as missões ­ Pombal fornece uma seqüência bem costurada das ações espúrias dos inacianos para controlar os índios e insuflá-los contra a coroa, conforme documentadas pelo corregedor Gomez Freire de Andrade: 1) Proibição de entrada de outros emissários eclesiásticos ou civis nas missões paraguaias, principalmente os portugueses, mas também os espanhóis, reconhecendo que o ódio aos primeiros era ainda maior. Os padres proibiam os índios até mesmo de estabelecerem comunicação com os colonizadores espanhóis e portugueses já há longo tempo instalados; 2) Proibição do idioma espanhol. Como os apêndices anexados ao final do texto confirmavam, toda a "literatura subversiva" foi escrita em tupi-guarani. É sabido que, na Ibéria, uma importante divergência entre os representantes do Despotismo Esclarecido e os jesuítas estava no uso das línguas nacionais ou vulgares, defendido pelos primeiros, ou do latim, idioma que continuou a ser usado pelos autores jesuítas em seus escritos. Nas colônias, entretanto, os inacianos demonstraram uma impressionante capacidade de aprendizagem das línguas locais, fosse na América ou na Ásia, utilizando-se destas no trabalho de conversão; 3) Os jesuítas ensinam aos índios os princípios da Igreja católica condicionando-os à obediência a eles mesmos. Foi dessa forma que "conseguirão preservar por tantos annos aquelles infelices Racionaes na mais extraordinaria ignorancia, e no mais duro, e inssofrivel (sic) cativeiro, que se vio até agora":
Soberanos despóticos de seus Córpos e Almas: Ignorando que tinham Rey a obedecer, criam que no mundo não havia vassalagem, mas que tudo nelle era escravidão. E ignorando em fim, que havia Leys, que não fossem as da vontade de seus Santos Padres (assim os denominarão).13
Estabeleciam, portanto, "entre os Índios a eles submetidos de corpo e alma, axiomas impróprios à sociedade civil e à caridade Cathólica". Os referidos padres faziam os índios acreditarem que todos os homens seculares eram homens sem lei nem religião que "adoravam o ouro como corpo religioso e traziam o diabo no próprio corpo". Isso seria parte da estratégia de fazer crescer entre os índios um ódio implacável contra os brancos seculares. Segundo o relato de Gomez Freire de Andrade, no qual se baseia o texto, os índios justificavam seu desconhecimento das leis reais dizendo que "el Rey estava muito longe, e que elles só conheciam seu Benedito Padre"14. Ainda segundo o mesmo relato, alguns nativos confessavam ter cortado a cabeça de alguns portugueses capturados porque "seus Beatos Padres lhes garantirão que os Portuguezes fariam o mesmo" se os capturassem antes15. Segundo Pombal, "a obediência cega implantada no seio das famílias indígenas coloca-as em um estado de escravidão pior do que o dos negros em Minas Gerais", garantindo o poder de persuasão.
Outro aspecto criticado era o ensino do manejo das armas aos nativos, que possibilitaria a reação organizada contra as coroas ibéricas. O que os jesuítas queriam, por trás disso, era "manter o controle sobre os territórios e o trabalho dos Índios" e, como estratégia, ofereceram à coroa uma trégua, da qual se serviram para se mudar para outros povoados e melhor se armarem. Um recurso utilizado pelos padres era despovoar as aldeias tidas como perdidas para os brancos, de tal forma que não deixassem suprimentos que permitissem aos vencedores sobreviver deles. Ao condenar tal recurso, Gomez de Andrade e Pombal apelam para os valores da "Religião e da Humanidade": consideram inadmissível que se destruam igrejas, imagens, fontes de abastecimento, etc.
Uma vez constatada essa situação nas missões, era mister que as cortes espanhola e portuguesa se movimentassem para reprimir as sublevações, e os exércitos espanhol e português se uniram para "protegerem-se dos ataques dos índios". Também na Amazônia, somos informados por Pombal, os jesuítas excediam as leis eclesiásticas e régias. Esses atos expressavam a deterioração das relações entre a coroa e os inacianos, que já vinha de algumas décadas, culminando nas Ordens de 1756 que acusavam os jesuítas de desrespeitarem ao tratado de Madri, insuflar os índios por todo o interior contra os serviços do Estado os Ministros e Oficiais de Sua Majestade Fidelíssima, ameaçando-os com o poder da Cia. de Jesus no reino. Os inacianos eram também responsabilizados pelo despovoamento das aldeias do caminho do Rio Negro para que as tropas reais, que vinham fazer as demarcações dos limites dos domínios das duas monarquias, perecessem por falta de víveres e remédios.
É interessante chamar a atenção para o uso feito por Pombal das fontes primárias. Além de embasar-se no relato de Freire de Andrade, ele fundamenta a veracidade de suas afirmações em um diário cuja autoria não revela. Isso é especialmente importante por ter sido esse o documento apresentado uma das principais peças de acusação contra a Cia. de Jesus: é nesse diário anônimo que se encontram as mais detalhadas descrições de aldeias despovoadas e destruídas antes de serem capturadas, a justificar a necessidade de recrutar índios em outras aldeias para acompanharem as tropas reais. O recurso às armas não teria passado de um segundo estágio das maquinações artificiosas dos jesuítas para ajudá-los a se sustentar, juntamente com seus colegas religiosos espanhóis, naquelas fronteiras do norte. O padre jesuíta Aleixo Antonio teria chegado a se infiltrar entre os oficiais portugueses com o pretexto de lhes aplicar os Exercícios Espirituais.
Os quatro documentos incluídos nos apêndices têm algumas características em comum, segundo o compilador: foram todos "escritos na língua dos índios e traduzidos fielmente para o português"; e são todos eles documentos apresentados como provas das maquinações jesuíticas contra os interesses da coroa portuguesa. Uma questão que não pode passar despercebida é quem os teria traduzido, uma vez que o próprio autor reforça, várias vezes, que somente os inacianos conheciam as línguas indígenas. O primeiro apêndice consta de uma cópia das "Instruções que os Padres, que governão os Indios, lhes derão quando marcharão para o Exercito". É o único dos documentos (provas) que não tem data, procedência (nenhuma informação de como ou onde foi achado) ou autoria. Ainda assim, é o que abre a parte contendo as provas documentais nas quais se baseava a ordem de expulsão: seu conteúdo parece o mais forte para embasar a argumentação de Pombal sobre o perigo iminente representado pelas missões para os interesses do império português na América do Sul. O texto apresenta os jesuítas insuflando os índios, em nome de Deus, a mover guerra contra espanhóis e portugueses, que causam ainda mais prejuízos aos índios. Ou seja, embora os padres incitem os nativos também contra os espanhóis, "o objetivo principal deles são os portugueses não jesuítas". O(s) autor(es) "jesuíta(s)" (?) deste documento anexado se opõe(m) expressamente ao envio de Gomez Freire de Andrada às missões, pois "que obra tão mal, enganando a seu Rei e a nosso bom Rei". Uma vez que engana o Rei, Gomez Freire enganaria a Deus. E, como foi Deus quem deu as terras aos índios, não será um ímpio traidor de Sua Majestade quem irá ordenar-lhes retirarem-se delas.
Interessante notar a inversão do uso da figura real por Pombal e pelo Autor das referidas "instruções". Enquanto os adeptos do Despotismo Esclarecido identificavam Deus com o rei e o "demônio com os jesuítas", os inacianos (e seus "aliados" indígenas) classificam os portugueses como emissários do demônio e o rei, ao qual servem, de Deus. É "por sua intrínseca relação com Deus que não é cabível acreditar que o Rei pudesse se opor ao santo empreendimento missionário", afirma o documento atribuído aos índios, mas cujos indícios conduzem a um (ou mais) jesuíta disfarçado de cacique, conforme sugere o texto de Pombal16. Ou seja, os supostos autores (jesuítas) do documento argumentam a favor da sua relação com o rei e com Deus: além de terem vindo dedicando suas vidas às colônias do rei português, sempre que Sua Majestade necessitou, foram os "Apóstolos de Cristo" que se prontificaram a ir para a área do Paraguai. Por que então, agora, vêm esses "agentes reais nos dizer que devemos entregar nossas terras, nossas lavouras e nossas estâncias"? "Como poderiam então os nativos acreditar que sejam de fato ordens do Rei, quando é sabido que o Rey [, "que o Rei sempre nutriu amor por nós"] age de acordo com os desígnios de Deus e não do demônio?". Portanto,
(...) com grandíssima alegria nos entregamos à morte antes que entregar as nossas terras. Por que não da esse nosso Rey aos Portuguezes Buenos Ayres, Santa Fé, Corrientes y Paraguai? Só ha de recahir esta ordem sobre os pobres Indios, a quem manda que deixem as suas casas, suas Igrejas, e enfim quanto tem, e Deos lhe ha dado?17
O documento termina com o líder indígena propondo um encontro com, no máximo, cinco castelhanos, já que não acredita nos portugueses, por mais que lhe prometam que nada lhes acontecerá. Ao mesmo tempo, adianta que o intérprete da negociação será um "padre" (jesuíta), pois são os únicos que sabem ler a língua dos índios. Pombal parece sugerir que o 'autor' desta peça, ao mesmo tempo em que supostamente elogia o rei e as suas boas relações com os Apóstolos de Cristo e com os vassalos indígenas, está não somente justificando a desobediência às ordens reais (sob o argumento de que não acreditava provirem elas de fato dele), como incitando os índios a se organizarem militarmente e lutarem contra a implementação delas.
O título do documento contido no terceiro apêndice diz mais do que alguns parágrafos de comentários. Trata-se de uma "Carta sedisiosa e fraudulenta, que se finge ser escrita pelos Cassiques das Aldeias Rebeldes ao Governador de Buenos Ayres":
Sendo inverossivel que se mandasse ao dito Governador, e que o mais natural he que se compos debaixo daquelle pretexto para se espalhar entre os Indios, ao fin de lhe fazer criveis os enganos, que nella se contém, escrita na lingua guarani, e dessa traduzida fielmente para a lingua Portugueza.18
O que se exorta no documento atribuído aos caciques é a união dos povos indígenas em reação à injusta ordem de expulsão de suas aldeias. Fica claro que o(s) autor(es) tem(têm) noção da disputa territorial entre Portugal e Espanha, podendo ser essa a motivação para endereçar a carta ao Governador de Buenos Ayres. Neste sentido, funciona como uma espécie de ameaça aos portugueses. A sua inclusão no apêndice parece ter a intenção de mostrar não somente a falsidade da autoria como, principalmente, de realçar o que então ocorria e se programava: uma rebeldia organizada contra a coroa portuguesa, sustentada pelos jesuítas.
Repete-se neste documento a assertiva contida no primeiro: os índios (porque aqui seriam eles os supostos autores) não acreditam que a ordem de desocupação de suas aldeias procedesse de fato do rei. E por motivos claramente aprendidos dos jesuítas: por ser o rei um enviado de Deus e não do demônio e por ter estado Sua Majestade sempre ao lado dos índios (inclusive quando da recente lei de 1742 que lhes garantia a liberdade). Ao mesmo tempo, também como no primeiro manuscrito, é a Deus que os caciques atribuem a doação das terras que habitam aos seus antepassados. E como foram eles, os índios, quem as cultivaram, é a eles que elas pertencem. Garantem os "caciques" que não somente enviaram correspondências ("Papéis") ao rei, tentando esclarecer o engano, como dele receberão resposta ("Papéis"), que não coincidiam com as ordens que agora lhes chegam. Segundo eles, o rei notará a contradição entre os "Papéis" (correspondência entre eles e o rei) e a "Carta" (de expulsão) e ficará do lado deles. Além de enviarem ao rei, garantiam ter remetido a correspondência ao próprio Papa, para que pudesse tomar conhecimento do que de fato se passava. Com isso tentavam transmitir confiança aos demais caciques e povos para agirem de forma coordenada.
O último apêndice consta de uma "Convenção celebrada entre Gomez Freire de Andrada, e os Cassiques para a suspensão das armas" datada de 1754, sem qualquer menção subseqüente sobre sua implementação ou não. O documento insinua que os guaranis merecem punição por seus atos, embora não sejam completamente responsáveis por eles: Até porque Pombal não parece ver nesses "selvagens" e "bárbaros" capacidade de reação organizada contra suas reformas ou ao Tratado de Madri sem a decisiva influência dos inacianos. Como outras peças antijesuíticas apócrifas difundidas no período, o documento referia-se à riqueza, ao poder e maquiavelismo dos padres. Um dos mais conhecidos, intitulado Monita Secreta, expunha as "regras secretas da Companhia de Jesus" que seguiam a máxima "os fins justificam os meios": autorizavam-se os comportamentos mais desmedidos tendo em vista o aumento do poder da ordem19. Uma exemplificação deste poder era o tema de outro libreto anônimo intitulado Historia de Nicolás I, rey de Paraguay y emperador de los mamelucos20. Ambos já circulavam antes do livreto de Pombal e da expulsão dos jesuítas do Brasil, e continuaram a fazê-lo nos anos seguintes. Na mesma ocasião, a estória de Nicolás I foi refutada pelo padre jesuíta Josef Cardiel, que morou entre os guaranis e testemunhou as guerras guaraníticas entre 1754 e 1759. Ele escreveu, ainda em 1758, Declaracion de la verdad contra un Livélio infamatorio contra os PP. Jesuitas Missioneros del Paraguay, y Marañon, explicitamente respondendo às calúnias contidas na Relação Abreviada da República que os religiosos jesuítas estabelecerão no Paraguai, de Pombal, e no apócrifo Historia de Nicolás I, rey de Paraguay y emperador de los mamelucos. Seu texto foi considerado por Sérgio Buarque de Holanda a melhor fonte para conhecer o que de fato se passou no Paraguai por ocasião da expulsão dos jesuítas e da resistência dos guaranis às ordens das coroas portuguesa e espanhola21.

terça-feira, 8 de maio de 2012

O DIA DOS TRABALHADORES



O DIA DOS TRABALHADORES
Ricardo Barros Sayeg
No dia 1º de maio comemora-se o Dia do Trabalho em vários países ao redor do mundo. A escolha da data aconteceu em 1886, na cidade norte-americana de Chicago, quando milhares de trabalhadores protestavam contra as péssimas condições de trabalho e a alta carga horária (13 horas) às quais eram submetidos diariamente. Foi, então, que em 1º de maio deste ano os trabalhadores se reuniram e deu-se uma greve que paralisou os Estados Unidos. No dia 3 iniciou-se a repressão e o resultado culminou em diversos trabalhadores assassinados e outros tantos feridos. As manifestações e os protestos ficaram conhecidos como a “Revolta de Haymarket.”
Em 1889, em Paris, a Segunda Internacional instituiu o 1º de maio como a principal data dos trabalhadores organizados, utilizada para celebrar as conquistas e a luta dos trabalhadores ao longo da história. Em 23 de abril de 1919, o congresso francês proclamou o 1º de maio como feriado nacional e sancionou que a jornada de trabalho deveria ser de 8 horas naquele país europeu. Após a França, foi a Rússia que instituiu o Dia do Trabalho como feriado.
No Brasil, entretanto, o trabalho nem sempre foi visto como algo nobre, que gerasse o engrandecimento humano. Durante o período colonial brasileiro, por exemplo, aqueles que trabalhavam eram somente os escravos. De acordo com Antonil, em seu livro Cultura e Opulência do Brasil: “Os Escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente” (ANTONIL, 1982, p.89).
Calvino e sua doutrina religiosa também valorizavam o trabalho e a poupança. Para o religioso, somente o trabalho levaria os homens à salvação, a obterem um lugar no reino dos céus.  
E foi a partir da Revolução Industrial e da consolidação do trabalho assalariado que o trabalho passou a ser visto com olhos mais distintos. Isso, associado à cultura puritana, atribuiu ao trabalho muitas das qualidades que vemos hoje.
Aqui no Brasil, o 1º de maio foi instituído como dia do trabalho em 1925, por decreto do então presidente Arthur Bernardes. Desde esse ano a data foi comemorada de diversas formas: em 1940, o presidente Getúlio Vargas utilizou o 1º de maio para anunciar o novo salário mínimo. Em 1941 a data foi usada para marcar a criação da Justiça do Trabalho, que visava resolver os conflitos existentes entre os trabalhadores e seus patrões. Mas na Bahia, durante 55 anos, não se comemorou esta data em virtude da natureza contraditória da ocasião: o dia dedicado ao trabalho era feriado. Só em 1980, Antônio Carlos Magalhães, então governador da Bahia, promulgou a data como feriado em todo estado.

       Hoje, perdeu-se um pouco do caráter reivindicativo do dia e o 1º de maio é utilizado mais para as festas e shows realizados pelas diversas organizações trabalhistas, ocasião em que são sorteados prêmios para os trabalhadores como casas e automóveis. Triste fim para uma data que teve origens tão importantes e nobres.

Ricardo Barros Sayeg é mestre em Educação pela USP. Formado em História e Pedagogia pela mesma universidade, é diretor de escola e professor de História do Colégio Paulista (COPI).